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A MORTE ENTRA EM CAMPO

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Academic year: 2019

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1 Ivo Stainiclerks

A MORTE ENTRA EM

CAMPO

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Prossegue a partida entre o Flamengo e o São Paulo Futebol Clube.

O Flamengo parte para o ataque em vantagem. Bola com Willians. Passa para Fernando, que encontra Leonardo Moura com bastante espaço na lateral. Ele carrega em direção ao ataque, passa por Alex Silva com um movimento e se aproxima da grande área. Nick Herman pede o passe, mas Danilo intercepta e dá a bola para Cleiton Xavier que tenta um longo lançamento na direção de Robert, mas o auxiliar já havia marcado impedimento. Grande chance de contra ataque desperdiçada.

Miranda tem a bola na defesa e dá um bicão para frente em direção a Hernanes que ganha a briga pelo alto e acha Rodrigo Souto no meio-campo. Se movimenta para a lateral e recebe um passe esquisito de Richarlyson. Cruza no primeiro pau e Bruno move em direção à bola. Ele desvia a bola com seu joelho e peeeerdeeeuuu! A bola passou ao lado da trave!

André Luiz cobra curto o escanteio. Dagoberto recebe o passe, finta o marcador e cruza a bola botando curva nela em direção ao segundo pau, Bruno pula na bola,mas não alcança. A bola vai até Welinton que tira da sua defesa.

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3 o cabeceio para Henrique. Ele dribla o seu adversário e avança pela ala. Chega na linha de fundo e cruza para a marca de pênalti onde está Rodrigo Souto que tenta um lindo voleio e o goleiro pula na bola e consegue desviar e mandar.

O Flamengo está com dificuldade em parar o ataque adversário aonde trocam bons passes. Vitor e Fernando partem para armar a jogada. O primeiro finta dois e acha Maldonado livrinho na lateral. Ele cruza de primeira bem na cabeça de Nick Herman, e Alex Silva consegue desviar para escanteio.

André Luis corre até a bandeirinha do escanteio, põe a bola no chão e se prepara para fazer a cobrança do tiro de canto. Ele cobra rápido e pega a maioria dos jogadores desprevenidos, a bola vai na direção de Rodrigo Souto que está posicionado na entrada da área, mas Welinton chega primeiro e dá um chutão para aliviar o perigo.

Hernanes e Dagoberto olham para a barreira. Miranda vai para a cobrança e joga a bola na grande área. Petrovick pula junto com o goleiro e Bruno mostra habilidade e pega a bola no ar impedindo que o jogador cabeceasse.

Fernando recebe a bola no meio-campo e cobra o lateral. Nick Herman se livra do seu marcador e toca de primeira para Kleberson que dispara para o ataque. Junior Cesar não tem outra opção, a não ser puxar a camisa do atacante para forçar uma falta. Ele tem sorte por não receber punição maior do árbitro pela falta.

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4 Kleberson ganha pelo alto, mas Rodrigo Souto sai com a bola. Ele lança a Richarlyson. Este analisa as opções que tem e vê Dagoberto pedindo a bola. Faz o passe em profundidade, Dagoberto domina, olha para o goleiro, Bruno sai fechando o ângulo, Dagoberto tenta chutar tirando do goleiro e perde o gol.

Estádio lotado como um formigueiro cinza. Torcidas se agitam enfurecidas. Vermelho e preto de um lado, preto e branco do outro. Explosões violentas, como ondas de um mar revolto e tempestuoso. No gramado a disputa ferrenha pela redondinha. Nas arquibancadas cada um se martiriza, e se torturam como loucos, na expectativa do gol marcado pelo seu time. Rostos corados e banhados de suor. Impaciência e indignação por erros cometidos.

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6 verdade, há um jogador de futebol que a faz ir ao estádio de vez em quando. Esse jogador é Nick Herman.

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7 perdia grande coisa. No entanto, o que lhe dói ainda hoje é pensar na ocasião em que Nick Herman foi mordido por um cachorro. Também andou perto de bater as botas. Ficou vários dias de cama em estado crítico. O bom mesmo era ir todos os dias em sua casa. A mãe dele era uma senhora gentil. E, quando ela não estava por perto, acariciava-lhe a mão, torcendo para que sarasse logo. Era terrivelmente chato vê-lo sofrer daquele jeito. Embora, ao mesmo tempo achando boa aquela demora, pois, enquanto não sarasse, poderia continuar com as visitas. Mas, finalmente ficou bom. Só que pelo resto da vida o pobre Nick nutriu uma aversão intolerável por cães. Um trauma dos diabos. Nunca mais se deu bem com aquela espécie de animais.

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9 certeza usufruem do seu escasso dinheirinho, suado e ensebado de graxa e poeira. Na animação esquece que na manhã seguinte os seus músculos enrijecidos sofrerão dolorosas contrações e movimentos na execução frenética das chaves e duros golpes de marreta. Comerciantes, vendedores, auxiliares de escritório, faxineiros. E por falar em faxineiro recorda-se de Zico Zarôlho. Sujeito que prendeu dias atrás, e que atualmente cumpre pena em regime aberto, trabalhando nesta função em um restaurante. Estaria aqui, caso estivesse solto? Não tem certeza. O indivíduo é meio maluco, e não sabe se realmente é perigoso. Mas, isto não vem ao caso. Veio se divertir, e não ficar pensando em trabalho. Ao menos a intenção era se divertir, desligar da rotina. Contudo, sequer participa. O corpo está presente, mas o espírito insatisfeito naquele local.

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11 que lugar de mulher é em casa, especialmente na cozinha. Uma pinóia. Ela precisa trabalhar, pagar as contas. A mãe já não agüenta mais o tranco. Está bem debilitada, coitada. O infeliz do chefe nunca imagina que ela tem obrigações a cumprir, que é um ser humano como os demais, que se alimenta e veste, e tem que pagar a porcaria da luz, telefone e gás, não é? E, além do mais, possui ambição, precisa crescer, progredir. Ou será que, de fato, é seu destino ficar mourejando o resto da vida? Quem sabe não sirva mesmo para esse negócio, e trabalho de polícia é uma merda de ocupação estritamente masculina. Se pegar um caso irá decepcionar a todos, ou melhor, apenas confirmar o que já estavam cansados de saber. Na escola era inteligente, se saía bem nas provas, mas, duvida que tenha sido brilhante. Nunca foi boa em nada. Matheus Akcela até que tem certa razão em não lhe confiar grandes tarefas. O cara sabe das coisas. Por isso, qual a sua chance? Compensa lutar?

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12 Bartolomeu Ferrath, mas, logo retirados sem atinar pelo motivo. Com certeza não querem mesmo que faça nada. Ridicularizada ao extremo, ninguém lhe dá crédito ou competência. Ângelo Torres nunca a subestima. Reconhece os seus problemas, e não aprova o comportamento dos outros. Conhece partes da droga de sua vida, que foi criada na pobreza, e venceu com esforço. O babaca do pai morreu devido ao alcoolismo que o consumiu. Por sorte tem ainda a mãe, o seu refúgio nas horas difíceis. O parceiro, às vezes, lhe faz perguntas embaraçosas como, por que nunca se casou, e nem se apaixona. Ela não gosta de falar sobre isto. Apenas sorri, e diz em tom de brincadeira, que cuide da sua própria vida. Mas, na cama às vezes, fica horas e horas pensando. Por que não se casou e não teve filhos? Será que já chegou a se apaixonar? De que adianta viver na solidão, e ralar na polícia, por um salário de merda, além das humilhações? Qual o seu objetivo na vida? Viver para quê? Todo mundo sai, se diverte, e ela não. Nunca aprendeu a dançar. Não leva jeito para essas coisas. Nunca se solta. Na escola permanecia silenciosa nos cantos. Todos os imbecis riam, falavam e se divertiam. Ela não tinha sequer amigos. Jamais se enturmava. O único amigo que teve foi Nick Herman. Talvez tenha se apaixonado por ele, mas nunca teve certeza.

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13 ele, tirá-la daquela vidinha estúpida em que vive. Por isso no dia anterior veio com um convite:

_Que tal assistirmos a uma boa partida de futebol amanhã?

_Qual, já estou cheia de ver gente trucidada e pescoço quebrado. Não pretendo nem um pouco estar lá, feito boba, olhando aqueles cavalos se escoicearem.

Ângelo Torres ri. É um sujeito de banhas, e a barriga sacode. No entanto não deixa de ser simpático.

_Ora essa, não me diga que vai passar o dia de folga esfregando chão, e limpando a poeira dos discos.

_Vou lixar as unhas. – Diz brincando.

_ Amanhã será um jogo especial para a cidade. Será escolhido um dos nossos jogadores para a seleção.

_Não que eu não seja patriota, mas é uma coisa que pouco me atrai.

Ângelo Torres tem um senso refinado em captar emoções. Percebe logo o que se passa no íntimo das pessoas, por mais que se queira esconder.

_Quer dizer que não se importa? Mesmo quando um amigo de infância tem a chance de ser escolhido?

Ela o encara com desconfiança. _Está se referindo a Nick Herman? _Claro, e quem mais poderia ser?

_Qual é. Aquele imbecil não é tão bom assim.

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14 _Puxa! Que convicção! Sobre isto eu não discuto, já que não entendo de futebol, mas está quase me despertando o interesse.

_Quer dizer então que vai?

E lá está agora no meio daquela multidão de desvairados. Idiotas de toda a espécie. Conhecidos que lhe acenam, estranhos que nunca viu, e nunca desejaria ter visto. Bandeiras tremulantes, gritos, palavrões, protestos. Já está acostumada a isto, lidando com seres do mais baixo nível, na profissão. Olha a platéia. A excitação toma conta do estádio. Cores alegres, rostos sorridentes. Todo mundo com aquela cara de ansiedade besta. Mas no fundo estão felizes. Desajustada no meio de tudo, considera-se ainda mais idiota do que a multidão inteira. Quieta e introvertida, nunca foi de soltar a franga com facilidade. É o seu modo de ser. A vida inteira foi fechada. Séria, como um porco mijando. Além disso, se acha ridícula vestida com uma simples camiseta cavada e um short curto. Meio insegura. O problema é que se acostumou com a austeridade da polícia. A dureza de roupas pesadas, coldre, coturno. O uniforme operacional, não permite que seja vista em público daquele jeito. Só em casa fica à vontade com aqueles trajes.

__Ei, você está aí? - Diz Ângelo Torres cutucando-a ao vê-la tão distante. Olhe!

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15 aproximar-se o quanto puder e chutar com toda a força para o gol.

_Vai Nick! É agora Nick! - Grita Ângelo Torres com desespero, o qual se levanta junto com a torcida em êxtase.

Emanuele ouve os berros à sua volta. Se contorcem, e se agitam como se imergissem nas lavas de um vulcão.

_Para o gol Nick! Para o gol!

Ela também se levanta. Mas, ao invés de vê-lo concluir a jogada assiste com decepção a um ato de extrema brutalidade. Um dos adversários vem com tudo prá cima dele. Salta com violência acertando-lhe a perna direita, na altura da coxa, com os cravos da chuteira. Nick rola no gramado, e o árbitro apita. O jogo para. Foi atingido por Norivaldo Lagoinha. Na verdade ela não entende de futebol, mas, é boa para reconhecer pessoas. Principalmente uns da laia daquele patife. Norivaldo não é benquisto por muita gente. Andou praticando certas asneiras, que desmerecem qualquer elogio. Lembra-se da vez em que espancou um mendigo até quase matá-lo. E é fato corrente que há também atos de violência e maus tratos contra a esposa. O animal parece que procura uma oportunidade contra Nick. Com certeza não quer que ele se classifique para a seleção. Já houve alguns desentendimentos entre eles, pois, são adversários antigos, como os times em que professam. O Flamengo que é o time de Nick e o São Paulo no qual joga Norivaldo.

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16 afasta sem nenhuma advertência do juiz. A torcida grita, com raiva, palavras ofensivas. O barulho é imenso.

_Juiz filho da puta!

_Juiz ladrão! - Grita Torres, enfurecido. Expulsa este animal do campo!

Vaias, apupos e assobios. Emanuele, um pouco tensa, tem o pressentimento de que algo ruim irá acontecer. Não sei porque vim a essa merda. Pensa. Porcaria de diversão. Pareço uma tonta no meio deste bando de malucos. Não devia ter vindo.

_Miserável. - Desabafa Ângelo Torres. Só pode estar comprado, este patife.

Na estratégia do jogo, às vezes o jogador se machuca de verdade. Ou, em muitos casos apenas finge, a fim de obter vantagem, atraindo o juiz ao seu favor. No caso de Nick, pareceu levar uma forte pancada, e ainda de propósito. No entanto, talvez pela tenacidade ou determinação em ir até o final, e ter o esforço recompensado, recupera-se logo. Coloca-se de pé com rapidez, e o juiz prossegue a partida.

Sempre foi um jogador disciplinado. Respeitado pela diretoria e amado pela torcida. Durante o período que joga para o Flamengo nenhum problema grave que lhe afete a carreira. Dá o máximo de si, portando-se com humildade e discrição. Nunca maltratou sequer um companheiro ou superior.

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18 mesma forma. Negros e lisos divididos ao meio, aparados na linha do queixo. Não se acha bonita. A mulher de Nick sim. É dona de uma rara beleza, mas, com uma cara inconfundível de piranha. Onde foi que arrumou esta beldade? Corpo esbelto, bem torneado, cabelos loiros e sedosos, e um sorriso que chama a atenção, como em anúncio de perfume caro. Parece sempre envolta em uma aura de riqueza e majestade. Nick Herman deve ser feliz, e pelo jeito não mudou nada desde a infância. A mesma safadeza e alegria no rosto, supõe-se por aí que seja um homem realizado.

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19 Mais alguns lances e o jogo termina. A grande vitória do Flamengo é cantada pela torcida que se diverte ao sair do estádio. Um cartola vem conversar discretamente com o jogador Norivaldo Lagoinha.

_O que houve? Me diga afinal o que houve? - Fala, nervoso, vibrando as mãos em frente ao jogador.

_Ora, você sabe que às vezes as coisas não acontecem como a gente espera.

_Não acontecem! É isto o que me diz, não acontecem?

_É. E foi isto o que houve. Não deu certo.

O cartola está com raiva. O rosto branco e corado torna-se mais vermelho.

_Olha, vou lhe dizer o que você realmente é: Um inútil, um monte de merda, sabe, uma coisa imprestável!

_Não exagere, senhor, eu fiz o que pude para tirá-lo do jogo.

_Fez o que pôde, é? Era para acabar com ele, deixá-lo inutilizado, entende? E veja só o que fez. Deixou que marcasse o gol.

_Não queria que eu fosse expulso, não é? Eu também almejava a minha chance.

_Ora, você não tinha chance alguma!

_Não diga besteiras. Eu sou tão bom quanto ele. Nick Herman apenas teve sorte. Nada mais.

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20 _Fique calmo. - Diz o jogador com um sorriso cínico. Nem tudo está perdido.

_O que quer dizer?

_Há muita coisa pela frente. Como se diz: Muita água a rolar embaixo da ponte.

_Como assim?

_Nick Herman não jogará na seleção. Escreva isto. Mas, desistindo de qualquer argumento, e com um gesto, o sujeito dá por encerrado o assunto.

_Vamos embora. Já nem sei mais o que pensar. Em seguida saem do vestiário, e o estádio vai se esvaziando aos poucos.

Nick Herman é o herói do dia.

_Pode ter certeza de que ele jogará na copa. - Comenta Ângelo Torres, enquanto se preparam para deixar o estádio.

_Espero que consiga realizar este sonho. Ele merece. _Sim, Nick é um bom sujeito.

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21 sujeito não desprega os olhos do casal. Não se lembra de tê-lo visto antes. Baixo, troncudo, e de aparência um tanto repulsiva.

_Vamos embora. - Fala Ângelo Torres. Você parece meio estranha hoje.

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2

Gordon Tilles é um executivo franzino. Rosto afunilado, quarenta e poucos anos, aparência jovial. Nariz fino, boca pequena, cabelos pretos e rentes, com um início de calva acentuado. Traja-se com elegância. Terno cinza marca Tonnelo e sapatos Alfred Sargent, sempre acompanhando a evolução da moda. Há em seu guarda roupa vários conjuntos de ternos, cintas e gravatas de grifes. Sujeito exigente, motivo pelo qual em todos os lugares que entra desperta curiosidade, olhares de admiração e respeito. Em grande parte por acompanhar o Sr. Hildebrando Mascarenhas Pavão, candidato a deputado, um homem extremamente importante. Ao seu lado participa de quase todos os acontecimentos de sua vida.

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23 dirige. O sol reflete nas janelas e nas águas azuis do Paranoá. Os pneus deslizam suavemente pelo asfalto. Na altura da Ern, vai pensando. A mente livre, distante da realidade. E na tela da memória umas imagens antigas do tempo de adolescente. Vida meio depravada. Cenas bizarras, besteiras. A primeira coisa errada que fez foi quase matar a mãe. Via-a pelada escondido debaixo da cama. As formas sedutoras bem ali à sua frente. O corpo bonito, as pernas bem feitas. A respiração ofegante, o coração acelerado. Não sabia como era capaz daquilo, mas era bom. Sente-se excitado só de pensar que, naquele dia, o desejo lhe abrasava as entranhas. Uma coisa que o deixava nas nuvens. Um fogo que lhe queimava em êxtase, e a cabeça fervilhava. De repente a posse de uma sensação estranha, como que não podendo se conter, ou explodiria. Saiu de debaixo da cama. E, fazendo menção de ir para cima dela, soltou um berro descomunal. A mãe, surpresa, gritou histérica e de olhos arregalados. Desmaiou, e foi parar no hospital. Uma tremenda confusão.

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24 matrimônio, teve pouca duração. A mulher logo viu nele um homem de poucas expectativas e futuro incerto. Não se dispôs a prosseguir a vida, e nem ter filhos com um indivíduo que não lhe oferecesse qualquer segurança. Ainda casado costumava dar umas escapadas de noite. Envolvia-se com gays, dizendo à mulher que tivera problemas no trabalho, ou que se atrasara no trânsito. Com certeza ela não acreditava. Porém, nunca levou o caso ao limite máximo, e finalmente resolveu se divorciar, e cuidar de sua própria vida. No entanto, mesmo com tal revés, não se desorientou. Continuou ali no seio da família onde, apesar de tudo, ainda era benquisto.

Vira a esquina sem prestar atenção no trânsito, preso às recordações. Sempre fora um sujeito atraente, propenso a chamar a atenção. Pacífico, embora com frequência pratique alguma asneira. Outra coisa ruim foi não tendo dinheiro para custear a cara aparência, e nem manter o estilo, bebeu em um clube em companhia de uma velha carente. Em troca de algum pagamento decidiu satisfazê-la por uma noite. A coroa tinha muito dinheiro guardado, e jóias. Bêbada, provocou um incêndio no quarto, morreu, e ele salvou as jóias e o dinheiro.

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25 mais um erro, o que no final estava dando certo: Fugir da América por uma bobagem, que, prá dizer a verdade, transformou-se numa bênção. Trabalha agora de secretário para o Sr. Hildebrando Pavão. Acredita que está seguro. A polícia americana jamais o achará. E, além disso, a ex cunhada provavelmente já esquecera a maldita tragédia. Nem tanto monstruosa, mas bem divertida. Às vezes ainda pensa no ato, sentindo uma enorme tesão. Foi hilário o estupro da sobrinha de dez anos. A putinha se assentava em seu colo. Sinceramente até ela gostou. Uma dorzinha à toa, pois ele fez tudo com jeito, assediando-a da maneira certa. Porém, a casa caiu com a descoberta dos pais, e a sorte foi encontrar Hildebrando por aqui. Além de ótimo advogado, Pavão concorrerá a deputado nas próximas eleições.

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26 _Pelo jeito a América tem expulsado um dos seus filhos de casa. - Disse em tom brincalhão.

_Não compreender Mr. Hildebrando, quer... quer dizer: Pavão. – Respondeu Gordon Tilles meio encabulado.

Hildebrando sorriu.

_Não se preocupe, amigo. Há muito espaço para se brincar de esconde-esconde. Cantos escuros é o que não falta por aqui.

Gordon Tilles soltou uma gargalhada espremida. _O senhor é muito espirituoso. - Disse.

_Às vezes, mas, caso seja a primeira vez que participa de tal brincadeira, sinto-me na obrigação de alertá-lo de que é perigoso.

Gordon Tilles procurou de imediato perceber o que o sacana estava querendo dizer. Chegou à rápida conclusão que se referia à sua recente fuga da América, vindo para o Brasil.

_Desculpar, Mr. Pavão. Eu não ser grande erudito, e costuma embarrasse assim altamente na língua, principalmente em nível como a senhor. Mas, mencionando a tal interesse do truque a ele que eu estive obrigado entrar sem querer.

Hildebrando olhou-o com aprovação, rindo do seu desempenho no falar.

_Parece um sujeito esperto. E quanto a levantar o astral das coroas não me consta que seja um negócio promissor.

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27 íntimos segredos. E era o que demonstrava Hildebrando Pavão.

_Bem, acha que não. - Respondeu meio desajeitado. Precisa eu ainda me adaptar aos costumes da terra. Como por exemplo para arranjar uma trabalho bom.

Esta última frase soltou ao acaso. A verdade é que não queria nada com porcaria de trabalho. Desejava sim, continuar no mesmo programa em que havia começado. E, mostrando os dentes num sorriso insípido, ouviu, incrédulo, as palavras que saíam da boca de Hildebrando.

_Você já tem um.

_Como? - Perguntou, mostrando incompreensão. _Você já tem um trabalho. - Disse com firmeza. De agora em diante é o meu secretário executivo.

_O senhor deve estar brincando. _Pode ter certeza que não.

_Mas eu nada entendo de política, ou sequer de negócios, senhor. - Exclamou estupefato.

_Não é preciso. - Assegurou Pavão. Não tenha dúvida de que é a pessoa certa para o cargo.

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28 ele faz parte de um jogo. A vida é um jogo que pratica constantemente. Em qualquer situação, seja nas mínimas ou máximas, ou você ganha, ou perde. Esta é a sua filosofia. O importante é nunca perder. Contar pontos, e Gordon Tilles já se acostumou a isto. Sabe que em toda a interação da vida o astuto do patrão sempre vence. Tanto em negócios quanto na vida pessoal. É homem que não tolera ser rebaixado. Como se diz, é o sujeito que não leva desaforos para casa. Para ele não existem amigos e nem inimigos. Apenas adversários. E qualquer que seja o adversário não tem a menor chance. Gordon Tilles não tem dúvidas a esse respeito.

A cidade de Brasilia é linda. Jamais se arrependeu de ter vindo para cá. Vive esplendidamente, e aprendeu muita coisa com o Sr. Hildebrando Pavão. No começo não queria trabalhar com ele. Prender-se a qualquer emprego não estava em seus planos, mas o candidato a deputado foi incisivo:

_Amanhã às sete horas em meu escritório.

Chamava o seu jogo de jogo da vida, o que para ele não passava de manipulação pura e descarada. Abrangia a todos que o cercavam: Chefes, assistentes, funcionários e até familiares. Lembra-se do que aconteceu depois daquele primeiro encontro. Não compareceu no escritório como havia determinado, o que foi pior. Dois homens o acharam escondido na casa de uma coroa rica num canto obscuro da cidade. Levaram-no à presença do candidato a deputado, que disse sorrindo:

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29 Como era capaz daquilo? Não entendia qual a sua estratégia, pois, além de encontrá-lo com facilidade, sabia tudo ao seu respeito, quando disse:

_Talvez se aceitar a trabalhar comigo serei tolerante o bastante para não entregá-lo às autoridades americanas.

_Está bem. - Concordou de imediato.

Faz tempo que trabalham juntos. Conhece agora quase todo o passado do patrão. Sabe que Pavão não é flor que se cheire. Aparentemente é um homem bom, e a maioria das pessoas o vê desta maneira. Mas, no fundo, só quem convive com ele para considerar o que pratica. É rico, poderoso, e cresce vertiginosamente à medida que pratica o seu jogo. O que para ele é uma diversão. O seu gabinete atua em vários setores na área governamental com influência decisiva. Muitas vezes uma pequena intervenção frente às instituições bancárias pode favorecer as empresas, tanto na indústria como no comércio. Gordon Tilles foi testemunha disso em diversas ocasiões.

O que Hildebrando nunca aceita é ser humilhado, ou tratado com desprezo. Jamais tolera que a sua palavra ou opinião seja colocada em dúvida. Indignado, o seu maldito jogo é silencioso. Um dia, cumprindo ordens, Gordon Tilles ligou ao pomposo gerente do LJS Negócios Empresariais no Setor Comercial, dizendo:

_O Sr. Hildebrando Mascarenhas Pavão pediu que liberasse o dinheiro na terça.

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30 O gerente se empertigou.

_Pavão! Pavão! Quem ele pensa que é? A firma não tem qualquer garantia!

Imperturbável acabou tomando o empréstimo em outro banco. Porém, numa festa de gala com ambos presentes, o gerente começou a se comportar de maneira estranha. Maltratou a mulher, se despiu na pista, e entrou no embalo apenas de cueca samba canção. Com certeza o efeito de alguma bebida alucinógena. Primeira página nos principais noticiários, e demissão no outro dia. Hildebrando Mascarenhas Pavão sorria divertido, olhando para o secretário Gordon Tilles. Em casa o gerente se deparou com o seguinte cartão na porta:

“Precisa de mais garantias, amigo?”

Gordon Tilles não sabe, mas, com certeza o Sr. Pavão joga tanto que é capaz de jogar até com os sentimentos da coitada da mulher. Atirando-a talvez em dificuldades que lhe maculem a honra, quando numa situação hipotética ela quer de presente um colar de pérolas, e ele diz:

_O jogo da vida não é fácil, querida. Temos que conseguir uma boa diferença nos manufaturados de carbono. E para isso é preciso que haja um aumento substancial nos prazos de validade.

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31 participar da manobra? Recebe como prêmio dias seguidos de completo gelo. Não ganha o colar de pérolas que tanto almejara. Isto é apenas suposição. Espera que o desgraçado nunca aja desta maneira em relação à família. Sua esposa não parece tão vulgar assim.

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32 Oswaldo, o dirigente da Fazendinha, por uma razão inexplicável, foi vítima de misteriosa tragédia. Em certa noite arrombaram-se as cercas do curral. O rebanho de bodes e cabras destruiu toda a plantação de alface e tomate, colocando-o assim em sérios apuros com o pessoal lá de cima. E só ele, Gordon Tilles, sabe quem é capaz de maldade como esta: Hildebrando Pavão.

O vento fresco lhe bate ao rosto. Finalmente está chegando. O escritório situa-se em um prédio secular e de aspecto nobre. O edifício bem cuidado, porém de cores sóbrias e janelas claras, parece mirá-lo de um modo estranho. Entra com cuidado no estacionamento. Fecha o carro, e penetra no saguão, cumprimentando conhecidos. O elevador o conduz ao seu pavimento. Na sala, apanha o jornal na escrivaninha. Folheia-o, e vê a foto de Nick Herman na página de esportes. Lembra-se do jogador do Flamengo. Da vez em que mantivera contato com ele a algum tempo, a mando de Hildebrando. Em uma das suas manipulações sujas havia ido ao Rio de Janeiro obrigá-lo a uma proposta sobre um jogo a realizar-se naquela data.

_Eu vim em nome do Sr. Hildebrando Mascarenhas Pavão. - Falou Gordon Tilles.

_É, isto não parece nada bom. - Comentou Nick Herman, desconfiado. O que deseja aquela velha raposa?

Gordon Tilles sorriu divertido.

_Não se preocupe. Trata-se de coisa simples. _Então?

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33 cerveja em companhia da grande estrela do futebol brasileiro, o que acha?

_Está bem. - Concordou Nick. Já que é o seu desejo, não custa nada realizá-lo.

_Oh! Isto sempre foi o meu grande sonho. Conhecê-lo pessoalmente. - Respondeu Gordon Tilles, assentando-se em um bar.

_Obrigado.

E depois de começarem a tomar.

_E aí, que tal dar o seu recado? - Falou Nick Herman impaciente.

_Bem, como já disse, é uma coisa simples. Ele quer apenas que o Flamengo perca desta vez.

O jogador de futebol mostrou-se indignado.

_Para ele pode ser, mas para mim não é nada simples. _Não vejo nenhuma complicação nisto.

_Não? Será que ele não enxerga o mal que causará ao meu time, e o prejuízo à minha carreira? O Pavão está louco!

_Não é nada demais. Ele até diz ser o seu maior fã. Não quer é que marque gols desta vez. Só isso.

_Impossível, eu preciso me esforçar para que o meu time vença.

_Bobagem, e se perder de qualquer jeito? _Mas, não por falta do meu esforço.

Gordon Tilles engoliu a cerveja do copo. O bar estava um pouco escuro, mas via determinação no rosto do outro.

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34 Gordon Tilles olhou-o com seriedade.

_Você vai se meter numa encrenca. - Avisou.

Nick Herman não se intimidou. Colocou a bola prá dentro na primeira oportunidade. Não tinha medo de ameaças, e o jogo foi ganho. Outra decepção para Hildebrando Pavão. Porém o candidato a deputado é imbatível. Que espécie de homem é este, que se mete em tantas áreas sociais quanto lhe comicham a ganância e o desejo? Em tudo encontra uma brecha para tirar proveito. Tanto nos negócios, quanto nas artes, e até nos esportes. O filho da mãe não se emociona. É frio e calculista. Com certeza deixou de ganhar, desembolsando alguns milhões, devido à teimosia de Nick Herman. O jogador de futebol na certa receberá o troco. Na medida em que Hildebrando Mascarenhas Pavão elaborar uma estratégia de vingança à sua altura. Ele não perde por esperar. Nunca se sabe de onde virá a resposta. Com ele é assim. A resposta é certa e dolorida, deixando a marca e a lição dada. Não se pode dar bobeira. Hildebrando Pavão é duro e inflexível.

Gordon Tilles recosta-se confortavelmente em sua cadeira giratória. Lê a notícia a respeito de Nick Herman, sorrindo de um jeito estranho.

_Muito bem. - Murmura com ar misterioso.

Dobra o jornal, se levanta, e sai com ele na mão. Entra na sala de Hildebrando, colocando-o em sua frente.

_Já leu isto? - Pergunta.

Pavão se depara com a foto de Nick Herman, e vira-se de súbito para o secretário.

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35 _Aí diz que o nosso amigo jogador foi convocado para a seleção.

_É mesmo? Ele é um cara bom de verdade. _E você não sabe da melhor.

_O que é?

_Vai haver uma festa em comemoração no Santa Luzia.

_Puxa, isto é excelente! E aposto que gostaria de estar lá, não?

Gordon Tilles sorri com um brilho no semblante. _Se é do seu interesse, não vejo nenhum inconveniente em participar.

_Ótimo. É bom estarmos de olho nele. Vou dar um jeito para que esteja presente.

_Ok. – Diz Gordon Tilles se retirando.

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36 pensamento distante, grudado em alguma coisa que ficou para trás em outra vida.

***

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O restaurante Quinta da Boa Vista, é um prédio atraente. Localiza-se no parque com o mesmo nome, em frente ao Jardim Zoológico, com a entrada para o parque principal. Sentimos em seu interior uma aura de rusticidade, olhando a sua estrutura com vigas baixas, mobília eclética e lareiras. Os almoços de domingo são públicos com uma especialidade com quatro diferentes carnes e preços razoáveis. Todos os ingredientes estão lá para um domingo perfeito. Moderno, ambiente agradável e aconchegante, sem contar com o atendimento de primeira. Em tardes tropicais, como a de hoje, está sempre lotado de fregueses, na maioria habituais, que se acostumaram com frequência a usufruir de algumas horas longe do labor e da aridez do dia. Participar de uma boa mesa, ou um copo de vinho de excelente safra. É um local limpo, arejado, e iluminação de ótima qualidade, onde todos se sentem à vontade, junto às famílias, namoradas, ou amigos. O Quinta possui uma longa tradição, e é conhecido e apreciado por empresários, artistas e profissionais em geral.

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38 infeliz só é capaz de prender sujeitos como ele, cuja adversidade persegue de contínuo. A miserável acabou por colocá-lo numa encrenca, e além disso, não desgruda os olhos dele. Vigia-o constantemente, nunca lhe dando uma chance de escapar.

Está cansado. Doem-lhe os braços compridos e as pernas finas. A vista alcança o Parque lá fora. A vontade é de largar tudo, e correr para a sombra aconchegante das árvores. Deitar sobre a relva, e ficar olhando o céu azul sem se preocupar com nada. Aqui dentro é o maior sufoco. De cor branca, magro, e nariz pontudo, a aparência não é lá muito agradável. Corpo e cabeça de macaco. Além do cabelo duro, possui uma espécie de penugem rala no rosto, e olhos estrábicos. De modo que é difícil perceber para onde olha exatamente. Nasceu no interior de São Paulo, e veio para o Rio em companhia dos pais e uma tia. Nunca soube de mais parentes. Também nunca voltou a São Paulo para descobrir.

O nariz fino arde com o cheiro do sabão. O rosto pálido se vira para o lado dos cozinheiros. Olha-os com raiva, sem querer participar da conversa chata e enfadonha. Um zoando o outro sobre o seu time de futebol. O assunto não lhe agrada. Mas, como é obrigado a ouvir, é mais uma tortura a que está sujeito.

_Por que é que o são paulino hoje está tão calado? - Pergunta um orelhudo que mais se parece com o Dumbo, mexendo numa panela de caldo, e olhando com ar de gozação para o outro meio emburrado no canto.

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39 triste. Imagino que ainda sente o efeito da derrota de domingo.

_Ah, com certeza. - Prossegue o orelhudo. O Urubu não teve piedade desta vez. Acabou com eles.

O palhaço que sofre as provocações, embora não satisfeito com aquilo, persevera firme em seu canto. Parece ser um homem de caráter equilibrado, longe de se irritar com as brincadeiras dos amigos.

_Vocês são muito zoadores. - Diz, apenas se disfarçando. Porém, um quarto tipo, que acaba de despejar vinagre em uma travessa de salada, sorrindo, entra no assunto:

_Conversa fiada.

_O que disse? - Pergunta o baixinho.

_Eu digo que este tal Urubu de vocês não jogou nada. _Tá brincando.

_Estou falando sério. Se fosse o meu Palmeiras, neste caso, teria arrebentado. Ganhava de goleada. Aí é que os sãopaulinos iriam chorar de verdade.

_Ei, espere aí, meu compadre. - Reage o primeiro homem que até então não havia dito nada. Não me venha com essa. O Palmeiras não tem sequer jogador apto para a seleção.

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40 _Qual é, meu amigo, pelo que sei o Roberto Carlos jogou no Palmeiras no ano de 94. O que isto significa?

_Concordo. Mas o São Paulo também não tem.

_Ora, se esqueceu do Rogério Ceni, o goleiro sãopaulino com a maior série de jogos sem sofrer gols em Campeonatos Brasileiros, superando Valdir Peres. Satisfeito?

_Opa! E quem é o primeiro neste caso? Perde para Emerson Leão que, jogando pelo Palmeiras, permaneceu invicto por 1057 minutos. - Completa o cozinheiro com uma gargalhada vitoriosa.

O barulho da torneira escorrendo, o tilintar dos pratos. A panela de caldo borbulha.

_Águas passadas não tocam moinho. - Diz o sujeito do caldo.

_Como assim? - Interpela o sãopaulino.

_Ora, o importante é o presente. Como por exemplo o jogo de domingo.

_Eu sei que o Flamengo venceu. Mas, o que há de importante nisso?

_Porra! E que vitória!

_Qual o quê, não foi tão deslumbrante assim.

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41 _Óxente! E não é que foi mesmo? Ainda bem que o sujeito é raçudo. - Exclama o riograndense baixinho.

O orelhudo se enche de orgulho. _Ainda assim conseguiu marcar o gol.

_Verdade. Isso é que é jogador. Nick Herman é o maior. _Nick Herman, Nick Herman. O sujeito teve sorte de marcar um gol.

_Qual é! - Exclama o orelhudo quase entornando o caldo. Senão fosse bom não teria sido convocado para a seleção.

_É isso aí. - Confirma o baixinho.

_É, e vai haver até uma recepção no Santa Luzia no final da semana.

_Comes e bebes a vontade.

_Os amigos dele estarão lá para apoiá-lo. _Besteira...

O gerente aparece, o assunto morre de repente. Zico Zarôlho estava ficando enjoado. Agora todos se concentram no trabalho. Só se ouve os passos do barrigudo prá lá e prá cá fiscalizando. De vez em quando abre uma panela verificando o seu conteúdo.

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43 Talvez desacatar um funcionário, maltratar um freguês. Perspectiva atraente, mas, sem muita gravidade. O que resultaria em só mais uma bronca do gerente filho da mãe.

Enquanto lava os pratos pensa em todas as possibilidades. Fingir doença, escorregar e quebrar um braço, simular loucura. Ideia que descarta com rapidez, só de pensar em se ver trancado num ambiente sombrio e fedido, acompanhado de um bando de indivíduos lunáticos e babões, pronunciando coisas incompreensíveis. Não. Não quer piorar a situação. Tem que haver outro jeito.

A tarde cai sobre o parque. Uma vontade louca de sair, e curtir a vida. Mas não pode. Só lhe permitem vir e voltar ao presídio. Tudo com hora determinada pelo juiz. Sem tempo de vadiação. Dificilmente as coisas para ele dão certo. A mãe e o pai morreram de acidente quando era bem pequeno. Criou-se com uma tia alcoólatra, quase morrendo à míngua. Ajudou a carregar compras nas feiras, e roubou frutas e ovos nas horas de dificuldade. Tentou a vida de jóquei. Caiu e fraturou várias costelas, que por pouco não lhe furam os pulmões. Há pessoas que se dão bem no trabalho, na sociedade e em tudo. Outras não. São os desajustados como ele, que nunca se encaixam. Não acertam o passo. Estão sempre em desarmonia com o resto, perdidos, desencontrados. Se o comando ordena que vire à esquerda, o batalhão obedece, enquanto ele marcha sozinho na direção oposta.

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44 que entram e saem, a cor dos cabelos, os trajes, inclusive a auto-confiança e o contentamento nos rostos, o que o deixa irritado. Esses miseráveis só sabem comer, e sujar pratos. Pensa, esfregando com fúria. Porém, os pensamentos são interrompidos de súbito. Um casal entra com naturalidade no recinto. Leva um susto. O sujeito vira o rosto, e lhe parece extremamente familiar. Acho que conheço este cara. Pensa, enquanto os dois se dirigem a uma mesa desocupada. É um homem na faixa de uns trinta e cinco anos e de boa aparência. Bem vestido, sorridente, e acompanhado por uma jovem de dezesseis, bonita e de ar decidido.

Trata-se do eminente doutor Antonio Carlos Bristol. Há vários anos andava pelo estrangeiro a ampliar os seus conhecimentos em Medicina. Graduara-se, trabalhando ao mesmo tempo, e só recentemente regressa à terra natal. Reside no mesmo local onde passara a infância e parte da juventude. A linda jovem que o acompanha é Adelia, sua filha. Zico Zarôlho está certo de que nunca a viu. Mas o pai, ou seja, o homem ao lado dela, tem-no gravado na memória, inclusive alguma coisa relacionada ao mesmo no passado. Certamente o conhece. Não se recorda de onde, e nem de quem se trata na realidade.

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45 De repente se assusta olhando para o salão. Vê a poça de água e sabão que deixara ali de propósito. Há pouco tempo, enquanto limpava o piso, derramara a porcaria lá, e havia se esquecido. A poça de água é um dos pretextos para provocar o fresco do gerente. A decisão de mandá-lo embora surgirá no momento em que alguém escorregar nela e cair. Zico Zarôlho sorri satisfeito. O sujeito que acaba de entrar com a filha se encaminham para lá. Aproximam-se despercebidos. Mas, que miserável. Seria tiro e queda se o maldito gerente não interferisse com rapidez. Vai ao encontro do casal levando-os para outra mesa. E, depois de acomodá-los, chama-lhe a atenção em particular.

_Faxineiro, enxugue aquela água imediatamente. - Exclama.

_Sim senhor. - Responde submisso.

Fregueses se espalham em diversas mesas. Soa o burburinho das conversas como um suave arrulhar de pássaros. A claridade entra no salão dando uma visibilidade esplêndida. Há satisfação estampada no rosto de cada um. Apanha o balde e o rodo. É bom que terá oportunidade de reconhecer melhor o indivíduo que entrou com a filha. Passa perto da mesa para vê-lo de perto. Lembra-se agora. A cara do miserável não lhe engana. Não mudou quase nada. É o mesmo ar de deboche e de bem estar com a vida. Sabe perfeitamente que é um deles. Não distingue qual seja. O nome. Não é capaz de recordar o nome, mas tem a certeza de que é um membro do grupo. Aquele sujeito é um deles.

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46 miserável não o reconheceu. Mas, isto pouco importa. Nem o reconhecendo não tinha nada a ver. Já faz tantos anos...

No outro dia tem uma ideia quente.

Na beliche da prisão é mais de meia noite. Enquanto rumina a maneira ideal de provocar o gerente, e se livrar do serviço enfadonho no restaurante, revira na cama com ansiedade. O companheiro de cela ronca. Na parte de cima da beliche o desgraçado dorme. O seu estrugido e assovio, é como o de um motor em movimento. O quartinho de três por quatro, que mais parece uma sauna, balança. Ou melhor, mais se parece com um chiqueiro. Ou, quem sabe, com uma jaula. O sujeito bufa e grunhe como um porco. Às vezes é um leão bramindo. Zico Zarôlho tem ímpetos de tapar aquela campana sonora enfiando-lhe uma cueca goela abaixo. Mas, no mínimo, o que faz é dar uns pontapés no estrado do lado de baixo. Com isso espera que o bicho, ao menos, mude de posição na cama, e dê uma pausa na trovoada.

Precisa descansar. O dia foi duro, e esse miserável não o deixa dormir. Enquanto isso nos demais cubículos reina o silêncio. Apenas a tosse e o grunhido de algum prisioneiro a sonhar talvez com a liberdade. A prisão é pequena e comporta poucos detentos, na maioria, de bom comportamento.

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47 históricos nunca vistos. Horas a fio permanece olhando aqueles desenhos esquisitos. É como contemplar no céu as nuvens brancas, e as diversas formas que projetam. Um elefante, uma linda paisagem tropical, um dragão cuspindo fogo, um rato.

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48 mantimentos, conservas. Um cheiro enjoativo enche o ar, penetrando em seu pontiagudo nariz. Finalmente encontra uma lata vazia. Coloca a isca, um pedaço de queijo que apanhou na cozinha. Pronto. É só deixar na posição certa. O rato logo virá. Mais tarde voltará para apanhá-lo.

Hoje demonstra até mais disposição para limpar o piso. Maior simpatia pelos cozinheiros, o serviço leve, menos cansativo. Tudo porque o plano está pronto. Com este é quase certo que hoje será o seu último dia de atividades por aqui. Não colocará mais os pés neste maldito lugar. O plano é excelente, e tem certeza de que dará certo. Para isso deixa a limpeza do escritório para mais tarde. Quer que o gerente chegue e encontre a maior sujeira. Faz parte do plano provocá-lo nesta parte.

O babaca aparece às duas horas, acompanhado da mulher. É sempre assim nas quartas feiras. Zico Zarôlho os vê chegar. Consegue apanhar o rato, colocando-o numa sacola. A mulher, gorda, faladeira e exigente, pisa com força o ladrilho do salão. No restaurante a presença de alguns fregueses é imprescindível. O gerente os cumprimenta com um aceno e um sorriso largo. A mulher fala sem parar. Um par perfeito, pensa Zico Zarôlho, seguindo-os com a visão torta. No topo da escada aguarda as duas bolas de banha que sobem com dificuldade. Espera-os lá em cima, na porta que dá para o escritório, de posse dos apetrechos de limpeza e a sacola com o rato. O casal passa por ele indiferente, sem se dar ao trabalho de sequer olhá-lo. O gerente empurra a porta, e os dois entram.

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49 enorme quantidade de papéis espalhados, e a sujeira acumulada assusta a ambos.

_Cruzes. - Grita a mulher. Isto aqui tá parecendo um chiqueiro.

O gerente recua indignado.

_Espere, querida. Já vou dar um jeito nisto.

Vai até a porta e chama a atenção de Zico Zarôlho.

_Faxineiro, por que não procedeu à limpeza do meu escritório?

_Desculpe, senhor. Acho que me atrasei hoje. - Responde, entrando apressado, com a sacola do rato, e colocando-a perto da mulher, que permanece de pé em frente a escrivaninha do gerente.

_Mas não se preocupe. Em questão de segundos estará tudo limpo. - Prossegue, voltando rapidamente para apanhar o balde e o rodo, e com o pretexto de dar tempo ao rato para sair.

A intenção é de que o mesmo ao ser visto pela baranga, esposa do gerente, cause pânico e confusão. Desencadeando com isto a vergonha e a ira do gerente, o qual se revoltará, mandando-o de volta às ordens do juiz, que, com certeza, o colocará em outro local de trabalho.

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50 reentrâncias gordurosas. O marido espera impaciente, assentado, remexendo em alguns papéis sobre a mesa. Será que o rato dormiu? Pensa Zico Zarôlho preocupado. Talvez esteja com medo. Precisa providenciar para que saia depressa. Insinua fazer algo. Mas, a mulher do gerente se move para apanhar uma revista. Vê, finalmente, o bicho saindo de mansinho do esconderijo. Zico Zarôlho sorri, enquanto ela abre os braços, dá um salto grotesco, e um berro descomunal.

_Socorro! Um rato! Socorro!

O rato se assusta, correndo através do piso. A mulher se apavora, e o gerente a encara de olhos arregalados. De onde está Zico Zarôlho não espera que aquela montanha de carne, osso, e gordura se mova com tamanha rapidez. Vira-se para a porta e sapateia de trotes em sua direção. Ele não tem tempo de se esquivar. Apenas recebe o impacto, e ambos rolam escada abaixo. Aos trambolhões, e na velocidade da descida, se chocam às mesas e cadeiras do restaurante, onde dois executivos se davam satisfeitos pelo almoço. O desastre é evidente.

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_É, pelo jeito o homem tá com a bola toda mesmo. _Por quê?

_Ora, você ainda pergunta? Olha só que festa, cara! _Realmente. A festa está muito bonita.

_E quem você acha que está bancando tudo isto? _Só pode ser o Flamengo, claro.

_Nem tenha dúvidas, meu chapa. O mengão é que está pagando toda esta comilança aí, ó, e esse rio de bebida que jorra para o bucho desta canalha.

_Verdade.

_Qual é, gente. Vocês nem tem certeza do que estão falando. E se ele conseguiu algum patrocinador, ou promove a festa do seu próprio bolso? E se não o rapaz merece. De fato ele joga um bolão.

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52 _Eu também acho. A gente todo mundo batalhou para vencer, e porque um só privilegiado?

_Só o bonitão recebe as honras?

_Calma pessoal. Não é assim não, vocês não entendem. Somos todos honrados em nome de um. Por que acham que estamos aqui?

_Sinceramente eu não concordo. É uma injustiça.

_Mas, fazer o quê, meu amigo. Não se pode corrigir o mundo, vamos aproveitar, comer, beber, e nos divertir!

_Eu também sou desta opinião. O negócio é viver a vida, curtir, a festa é nossa, é do nosso clube...

Um imenso ruído de vozes, tilintar de copos e talheres enche o salão. A música se mistura ao som de risadas e aos gritinhos histéricos das mulheres, que se sobressaem de vez em quando. De modo que para ser ouvido é necessário elevar o tom de voz quase ao ponto de grito. A euforia é contagiante. A alegria prossegue noite adentro, enquanto o cheiro de bebidas, petiscos e perfume se misturam no ar. Nick Herman, meio sem jeito, sobe ao palco para um discurso de agradecimento. Mas, os quatro amigos, jogadores do Flamengo, que se encontram assentados a certa distância, sequer ouvem o que ele diz. Empolgados, continuam a bebericar os seus drinques, prosseguindo na conversa iniciada a pouco.

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53 _Nada a ver amigo. São brasileiros do mesmo jeito.

_Esse rapaz por exemplo. Dá até para desconfiar de algum plano bolado nos bastidores...

_Porra! Você não esquece o coitado! Parece que nem se amarra ao sujeito?

_Ou será que está com inveja?

_Opa, opa, isso não. Mas é sério, meu prezado. A gente estava aqui de boa, e de repente, sem mais e nem menos, surge esse Nick Herman não se sabe de onde...

_O que é isto? Pelo jeito só você não sabe quem é o nosso grande craque. Nick Herman é descendente de família grega, a qual veio para o Brasil há muitos anos na tentativa de melhores condições financeiras. Nasceu e se criou aqui no Rio. Finalmente, tornando-se jogador de futebol, foi contratado por alguns times estrangeiros como o Chelsea e o Milan, e só ultimamente começou a atuar no Flamengo, onde está sendo muito bem sucedido.

_Eu também estou quase acreditando em qualquer coisa errada nesta história.

_Qual é pessoal. A gente devia era estar contente de termos um dos nossos na seleção, e não estar aí carregados de ressentimentos. Não acho que estão agindo certo. Vamos, pensem bem.

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55 conversara no vestiário com Norivaldo Lagoinha. Em cujo grupo de três homens para o qual está voltado, o mesmo Norivaldo encontra-se presente, e sabe perfeitamente que está sendo observado. Norivaldo olha para o homem assentado a mesa emitindo um sinal com a cabeça, que só os dois compreendem. Depois vira-se em direção aos homens que o acompanham dizendo:

_Vamos começar a confusão assim que ele descer do palco.

_Por que tão cedo? A gente podia aproveitar a festa. _Não. O trabalho em primeiro lugar. Vamos para perto do palco. Assim o pegamos desprevenido e acabamos com ele.

_Estou achando este negócio muito arriscado. Todo mundo vai ver que atacamos o cara.

_Não vamos atacá-lo seu idiota. Vamos insinuar uma briga entre nós e envolvê-lo na confusão. Quando a coisa se embolar a gente aproveita para moê-lo de pancada, e depois se manda, certo? Vamos lá, ele não demora a descer.

Aplausos e gritos explodem o recinto. Uma grande movimentação se processa ao término do discurso de Nick Herman. A maioria dos convidados o aplaudem de pé, enquanto um grande número deles se move para a frente a fim de abraçá-lo. Ele agradece, e começa a caminhar em direção a escada.

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56 Contudo, nem ele e nem os companheiros esperavam que os acontecimentos fossem diferentes. Pois, neste momento, um enorme grupo de jogadores do Flamengo se aproxima do palco. E, ao invés de deixá-lo descer, eles o colocam nas costas carregando-o desajeitadamente em direção à mesa. Uma chuva de vaias, apupos e gritos de alegria os acompanha como saudação da grande multidão.

_Merda! - Exclama Norivaldo Lagoinha desapontado. _E agora? - Pergunta um dos homens.

_A gente pega o desgraçado na saída. É isso mesmo. No estacionamento.

_Melhor assim. Porque do contrário teríamos apanhado igual vaca na horta.

_Ora, cale a boca, seu imbecil.

As mulheres riem, pulam e batem palmas. Os homens assobiam e gritam. O pandemônio prossegue em volta de Nick Herman até o colocarem outra vez no chão próximo a sua mesa. Ele se agita e se emociona. Ri satisfeito, e acena com as mãos em agradecimento.

_Vá em frente, companheiro. Boa sorte. - Dizem os jogadores abraçando-o, e dando-lhe tapinhas nas costas em sinal de apoio.

_Obrigado. Obrigado. - Responde.

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57 da sua linda e querida esposa. Josephine envolve-lhe o pescoço com os braços, apoiando a cabeça em seu ombro. Emocionado, sente o seu perfume, e um doce prazer que lhe percorre o corpo, permanecendo por alguns instantes neste enlevo. Em seguida, depois de ser abraçado também pelo inseparável amigo Leonidas Carvalho, todos retornam aos seus lugares à mesa. A calma parece voltar. Uma música suave envolve o ambiente, mas Nick Herman tem um leve sobressalto. Olha em direção ao povo, e vê alguém se aproximando de repente. Um sujeito extremamente bem vestido, o qual não reconhece de imediato, mas tem certeza de já tê-lo visto em algum lugar. O seu coração pulsa com mais força ao pressentir que aquela figura, apesar da boa aparência e aspecto cordial, traz em sua presença algo de antagônico. Qualquer coisa que não lhe inspira boas recordações. Está quase convencido de que aquele indivíduo já lhe provocou algum dissabor no passado, e que desta vez não será diferente. Enquanto pensa desta maneira, o sujeito se aproxima sorridente, e estendendo-lhe a mão diz:

_Olá, lembra-se de mim?

E, antes mesmo de ouvir a resposta, prossegue:

_Eu sou Gordon Tiles, o secretário do ilustre candidato a deputado Sr. Hildebrando Pavão.

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58 altos padrões da moda. Gordon Tiles se orgulha disto, e do posto que ocupa como secretário do candidato a deputado. O seu aperto de mão é firme.

_Sim, acho que já o vi em outra ocasião. - Responde Nick Herman meio desnorteado.

_Claro, a gente tomou uma cerveja, não é mesmo?

_É verdade. - Responde Nick Herman contrariado. E a conversa que tivemos não foi muito proveitosa, certo?

Gordon Tiles endireita o corpo, sorrindo com amabilidade. _Ora, esqueça tal bobagem. Hoje estou aqui apenas para cumprimentá-lo em nome do meu patrão o Sr. Hildebrando Pavão.

_Ok, e obrigado pela honra. - Diz Nick Herman rapidamente, querendo se livrar logo daquela figura indesejável.

_Meu patrão deseja-lhe sucesso. Conclui Gordon Tiles batendo-lhe de leve nas costas, e fazendo menção de se retirar.

_Obrigado.

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59 cobra criada. Lembra-se da proposta suja que lhe fizera uma vez, e que recusara. Conhece Hildebrando há muitos anos. Aquele sujeito nunca esquece uma afronta, e jamais deixa passar um agravo, por menor que seja, sem que dê o troco. Hildebrando Pavão é terrível. Suspeita de que tenha enviado o secretário a fim de causar-lhe algum embaraço ou contrariedade. Talvez estejam tramando algo. Pois, da vez em que sugerira que perdesse o jogo a fim de beneficiá-lo, Nick Herman não aceitara, provocando-lhe a ira. Agora certamente a vingança virá. Alguma coisa acontecerá. Por isto olha distraído e pensativo para a multidão.

A esposa de Nick Herman conversa animadamente com o amigo Leônidas Carvalho. Parece agitada e feliz. Fala alto, sem parar, e ri escandalosamente. Pelo jeito Josephine é bem extrovertida, principalmente depois de vários drinques descidos pela garganta. Ao contrário de Nick Herman, que se mostra um tanto discreto, e de emoções controladas, ela se empolga. E às vezes se sente tão envolvida, que a presença do marido quase nem é percebida. Nick Herman, no entanto, parece não se importar com isto. Continua distante e absorto em seus pensamentos, enquanto a festa prossegue animada e barulhenta.

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60 bastante zelo e responsabilidade. De vez em quando vai até à porta e espia a multidão. É duro ver os canalhas se divertirem enquanto trabalha. Quase não houve mudança da situação anterior para a atual. Ao passo que no Quinta da Boa Vista prestava serviços na cozinha, aqui passou para o banheiro. Apenas mudou de aposento, mas o estágio é o mesmo. Limpar a podriqueira dos outros. Nunca sairá desta merda. A não ser que faça uma coisa grande. Mas, fazer o quê? Não sabe fazer nada, além de matar velhos imbecis na rua, e cumprir ordens de um juiz gordo, broxa, e, quem sabe, até homossexual.

Zico Zarôlho fixa o olhar em direção à mesa de Nick Herman, ali bem próximo. Aquele sujeito é que vive bem. Dinheiro, mulheres, fama. Além disso, é um cara jovem, e de boa saúde. E mais ainda: bonito. Zico Zarôlho encara com atenção o rosto do jogador, e leva um susto. Espere aí. Se não olhasse bem a cara do sujeito sequer havia percebido. Nick Herman é com certeza também um deles. Não há como se enganar. Guarda as feições daqueles imbecis há muito tempo na memória. Tanto de Nick como dos demais. Ou seja, do médico que vira no restaurante há poucos dias, e do outro indivíduo que vê na TV e nos jornais de vez em quando. Precisa lembrar o nome dele. Ou era apelido? Sim, chamavam-no por um nome de ave: Pavão. E parece que hoje em dia ocupa algum cargo no governo.

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61 para a multidão, talvez na esperança de localizá-lo. Mas, novamente é surpreendido ao deparar-se com outro personagem estranho. Uma figura de aspecto sinistro encara Nick Herman a certa distância. Quem será aquele mal encarado, e por que olha tanto para o jogador? Zico Zarôlho não o conhece. Isto não é da minha conta. Pensa. Que se dane o desgraçado. Nick Herman que vá para o inferno. Conclui, voltando em seguida para o interior dos sanitários, a fim de prosseguir o seu trabalho. Apanha o secador de chão, e se dirige a uma das extremidades do local. Esse negócio de limpeza já está me dando nos nervos. Pensa, olhando as pessoas entrarem e saírem satisfeitas.

Neste momento dois policiais à paisana entram no banheiro, conversando animadamente. Deparam-se com Zico Zarôlho, e estacam por um momento, encarando-o desconfiados. Parecem reconhecê-lo, dão prosseguimento à realização das suas necessidades, saindo em seguida.

_Viu aquele cara? - Pergunta um deles. _Sim, é um presidiário.

_O que estará fazendo aqui?

_Ora, não viu que o infeliz está trabalhando?

_Eu sei. Mas deve ter um motivo para colocarem-no justamente neste lugar.

_Qual é, não existe motivo algum. O sujeito está apenas cumprindo ordens do juiz.

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62 _Não compreende o quê?

_Como podem jogar um indivíduo tão perigoso no meio de tanta gente.

_Ah, a justiça é assim mesmo, amigo. É difícil determinar os seus reais desígnios.

O outro ri.

_Puxa, como você está falando bonito hoje! _Ei, está me tirando, é?

Bate nas costas do outro, e caem na gargalhada. E depois que param:

_Mas, pensando bem, você tem razão. Esse cara pode aprontar qualquer besteira.

_E não é mesmo? Não sei como um magistrado tão instruído pode ter uma iniciativa dessas.

_Ora, meu chapa. Sabe como é. Eles não estão nem aí. Neste momento com certeza estarão roncando de barriga cheia em seus leitos, enquanto a gente se ferra aqui nesta merda.

_Verdade.

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63 _Nem me fale.

_Pois é, amigo. É isto o que acontece.

_E quanto a este sujeito é bom a gente não se descuidar, não é mesmo?

_É.

Desaparecem no meio da multidão e do barulho da festa, que prossegue animada noite adentro.

“Atenção! Estão reclamando a presença de Nick Herman

na sala de reuniões da diretoria. Alô, Nick Herman, estão te

chamando na sala da diretoria”. Ouve-se dizer no alto falante. A mulher de Nick olha para ele.

_Vai lá, amor. Deve ser alguma coisa importante. - Diz. Nick Herman sobe uma escada e desaparece.

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5

Um som vibrante chega-lhe aos ouvidos no meio do sono. Se vira na cama, tateando no escuro. Apanha o telefone, e com os olhos ainda a se acostumar à escuridão, ouve uma voz grave do outro lado:

_Desculpe acordá-la.

Reconhece a voz. Só pode ser o miserável do chefe Matheus Akcela.

_Não tem problema, o que aconteceu?

Tem a impressão de ouvi-lo se remexer na cadeira do escritório, como das vezes em que o vê preocupado.

_Bem, é que... aconteceu uma coisa.

_Claro. Não é possível que me acorde no meio de um sono tão bom apenas para me dar boa noite. - Diz ela fingindo irritação.

_Não, não. Não tive a intenção de perturbá-la. Podes crer, o assunto é sério.

_Muito bem, meu querido chefinho. Quer me dizer logo do que se trata?

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65 _Um caso? Ah, que papo furado é esse?

_Sim, é sério. Não estou brincando. Não me esqueci de que há tempos vem me pedindo para colocá-la em uma investigação realmente importante, não é mesmo?

É, até que o cretino dizia a verdade. Ela quase já havia perdido a esperança de trabalhar como investigadora em um caso que fosse somente seu.

_É.

_Pois bem, agora chegou a sua vez.

Emanuele Monforth se remexe na cama, atirando as cobertas para longe, e assentando-se rapidamente.

_Emanuele? _Sim, pode falar.

_Houve um assassinato de um cara famoso, e quero que tome conta do caso.

_E quem é o sujeito?

O chefe pigarreia por um instante.

_Não vou entrar em detalhes. O Ângelo Torres passará aí daqui há pouco para te apanhar, e lhe dirá o que sabemos, ok?

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66 Desliga.

A madrugada começa a descer sobre a cidade, trazendo uma brisa suave e refrescante. Emanuele respira fundo, e aproxima-se do carro. Ângelo Torres está com um ar sombrio. Ao entrar nota com mais precisão o seu aparente desconforto.

_Já pensou que merda? - Diz inconformado.

_Quer me dizer de uma vez o que está acontecendo? - Exclama ela ao fechar a porta.

_Não sabe ainda?

_Como vou saber, se ninguém me diz nada?

_Uma tragédia. - Responde dando um soco no volante. Mataram o melhor jogador do Flamengo.

Emanuele leva um susto.

_Como? - Pergunta de olhos arregalados. Não me diga que...

_Sim, Manu. O pobre Nick Herman está morto. Ela sente um tremor repentino.

_Não é possível! - Exclama com estupefação, enquanto Ângelo Torres coloca o veículo em movimento.

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67 O ar fresco penetra no interior do carro. Emanuele respira fundo novamente, enquanto uma névoa escura parece se apossar de sua mente. As palavras somem-lhe da boca, permanecendo em silêncio, pensativa. A imagem de Nick Herman desfigurado sobre uma poça de sangue. E à sua volta uma multidão de curiosos murmurando comentários diversos. Este caso é seu. Agora chegou a sua vez. Diz-lhe o chefe ao telefone. Por que logo este? Justamente o assassinato do amigo?

_Estranho. - Ouve-se dizendo de repente.

_O que você disse? - Pergunta Ângelo Torres com a atenção voltada para o trânsito.

_Por que o chefe deu-me este caso? Olha-a de lado, mas não responde.

_Há tanto tempo que lhe peço uma investigação de verdade, e me vem logo com o assassinato de um amigo?

Ângelo Torres continua calado. _Haverá algum motivo para isto? _Eu sei lá. - Responde finalmente. _Será que está de brincadeira comigo?

(68)

68 _Espero que sim, amigo. Eu e você faremos tudo para encontrar o assassino de Nick, não é mesmo?

_Isso! É assim que se fala! - Confirma Ângelo Torres, sorrindo-lhe.

Vazio e isolado por faixas de segurança, e com soldados por todo lado, o recinto agora é um local diferente. Não possui mais aquele clima festivo de antes. As poucas pessoas que ainda se encontram do lado de fora, ao redor, possuem o ar grave, e falam em voz baixa, em sinal de respeito. Emanuele e Ângelo Torres descem do carro, e se aproximam dos guardas que se encontram de serviço na entrada.

_Boa noite, senhores. - Dizem ao se identificar, e passarem por eles.

Um pouco tensa enquanto caminha em direção ao local do crime, Emanuele mantêm-se em silêncio ao cruzar com profissionais da área presentes. Ângelo Torres a acompanha, sério e pensativo. Agora estou no meio da merda, não adianta querer fugir. Pensa, procurando não se emocionar. Um dos indivíduos que lhe vem ao encontro diz:

(69)

69 irreconhecível. O corpo estirado no chão visivelmente deformado, a roupa rasgada e manchada de sangue. Parte da face com uma cicatriz medonha, como se tivesse arrancado a carne com uma terrível dentada. Ela se abaixa, e percebe que o mesmo acontecera com a garganta, o que lhe causara com certeza a morte imediata. Uma poça de sangue escorre do corte, acompanhando o braço, até uma das mãos. Olha para a outra, e ambas estão completamente machucadas. Arranhões por todo o corpo. Deve ter lutado até ao fim. Pensa. Quem, ou o que diabos teria matado o pobre jogador? Angelo Torres arrisca um palpite:

_Parece que foi atacado por uma bruta fera.

Ela balança a cabeça concordando, porém admite uma versão mais amena.

_Ou por um maldito cão enraivecido, talvez. _Está mais para lobo, não acha?

_Qual é, não vai me dizer que lobisomens andam soltos por aí.

_Não estou dizendo isto, mas o infeliz foi praticamente estraçalhado.

_É, isto é verdade, mas logo saberemos quando tivermos o resultado do legista.

Um dos peritos se aproxima.

(70)

70 _Posso ver os seus pertences pessoais?

_Claro. - Diz o profissional, buscando a carteira de Nick, e entregando-lhe.

Dinheiro, cartões de créditos e documentos estão intactos. Nada de muito interesse, a não ser uma coisa que lhe chama a atenção. Separado em um compartimento da carteira uma pequena peça de metal. Uma espécie de medalha, amarelada e gasta pelo tempo. Emanuele segura-a entre os dedos, observando-a. Possui forma retangular, com um alto relevo onde se encontra gravado com perfeição um símbolo esquisito, com uma inscrição ainda mais estranha: OS CAPAS PRETAS. Embaixo uma data: 1998. O que será isto? Pensa, virando-a de costas. Lisa. Torna a guardá-la em seu lugar, devolvendo a carteira ao responsável, enquanto Ângelo Torres vem ao seu encontro.

_As testemunhas estão esperando. - Diz.

_Conseguiram localizar o do DJ? Quero ele primeiro. O idiota do DJ precisa ser interrogado. Talvez lhe dê a pista de quem solicitou o comparecimento de Nick ao local onde morrera. De porte atlético, e por nome Borges, o sujeito, que antes parecia tão solícito, agora se encontra cabisbaixo e nervoso. Filho da mãe, maricas. Pensa ela, olhando-o de alto a baixo, e iniciando o interrogatório.

_Olá Sr. Borges. A sua colaboração será de suma importância neste caso.

(71)

71 _O que deseja saber?

_Não tomarei muito o seu maldito tempo, Sr. Borges. Quero apenas que me diga quem lhe pediu para chamar Nick Herman à sala de reuniões. Foi o senhor que o chamou pelo alto falante, não foi?

_Foi sim, senhorita. Mas ninguém me pediu não. _Não? Então o fez por conta própria?

_Também não. Este recado apareceu escrito em cima da minha mesa.

Borges retira um pedaço de papel do bolso. _Deixa eu ver isto.

No papel está escrito: “Chame Nick Herman à sala de reuniões da diretoria urgente.”

_Que palhaçada é esta? - Intervém Ângelo Torres. Não me diga que seguiu as ordens de um papel escrito?

_Foi o que fiz, senhor. Eu vi o papel, e tratei de fazer o que mandava.

_Por quê?

_Imaginei que os diretores do clube queriam falar com ele em particular. Só isso.

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