• Nenhum resultado encontrado

Okutá orun iná otá! o fogo transatlântico do encontro de xangô com a dança do bugarabu

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Okutá orun iná otá! o fogo transatlântico do encontro de xangô com a dança do bugarabu"

Copied!
100
0
0

Texto

(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA / ESCOLA DE TEATRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS. SANDRA TRINDADE MASCARENHAS. OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ! O FOGO TRANSATLÂNTICO DO ENCONTRO DE XANGÔ COM A DANÇA DO BUGARABU. Salvador / Bahia 2007.

(2) SANDRA TRINDADE MASCARENHAS. OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ! O FOGO TRANSATLÂNTICO DO ENCONTRO DE XANGÔ COM A DANÇA DO BUGARABU. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas das Escolas de Dança e de Teatro da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Fernando A. de Paula Passos Banca Examinadora: Prof. Dr. Renato Ferracini Prof.ª Dr.ª Suzana Martins. Salvador 2007.

(3) Biblioteca Nelson de Araújo – UFBA M395 Mascarenhas, Sandra Trindade. Okutá orun iná otá : o fogo transatlântico do encontro de Xangô com a dança do bugarabu / Sandra Trindade Mascarenhas. – 2007. 253 f. ; il.. Orientador : Profº Drº Fernando Antonio de Paula Passos. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. 1. Dança 2. Etnografia. 3. Performance. I. Universidade Federal da Bahia.Escola de Teatro / Escola de Dança. II. Título.. CDD – 793.

(4)

(5) Dedico essa dissertação a Xangô - Kawo-Kabiyesilé! por guiar meus passos; para meus pais, Gersy e Tácito, que intuitivamente apóiam estes passos e trânsitos desde sempre; para minha filha, Iana, companheira e parceira nos movimentos e trajetos da carreira profissional, no Brasil, na Holanda e na África..

(6) AGRADECIMENTOS. Aos Orixás! À Mãe Stella de Oxossi, Iya Odé Kayodê, por sua altivez, estabilidade e flexibilidade da flecha de Oxossi que lhe conferem atitudes inovadoras de adaptação entre o universo religioso, o feminino e a sociedade. Às admiráveis senhoras do Ilê Axé Opô Afonjá, pela amizade, disponibilidade e confiança. Dona Naná que me apresentou à Mãe Stella e Dona Detinha (Obá Gesin), que sugeriu para o trabalho de campo, a observação do ciclo das festas de Xangô. Ao Fayee Diona, companheiro dessa experiência em cruzamento, pelo tanto que este encontro nos ensinou a desfrutar das nossas diferenças e afinidades culturais. Ao Prof, Dr. Fernando Antonio de Paula Passos por lançar teorias desestabilizadoras e instigadoras de reflexões - os Estudos da Performance, os Estudos Pós-Coloniais e os Estudos Culturais – colaboração pertinente para a composição da escrita desse estudo crítico, enquanto memória e etnografia. Ao Lau Santos, parceiro na trajetória de vida transcultural, por me fazer perceber a arte e a teoria em um só caldeirão de ebulição e dirigir, com sua singular competência, minha performance na ocasião da defesa. Ao Prof. Dr. Vivaldo da Costa Lima pelas contribuições bibliográficas relacionadas à história do candomblé na Bahia e a fonográfica sobre o ritual do Bugarabu. Aos amigos e colegas de mestrado pelo carinho, atenção e contribuições pontuais, entre eles: Makarios Maia, Mônica Mello, Solange Miguel, Yolanta Rykawek, Edyala Iglesias, Wlad Lima, Ana Karine Jansen de Amorin, Adailton Santos, e particularmente à Nadir Nóbrega quem possibilitou o primeiro contato para o trabalho de campo no Ilê Axé Opô Afonjá. Ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, em que destaco: O prof. Dr. Sérgio Farias pela dedicação incansável; Eliana Rodrigues, amiga, profissional paciente e ética, pelos conhecimentos e apoio concedido sempre que necessário; Suzana Martins, pelos esclarecimentos, contribuições bibliográficas e o testemunho do meu trabalho com Fayee na Holanda; Armindo Bião e Antonia Pereira pelas suas contribuições bibliográficas que abriram portas para um entendimento e percepção mais ampla da pesquisa acadêmica. Aos amigos incentivadores do meu interesse pela cultura negra; Rosângela Silvestre, centelha deste processo de identificação profissional; Mamour Ba, pela chama que acendeu e despertou o desejo de atravessar mares; e Augusto Omolu, com quem compartilhei os conhecimentos da Antropologia Teatral, em terras alheias. À Fundação de Auxílio à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), por tornar este projeto possível. À Banca Examinadora: Prof. Dr. Renato Ferracini e Prof.ª Dr.ª Suzana Martins..

(7) As pessoas de teatro sempre foram nômades; elas sempre viajaram com seus palcos nas costas, as exceções eram aquelas companhias contratadas por reis ou príncipes. Estas pessoas estavam imbuídas desta profissão, engajadas na relação com o espectador. Isto não é uma idéia de nação, nem tampouco de pátria, nem de sangue, nem de terra, nem de ideologias ou de crenças que dão sentido à sua profissão. Graças aos atores, o teatro sempre foi um lugar precário que mostrou as aflições da época, da sociedade e deles mesmos. Graças aos atores, o teatro foi o espaço paradoxal da liberdade que desmascarou a ilusão de que “nós somos uma cultura, nós somos uma nação”. (BARBA, Le training de l’acteur, 2000, pp. 89,90 Tradução Lau Santos). Xangô é fogo, é ritmo, é movimento. Mãe Stella de Oxossi.

(8) RESUMO O cruzamento que identifiquei entre as duas manifestações dançantes, o Xangô e o Bugarabu, atuou como impulso, ou melhor, como ‘fogo’ para a composição do presente trabalho, observado, percebido e vivenciado pelo meu corpo, a partir das experiências no Brasil, na Holanda e em Gâmbia. Análises comparativas deste encontro revelaram, além das semelhanças rítmicas e gestuais, o que estas manifestações culturais têm em comum, o fogo da performance, metáfora fundamental para o desenvolvimento da hipótese do caráter transcultural dessas danças. Portanto, fogo e transculturalidade são aqui os focos principais. A transculturalidade será ressaltada, oportunamente, em dois aspectos no decorrer do texto: tanto no que se refere aos deslocamentos culturais que compõem o meu trajeto de vida, quanto às possibilidades de associações transculturais entre as danças de Xangô e do Bugarabu. A pesquisa tomou corpo no diálogo entre este sujeito/objeto transcultural e as teorias escolhidas, que em seu entorno geraram problematizações, complexidades e urgências desse sujeito/objeto à procura ‘permanente’ de um lugar. Que corpo em trânsito é este? A importância acadêmica da pesquisa requer um distanciamento tanto para a produção de conhecimento como para o fazer artístico. Logo, memória, etnografia e performance foram as abordagens que se evidenciaram, ‘gritaram’, na intenção de expor e dar voz às (trans)ligações e interconexões da referida experiência. A fase referente à memória abrange os anos de 1995 a 2003, quando convivi, na Holanda e em Gâmbia, com o músico gambiense Fayee Diona e com a dança do Bugarabu que leva o mesmo nome do instrumento. Fayee constatou a similaridade rítmica entre o Bugarabu e o alujá de Xangô, ponto de partida para a presente pesquisa. Esta experiência transcultural permeada de obstáculos e satisfações deflagrou nossas diferenças e semelhanças culturais e nos levou a realizar um trabalho singular que, por meio dos nossos alunos e espectadores, conseguiu alcançar culturas distintas na Europa. O trabalho de campo abrange o ciclo das festas de Xangô no período de 29 de junho a 11 de julho, nos anos de 2005 e 2006, no terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá, cujo patrono é Xangô. A ialorixá (mãe de santo) da casa, Mãe Stella de Oxossi foi o grande apoio espiritual para a pesquisa etnográfica. O fogo, como urgência da memória e da etnografia, resultou na criação da performance, dirigida por Lau Santos, diretor de renome internacional. O movimento está na escrita. O fogo é movimento. A performance é uma atitude. A atitude aqui se expressa no ritmo, no encontro transatlântico de Xangô com o Bugarabu. Palavras-chave: Xangô, Bugarabu, Fogo, Transculturalidade, Ritual..

(9) ABSTRACT The cross between the expressions of dance, Xangô and Bugarabu, contributed as an impulse, or rather, ‘fire’ to the composition of this work, observed, perceived and experienced by and within this scholar’s body, starting from the experiences in Brazil, The Netherlands and Gambia. Over the similarities of rhythm and gestures, comparative analyzes of this encounter revealed what both dances have in common, the performance’s fire, the fundamental metaphor for the hypothesis’s study of the transcultural character as regards these dances. Therefore, fire and transculturality are the principal focus here. In the course of the text, the transculturality will be emphasized in two aspects: referring to the cultural transits of my life trajectory, as well as referring to the possibilities of transcultural relations between the dances of Xangô and Bugarabu. The researcher’s body was drawn up in the dialogue between this transcultural subject and the theories chosen. This dialogue generated questions, complexities and urgencies about this subject/object that is often looking for a permanent place. Which ‘wanderer’ body is this one? The academic importance of the research asks for a distancing from the object studied, regarding the production of knowledge, as well as to the artistic creation. Thus, memory, ethnography and performance were the approaches that showed themselves, ‘shouted’, in the intention to expose and give voice to the trans(links) and to the interconnections of such experience. The memory phase includes the years from 1995 to 2003, when I used to work together with the Gambian musician, Fayee Diona, and the Bugarabu dance - which is called by the same name as the instrument - in the Netherlands and Gâmbia. Fayee noticed the rhythmic similarity between the Bugarabu and the alujá, one of Xangô’s rhythms, the starting point of the actual research. This transcultural experience lived through many obstacles and satisfactions exploded out our cultural differences and similarities, and led us to realize a singular work, which was able to reach different cultures in Europe, through our dance students and spectators. The ethnographic fieldwork took place during the Xangô Festival, from 29th June to 11th July, in 2005 and 2006, at the Ilê Axé Opô Afonjá, ‘terreiro’, (house of afro Brazilian religion), whose patron is Xangô. The ialorixá (priestess) of the house, Mãe Stella de Oxossi, was the great spiritual support for the ethnographic research. The fire, as urgency of the memory, as well as the ethnography resulted in a performance, directed by Lau Santos, renowned director. The movement is in the writing. The fire is movement. The performance is an attitude. Here, the attitude expresses itself in the rhythm, in the transatlantic encounter between Xangô and Bugarabu.. Keywords: Xangô, Bugarabu, Fire, Transculturality, Ritual..

(10) Ilustrações Ilustração 1 - Bugarabu, Brikama, Gâmbia, janeiro 1996, Foto: Sandra Mascarenhas. 15. Ilustração 2 - Sandra Mascarenhas, divulgação, Amsterdã, 2000. Foto: Fabíola Morales. 22. Ilustração 3 - Esquentando o Bugarabu para aula, Almere, Holanda, 1999. Foto: Sandra Mascarenhas. 57. Ilustração 4 - Improvisação numa aula no Centro Cultural DeTulip em Amsterdã, junho de 2002. Foto: Miryam Zilvold Ilustração 5 - Gebouw Kostgewonnen. 81 99. Ilustração 6 – Fayee na foto do prospecto de atividades artísticas do Gebouw Kostewonnen exposto na ilustração 5. 100. Ilustração 7 - Amarrados nos pulsos vemos os guizos (siwagness) a que me refiro no texto.. Foto do prospecto do Gebouw Kostgewonnen. 101. Ilustração 8 – Bugarabu com suportes de madeira na terra, comício, Brikama, Gâmbia, 13/01/1996. Foto: Sandra Mascarenhas. 110. Ilustração 9 – Chegada em Gâmbia, aeroporto de Banjul, 04 /01/1996.. 111. Ilustração 10 - (a) Kankurang, festa em Bandulging , Gâmbia, 1996 – foto Sandra Mascarenhas; (b) Oxossi, cartão postal. 117. Ilustração 11 – (a) Mamapara, Brikama, Foto Sandra Mascarenhas; (b) Zambiapunga, Salvador, Caminha Axé, 2000. 117. Ilustração 12 – (a) Kumpoo, festa em Bandulging, 1996, foto Sandra Mascarenhas; (b) Omolu (Verger e Rego, 1993, p.80); (c) Bumba meu boi, Silvio Essinger. 118. Ilustração 13 - Apresentação das fotos na chegada de Donsekunda, Candion, 18/01/1996. Foto: Sandra Mascarenhas. 121. Ilustração 14 - A referida refeição em Donsekunda, dia 18/01/ 1996. Foto: Sanjaya. 122. Ilustração 15 - Local onde Fayee estudava o Bugarabu. Tronco sobre o qual os instrumentos eram apoiados. Donsekunda, 19/01/1996. Foto: Sandra Mascarenhas. 123. Ilustração 16 - Malan confeccionando os claps em Donsekunda, Candion, 20/01/1996. Foto: Sandra Mascarenhas. 124. Ilustração 17- Fayee confeccionando o Bugarabu em sua casa, Kanifing, Gâmbia, 07/01/1996. Foto Sandra Mascarenhas. 133. Ilustração 18 (a) comício, Brikama, Gâmbia, 1996, Foto: Sandra Mascarenhas; (b) Sandra, Dakar, Senegal, 1998, Foto: Iana Mascarenhas. 135. Ilustração 19 - (a) Mãe Aninha, primeira ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá em 1909 (b) Mãe Stella de Oxossi, atual ialorixá deste Terreiro. Foto do site do Ilê Axé Opô Afonjá 168 Ilustração 20 - (a) Casa de Xangô e; (b) Barracão de festas do Ilê Axé Opô Afonjá.

(11) Foto do site (2006) http://www.geocities.com/Athens/Acropolis/1322/. 181. Ilustração 21 – Performance no Oosterpark, Amsterdã, 1996. Foto Sandra Mascarenhas. 234. Ilustração 22 - Segundo dia do ritual da colheita do arroz – Prospecto CD coleção Prophet. 236. Ilustração 23 – Lebounaye: sacrifício do bode. Foto coleção Prophet. 265. Ilustração 24 - Lebounaye: mulheres dançam no primeiro dia. Foto coleção Prophet. 265. Ilustração 25 - Mapa do Senegal e Gâmbia – região de Casamance, Senegâmbia, site Kassoumay, 2006. 266. Ilustração 26 – (a) Vinho de palma chamado bunnuk. Site Kassoumay, 2006; (b) Sandra Mascarenhas aprendendo a fazer o funil – kaboonyinak – para retirar o vinho da palmeira, dia 04/01/1996. 268. Ilustração 27 - (a) Sabar, dança tradicional do Senegal; (b) Dança Ekunkun de Casamance. Ambas do site Kassoumay, 2006.. 272. Ilustração 28 (a) Bombolong, instrumento de transmissão de mensagem; (b) Bugarabu.. 273. Site Kassoumay, 2006.

(12) SUMÁRIO. Dedicatória. 04. Agradecimentos. 05. Epígrafe. 06. Resumo. 07. Abstract. 08. Ilustrações. 09. 1. APRESENTAÇÃO – Àkoberé. 16. 2. INTRODUÇÃO – O Caminho do Fogo Transatlântico. 34. 2.1 Caminho antes do Encontro com o Bugarabu. 34. 2.1.1Mato Grosso, Três Lagoas uma passagem e Bela Vista um rio. 42. 2.1.2 Rio de Janeiro, Angra dos Reis, um mar. 42. 2.1.3 Paraná, Londrina uma terra roxa. 43. 2.1.4 Bahia, o fogo e os Orixás em meio à lua, às estrelas, aos coqueiros, ao mar e às ladeiras de Salvador. 46. 2.1.5 Santa Catarina, Florianópolis, “um pedacinho de terra perdido no mar” e o encontro entre o mar, o rio, a lagoa, a cachoeira, as dunas, os morros e as pedras. 51. 2.1.6 Passagem por Londrina, o lago Igapó e depois Körsvag na Suécia 53 2.1.7 Körsvag na Suécia foi como um trampolim para chegar a Amsterdã 2.2 O Encontro com o Bugarabu - Amsterdã: ponto de conexão da percepção dançante do fogo “transatlântico” entre Salvador e. 55.

(13) Senegâmbia. 56. 2.3 O vislumbre do encontro da dança de Xangô com a dança do Bugarabu. 58. 2.3.1 Amsterdã, Gâmbia e Senegal. 58. 2.3.2 Bahia, o fogo, o eterno retorno à Salvador, um porto (in)seguro, uma encruzilhada. 60. 3. CAPÍTULO I – Da Centelha ao Fogo: Memória. 63. 3.1 Prenúncios do fogo em diálogo com as considerações teóricoconceituais sobre: Performance, Antropologia Teatral e Arte Africana. 64. 3.1.1O Balé, o rastro da centelha. 64. 3.1.2 O rastro indígena. 67. 3.1.3 Os pés descalços e o prenúncio do fogo de Xangô. 68. 3.1.4 Florianópolis, o fogo, o êxtase, a vertigem na aula com Mamour Ba. 70. 3.1.5 Vi o fogo emergir da água no lago Igapó em Londrina. 78. 4. CAPÍTULO II - Reflexões sobre a Memória do Bugarabu. 99. 4.1 Amsterdã, o primeiro encontro com o Bugarabu. 99. 4.2 África - A festa em Kanifing, Gâmbia, 06 de janeiro de 1996. 110. 4.3 O processo de trabalho com Fayee - 1995 a 2002. 131. a) Gâmbia. 132. b) A volta para Amsterdã – 1996 a 2002. 134. 4.4 A experiência do Bugarabu na volta à Bahia. 145. 5. CAPÍTULO III – A Etnografia do Fogo. 153.

(14) 5.1 A Fala. 153. 5.2 Os Orixás atravessam o Atlântico. 161. 5.2.1 Mãe Stella de Oxossi narra o candomblé em Salvador. 161. 5.2.2 Mãe Stella de Oxossi conta a história do Afonjá. 167. 5.2.3 Xangô. 168. 5.3 Tríade: Dança, Escrita e Feminilidade trazem a memória e a vivência do fogo. 174. 5.4 Xangô - Pesquisa de Campo no Ilê Axé Opô Afonjá. 178. 5.4.1 Dia 25/06/05 - O encontro com Dona Detinha no Ilê Axé Opô Afonjá. 179. 5.4.2 Dia 28 de junho de 2005 – O dia que acendeu a fogueira de Airá (fogo). 187. 5.4.3 ...Um ano depois - Dia 28/06/2006 – Fogueira de Airá. 189. 5.4.4 Dia 29 de junho de 2005 – Festa Wabogun. 190. 5.4.5 ...Um ano depois - 29/06/2006 - Festa do Ajerê. 192. 5.4.6 Dia 02 de julho de 2005 – Festa Etá. 195. 5.4.7... Um ano depois dia 02 /07/2006 - Festa de Etá (Três dias de Xangô). 195. 5.4.8 Dia 05 de julho de 2005 – Festa Efá (seis dias de Xangô). 197. 5.4.9... Um ano depois dia 05/07/2006 Festa de Efá (Seis dias de Xangô). 202. 5.4.10 Um ano depois dia 11 de julho de 2006 – Festa Iyamassé (mãe de Xangô-terra). 208. 5.4.11 Os encontros com Mãe Stella de Oxossi. 220. a) 24/07/2006 – Casa de Xangô. 220. b) 28/07/2006 – Casa de Mãe Stella. 224. c) 16/03/2007 – Casa de Mãe Stella. 227. 6. CAPITULO IV - Okutá orun iná otá - O fogo que vem do céu se trans-forma em pedra -. 228. 6.1 Nos caminhos da encenação. 228. 6.2 Estudo crítico da encenação. 229.

(15) 7. CAPÍTULO V - CONSIDERAÇÕES FINAIS - Àkori. 245. 7.1 Questões que permearam a pesquisa. 245. 7.2 Traços e rastros do encontro de Xangô com o Bugarabu. 246. 8. GLOSSÁRIO. 254. 9. BIBLIOGRAFIA. 257. 10. ANEXOS – Fontes Complementares. 262. 10.1 Ritual da colheita do arroz em Casamance. 263. 10.2 História de Casamance via site Kassoumay. 266. 10.3 Senegâmbia via site Wikipedia. 274.

(16) Ilustração 2 - Bugarabu, Brikama, Gâmbia, janeiro 1996, Foto: Sandra Mascarenhas.

(17) 1. APRESENTAÇÃO – Àkoberé 1 Ago! Kawo-Kabiyesilé!2. Dedicar esse trabalho e pedir licença na apresentação à divindade das terras iorubanas de Oyó, Xangô, é uma homenagem a este, o rei da justiça e do fogo, além de ser o motivo que me estimulou a intitular o começo e o fim desta dissertação, com as palavras em ioruba: àkoberé e àkori. 3. Passeio pelo desenrolar das reflexões de Siegel (1993) a respeito de críticos, dançarinos, cuja idéia de arte se configura como uma fusão de técnicas e idéias, verbais e não verbais, imagens, sensações e sentidos. E o que acontece? A dançarina e a crítica das próprias criações e aprendizados. ficam. mexidas.. É. difícil. fragmentar. facetas. que. delimitariam: onde está a dançarina? Onde está a crítica? Afinal, observar, dançar, participar e conseqüentemente transformar, requisita uma atitude crítica que a seguinte reflexão ilustra: antes de tudo, uma brasileira se sentindo [o (a) outro (a)] ao morar na Holanda, de 1995 a 2003. Depois, ao contrário da timidez do crítico que se esquiva de aprofundar-se nas coerências ou entendimentos das danças não-euroamericanas, como nomeia Siegel, eu não sentia timidez. Sentia-me 1. Em ioruba àkoberé significa começo. (FONSECA, 1995, p. 262). Em ioruba ago significa com licença. Kawo-Kabiyesilé! Venham ver o rei descer sobre a terra! (VERGER; REGO, 1993, P.222) 3 Àkori quer dizer conclusão. (FONSECA, 1995, p. 38) 2.

(18) 17 impulsionada,. sem. melindres,. a. ir. fundo. nas. identificações. e. desidentificações que saltavam aos meus olhos e demais sentidos ao observar, experimentar e analisar a dança africana do Senegal e de Gâmbia, depois daquele primeiro encontro com Fayee. Devo dizer que o que escrevo hoje é fruto de uma reflexão atual em cima das atitudes e pensamentos vivenciados no momento da experiência com as danças referidas, a partir de um fazer próprio da dança brasileira. Ao estar lá eu vivi, questionei e argumentei, mas só agora reflito acerca daquelas reflexões e esse fato tem contribuído muito para visibilizar as âncoras e as transformações ocorridas. Eram danças exóticas de uma cultura exótica? Sim, lindas. Eu, fruto da colonização da diáspora, aprendera a olhar a África do outro lado do Atlântico no exotismo de nossos mitos históricos. Mas com certeza, coisas além do exotismo me arrebataram... Do deslocamento do gesto na dança surge o rastro. O rastro é a constatação do desaparecimento e da efemeridade da dança, que trago para. o. presente. através. da. escrita.. Utilizar. os. meios. formais. acadêmicos torna-se oportunidade e lugar precioso, de onde podem emergir. as. impressões. transculturais. em. ebulição,. que. foram. experimentadas durante os deslocamentos culturais que percorri, em que destaco as danças do Bugarabu, de Gâmbia, e de Xangô, da Bahia, transformadas em expressões culturais, simbolizadas pelo fogo no meu corpo dançante. O lugar do confronto, em outras palavras, as brechas entre a experiência, a observação e a trans-criação acadêmica é o lugar que a subjetividade complexa do meu pensamento aspira estar e corroborar suas valências. Um caminho e não o caminho.. 4. Esta dissertação se insere na área de Dança, dentro da linha IV do Mestrado em Artes Cênicas, do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - PPGAC/UFBA –. Os parágrafos destacados com a fonte Lucinda Calligraphy referem-se às reflexões da memória, o que será mais bem explicado adiante.. 4.

(19) 18 intitulada Performance e Fronteiras. Fui orientada pelo Prof. Dr. Fernando Antonio de Paula Passos. Neste projeto, lanço mão de uma abordagem etnográfica da dança de Xangô em diálogo com a memória da dança do Bugarabu. Esta escrita se compõe desta apresentação, uma introdução, cinco capítulos, glossário, bibliografia e anexos, tendo como complemento da performance final da defesa pública, dia 23 de maio de 2007, uma ‘encenação’. ‘Encenação’ substitui algumas vezes o termo performance no corpo do texto. Este foi um termo utilizado pelo Prof. Dr. Fernando de Paula Passos durante a disciplina que ele ministrou no segundo semestre de 2006 no PPGAC (UFBA), intitulada: Ence/nação: “Escrituras Subalternas e os Estudos Pós-Coloniais”. O primeiro motivo de sua utilização nesta escritura diz respeito à encenação que a performance encerra e em segundo lugar, pelo fato de ter detectado que a palavra ‘nação’ oferece um leque diversificado de enfoques na ‘cena’ deste estudo. Aqui nação engendra a própria cena das experiências que vivi, das observações que fiz e do imaginário que criei. As nações culturais foram vividas em cada deslocamento e tempo do trajeto feito primeiramente entre as cidades brasileiras, em que destaco, Campo Grande (MS), Londrina (PR), Salvador (BA) e Florianópolis, (SC); em seguida, entre as cidades européias, particularmente Amsterdã, na Holanda, e a região de Senegâmbia no oeste da África, mais especificamente, a cidade de Serekunda e a vila de Donsekunda em Gâmbia, e a capital do Senegal, Dakar. Entre esses trânsitos assinalo algumas idas e vindas para o Brasil, oportunidades de intercambiar as danças experimentadas na Bahia, em Londrina e Florianópolis. Além disso, tais deslocamentos propiciaram experimentos entre distintas nações religiosas desde a infância, que variaram do Catolicismo ao Espiritismo Kardecista e ao Candomblé. Lembro ainda que, em 1997, quando viajei para o Senegal tive a oportunidade de presenciar a cerimônia das práticas rituais de um.

(20) 19 Natal entre os muçulmanos em Dakar, fato que acrescentou esclarecimentos às observações que fazia da religião muçulmana ao conviver com gambianos e senegaleses em Amsterdã. As referidas nações culturais e religiosas mencionadas acima são inevitavelmente permeadas de questões políticas que conjuntamente conferem especificações à minha vivência, as quais eu passo a chamar nesta cena de nação corpo. Ao considerar esses acontecimentos que portam influências políticas localizadas no tempo, ou seja, entre passado, presente e futuro associo a proposição de Benedict Anderson, no livro Nation and Narration, de Homi Bhabha para pensar em nação. Para Anderson, o nacionalismo é entendido como um sistema amplo de significação cultural que o precede, visto que a expressão política de um estado nação está sempre ligada a um passado e desliza num futuro sem limites. (ANDERSON apud BHABHA, 1990) Além disso, faço uma associação à noção de Bhabha no capítulo Disseminação, do livro O Local da Cultura, quando o autor propõe que a localidade da cultura, a nação, gira mais em torno do seu tempo do que da sua história. (BHABHA, 1998) A noção de nação de Anderson e Bhabha relacionada ao tempo, é apropriadamente aplicável aos tempos específicos de cada trânsito que percorri, e sob este ponto de vista são considerados como nações específicas que fazem parte do conjunto de elementos analisados neste estudo - cultura, ritual e corpo. A escrita e a performance destacaram os dois focos principais do trabalho: a transculturalidade das duas danças e do meu percurso, assim como o elemento simbólico comum a elas, aqui percebido como fogo. Os dois focos foram desenvolvidos no decurso das análises comparativas e auto-reflexivas da pesquisa que partiram das semelhanças rítmicas e gestuais das referidas danças, e indicaram as possíveis ingerências entre si e no meio que circulam, sob uma interpretação própria enquanto pesquisadora, em dois cortes temporais: de 1995 a 2003 na Holanda e na Gâmbia e.

(21) 20 2005 e 2006 no trabalho de campo no Ilê Axé Opô Afonjá. Entre demais fatores éticos e estéticos, foi em função do aspecto transcultural que caracteriza meu percurso de vida que as análises evidenciaram a hipótese do caráter de transculturalidade das duas manifestações performáticas. E vivenciar estas danças aguçou a percepção simbólica de fogo através da sensação permanente de nuances térmicas no meu corpo. Deste modo culminou o objetivo geral da pesquisa: analisar, a partir de uma vivência transcultural, a transculturalidade das danças (Xangô e Bugarabu), pela percepção simbólica do fogo. Este fogo gritou a necessidade de escrever e refletir sobre a dança que surge a partir daí. O suporte teórico para esta necessidade da escrita emergiu das reflexões feitas sobre o pensamento de Lepecki e Derrida a respeito das imbricações escorregadias que envolvem as questões da escrita (linguagem), do movimento (corpo) e da feminilidade (LEPECKI, 2004), a serem tratadas ao longo da dissertação. Em primeira instância, pensar na dinamicidade da escrita ficou evidente uma ligação estreita entre escrita e movimento. No decorrer da análise crítica do movimento, foi inevitável perceber o quanto é influente a questão de gênero nestas manifestações culturais, particularmente no que diz respeito à condição da mulher e de sua feminilidade.. Estas constatações afloraram tanto como agente, quanto como. observadora das referidas culturas. Sendo assim, a feminilidade fatalmente se fez presente em ambas as formas de expressão e comunicação, ou seja, na escrita e no movimento. Assim, na tarefa de analisar essa experiência transcultural e viabilizar a execução da escrita, realizei desdobramentos metodológicos específicos que propiciassem diálogos, comparações, reflexões e constatações. Em primeiro lugar, comparei a ação ritualística que se manifesta no Bugarabu durante o festival que acontece principalmente em Senegâmbia (Casamance), com o trabalho desenvolvido.

(22) 21 com Fayee Diona de 1995 a 2003, iniciado em Gâmbia com prosseguimento na Holanda. A seguir, analisei as especificidades rítmicas, coreográficas e mitológicas da dança de Xangô percebidas durante o trabalho de campo no terreiro de candomblé do Ilê Axé Opô Afonjá, em diálogo com o aprendizado anterior das danças do Bugarabu e de Xangô. Com esses aportes foi possível comparar as particularidades percebidas no fogo, símbolo metonímico comum às duas manifestações dançantes. Similaridades e diferenças foram detectadas ao longo do processo de análise da pesquisa. Ao destacar e refletir sobre a influência da feminilidade para este estudo, eu tinha em mãos as ferramentas úteis para a criação da encenação transcultural que em si é uma afirmação do fogo imanente ao meu corpo dançante que traz os locais, os tempos, as vozes e os ‘eus’ vividos e observados. O conhecimento incorporado, a restauração do comportamento e o corpo dilatado são sustentos teórico-práticos e metodológicos oportunos às identificações legítimas deste corpo dançante adquiridas durante a experiência vivida. Além disso, garantiram a convergência dos dois principais focos deste estudo descritos acima. Incorporated Knowledge, Conhecimento Incorporado, é o título do livro editado por Thomas Leabhart, no qual a matéria de Kirsten Hastrup tem o mesmo título. Além disso, o conhecimento incorporado é um termo utilizado na Antropologia Teatral e tem uma relação estreita com o conhecimento cultural que adquirimos através de nossas experiências e pesquisas. Neste livro Hastrup diz: “meu trabalho de campo me ensinou que muito do conhecimento cultural é transmitido pelo corpo (mais do que palavras). É o corpo em vida, a pessoa viva, que é o locus da experiência”. (HASTRUP apud LEABAHART, (orgs) tradução minha, 1995, p.3). No livro A Arte Secreta do Ator, de Eugênio Barba e Nicola Savarese, no capítulo Restauração do Comportamento, Richard Schechner diz:.

(23) 22. [...] O comportamento restaurado tem “vida própria”. A ‘verdade’ original ou ‘fonte’ do comportamento pode estar perdida, ignorada ou contrariada, mesmo quando está sendo respeitada. Como a seqüência de comportamento foi feita, achada ou desenvolvida pode ser desconhecida ou ignorada, elaborada, distorcida pelo mito e tradição. Originando-se como um processo, usada no desenvolvimento dos ensaios para fazer um novo processo, uma representação, as seqüências de comportamento não são processos em si, mas coisas, itens, ‘material’. (BARBA; SAVARESE, 1995, p. 205). A partir desta noção de restauração do comportamento, expressão surgida do pensamento associativo de Schechner entre teatro e antropologia, eu detectei a percepção deste corpo dançante descrita nas seguintes palavras que a foto abaixo ilustra:. Nas pernas, ficou a leveza do pulo; no tronco a concentração da expressividade e a pulsação, na medida exata de energia que explode, mas não se desperdiça, porque cabe aos braços e, com efeito, às mãos, soltar o último resquício do movimento, como labaredas de fogo, para o qual a cabeça responde (co/responde), se solta.. Ilustração 2 - Sandra Mascarenhas, divulgação, Amsterdã, 2000. Foto: Fabíola Morales.

(24) 23 Barba, o criador da Antropologia Teatral, colocou suas idéias e cartas na mesa para serem engolidas, digeridas, transformadas ou expelidas pelos curiosos e interessados. Dentre outras noções, o corpo dilatado é uma expressão polêmica no campo das artes cênicas que adotei em minhas investigações por perceber no plano sensório-motor enquanto danço as palavras de Barba quando se refere àquela “desorientação que me faz sentir vivo, aquela repentina dilatação dos sentidos”. (BARBA, 1994, p.119). É quando, em especial com a dança de Xangô e do Bugarabu, percebo o fogo no acelerar do coração, no aumento da temperatura do corpo em intensidade crescente até alcançar a sensação de dilatação de todos os meus sentidos. O valor dessas noções não é único, nem absoluto, mas indubitavelmente elas estão arraigadas à especificidade inicial desta experiência e serão desenvolvidas no decorrer desta escrita após sua contextualização nessa trajetória transcultural. As constatações dialéticas dessas expressões culturais iniciaram com as sensações da dança de Xangô aprendidas na Bahia, que correspondiam à nova experiência com a dança oeste africana do Bugarabu, pulsando no meu corpo que recém chegava à Amsterdã, na Holanda, em agosto 1995. Nessa mesma época passava por um aprofundamento nas teorias e práticas da Antropologia Teatral, iniciado durante a participação na XIX ISTA (Escola Internacional de Antropologia Teatral), em Korsväg, na Suécia, em maio do mesmo ano, depois da ISTA de Londrina no ano anterior, em 1994. Era um caldeirão de experimentos complementares em ebulição! Pelos princípios indicados por Eugênio Barba, pude reconhecer o conhecimento incorporado, presente na expressão do meu e de outros corpos, em especial os africanos de Gâmbia e Senegal, com quem mantinha maior contato. Com este percurso reingressei no universo acadêmico, tomando como ponto de partida uma abordagem transdisciplinar para este estudo. Busco aporte no meu percurso.

(25) 24 em dança e nos aprendizados baseados na Antropologia Teatral, e amparo nos recentes conhecimentos adquiridos nos Estudos da Performance, que abriu portas para outras áreas do conhecimento como os Estudos Culturais, a Teoria Crítica e os Estudos Póscoloniais. Por sua vez, a Etnografia foi uma das contribuições mais diretamente ligadas ao trabalho de campo realizado no Ilê Axé Opô Afonjá para a execução desta pesquisa teórico-empírica. O horizonte filosófico complementar à abordagem transdisciplinar que lanço mão é a Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty - uma teoria que enfatiza a relação vivida do sujeito com o mundo:. O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras. (Merleau-Ponty, 1999, p.18). Ainda no reino da filosofia busco apoio, na simbologia de Jacques Lacan 5, uma aplicação e desafio da lingüística saussuriana percebida em duas funções: paradigmática e sintagmática consideradas por Lacan como metáfora e metonímia, respectivamente, e cujo efeito se torna poético. Estes horizontes filosóficos foram fustigados pela subjetividade das associações simbólicas e das reflexões vislumbradas pela experiência vivida de dança em cruzamento com o trabalho de campo realizado no Ilê Axé Opô Afonjá e o ritual da colheita do arroz de Senegâmbia que se manifesta no Bugarabu. Com a simbologia de Lacan utilizo o efeito poético de uma analogia que se refere ao Real, onde a performance primeira que aconteceu no instante inesperado de sua execução se transformou em pesquisa. Depois ao Imaginário das culturas 5. [Lacan] fala de três registros de subjetividade: o Real, o Imaginário e o Simbólico [...] [O Real] é a experiência primeira de tudo, anterior à tentativa de representá-la em qualquer sistema de símbolos [...] O registro do Imaginário não é só o reino de imagens ou de fantasia, embora seja definitivamente associado com ilusão. Ele é aproximadamente equivalente à experiência diária, mas a ilusão é que trata do Simbólico (cuja função é ordenar a experiência diária) como se ele fosse real e natural. (LACAN apud PALMER, tradução minha, 1997, pp. 82, 83).

(26) 25 transatlânticas, da Bahia à esquerda e da Senegâmbia à direita, com o oceano Atlântico ‘entre’ elas, assim como eu da mesma maneira me insiro ‘entre’ elas. Oceano esse, que foi o caminho da legitimação dos povos da diáspora negra trazidos para o Novo Mundo, lugar com culturas subalternas em constante movimento e, portanto entrecruzadas e transcriadas indefinidamente. E por último ao elemento Simbólico do fogo. Uma associação simbólica, produto de associações abertas. De um lado, Xangô é considerado na mitologia do candomblé como a divindade do fogo, do calor, da determinação, do vigor, da justiça. Do outro, o Bugarabu é o ritual da colheita do arroz do povo djola em Casamance chamado lebounaye, que se prolonga por três dias e se realiza ao redor da fogueira. ‘Entre’ os dois, existiu a vivência empírica com os ritmos das duas manifestações dançantes que deixou uma sensação corpórea de calor que se repete na efemeridade da dança. Metaforicamente, chamei essa sensação de fogo. Nesse instante efêmero, os canais sensitivos se abrem na percepção do calor e da força energética que os movimentos e a aceleração rítmica do Xangô e do Bugarabu trazem. Como estratégia de organização da dissertação urgida pela transdisciplinaridade, optei por manter um diálogo contínuo com os autores desde a apresentação e a introdução, até os anexos e as considerações finais, incluindo os quatro capítulos anteriores. A intenção foi a de garantir o suporte teórico e as auto-reflexões ao longo do corpo do texto. Eles estão diluídos na concepção de toda a criação da escrita. Essas ferramentas foram relevantes para o exercício de reflexão crítica, necessário à composição desta pesquisa. Aspectos que caracterizam esta escritura foram se desenrolando durante as investigações teóricas, as experimentações corporais, a análise de material fotográfico e do trabalho de campo e os ensaios. Nos entremeios da análise de dados percebi que confrontos e comparações entre as duas danças saltavam diante dos meus olhos e se.

(27) 26 faziam presentes. Este fato confirmou a urgência de viajar na memória do Bugarabu, observar e etnografar a dança de Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá e por fim, expressar essa mescla na encenação para então fazer as considerações finais. A chama do fogo se mantém viva e permeia toda a pesquisa, logo, de acordo com essa constatação, a introdução recebeu o nome de – O caminho do fogo transatlântico. Ela traz consigo momentos pontuais da minha vida, relacionados com o trajeto na dança e na vivência transculturais, onde ressalto algumas passagens que prenunciaram a existência do fogo, elemento que justifica os motivos e os objetivos deste trabalho. Por esta razão, num segundo momento, isto é, no Capítulo I (Da Centelha ao Fogo: Memória) elas foram esmiuçadas, a partir do grau de sensação de calor no corpo que esses momentos específicos trazem na memória, desde sua condição simbolicamente chamada de centelha (no balé) até culminar no fogo, característica das danças aqui estudadas. Tais prenúncios do fogo foram úteis para a criação de um diálogo com pontuais considerações teórico-conceituais sobre: Performance, Antropologia Teatral e Arte Africana. Ao narrar essas passagens, percebi que estava diante de um embate entre a complexa subjetividade da pesquisa e a objetividade que o ‘modelo’ de dissertação acadêmica prescreve. Com o propósito de manter uma relação coerente com o estilo acadêmico e conciliá-lo com as criações (trans) subjetivas da escritura que ora proponho, às vezes não adaptáveis ao manual de 2003, adotei uma prática. Conforme indicado anteriormente, utilizei a fonte Lucida Calligraphy, semelhante à minha letra manuscrita, sempre que transportei para o momento presente, passagens deste trajeto, assim como em momentos de reflexões acerca das mesmas. Ao mesmo tempo, a auto-reflexão sobre a memória e a tentativa de presentificála na escrita, foi um recurso metodológico que fustigou uma análise teórico/crítica no.

(28) 27 decorrer da pesquisa e do trabalho de campo, levantando outra das questões cruciais a ser vasculhada sobre o sujeito/objeto que aqui represento: ora sujeito, ora objeto, ora sujeito/objeto. Uma problemática a ser abordada na apresentação, introdução, nos capítulos, na encenação, inclusive nos anexos e indubitavelmente nas considerações finais do trabalho. O segundo capítulo foi intitulado Reflexões da Memória do Bugarabu. Sinalizei a memória do Bugarabu e a percepção da experiência vivida com esta dança, na Holanda, na Gâmbia, no Senegal, e na volta a Salvador, cujo trajeto, desvelou transformações marcantes inscritas e transcriadas no meu corpo dançante. Além disso, fotos, diários, elementos da dança e do instrumento do Bugarabu como os claps, mensagens pela internet e telefonemas com Fayee Diona foram comparados aos anexos finais que contêm visitas ao sites Kassoumay e Wikipedia. Estes anexos trazem informações históricas e culturais pontuais de Senegâmbia, desde o tempo do tráfico de escravos no século XVI até hoje. Todos estes componentes ilustraram e renderam suporte ao exercício de ‘lembrança da memória’ e análise de dados do estudo. Desta maneira pude fazer uma análise comparativa, entre minha percepção e vivência específicas com a cultura onde o Bugarabu está inserido, em diálogo com as ‘transformações’, adaptações, os pontos convergentes e divergentes que a investigação histórica da região de Senegâmbia desvelou. Para complementar a referida experiência, o horizonte teórico do Póscolonialismo e da Teoria Crítica foi de suma importância para este segundo capítulo. Nem só branca, índia ou negra, mas um cruzamento cultural. Uma pessoa nascida no Mato Grosso que traz consigo rastros indígenas, identifica-se com as culturas baiana e africana na arte da dança, e deflagra nesse território ‘entre’, um objeto de estudo que.

(29) 28 denuncia em sua singularidade uma complexidade que abrange o pensamento atual a respeito das identificações em constante movimento. A etnografia do fogo compõe o terceiro capítulo da dissertação. Devo dizer que a divisão dos capítulos feita nas categorias crítico-reflexivas de memória, etnografia e encenação foi uma idéia incentivada pela disciplina Etnografia e Estudos da Performance ministrada pelo Prof. Dr. Fernando Passos, em 2005, no PPGAC. Nesta etnografia, lanço mão das articulações teóricas de James Clifford com a prerrogativa de revisar as formas e efeitos da tradição no Ilê Axé Opô Afonjá, considerando os deslocamentos culturais que marcam a história desse terreiro. Faço então uma reinterpretação, uma tradução cultural articulada por um pensamento dialético, em que reconheço simbolicamente o fogo de Xangô que ressoa no Bugarabu, a partir da consideração de suas diferenças e proximidades. O trabalho de campo no Ilê Axé Opô Afonjá, localizado no bairro de São Gonçalo em Salvador, foi realizado durante os anos de 2005 e 2006, no período de 28 de junho a 11 de julho, quando acontece ali o ciclo de festas de Xangô. Tal escolha aconteceu por motivos complementares: primeiramente, esta foi a primeira casa de candomblé que visitei na Bahia, em 1980; em segundo lugar, porque é uma casa de Xangô, por sinal conseqüência de uma separação da Casa Branca, reconhecida como sendo a mais antiga da Bahia, cujo desdobramento. resultou no Ilê Axé Opô Afonjá. e no Gantois; e. finalmente por ser apresentada por Nadir Nóbrega, colega de mestrado, à Dona Detinha, filha de Xangô, o primeiro contato que tive nesta casa. Além da observação dos rituais festivos em homenagem a Xangô, abertos ao público, busquei participar de outros eventos proporcionados pelo Afonjá, como é chamado entre os seus freqüentadores o terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá. Entre os principais eventos estão: as quartas-feiras de Xangô, um ritual semanal da casa; as festas.

(30) 29 destinadas a outros Orixás; o Alaiandê Xirê em 2005 - um encontro de alabés (músicos) de comunidades de religião africana nacional e internacional; e finalmente o projeto Afonjá Aragbogbô: O corpo da diversidade - realizado de 31 de março a 02 de abril de 2006. É importante salientar os diferentes aspectos abordados para a feitura da pesquisa etnográfica. Primeiramente, foi utilizada uma bibliografia pertinente. O intuito foi ampliar o leque de informações acerca do candomblé na Bahia. Para tanto, evidenciei aspectos relacionados - ao terreiro do Ilê Axé Opô Afonja, ao orixá Xangô e à marcante atuação da ialorixá Mãe Stella de Oxossi no universo religioso inevitavelmente embrenhados às esferas política, social e cultural de Salvador. A vasta gama de autores estudados trouxe muitas contribuições e fustigou outras tantas reflexões críticas que podem ser relacionados com esta etnografia e que a dissertação não os comportaria a todos. Fiz então uma triagem entre os mais instigantes e pertinentes ao assunto desenvolvido, a exemplo de James Clifford, Maya Deren e Barbara Browning, Vera Campos, Nelson Pretto, Richard Schechner, Jacques Derrida, André Lepecki, Vivaldo da Costa Lima, Ildásio Tavares, Lüdke e André, entre outros. Ainda, de suma importância são considerados os laços de amizade alcançados pela permanente atenção de Dona Naná, integrante do Afonjá e a assiduidade com que freqüentei esta casa desde 2005, questões que intensificam o caráter da vivência. Reconheço que tais observações foram de muita valência para instigar possibilidades dialógicas entre o Bugarabu e o Xangô. E finalmente, o dado mais melindroso e importante para a composição deste terceiro capítulo. O fato de não ser permitido fotografar, gravar, filmar ou até mesmo escrever durante os rituais sagrados constituiu a ferramenta principal do método utilizado no trabalho de campo, a observação. Desse modo, o recurso metodológico para.

(31) 30 a escrita foi invariavelmente baseado no exercício da memória, mesmo que, ao chegar em casa ainda quente, simbolicamente em fogo, instantes depois de finalizados os rituais religiosos de Xangô, me debruçasse no papel para escrever. Este estado me remeteu ao seguinte pensamento filosófico:. É este êxtase da experiência que faz com que toda percepção seja percepção de algo [...] Considero meu corpo, que é meu ponto de vista sobre o mundo, como um dos objetos desse mundo. (MERLEAUPONTY, 1999, P. 108). A observação do ritual e da dança de Xangô suscitou estados emocionais, a memória do Bugarabu e, por conseguinte a criatividade coreográfica, além de inspirar a elaboração de seu registro no sentido de transformar esse imaginário transatlântico numa escrita performativa. Um corpo que na observação, entra num estado de vertigem e se desterritorializa. Nesse estado ‘além’, irrepresentável, as diferenças embutidas nas designações simbólicas que elegi se sobressaem. Tentei captá-las e como estratégia, eu costurei a reflexão teórico-crítica com o ato de escrever. Dessa maneira, trouxe para a escrita o valor político e a autocrítica da minha memória pessoal. Uma escrita e teoria constitutivas da experiência etnográfica que, em trânsito com a encenação, se localizam no corpo. Com a escrita performativa foi possível transpor a idéia de que posso cobrir o universo que estou investigando, pois na percepção fronteiriça, nesse lugar in-between, é onde se situa a minha prática. O texto foi um lugar para observar e perceber, interpretar e coreografar essa percepção do meu corpo em movimento, como objeto desse mundo. No quarto capítulo escrevi sobre a encenação, parte constitutiva da performance da defesa pública, em articulação com o horizonte teórico-crítico dos Estudos da Performance e da Antropologia Teatral, levantados durante a pesquisa. A partir do fogo.

(32) 31 de Xangô, a encenação tem o título – Okutá orun iná otá,6 O fogo que vem do céu se trans-forma em pedra - que foi inspirado no livro Xangô de Ildásio Tavares. Segundo o autor, no caso específico de Xangô, a pedra (otá) em que se assenta esse Orixá condensa sua energia no iniciado, em basicamente dois tipos: a pedra do raio ou um meteorito. No início deste capítulo, questões que abrangem a relação simbólica de fogo entre a pedra do raio de Xangô, o meteorito e a dança do Bugarabu serão destrinchados sob uma investigação que vai dialogar com a lei da gravidade de Newton pelas associações conceituais e empíricas de peso, energia e ritmo. Para tanto, esboço o diário do processo criativo da encenação recheado pelas auto-reflexões a respeito das duas danças, inscritas e posteriormente transcriadas no meu corpo pelo viés rítmico e pela percepção simbólica de fogo. Recolho as trans(ligações) da referida experiência, enquanto memória e etnografia, e dou voz à percepção que tive do encontro das duas danças. É importante salientar que esse encontro rítmico e dançante detectado pelo músico Fayee Diona de Gâmbia e eu, funcionou como impulso de futuras inovações artísticas. que. no. caso. da. presente. pesquisa,. é. constituída. de. novos. encontros/reencontros. Desta feita, para dar continuidade à descontinuidade dos fatos da vida, aconteceu um reencontro com o diretor carioca Lau Santos, parceiro em alguns trabalhos anteriores, além de ser o introdutor dos primeiros contatos adquiridos com a Antropologia Teatral, em 1988. Discutimos sobre nossos conhecimentos e procedimentos peculiares, a fim de intercambiar e dar expressão à forma e ao conteúdo da encenação.. 6. Dicionário Yorubá (nagô) – Português, Eduardo Fonseca Junior, 1993. Okutá – pedra em ioruba, tirado no vulgar nagô brasileiro como sendo otá; Okutá Orun – pedra do céu; Okutá Orixá – pedra de assentamento de Orixá; Otá – pedra de assentamento do Orixá; Iná – fogo..

(33) 32 A composição cênica foi feita através de um processo criativo dividido nas seguintes fases: um encontro inicial com Sandra (dançarina), Augusto (percussionista) e Lau (diretor) para estabelecermos as metas e cronogramas da encenação, e deliberarmos as investigações teóricas e práticas para cada um dos três; uma fase que compreendeu a criação e o treinamento individual, ensaios com Augusto e Lau; e sob a orientação de Ana Rita de Almeida realizamos um trabalho mais minucioso de preparação corporal, a fim de atender às necessidades detectadas por mim e por Lau durante todo o processo de concepção cênica e ensaios realizados na Escola de Teatro da UFBA e na própria Casa do Benin. Nos ensaios nesta casa até a performance de defesa pública, tivemos o imenso prazer de trabalhar com o músico e criador de instrumentos Julio Góes. Reflexões que justificam esse estudo foram somadas à finalização do capítulo. Afirmo que ao transpor as referidas danças criei com a escrita e a encenação, um terceiro elemento pós-dança de Xangô, pós-dança do Bugarabu, uma (trans) penetração de experiências deste corpo dançante. Este foi um dos impasses desse estudo. Uma situação que embaraça a pesquisadora e o objeto de estudo em questão como já dito. Pois meu corpo é o instrumento que, a um só tempo, usufruiu da oportunidade de observar, vivenciar, incorporar, identificar percepções e características das referidas danças e agora tenta se distanciar dessa vivência, na tentativa de abandonar os visgos embebidos pela proximidade empírica. Lembro: um trajeto transcultural entre danças transculturais. Uma urgência que propiciou a transformação da experiência vivida em expressão artística, como mais uma contribuição para o universo científico acadêmico. Um desafio! Um estímulo! Uma chama! Um terceiro elemento que se expressa como fruto da desestabilização das âncoras desse corpo, além de estar inserido numa época caracterizada por subjetividades, ambigüidades e fragmentações individuais e coletivas..

(34) 33 Não posso deixar de mencionar que as dificuldades que ressurgem destas desestabilizações foram e ainda são entendidas como pontos de reflexão e inspiração para uma intervenção criativa, para o imprevisível. E é também esse fato real de estado de torpor que os percalços instigam, o que confere a esta encenação, um caráter performativo. Como dançarina e pesquisadora, eu admito essas sensações corporais de desestabilização, arrisco o terreno que se apresenta e, a partir daí, deixo aflorar com o novo encontrado a percepção dessa experiência que não é alheia, mas vivida em sua realidade efêmera. Assim, nas considerações finais, quinto capítulo deste trabalho, eu reafirmo os objetivos e desafios da pesquisa. Deixo traços e rastros do encontro de Xangô com o Bugarabu sob uma estratégia metodológica narrativa, analítica, auto-reflexiva em que alinhavo memória, etnografia e performance com o tecido poroso desta vivência, sustentado pelas contribuições teórico-críticas que possibilitam ecoar outras vozes transculturais inspiradas nas particularidades e potencial de observação da minha voz..

(35) 2. INTRODUÇÃO – O Caminho do Fogo Transatlântico. A própria identidade pode desenvolver-se sem contrariar a própria natureza e a própria história, mas dilatando-se além das fronteiras que a aprisionam mais do que a definem. Eugênio Barba 1. 2.1 Caminho antes do Encontro com o Bugarabu. Dentro dos Estudos da Performance, dos Estudos Culturais e da Teoria Crítica, a preocupação com o discurso ocidental hegemônico e generalizado, tem sido algo recorrente entre os sujeitos interessados em experiências específicas e pertinentes a um contexto, a uma história. Por esta razão, experiências que de uma forma ou de outra contribuíram para esta pesquisa, reivindicaram no desenrolar desta escrita um lugar para. 1. Muitos são os pensadores, atentos à complexidade do conceito de identidade, que têm contribuído para as minhas reflexões. Contudo, considero relevante trazer um dos primeiros momentos que me debrucei sobre essa questão de maneira mais reflexiva e sistemática. Naquele instante me identificava com o ponto de vista de Eugênio Barba que considera a identidade sob três aspectos: “o étnico, o cultural e o profissional”. (BARBA, 1994, p. 68). Somado aos conhecimentos que adquiri posteriormente, dialogo no decorrer do texto com outros pensadores que integram outras noções em torno de raça, gênero e cultura aplicáveis à identidade e que são importantes constatações para a análise desta pesquisa. Entre eles estão: Edgar Morin com a complexidade (1996); Stuart Hall com a fragmentação do sujeito e a globalização, (2003); Paul Gilroy com as identidades inacabadas (1993), Maffesoli com a identificação (1988); Hommi Bhabha aplicando raça e cultura como agentes complicadores da identificação; e mais recentemente Emily Apter com a conexão entre a história feminista e a performance (1996)..

(36) 35 dar sua voz, uma vez que a especificidade de cada sujeito em seu contexto, faz história, estende sua história e interage com a alteridade. Proponho nessa dissertação a tarefa de colocar em jogo a nervura entre a experiência vivida e a escrita, deslocadas e transformadas e ainda, abertas a discussões críticas acerca de vivências transculturais, manifestadas na representação de uma encenação. Meu objetivo é subjetivo, minha exposição aspira flexibilizar e possibilitar a auto-reflexão de outras vozes. Um discurso reinventado a cada reflexão, a cada observação e a cada ato de escritura em que urge a pretensão de se ‘localizar’ nesse ‘não lugar’, por meio de um discurso múltiplo, aberto e reticente. Vejamos como articular essa proposição discursiva com a idéia que Michel Foucault propõe em ‘A Ordem do Discurso’:. Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 1970, pp. 08, 09). Para complementar, o autor explica que há no discurso um jogo entre três tipos de interdição: “Tabu do objeto, ritual da circunstância e direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala”. (FOUCAULT, 1970, p. 09) Isto acontece como um jogo de entrecruzamento, reforço e transformação dessas interdições que formam uma grade complexa, onde o discurso se localiza e exercita o seu poder, predominantemente no terreno da política e da sexualidade. É nesse terreno que a ligação entre desejo e poder mostra sua evidência, pois o discurso é o próprio objeto de desejo que traduz as lutas e sistemas de dominação sejam eles ocultos ou evidentes. O discurso é o motivo da luta, é o desejo de ter o poder. (FOUCAULT, 1970).

(37) 36 Nos estudos acadêmicos desta pesquisa entrou em cena uma urgência de transformar essa experiência em discurso-escrita-encenação-performance. Esta urgência é o motivo desta luta. Entrou em cena a pretensão de transpor barreiras de objetividades limitantes e reconhecer associações teóricas e comparações que corroborassem cientificamente essa vivência. As dificuldades estão localizadas na articulação de processos interiores subjetivos da minha vida pessoal a fim de atravessar o sentido oculto de conexões percebidas anteriormente, externá-las e finalmente, transformar tais processos em discurso no decurso da escrita, ou seja, numa linguagem de ficção coerente. Com o apoio das palavras de Foucault a seguir, meu discurso se viabiliza:. O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo de seus próprios olhos. E, quando tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si. (FOUCAULT, 2005, p.49). Foucault ainda acrescenta:. Pede-se que o autor preste contas da unidade de texto posta sob seu nome: pede-se-lhe que revele, ou ao menos sustente, o sentido oculto que os atravessa; pede-se-lhe que os articule com sua vida pessoal e suas experiências vividas, com a história real que os viu nascer. O autor é aquele que dá à inquietante linguagem da ficção, suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real. (FOUCAULT, 2005, pp. 27, 29).. Nessa luta discursiva, acatei os quatro princípios sugeridos por Foucault como prevenção à logofobia ensurdecedora dos discursos dominantes: o princípio da inversão, em que ao contrário da procura da verdade, farei um jogo de recorte e rarefação do discurso, mais poroso. A rarefação nos leva a considerar o princípio da descontinuidade de suas práticas que podem se cruzar, se ignorar ou se excluir. A descontinuidade, por sua vez, nos atenta para o princípio da especificidade, onde o.

(38) 37 mundo não é legível, não está pronto e, portanto nos requisita a prática de não se impor. Por quê? Porque na prática uma regularidade ao discurso é imposta, e esta nos transporta ao quarto princípio, o da exterioridade, ou seja, o da condição de possibilidades externas, às quais é sensato nos abrirmos. A cada discurso, procedimentos internos acontecem de formas distintas, apontando para outras faces de um deslocamento inevitável, de tempo, de lugar, de percepções, de olhar. (FOUCAULT, 2005) Com esse fio de inversão, descontinuidade, especificidade e exterioridade, eu arrisco tecer o discurso da minha escrita... Nasci em Três Lagoas, no sul do Mato Grosso, oeste do Brasil, em 1956 e tenho uma trajetória de vida marcada por mudanças geográficas e, conseqüentemente, por transformações culturais constantes caracterizadas por rastros de diferentes contextos sociais, econômicos e políticos.. Trago comigo um conhecimento universitário de. Engenharia Civil atravessado por uma convivência assídua com a arte, em especial, a música e a dança. Estudei violino dos cinco aos quatorze anos, mesma idade em que iniciei o balé clássico, a partir de quando mantive contínuo contato com outros tipos de dança. Dessa maneira, transformei a dança em profissão. Significativamente, meu nascimento acontecia poucos anos antes do ressurgimento das atitudes anarquistas, em paralelo, particularmente ao movimento feminista nos EUA durante os anos 60 e seguido do movimento tropicalista no Brasil, no período da minha adolescência.. Venho de uma família majoritariamente de. mulheres, entre irmãs e sobrinhas. Esse é um fato significativo para essa convivência singularmente feminina, pois exige uma firmeza de todas nós a fim de aprendermos a lidar com a vida sem estarmos atreladas a uma proteção masculina em nosso cotidiano, como assegura o pensamento machista que apaga a mulher e subestima sua autonomia..

(39) 38 Por isso, acabamos por cultivar com meu pai uma relação de confiança em meio aos riscos que nos responsabilizamos em correr. Dessa maneira, constituí uma vida em meio às desestabilizações do referido período histórico, enquanto mulher, mutante e dançarina, que agora me fazem pensar nessas gretas que caracterizam esse estado que identifico como: uma mulher dançarina em permanente deslocamento. Refletir sobre isso me remete à Derrida, com seu tributo à dança na entrevista com C.V. Mc. Donald (capítulo Choreographies do livro Bodies of the Text) quando escreve a respeito de questões onde a mulher e a dança estão entrelaçadas: [...] Em francês a palavra dança,“la danse”, é um nome feminino e requer um pronome feminino ‘elle’. [...] Como você descreveria o ‘lugar da mulher’? (DERRIDA, 1995, pp. 142) [...] Por que deveria ter um lugar para a mulher? E por que somente um, um singular, completamente lugar essencial? [...] No meu ponto de vista, não há um lugar para a mulher. [tradução minha] (DERRIDA, 1995, 143).. Ao vasculhar esse caminho de fronteiras e limites embaçados, percebi quando me mudei para a cidade cosmopolita de Amsterdã, em 1995, que estas imbricações não eram simplesmente características da minha vida particular. Encontrei naquela cidade, entrecruzada de numerosos canais que conectam ruas e gente com pequenas pontes de passagem, um hibridismo cultural que se dilatava ao processo histórico dos povos colonizados e transatlânticos da Diáspora. Assim, interligávamos nossas culturas. E este fato contribuía para notarmos que eram exatamente nossas idéias etnocêntricas que enunciavam a diversidade de nossas histórias, de nossos deslocamentos naquela migração pós-colonial. Inspirada nas articulações de Bhabha, eu estava diante de um embate cultural, que segundo o autor, admitem antagonismos ou afiliações que são produzidos performativamente: “a articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa que procura conferir autoridade aos hibridismos.

(40) 39 culturais que emergem em momentos de transformação histórica”. (BHABHA, 1998, p.21) Foi preciso muito jogo de cintura, na vida e na dança. Desse modo, percebi que a dança era uma ferramenta diluída em minhas atitudes para lidar com as diferenças encontradas no caminho, como um meio de expressão de urgências e escolhas, em tempos e espaços deslocados. Ademais, com intensa evidência, o sistema de governo matriarcal, marcado pela presença da Rainha Beatriz, incorpora nas mulheres holandesas ‘em geral’, um comportamento determinante, de grande visibilidade. Fato que, indiretamente conferiu maior visibilidade aos rastros de fragilidade feminina, se é que podemos chamar assim, do meu processo cultural latino. Conviver com a alteridade é uma maneira de nos enxergamos pelas identificações e particularmente pelas diferenças. Passo agora a discorrer sobre meu percurso na dança e na vivência transcultural, com o propósito de justificar os fundamentos e objetivos desta pesquisa. Como um fio condutor, levo o leitor a desenhar, coreografar uma imagem, do que antecedeu e fez brotar a percepção desse corpo dançante acerca das danças de Xangô e do Bugarabu. Para tanto, tratarei a seguir da repetição, fator fundamental para apreensão dos movimentos das respectivas danças e estímulo para novas criações. Entrelaço a idéia de Ferracini no que diz respeito à repetição orgânica enquanto memória, com a restauração do comportamento (Schechner) e o conhecimento incorporado (Barba), aplicados a esta experiência. A repetição anos a fio, carimbou no corpo dançante uma qualidade específica de movimento que desaparece ao término da execução da dança, mas que deixa rastros de um conhecimento incorporado transformado em um comportamento restaurado, termos desenvolvidos anteriormente. Em outras palavras, ficou impresso na memória corporal um comportamento cênico.

Referências

Documentos relacionados

O Documento Orientador de 2013, dispondo sobre as atribuições do (a) professor (a) articulador (a) de projetos, determina que ele (a) deverá estar lotado (a) na unidade escolar,

Pensar a formação continuada como uma das possibilidades de desenvolvimento profissional e pessoal é refletir também sobre a diversidade encontrada diante

Disto decorre que cada entidade sindical minimamente representativa deverá, num futuro próximo, escolher, em primeiro lugar, um dado mix de serviços,sejam de de natureza

Compreendendo a indissociabilidade entre docência e pesquisa como um fenômeno epistemológico e histórico, a produção de conhecimento sobre o tema, no âmbito da

Considerando que a maioria dos dirigentes destas entidades constituem-se de mão de obra voluntária e na maioria das vezes sem formação adequada para o processo de gestão e tendo

Além disso, estudos que contemplam a situação de saúde da equipe de enfermagem são vastos; entretanto, ainda são necessárias pesquisas que subsidiem a visão dos

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das

II - que estejam prestando serviço à Casa Cor Brasília e ao CasaPark e/ou que tenham com eles vínculos familiares consanguíneos ou afins, na linha reta ou na colateral, até o