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Estados Unidos e Rússia no pós-Guerra Fria: a construção de novas dinâmicas políticas e relacionais, ou como um "degelo" tímido aproximou Oeste e Leste

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Academic year: 2021

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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à

obtenção do grau de Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais,

especialização em Relações Internacionais, realizada sob a orientação

científica do Professor Auxiliar Tiago Moreira de Sá, da Faculdade de

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À minha Família, de duas e de quatro patas.

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AGRADECIMENTOS

Quero agradecer aos meus familiares e amigos, que me apoiaram durante todo o processo de desenvolvimento desta dissertação, que me motivaram a seguir em frente mesmo quando o desespero ganhava terreno no meu espírito e quando o caminho parecia demasiado tortuoso para continuar a palmilhar.

Quero agradecer aos meus “irmãos de quatro patas”, cujo ânimo muitas vezes me fez ver a luz ao fundo do túnel e cujas brincadeiras e companheirismo foram essenciais para aliviar a pressão e fazer dissipar aquela nuvem negra que nos momentos mais difíceis teima em pairar sobre as nossas cabeças.

E quero deixar um especial agradecimento ao meu orientador Tiago Moreira de Sá, por ter querido continuar a acompanhar-me mesmo depois de o processo de desenvolvimento da dissertação ter demorado mais tempo do que o previsto.

A todos, deixo-vos a minha eterna gratidão.

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Estados Unidos e Rússia no pós-Guerra Fria: a construção de novas

dinâmicas políticas e relacionais, ou como um “degelo” tímido aproximou

Oeste e Leste

United States and Russia in the post-Cold War: the construction of new

relational and political dynamics, or how a timid “thawing” brought West

and East closer together

Filipe Tiago Pimentel Rações

Mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais, especialização em Relações Internacionais, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de

Lisboa

Resumo

Com o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos viram a sua posição de proeminência no sistema internacional ser consolidada e foram investidos do papel de “comandante” da ordem internacional liberal que emergiu da conclusão do conflito. Do outro lado do oceano Atlântico, o antigo adversário tinha sido dissolvido, dando lugar a uma constelação de novos países independentes, entre os quais a Rússia de destacava, empenhada em virar a página do seu passado soviético e construir um novo caminho, em direção à democracia e à liberalização económica.

No âmbito de um novo conjunto de circunstâncias, Estados Unidos e Rússia procuravam definir os seus novos papéis no sistema internacional: um queria afirmar-se como potência mundial incontestável; o outro procurava legitimação internacional e reconhecimento como o herdeiro único e legítimo da União Soviética.

A par da definição de novas identidades, Estados Unidos e Rússia procuravam quebrar o gelo que durante décadas impossibilitou boas relações entre os dois países e encontrar bases comuns de entendimentos e perceções que servissem de suporte ao desenvolvimento de dinâmicas de cooperação e até de parceria, em matérias tão importantes para os Estados Unidos como o combate à proliferação de armas nucleares.

Este trabalho pretende trazer à luz as novas dinâmicas relacionais entre os Estados Unidos e a Rússia e compreender qual o lugar de uma nova Rússia pós-soviética no pensamento norte-americano de política externa, com especial enfoque nas questões da expansão da NATO para Leste e da desnuclearização da Ucrânia.

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Abstract

With the end of the Cold War, the United States saw their position of prominence in the international system be consolidated e were vested of a role of “commander” of the international liberal order that emerged from the ending of the conflict. On the other side of the Atlantic ocean, the former adversary had been dissolved, giving rise to a constellation of new independent countries, among which Russia stood out, committed to turning the page of its soviet past and building a new path, towards democracy and economic liberalization. In the context of a new set of circumstances, the United States and Russia sought to define their new roles in the international system: one wanted to assert itself as the unquestionable world power; the other sought international legitimization and recognition as the only legitimate heir of the Soviet Union.

Along with the definition of the new identities, the United States and Russia sought to break the ice that for decades had made impossible de rise of good relations between the two countries and sought to find shared bases of understandings and perceptions that would support the development of dynamics of cooperation and even partnership in matters so important for the United States such as the fight against the proliferation of nuclear weapons. This work intends to shed light on the new relational dynamics between the United States and Russia and understand the place of a new post-soviet Russia in the american thinking of foreing policy, with special emphasis on the NATO enlargement to the East and the denuclearization of Ukraine.

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Índice

Introdução ... 1

Estado da Arte ... 4

I. Uma nova estrutura do sistema internacional ... 6

II. O fim da Guerra Fria: momentos de transformação e o novo sistema

internacional ... 9

II.1 Anarquia internacional e a preeminência norte-americana ... 15

III. Bill Clinton: continuidade e liderança no mundo pós-Guerra Fria ... 27

IV. “Envolvimento e Alargamento”: a estratégia dos EUA para o

pós-Guerra Fria ... 29

V. Estados Unidos e a Rússia: avanços, recuos e uma relutância cautelosa

………...33

VI. O degelo: Estados Unidos e Rússia, de inimigos a parceiros

cooperantes ... 35

VII. Expansão da NATO para Leste, a questão nuclear e as relações

EUA-Rússia ... 43

VII.1 Expansão da NATO para Leste e a difusão da democracia ... 44

VII.2 A questão nuclear: cooperação entre Estados Unidos e Rússia pela

não-proliferação ... 65

VII.3 A negociação nuclear trilateral: Estados Unidos, Rússia e Ucrânia 69

Conclusão ... 83

Referências bibliográficas ... 88

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Introdução

O presente trabalho tem por objetivo compreender as alterações ocorridas nas dinâmicas relacionais entre os Estados Unidos e a Rússia durante a presidência de William Jefferson Clinton e perceber de que forma os Estados Unidos perspectivavam e interagiam como o antigo adversário do Leste europeu.

Pretende-se lançar luz sobre alguns aspetos do pós-Guerra Fria e das relações entre Estados Unidos e Rússia que não são normalmente tidos em consideração nas análises destas dinâmicas. Este trabalho procura explorar a forma como os Estados Unidos olhavam para a Rússia e compreender o significado por detrás das suas ações e as suas motivações para com a potência de Leste. O objetivo central é a verificação da tese de que a animosidade que pautou as relações entre Estados Unidos e Rússia durante a Guerra Fria desvaneceu-se e deu lugar a um novo modelo relacional, caracterizado por tentativas de aproximação entre Oeste e Leste, por cooperação ao nível nuclear e securitário, ao mesmo tempo que os Estados Unidos mantinham-se hesitantes em permitir que a Rússia fosse efetivamente integrada na comunidade das grandes nações democráticas, preferindo mantê-la na periferia.

Para esse fim, começou-se por criar um quadro teórico do fim da Guerra Fria – das causas e dos efeitos –, passando depois para a construção de uma contextualização teórica do sistema internacional e das dinâmicas que lhe estão inerentes no momento da dissolução da União Soviética e do surgimento de uma nova ordem internacional.

Este quadro teórico sustenta-se na corrente construtivista da disciplina das Relações Internacionais, considerando que é a escola que melhor está equipada para analisar e compreender as dinâmicas e motivações subjacentes às ações dos Estados Unidos para com a Rússia.

É colocada em causa a ideia de William Wohlforth, Michael Cox e G. John Ikenberry de que o fim da Guerra Fria originou um sistema internacional unipolar, estabelecendo-se como mais precisa a conceção de uma estrutura “uni-multipolar” avançada por Samuel Huntington (1999), colocando o ênfase do surgimento de um sistema internacional composto por uma

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superpotência rodeada de vários complexos regionais, e que interagem numa base de influências recíprocas.

Estabelecendo a estrutura e o consequente funcionamento do sistema internacional do pós-Guerra Fria, passa-se então para a definição do ambiente internacional que servirá de pano de fundo para o desempenho da política externa de Bill Clinton.

É analisado, de forma abrangente, o fim da Guerra Fria e são apontadas algumas possíveis causas para a dissolução do bloco comunista soviético, radicada na permeabilidade deste último às ideias, princípios e valores da comunidade de nações democráticas ocidentais. Ainda, são identificadas as três grandes transformações do sistema internacional que foram propiciadas pelo fim do conflito bipolar e criaram as condições à emergência de uma nova organização internacional.

Desta feita, procura definir-se a nova identidade dos Estados Unidos já não tendo como contraponto a União Soviética, estabelecendo-se um conjunto de orientações que guiarão a política externa da potência norte-americana no pós-Guerra Fria.

Caracterizando a identidade pós-Guerra Fria dos Estados Unidos, é possível estabelecer um ponto de partida para a análise das relações entre Washington e Moscovo, com especial destaque para a forma como os Estados Unidos percecionam o antigo adversário e novo parceiro de cooperação em matérias como o combate à proliferação nuclear.

Numa fase posterior, são analisadas as Estratégias de Segurança Nacional da Administração Clinton, de forma a tentar perceber os interesses e motivações dos Estados Unidos na nova era, servindo essa análise de rampa de lançamento para a análise do lugar da Rússia na política externa norte-americana.

Com as novas dinâmicas relacionais estabelecidas, são identificados dois momentos essenciais para a relação entre Estados Unidos e Rússia: a expansão da NATO para Leste e a desnuclearização da Ucrânia.

Estes são dois momentos-chave que ajudam a precisar a definição da visão dos Estados Unidos para a Rússia e para o espaço pós-soviético. Além disso, são cruciais para perceber até que ponto a Rússia é ainda considerada pelos Estados Unidos como um adversário, apesar declarações de membros do governo de Clinton que indicam que a Rússia é um parceiro

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estratégico e que a reforma democrática do país é a prioridade de topo da política externa norte-americana.

Por fim, é feito um balanço da atuação dos Estados Unidos nos dois momentos acima referidos, procurando perceber se foram seguidos os melhores caminhos ou se existiam trilhos que melhor serviriam os objetivos traçados.

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Estado da Arte

É já bastante abundante a literatura que procura refletir sobre o final da Guerra Fria e sobre o papel dos Estados Unidos no novo sistema internacional ordenado pelos princípios e pelos valores liberais do hemisfério ocidental.

William Wohlforth (1999), Michael Cox (2001) e G. John Ikenberry (2005) consideram que a ordem internacional do pós-Guerra Fria é uma que se caracteriza pela unipolaridade, pela centralidade exclusiva dos Estados Unidos no sistema internacional. Samuel Huntington (1999) contesta a ideia de um sistema unicamente unipolar e avança o conceito de “uni-multipolaridade”, uma ideia que tem em conta as dinâmicas de regionalização que com o desparecimento dos bloco conflituantes da Guerra Fria encontravam espaço para se estabelecerem, desenvolverem e fortalecerem.

Alexander Wendt (1995) considera que a análise da estrutura do sistema internacional não pode apenas olhar para a concentração de capacidades materiais, mas deve também ter em conta as relações sociais que se estabelecem entre os vários atores. Ao contrário do alcance limitado das teorias neorealistas, Wendt afirma, a corrente construtivista considera as capacidades materiais juntamente com os significados que elas possam adquirir no contexto das várias bases de conhecimentos e expectativas partilhadas em que elas possam atuar. Por outras palavras, o construtivismo considera que as capacidades materiais, por si só, não têm significado, e que só o adquirem nos contextos em que elas forem aplicadas ou tiverem relevância.

No que diz respeito a literatura sobre as relações entre a Rússia e os Estados Unidos no pós-Guerra Fria, temos como exemplos O Pós-pós-Guerra Fria de Carlos Gaspar, que dedica uma considerável porção da obra às dinâmicas do mundo depois da dissolução da União Soviética. Mas é de assinalar a escassez de literatura que procure definir, com relativa profundidade, as relações não apenas políticas mas também sociológicas entre os Estados Unidos e a Rússia depois do conflito bipolar, num momento em que os dois países sofrem um processo de transformação identitária – talvez mais radical no caso da Rússia do que do nos Estados Unidos – que deve ser tomado em consideração na análise das dinâmicas da nova era.

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Ademais, apesar de John Mearsheimer (1993) e Steven Miller (1993) construírem casos, respetivamente, a favor e contra a construção de dissuasor nuclear ucraniano, e de existir literatura que versa sobre a expansão da NATO para Leste (Reiter, 2001), não podemos deixar de referir que se falha na tentativa de procurar encontrar um fio condutor comum para ambos os acontecimentos e associá-los ao posicionamento dos Estados Unidos no mundo e a sua perspetiva da nova Rússia a caminho da democracia, mas que ainda luta com os fantasmas do passado.

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I.

Uma nova estrutura do sistema internacional

A Guerra Fria terminou em dezembro de 1991, quando os presidentes da Rússia, da Ucrânia e da Bielorrússia assinaram um acordo tripartido que dissolvia a União Soviética.

O fim da Guerra Fria e o desaparecimento da estrutura bipolar do sistema internacional e a concentração sem precedentes de capacidades numa só potência e a sua projeção global, levaram muitos teóricos das Relações Internacionais a considerarem a nova ordem mundial como unipolar, com os Estados Unidos à cabeceira.

Autores como William Wohlforth, Michael Cox ou G. John Ikenberry consideram que o fim a Guerra Fria e a força irrivalizável dos Estados Unidos vieram conferir ao sistema internacional uma estrutura caracterizada por um único polo de poder. Esta posição de relevo confere também aos Estados Unidos uma margem de manobra sem quaisquer constrangimentos externos, considerando que nenhum outro país ou possível coligação de países teria capacidade para desafiar a preponderância a superpotência.

Mas talvez a unipolaridade não seja propriamente a forma mais precisa de caracterizar a estrutura do sistema internacional do pós-Guerra Fria.

A Guerra Fria era um modelo relacional de índole conflituante que colocava em posições adversárias dois países, que, por sua vez, encabeçavam dois blocos ideológicos considerados mutuamente incompatíveis e que procuravam subverter-se um ao outro. Com a desagregação da União Soviética – um dos lados do conflito bipolar – a Guerra Fria, enquanto tal, termina, dando lugar a uma constelação de novos países que recuperavam a sua autonomia e o leme dos seus destinos.

Durante a quase meio século, o mundo esteve praticamente divido entre comunistas e liberais, os dois grandes campos opositores que agregavam vários países. Considerando que duas grandes potências se digladiavam no plano global, não seria de estranhar que as dinâmicas entre dos demais países fossem eclipsadas ou subjugadas às ações dos líderes dos dois blocos. Quando a Guerra Fria termina com a dissolução da União Soviética, em dezembro de 1991, o modelo relacional de conflito que tinha enformado o mundo durante décadas dá lugar à

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criação ou reestabelecimento de dinâmicas regionais e inter-regionais que haviam estado ocultadas ou de certa forma adormecidas.

Estes complexos regionais podem partilhar laços históricos, afinidades culturais ou linguísticas e interesses e valores consonantes, criando uma espécie de força centrípeta que agrega países de uma dada região do globo numa estrutura relacional com vista ao alcance de objetivos, na sua grande maioria, securitários e/ou económicos.

No seio destes sistemas internacionais regionais, os países integrados desenvolvem dinâmicas relacionais próprias que podem ser de natureza cooperante ou conflituante. Não obstante, estes complexos regionais permitem aos países envolvidos adquirirem alguma independência e autonomia da grande potência que eram os Estados Unidos no final da Guerra Fria, e poderem traçar o seu próprio caminho e desenvolvimento a par dos seus parceiros regionais.

Assim, com o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos partilhavam o sistema internacional com uma série de complexos regionais que o rodeavam, criando dinâmicas entre o plano global e os vários planos regionais, ou seja, entre a superpotência norte-americana e as entidades regionais que partilhavam os sistema internacional do pós-Guerra Fria e que criam pequenos ou médios polos de poder (material e/ou ideológico) agregado.

Por isso, a estrutura do sistema internacional do pós-Guerra Fria não é unipolar, mas sim uma fusão da unipolaridade – a nível global – e da multipolaridade – a nível regional –, dando origem ao que Samuel Huntington chama de “sistema uni-multipolar” (Huntington, 1999). De uma forma geral, a unipolaridade pressupõe que um país, ou uma coligação de países, com uma concentração inigualável de capacidades, domina o sistema internacional e, como não existe nenhuma outra força possível que possa atuar como contra-peso ou colocar em risco a sua posição, tem uma margem de manobra considerável para procurar alcançar os seus objetivos sem receio das consequências. Huntington explica que num sistema internacional desta natureza não existem «grandes potências significativas», apenas «muitas potências inferiores».

O que vemos no pós-Guerra Fria não se enquadra na descrição feita. Depois do conflito bipolar podemos observar que os Estados Unidos gozam de uma posição sem par no sistema

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internacional, mas que estão rodeados de complexos regionais no seio dos quais existem polos de poder, que embora possam não chegar ao patamar das grandes potências, pesam e têm o potencial para influenciar as dinâmicas do sistema internacional, das grandes potências e até da superpotência. Esta influência das potências regionais pode ser verificada, por exemplo, nas guerras dos Balcãs, em que uma potência regional, a Jugoslávia, conseguiu puxar para um conflito regional as grandes potências mundiais, incluindo a superpotência norte-americana, e desafiar não só os princípios que governavam a ordem internacional liberal como também o próprio poder dos Estados Unidos no sistema internacional.

Em suma, a estrutura do sistema internacional do pós-Guerra Fria é uma que coloca os Estados Unidos no centro como a superpotência, estando rodeado por uma constelação de complexos regionais que têm as suas próprias potências, e interagem numa base de influência recíproca.

É neste contexto de proliferação de dinâmicas regionais que os Estados Unidos e o presidente Bill Clinton e a sua administração terão de redefinir o leque de interesses e objetivos que dá corpo à sua estratégia de política externa para a nova era do sistema internacional.

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II.

O fim da Guerra Fria: momentos de transformação e o novo

sistema internacional

Em 1991, a Guerra Fria havia, definitivamente, chegado ao seu fim, quando os presidentes da Rússia, da Ucrânia e da Bielorrússia decidiram dissolver a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e adotar a Comunidade de Estados Independentes. O paradigma relacional de competição ideológica – e também material, sob a forma de “guerras de proxies” travadas longe dos territórios nacionais de ambas as potências, como por exemplo no Afeganistão – que durante décadas tinha maculado as dinâmicas internacionais e cindido o mundo em dois grandes blocos conflituantes, extinguiu-se por entre os escombros da URSS. Como defende Alexander Wendt (1995), «A Guerra Fria era uma estrutura de conhecimento partilhado que governou as relações entre as grandes potências durante mais de quarenta anos, mas assim que [os EUA e a URSS] deixaram de agir nessa base, o conflito “terminou”». Complementarmente, Thomas Risse-Kappen define o fim da Guerra Fria como uma «transformação sistémica da política internacional que começou com as mudanças na política externa soviética do final da década de 1980»(Risse-Kappen, 1994, 185).

Risse-Kappen atribui, lato sensu, o fim da Guerra Fria à permeabilidade da União Soviética, designadamente da esfera da produção intelectual (institutchiks), às ideias liberais advindas do pensamento ocidental – ideias que brotaram das esferas académica e intelectual do ocidente e que eram veiculadas por redes de partilha de conhecimento que abrangiam as democracias liberais e membros da URSS; ao desejo de aproximação de Mikhail Gorbachev à aliança das democracias liberais liderada pelos Estados Unidos, enquanto tentativa de salvamento da organização política soviética comunista por meio do robustecimento económico; às reações de Washington e dos aliados europeus a estas mudanças. Dito de outra forma, a Guerra Fria terminou porque a União Soviética deixou-se impregnar pelas ideias que vinham de Oeste através de contactos e interações entre pensadores, políticos e académicos ocidentais e soviéticos e de instituições partilhadas por membros de ambos os lados do Muro de Berlim, que, em bom rigor, se estendia muito para além da futura capital da Alemanha unificada.

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Independentemente das várias perspetivas que possam existir relativamente ao que causou o fim da Guerra Fria (quer tenha sido devido à força dos Estados Unidos da América e políticas externas agressivas ou desconfiadas das intenções da URSS; quer tenha sido devido ao programa de reformas operacionalizado por Mikhail Gorbachev para aproximar a União Soviética do Ocidente, para reverter a crise económica interna e salvar o comunismo; quer tenha sido devido à reivindicações independentistas que ameaçaram o controlo de Moscovo sobre as repúblicas soviéticas) (Sá, 2014), o modelo de interação bipolar de natureza competitiva que caracterizou a quase totalidade da segunda metade do século XX terminou com a dissolução da União Soviética e com o reforço da posição internacional dos Estados Unidos, que, sem o oponente comunista, assumiu um papel de preponderância inquestionável no sistema internacional, concentrando em si capacidades materiais que não eram possíveis de igualar por qualquer outro país no mundo, nem por nenhuma possível coligação intergovernamental.

É, contudo, importante salientar que o estatuto internacional de relevo que o fim da Guerra Fria investiu sobre os Estados Unidos era reconhecido pela chamada comunidade das nações democráticas ocidentais. O não-reconhecimento por parte dos aliados da proeminência dos Estados Unidos no sistema internacional pós-Guerra Fria era altamente improvável, considerando que as afinidades e bases comuns de valores e interesses partilhados mitigariam grandes resistências e que os aliados viam no poder e nas capacidades estratégicas norte-americanas um escudo protetor contra o que a administração de Bill Clinton veio a chamar de backlash states, países que rejeitavam ou não se reconheciam na ordem internacional liberal e os princípios que a enformavam.

Foi a anuência das potências europeias que permitiu aos Estados Unidos manter durante tantos anos forças militares no “velho continente”, além de que os europeus não tinham razões para rejeitar a presença norte-americana, ainda para mais num momento de profunda transformação identitária, política e económica da Europa de Leste, processos que poderiam ter caído na ruína e feito a Rússia reverter para um regime autocrático que colocava a segurança europeia, bem como os interesses dos Estados Unidos, em risco.

É importante referir que a Guerra Fria constituiu um modelo de confronto que divergia dos que enformaram a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais, não apenas porque não se tratou

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de um confronto direto entre as forças militares dos contendores, mas também porque a sua conclusão «não se fez no campo das armas», mas sim pela «concertação diplomática entre os dois irmãos inimigos» (Gaspar, 2016, 7) . Ademais, ao contrário dos anteriores dois conflitos mundiais, o final da Guerra Fria não propiciou transformações radicais no tecido do sistema internacional – a superioridade dos Estados Unidos foi consolidada e o polo soviético desapareceu, dando lugar a 15 países recém-independentizados – nem levou a uma quebra com as instituições internacionais do pós-Segunda Guerra Mundial, tendo-se observado a manutenção e o reforço dessas entidades, de que é exemplo a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e o papel que irá desempenhar, principalmente às mãos dos Estados Unidos, na redefinição da segurança europeia e nas relações com a nova Rússia de Boris Iéltsin.

No entanto, apesar dos traços de continuidade verificados, o final da Guerra Fria constituiu, per se, um momento de transformações importantes ao nível do sistema internacional que, embora não sejam de índole radical, não devem ser negligenciadas. Podem ser destacadas três (Gaspar, 2016). A primeira ocorreu ao nível da distribuição das capacidades. Com o desaparecimento da União Soviética, os Estados Unidos saíram do conflito bipolar como o único verdadeiro polo de poder num sistema internacional que agora se caracterizava pela preponderância excecional de uma superpotência, rodeada de sistemas internacionais regionais que se formavam um pouco por todo o mundo. Depois da Guerra Fria, os Estados Unidos detinham capacidades materiais (poderes militar, económico e tecnológico) que não eram possíveis de igualar, e muito menos superar, por qualquer outro país no mundo, nem sequer por alguma eventual coligação intergovernamental que se tivesse formado. Por outro lado, os Estados Unidos estavam na posse de “catapultas ideológicas” que lhes conferiam uma capacidade sem precedentes para difundir os seus valores liberais – democracia pluralista, globalização dos mercados e primado do direito – ao nível planetário. É de sublinhar que a dimensão deste alcance era possível mediante as estruturas internacionais que marcaram o final da Segunda Guerra Mundial, que se mantiveram mesmo depois de 1991 e que espelhavam claramente os valores defendidos pelos Estados Unidos. Falamos, por exemplo, de instituições como a ONU, a NATO ou o GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio).

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A segunda grande transformação foi a substituição de uma estrutura sistémica bipolar exclusiva por uma estrutura híbrida uni-multipolar (Huntington, 1999, 36), em que paralelamente à formação de uma superpotência proliferou a formação de múltiplos sistemas relacionais de âmbito regional nos quais os países interagiam entre si numa determinada circunscrição regional do globo e, com base em identidades e interesses sintónicos ou divergentes, constituíam as suas próprias instituições e dinâmicas num sistema internacional regional, com vista, sobretudo, à conquista de independência política e económica face aos Estados Unidos.

Tendo em consideração que os Estados Unidos eram o único país que realmente tinha interesses a nível global (potenciados por inigualáveis capacidades materiais e uma forte índole ideológica), estes sistemas regionais surgiram um pouco por todo o mundo: América do Sul, sudeste asiático, África do Sul.

Assim, a concentração excecional de capacidades num só país era acompanhada, no novo sistema internacional, por vários sistemas internacionais regionais, na sua maioria de natureza cooperativa ao nível económico e securitário, no seio dos quais era agora possível o surgimento de potências de âmbito regional, algo que durante o conflito bipolar não foi possível. Desta feita, o novo sistema internacional era constituído por dinâmicas ao nível internacional, em que os Estados Unidos mantinham uma posição de relevo face às outras grandes potências mundiais, e por dinâmicas ao nível regional, em que era possível a existência de modelos relacionais multipolares. A esta conjugação sistémica Samuel Huntington apelidou de “sistema uni-multipolar” (Huntington, 1999, 36). Sobre a constituição dos sistemas internacionais regionais, Carlos Gaspar sustenta que «A intensidade das interações securitárias, as referências identitárias e as estruturas institucionais conjugaram-se com a ascensão de novas grandes potências no quadro dos espaços regionais para definir a nova dinâmica do sistema unipolar» (Gaspar, 2016, 19).

Poderíamos até ir mais longe, caracterizando esta coexistência de dois níveis intercetantes de sistemas internacionais como um “ecossistema político diádico de influências recíprocas”, considerando que os sistemas regionais não existiam fora da esfera de ação ou de influência da superpotência que eram os Estados Unidos, cujas ações eram, por sua vez, influenciadas pelas dinâmicas idiossincráticas dos sistemas regionais a fim de constranger o surgimento de

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uma potência com capacidades para desafiar o seu próprio estatuto de superpotência ou para colocar em causa a segurança dos países inscritos na zona geográfica em questão. Interesses globais e capacidades para projeção a nível planetário permitiam a Washington «arbitrar a competição e os conflitos entre as potências emergentes ao nível regional e inter-regional» (Gaspar, 2016, 19).

Embora Carlos Gaspar afirme que os Estados Unidos desempenhavam este papel de intermediário assegurarem que nenhuma destas potências regionais conseguia adquirir força material suficiente para tentar subverter a estrutura do sistema internacional e, por conseguinte, colocar em causa – ainda que em termos práticos isso fosse virtualmente inconcretizável – o estatuto internacional dos Estados Unidos, as motivações norte-americanas vão além da pura realpolitk e dos cálculos de poder. Como é comprovado pela atuação dos Estados Unidos no processo de desnuclearização da Ucrânia e da transferência de armas nucleares das ex-repúblicas soviéticas para a Rússia, o objetivo de Washington não era somente impedir que uma grande potência pudesse emergir dos sistemas internacionais regionais e ameaçar o seu estatuto no sistema internacional. Se assim fosse, os Estados Unidos ter-se-iam oposto à transferência de armas nucleares para a Rússia e ao seu reconhecimento internacional como o único legítimo herdeiro da União Soviética e ao seu reconhecimento regional como única potência nuclear na Europa de Leste.

O papel de intermediário dos Estados Unidos tem como principal objetivo aplacar conflitos que possam extravasar a esfera regional de origem e desestabilizar outras regiões onde os a potência norte-americana possa ter interesses a proteger e que ficariam ameaçados.

A terceira grande transformação verificou-se ao nível político-ideológico. A Guerra Fria ficou marcada por uma vincada divisão ideológica entre os dois blocos competidores que preconizavam dois modelos de organização internacional díspares: de um lado estava a aliança das democracias ocidentais liberais liderada pelos Estados Unidos; do outro o bloco das repúblicas socialistas soviéticas liderado pela URSS. Os dois campos defendiam conceções universalistas do sistema internacional inconciliáveis, que, aliadas à perceção do outro lado como um inimigo que procurava subverter a estabilidade internacional, constituiu um fator indispensável para o prolongamento do conflito bipolar. Contudo, com o final da Guerra Fria, o polo comunista deixou de ter a preponderância de outrora, desequilibrando a

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balança ideológica a favor dos Estados Unidos, o que fez prevalecer no sistema internacional os valores liberais defendidos pela aliança ocidental.

O fim deste hiato ideológico tornou possível a harmonia política e ideológica internacional. Contudo, creio que poderá ser excessivo ver esta transformação enquanto a «homogeneidade política» (Gaspar, 2016, 20) do sistema internacional, devendo antes ver-se esta mudança como uma convergência ideológica, visto que a emergência de novos sistemas internacionais regionais mostra-nos que alguns países exerciam práticas que não se enquadravam nos valores defendidos pelos Estados Unidos, como a China ou a Rússia. Não obstante o facto de o modelo liberal democrático ocidental ter passado a ser «a referência indispensável da legitimidade internacional» (Gaspar, 2016, 20), ainda existiam alguns países que resistiam em adotar estes princípios e que procuravam as suas próprias fontes de legitimidade no âmbito dos sistemas internacionais regionais.

Não podemos também subvalorizar o facto de que o fim da Guerra Fria fez com que o modelo dicotómico “liberalismo-comunismo” deixasse de ser a única forma possível de ver o mundo. O fim da bipolaridade resultou na concentração sem precedentes de capacidades materiais num único polo, mas devemos também ter em conta que a transformação da estrutura do sistema internacional foi acompanhada pelo rompimento dos constrangimentos ideológicos que haviam agrilhoado tantos países aos valores das potências competidoras, que apenas apresentavam duas escolhas: liberalismo ou comunismo. Por isso, o final da Guerra Fria abriu as portas ao surgimento da diversificação cultural, algo que deveremos entender como um facto corroborado pelo surgimento dos sistemas internacionais regionais que evidenciavam afinidades culturais e ideológicas específicas, possibilitando a convergência de interesses e identidades e constituindo «sistemas securitários “cooperativos”, nos quais os Estados se identificam positivamente uns com os outros de forma a que a segurança de um é entendida como a responsabilidade de todos» (Wendt, 1992, 391).

Além disso, a quebra do jugo soviético na Europa de Leste deu origem a vários países que, ao final de décadas de opressão e condicionamento, uma vez mais estavam no comando dos seus próprios destinos e da construção das suas próprias identidades e interesses. Esta nova configuração regional esteve na raiz de conflitos étnicos entre países que reclamavam unidade nacional e reconhecimento internacional no vácuo deixado pela União Soviética.

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Apesar da preponderância dos valores liberais ao nível macro, grande parte dos países da Europa de Leste não tinha qualquer legado de experiência democrática que os pudesse orientar no mundo pós-soviético, acabando por degenerar em ditaduras xenófobas que perpetravam massacres étnicos em nome da defesa da integridade nacional.

Uma vez mais, não devemos olhar o pós-Guerra Fria enquanto um momento de “homogeneização política”, mas sim como uma “convergência ideológica” entre mundos antes separados por muros e visões incompatíveis. Devemos ver o pós-Guerra Fria como uma aproximação, sim, mas nunca como uma identificação absoluta, pois o fim do conflito bipolar iluminou a diversidade cultural que antes estava oculta pela força dos dois blocos concorrentes.

Anarquia internacional e a preeminência norte-americana

De um ponto de vista construtivista, a anarquia do sistema internacional é uma estrutura construída pelas e apenas existindo no âmbito das interações entre os Estados, caracterizadas pela cooperação ou pela competição, e pressupõe um estado de ausência de uma autoridade supranacional que tenha capacidade e legitimidade para suprimir a soberania dos Estados e fazer prevalecer a sua própria vontade. Apesar de a natureza anárquica do sistema internacional poder ser considerada um ponto de relativo consenso entre as principais escolas de pensamento teórico das Relações Internacionais, a chegada dos Estados Unidos ao estatuto de superpotência num sistema multipolarizado convida-nos a uma reflexão: será possível manter a anarquia num sistema internacional dominado por uma superpotência que pode intervir globalmente de forma a difundir os seus valores e a aplacar dissensos que possam colocar em causa o seu estatuto? Esta é uma questão que nos devemos colocar quando olhamos para o final da Guerra Fria.

Tanto a escola realista como a escola liberal olham o mundo tendo como pano de fundo a consideração de que o sistema internacional é inerentemente anárquico e que condiciona os Estados a agirem egoisticamente em conformidade com os seus próprios interesses e desígnios. Além disso, ambas as escolas afirmam que a anarquia internacional propicia o

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conflito, embora realistas e liberais divirjam relativamente ao grau de influência que a anarquia tem sobre as ações dos Estados.

No entanto, como se pode verificar, tanto os realistas como os liberais não foram capazes de prever o fim da Guerra Fria (Walt, 1998, 32), e têm algumas dificuldades em explicá-lo, o que, por si só, evidencia as fragilidades destas correntes teóricas. Por outro lado, o construtivismo defende que a Guerra Fria era um modelo de expectativas e conhecimentos partilhados entre dois agentes – Estados Unidos e União Soviética – e que, tal como todas as construções sociais, apenas existia no contexto de um processo de interação, ou seja, enquanto ambos os agentes continuassem a agir em conformidade com esse modelo. A partir do momento em que os polos conflituantes deixaram de se ver enquanto inimigos mortais incontornáveis, os conhecimentos e expectativas partilhados entre os dois polos transformaram-se, fazendo os dois países abandonarem o modelo de interação bipolar de natureza competitiva, terminando, assim, a Guerra Fria.

Depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos ficaram inequivocamente numa posição de superioridade estratégica, embora numa escala menor do que a posição que conseguiram assumir com o fim do conflito bipolar. Uma superioridade não apenas relativamente ao concorrente comunista mas também relativamente aos seus aliados europeus. Depois de duas guerras intensas e sangrentas que geraram milhões de vítimas mortais, converteram a face da Europa num museu de ruínas e foram fatais para as economias do “Velho Continente”, os Estados Unidos assumiram o papel de liderança das democracias do Ocidente, ocupando um lugar que em tempos idos estivera nas mãos do Reino Unido. Com o final da Guerra Fria, com uma nova influência no mundo e apoiados pelas potências europeias (relativamente refeitas dos impactos das Guerras Mundiais), os Estados Unidos criaram uma nova ordem internacional à sua imagem e semelhança. Essa nova ordem tinha o seu foco centrípeto na América do Norte e, de acordo com G. John Ikenberry, era «uma ordem construída em torno do aprovisionamento americano de segurança e bens públicos económicos, regras e instituições mutualmente acordadas, e processos políticos interativos que dão aos Estados uma voz na condução do sistema» (Ikenberry, 2005, 137).

Mas há que perceber a política externa dos Estados Unidos, nos anos imediatamente depois do fim da Guerra Fria, pautava-se por um “envolvimento seletivo”, ou selective engagement,

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nos assuntos internacionais. Esta postura espelhava uma estratégia de intervencionismo comedido, que tinha como objetivo principal a contenção de despesas na área da Defesa e concentrar esforços em geografias e regiões que realmente caiam na esfera dos interesses vitais dos Estados Unidos. No entanto, é impossível discordar que a ordem firmada com o fim da Guerra Fria era de natureza multilateral e participativa, embora essa participação estivesse reservada às democracias estabelecidas da Europa ocidental e aos Estados Unidos. Essa hermiticidade só foi realmente rompida em 1999, quando a Polónia, a Hungria e a República Checa passaram a fazer parte da NATO como membros efetivos.

Os Estados Unidos saíram do período da Guerra Fria enquanto um país sem rival em matéria de força material (militar, económica, tecnológica), o que lhe conferiu várias vantagens, nomeadamente ao nível da intervenção além-fronteiras, da negociação com outros países e do cumprimento dos acordos internacionais. Apesar de considerar que a ordem constituída pelos Estados Unidos tornava impossível a criação de um império norte-americano, devido, por exemplo, aos constrangimentos ao poder codificados no direito internacional e em instituições como a ONU ou a NATO, Ikenberry reconhece que «as massivas vantagens de poder da América realmente dão à ordem um pendor hierárquico» (Ibid.). O autor, partidário do liberalismo, chega mesmo a afirmar que a hegemonia é um género de ordenamento internacional hierárquico.

Ademais, o papel de “polícia do mundo” que investiu os Estados Unidos da legitimidade para intervir no estrangeiro sempre que a ordem internacional liberal – imbuída dos valores que constituem o material genético dos próprios Estados Unidos – estivesse ameaçada por forças que a procurassem subverter, é um que mais nenhum outro país tinha capacidade (ou vontade) para desempenhar e um que poderá ter colocado o sistema internacional no caminho da hierarquia.

No entanto, há quem considere que o final da Guerra Fria e o desaparecimento da ameaça soviética veio plantar a semente da desorientação no debate sobre a política externa norte-americana na nova era.

Em 1992, Alexander Wendt afirma que, sem o modelo relacional de competitividade estratégica bipolar dado pela Guerra Fria para definir as suas identidades, os Estados Unidos e a Rússia «parecem incertos acerca de quais devem ser os seus “interesses”» (Wendt, 1992).

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Esta é uma análise partilhada por Stephen Walt, que considera que «os Estados Unidos gozam de tremenda influência mas têm pouca noção sobre o que fazer com o seu poder ou até saber que grau de esforço devem empenhar» (Walt, 2000, 65). A isto o autor chama de “o paradoxo central da unipolaridade”.

Vistas bem as coisas, durante décadas as política externa dos Estados Unidos tinha um único foco, a União Soviética. Com o desaparecimento desse elemento orientador, e considerando também que o fim da Guerra Fria chegou como uma surpresa para os norte-americanos e para os seus aliados ocidentais, não é de estranhar que se instalasse algum grau de confusão nos corredores da Casa Branca e em Washington em geral.

Porém, afirmar que os Estados Unidos não sabiam o que fazer parece-me uma conclusão um pouco rebuscada, considerando que existia um objetivo muito claro: cimentar o estatuto de superpotência e difundir por todo o mundo os princípios liberais. Perante esta constatação não se deve inferir que os Estados Unidos adotaram um postura internacionalista messiânica. Deve, sim, interpretar-se que os Estados Unidos queriam ampliar a esfera de países que se regiam pelos mesmo valores e princípios sobre os quais assentava a ordem internacional liberal que nasceu do fim da Segunda Guerra Mundial, que passou pela Guerra Fria e que se consolidou com o fim da União Soviética. Para alcançar esse objetivo e demonstrar a força do liberalismo sobre o comunismo, os Estados Unidos tinham de, acima de tudo, tentar converter a Rússia numa democracia que se aproximasse o máximo possível dos modelos seguidos pelas democracias consolidadas do Oeste europeu.

As dinâmicas de regionalização também são importantes para melhor se perceber que não existia propriamente uma desorientação dos Estados Unidos, mas antes um intervencionismo seletivo nos assuntos de além-fronteiras.

Com a dissolução da União Soviética e a consequente conclusão do conflito bipolar, começaram a surgir complexos regionais de natureza securitária e económica, como na América do Sul ou na Ásia-Pacífico. Estas estruturas regionais congregavam países de uma mesma dimensão geográfica e procuravam aprofundar relações económicas e de segurança, bem como promover a autonomia da região face às instituições do hemisfério ocidental, dominadas pelos Estados Unidos.

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Estas dinâmicas tornaram-se mais visíveis com o fim da Guerra Fria, que dividiu o mundo em dois grandes blocos conflituantes, praticamente eclipsando os regionalismos.

Posto isto, no pós-Guerra Fria encontramo-nos perante um sistema internacional liderado pelos Estados Unidos que é rodeado por múltiplos sistemas internacionais regionais. Os Estados Unidos, sem o alvo único que haviam tido durante os últimos 50 anos para direcionar as suas atenções e esforços, define uma política externa multifurcada, ou seja, que tem vários alvos, e não apenas um. Por isso, o que alguns tomam como sendo confusão ou desorientação é, na realidade, mera dispersão de atenções, que se focam em questões regionais ao invés de num só ponto geográfico.

Na Europa ocidental, a sintonia identitária e de interesses entre os Estados Unidos e os países europeus, complementada pela incapacidade económica e política da Europa para liderar a constituição de uma nova ordem internacional pós-Guerra Fria e até mesmo para garantir a sua própria segurança, fizeram com que os aliados europeus dessem a Washington “carta branca” para orquestrar a nova ordem e para intervir em todos os cenários internacionais em defesa da ordem internacional liberal, atuando como juiz de disputas regionais e mitigando conflitos que possam colocar em causa a segurança e a estabilidade da região. Esse papel pode ser verificado durante o processo de desnuclearização da Ucrânia, em que os Estados Unidos agiram como intermediário entre Kiev e Moscovo, que não se entendiam relativamente aos termos da transferência para a Rússia as armas nucleares que a Ucrânia tinha no seu território.

A conjugação de todos estes fatores fez dos Estados Unidos, no final da Guerra Fria, uma espécie de entidade supranacional de facto. No final da Guerra Fria, Washington tinha uma capacidade inigualável de influência nas políticas internas de outros países. Esta capacidade fica, desde logo, evidenciada na capacidade que os Estados Unidos tiveram para apoiar as reformas económicas e políticas na Rússia, mesmo quando a oposição a Boris Iéltsin reclamava o retorno do comunismo imperialista. Outro exemplo, é o papel desempenhado pelos Estados Unidos nas negociações sobre a desnuclearização da Ucrânia, em que, através de assistência financeira e pressão políticas, a Administração Clinton conseguiu assegurar que as armas nucleares ucranianas herdadas da URSS eram desmanteladas ou entregues à

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Rússia, mesmo quando o parlamento da Ucrânia queria manter parte do arsenal como dissuasor de agressões russas.

Assim, depois da Guerra Fria, os Estados Unidos viram o seu estatuto de grande potência ser reafirmado e engrandecido, passando a ser a única grande potência do mundo com um espectro de ação planetário.

Ao longo da presidência de Bill Clinton, entre 1993 e 2001, os Estados Unidos mostraram-se interessados e capazes – na maior parte das vezes – de liderar o sistema internacional do pós-Guerra Fria. À exceção de alguns percalços, a atuação além-fronteiras dos Estados Unidos foi marcada por uma postura diplomática, embora assertiva, determinada e comprometida com os interesses norte-americanos. Apesar de as instituições internacionais ocidentais professarem o multilateralismo, os Estados Unidos, talvez imbuídos de espírito de “potência planetária”, não receavam afirmar que agiriam unilateralmente caso assim o entendessem. Como o conselheiro de segurança nacional, Samuel Berger, escreveu no final de 2000, «Usámos diplomacia onde foi possível, força onde absolutamente necessário» (Berger, 2000, 29).

O fim da Guerra Fria foi um momento de transformação identitária, tanto para os Estados Unidos como para a Rússia, sendo que a transformação foi mais radical na potência euro-asiática.

Com esta redefinição de identidades, de interesses, de valores, de medos e de oportunidades, também as relações entre Washington e Moscovo, outrora os centros de dois blocos que se viam como adversários, alteraram-se, com avanços e recuos, pontos altos e pontos baixos. Não obstante, a relação entre os Estados Unidos e a Rússia democrática (ou a caminho da democracia) no período pós-Guerra Fria é marcadamente cooperativa, nomeadamente em matérias como o combate à proliferação nuclear. Porém, os Estados Unidos, na qualidade de gatekeeper das instituições internacionais ocidentais e, por conseguinte, do próprio sistema internacional liberal, várias vezes, ao longo dos 8 anos de presidência Clinton, adotaram uma postura que deixava a Rússia sem saber muito bem com o que poder contar do outro lado do oceano Atlântico. Os Estados Unidos afirmavam-se determinados em apoiar o processo de democratização do antigo adversário e sublinhavam o papel indispensável que a Rússia teria no desenvolvimento de uma nova estrutura de segurança europeia pós-União Soviética. Ao

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mesmo tempo, os Estados Unidos não permitiam à Rússia acesso pleno à comunidade de nações democráticas do ocidente, usando subterfúgios como o programa das Parcerias para a Paz como forma de aproximar a Rússia do ocidente, mas não demasiado próximo. Apesar de as reticências e da ambivalência norte-americanas acerca de uma total integração internacional da Rússia serem facilmente compreendidas olhando para o histórico das relações entre Washington e Moscovo, a abordagem dos Estados Unidos poderia ter provocado o afastamento de Boris Iéltsin da mesa das negociações e de iniciativas de cooperação com o ocidente; poderia ter deixado cair Moscovo nas mãos dos comunistas, cuja influência renascente ameaçava o primeiro presidente russo democraticamente eleito; poderia ter levado a uma aproximação entre a Rússia e a China, algo que poderia colocar sob pressão os aliados europeus e a estabilidade no continente.

No entanto, as relações entre os Estados Unidos e a Rússia mantiveram-se numa base de cooperação e parceria, cimentada nas relações de companheirismo entre Clinton e Iéltsin, essenciais para dirimir possíveis conflitos e aprofundar laços cooperativos. Em suma, poder-se-ia caracterizar a postura dos Estados Unidos para com a Rússia no pós-Guerra Fria como relutância cautelosa: sem grandes compromissos que pudessem reduzir a margem de manobra dos Estados Unidos, mas com abertura suficiente para trazer para a mesa das negociações antigos adversários e suscitar a sua cooperação.

No pós-Guerra Fria, em que grandes inimizades haviam dado lugar a um mundo mais complexo, mais repleto de identidades e interesses que faziam nascer novas dinâmicas internacionais, poderíamos colocar-nos a seguinte questão: por que razão haveriam os Estados Unidos de procurar uma aproximação da Rússia e tentar com que o antigo adversário fosse, pelo menos, um parceiro do ocidente? Que motivação subjazeria a esta postura para com um país que fora o centro de bloco que queira subverter a ordem liberal?

A resposta poderá ser encontrada no próprio fim da União Soviética. O colapso do sistema comunista soviético trouxe para o plano internacional um novo elemento: uma Rússia comprometida com as reformas económicas e políticas, em fechar o capítulo de um passado manchado pela ditadura, pela opressão, pela agressão. Esta mudança de identidade trouxe para a mesa das negociações um país disposto a falar com o ocidente, a sentar-se à mesma mesa que os líderes das democracias do Oeste, a abrir mão de parte do seu arsenal nuclear

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em sinal de boa-fé, a colaborar em missões militares conjuntas e até a abrir mão da posição de comando.

Ainda assim, apesar das transformações e das declarações de intenções expressas pela Rússia, os Estados Unidos mantiveram-se sempre num estado de relutância cautelosa, uma postura que lhes permitia uma certa abertura negocial e acomodar algumas exigências da Rússia, ao mesmo tempo que lhe conferia margem suficiente para manter uma posição firme e irredutível mesmo perante resistência ou oposição de Moscovo.

Esta abordagem cautelosa pode ser observada, por exemplo, no processo de expansão da NATO para Leste. Apesar de Moscovo afirmar que alargar a Aliança Atlântica às antigas repúblicas soviéticas seria um ato provocatório, os Estados Unidos mantiveram-se firmes na sua convicção de empurrar para oriente as fronteiras da NATO, integrando, em 1999, a Polónia, a Hungria e a República Checa, que não só foram membros do bloco comunista como fizeram parte do Pacto de Varsóvia, uma estrutura militar integrada concebida durante a Guerra Fria para ser o equivalente soviético da NATO.

Contudo, a irredutibilidade de Washington em alargar a aliança não implicava uma ampliação imediata. Sensível às preocupações de Boris Iéltsin e aos riscos que as reformas corriam caso a expansão abrupta da NATO conferisse mais poder e influência à oposição ultranacionalista e saudosa de uma Rússia poderosa, Bill Clinton acordou em adiar a integração de novos membros para depois de 1996, ano de eleições presidenciais na Rússia e nos Estados Unidos, que resultaram na reeleição de ambos os presidentes.

Uma Rússia ressentida e que se sentisse humilhada não era bom nem para os Estados Unidos, nem para a Europa e muito menos o seria para os países que emergiram da dissolução da União Soviética. Uma Rússia isolada do ocidente talvez se sentisse tentada – como forma de marcar uma posição ou porque simplesmente não tinha um “norte democrático” que a ajudasse a dar continuidade à vontade reformista – a seguir os passos deixados na areia pelos líderes soviéticos, caso fosse terminantemente excluída da comunidade internacional e tratada com desdém (tal como aconteceu com a Alemanha no fim da Primeira Guerra Mundial), a recuperar algum do território perdido em dezembro de 1991. Uma incursão militar russa contra uma antiga república soviética despoletaria o caos e muito provavelmente traria de volta a guerra à Europa e às portas da NATO e, por associação, dos Estados Unidos.

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Desenhado este cenário, os Estados Unidos tinham tudo a ganhar com uma abordagem de aproximação, com mais “mel” e menos “vinagre”. E, de forma geral, essa foi a linha de atuação que os Estados Unidos de Clinton seguiram entre 1993 e 2001, embora a forma como a administração norte-americana geriu o processo de expansão da NATO e o programa das Parcerias para a Paz, que mais não era do que uma “sala de espera” para potenciais candidatos à integração efetiva na NATO sem qualquer calendário ou previsão, podia ter gerado uma reação negativa por parte de Moscovo. Se as relações entre os Estados Unidos e a Rússia caíssem, é quase certo que caísse também o processo trilateral de desnuclearização da Ucrânia, ficando o processo na mão de dois países com um historial partilhado de opressão e animosidade, e o mais provável, tendo a História por bússola, é que a Rússia tivesse invadido a Ucrânia com o propósito de aliviar o país vizinho das armas nucleares que herdara da União Soviética e que a Rússia reclamava como suas, sendo o herdeiro legítimo e único da URSS. Um confronto, ainda que por meio de forças convencionais, seria potencialmente desastroso, considerando que ambos os países detêm arsenais nucleares e na confusão do conflito um acidente nuclear poderia propiciar-se, e, como disse o primeiro Secretário de Estado de Bill Clinton, Warren Christopher, «a proliferação de armas de destruição massiva multiplica a perigosidade de qualquer conflito» (Christopher, 1993, 49).

Por isso, a abordagem relutante e cautelosa, ainda que sempre na dianteira, empregue pelos Estados Unidos nas suas relações com a Rússia no pós-Guerra Fria parece ter sido a mais acertada. Pelo menos, terá sido mais acertada do que uma que tivesse tido somente em consideração cálculos de poder; do que uma que prezasse mais o “bismarckianismo” e supérfluos e fugazes ganhos de poder do que a construção de um modelo de interação e de uma base partilhada de entendimentos que criasse condições para a aproximação entre Oeste e Leste e tornasse possível o degelo.

Foi essa abordagem que permitiu aos Estados Unidos garantir estabilidade no continente europeu, mesmo quando se esperava que o caos gerado com a dissolução da União Soviética pudesse vir a provocar um conflito regional que transbordaria para o hemisfério ocidental. Como mostra a História, tal não aconteceu e o novo milénio começou com o maior número de países com regimes democráticos de sempre.

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No final da Guerra Fria, os Estados Unidos estavam numa posição privilegiada de atuação desconstrangida, podendo, se quisessem, intervir em todas as regiões do mundo e influenciar efetivamente as decisões políticas de vários países de forma a fazer avançar os seus interesses. Durante a presidência de Bill Clinton, o que se viu foi um retraimento estratégico dos assuntos globais e uma intensificação do foco em regiões consideradas tão importantes para a segurança e interesses dos Estados Unidos como a Europa de Leste, a Jugoslávia, os Balcãs ou a Ásia. Um retraimento explicado pelo crescente desinteresse do povo norte-americano pela dimensão internacional e a consequente subtração de apoio popular a iniciativas externas. Durante os últimos oito anos do milénio, os Estados Unidos procuraram uma aproximação à Rússia e construir uma relação de cooperação em matérias como o combate à proliferação de armas de destruição massiva e a promoção da democracia. Nesse período, observou-se um “degelo” das relações entre Washington e Moscovo, com alguns avanços e recuos, mas que no fim de contas se refletia em cooperação.

*****

O fim da Guerra Fria, ou, se preferirmos, o fim da interação competitiva entre dois atores – Estados Unidos da América e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – que, constrangidos por uma base partilhada de entendimentos e expectativas, se percecionavam mutuamente como inimigos e como existências incompatíveis, não só se consubstanciou como um "momento transformador" da estrutura do sistema internacional - transição da bipolaridade para a uni-multipolaridade de Huntington - como também, e complementarmente, se pode ver como um "momento definidor" no que toca à identidade dos Estados Unidos e à identificação dos seus interesses.

Durante quase meio século, a identidade e os interesses externos dos Estados Unidos foram profundamente influenciados pela União Soviética. Do outro lado da trincheira, a ameaça do expansionismo soviético e o espectro do comunismo haviam ditado os movimentos e escolhas de Washington. Desde Harry Truman a George H. W. Bush, os presidentes norte-americanos que ocuparam a Sala Oval durante o conflito bipolar haviam desenhado as suas estratégias de política externa tendo como pano de fundo a ameaça vinda de Leste.

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Com o desaparecimento da União Soviética, assistiu-se, simultaneamente, ao desvanecimento do modelo inter-relacional diádico de natureza competitiva que caracterizou o período da Guerra Fria. A ausência da ameaça única a que se acostumara ao longo de décadas obrigava os Estados Unidos a redefinir a sua identidade e os seus interesses no mundo. Na primavera de 1992, Alexander Wendt escreveu que «sem as atribuições mútuas de ameaça e hostilidade da Guerra Fria para definirem as suas identidades, estes Estados [Estados Unidos e União Soviética] parecem incertos acerca de quais devem ser os seus "interesses".» (Wendt, 1992, 399).

Na última década do milénio, os Estados Unidos encontram-se perante um momento definidor da sua identidade. Apesar de o seu estatuto de potência hegemónica de poderio militar inigualável ser, naquele momento da História, um dado adquirido e incontornável, restava saber qual o seria o seu grau de envolvimento na vida internacional: no virar da página da Guerra Fria, seriam os Estados Unidos um elemento ativo e diretamente influenciador das relações internacionais, envolvido nas instituições intergovernamentais e multilaterais que serviam de pano de fundo à ordem mundial nascida do final d Segunda Guerra Mundial, ou iriam os Estados Unidos virar as costas às suas novas responsabilidades enquanto ator-chave na manutenção da ordem liberal, abandonar os seus compromissos internacionais e subtrair-se dos assuntos além-fronteiras para intensificar o foco em matérias de natureza doméstica? Durante a Guerra Fria, a ameaça da URSS nunca havia conferido aos Estados Unidos o espaço de manobra suficiente para que estes pudessem assumir realmente um estatuto de superpotência indisputável. Mas com a dissolução do império soviético, a conquista desse estatuto passou a estar à distância de um braço.

No entanto, com o desaparecimento da União Soviética tornava-se cada vez mais difícil conseguir, quer do Congresso de maioria republicana e com tendências isolacionistas, quer da opinião pública norte-americana descontente com a crise económica que o país atravessava, o apoio necessário para manter, e muito menos intensificar, a presença, designadamente militar, dos Estados Unidos no estrangeiro, quando já não existia uma ameaça clara e tangível aos interesses do Estado norte-americano.

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reflexos desse retraimento estratégico norte-americano no estrangeiro, e ao mesmo tempo é uma forma de os Estados Unidos conseguirem manter a sua influência em regiões cruciais para os interesses norte-americanos, de cortar despesas com operações e destacamentos em regiões de menor importância para a sua segurança e de não cair, pelo menos absolutamente, na desgraça da opinião pública nem dos republicanos do Congresso. «A estratégia de Clinton é uma de hegemonia a baixo custo, pois essa é a única que o povo americano está mais inclinado para apoiar» (Walt, 2000, 79).

Comparativamente ao seu antecessor George H. W. Bush, o presidente democrata Bill Clinton operou reduções não negligenciáveis ao nível dos gastos da Defesa. Durante a sua presidência, Clinton gastou cerca de menos 75,6 biliões de dólares em Defesa do que o republicano que o antecedeu no cargo, o que denota um retraimento estratégico da nova Administração.

Esta tendência de redução da despesa com a área da Defesa está claramente patente nas duas primeiras estratégias de segurança nacional da Administração Clinton, cuja essência radica nos conceitos de engagement e enlargement. Nestes documentos estratégicos, a Casa Branca sublinha que implementou uma série de medidas, como por exemplo as reduções de armamento previstas nos acordos START, permitem conter os gastos e reduzir o chamado establishment militar e canalizar os recursos financeiros para dinamizar outras indústrias não militares.

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III. Bill Clinton: continuidade e liderança no mundo pós-Guerra Fria

A 20 de janeiro de 1993, William Jefferson Clinton, de costas para a fachada oeste do Capitólio, tomava posse enquanto 42.º Presidente dos Estados Unidos da América e como o primeiro chefe de Estado norte-americano a ser eleito depois do final da Guerra Fria. Clinton tinha nas mãos o poder para definir a nova identidade da maior potência mundial e para definir o seu papel no âmbito da comunidade das nações.

No discurso inaugural do seu primeiro mandato, Bill Clinton declarou que «A nossa democracia não deve apenas ser a inveja do mundo mas o motor da nossa própria reinvenção» (Clinton, 1993). O recém-eleito presidente da maior potência mundial do pós-Guerra Fria reconheceu que o desaparecimento da ameaça soviética pôs fim a «uma velha ordem» e que «o novo mundo é mais livre». Porém, o Chefe de Estado estava ciente de que o mundo que resultou do final da Guerra Fria era também «menos estável» e que o término do conflito bipolar «evidenciou velhas animosidades e novos perigos», algo que, aos olhos do presidente norte-americano, obrigava a uma só conclusão: «a América deve continuar a liderar o mundo que em tanto contribuímos para construir» (Ibid.).

Ao longo de todo o discurso pode constatar-se a repetição da palavra renewal (“renovação” em português, de acordo com o dicionário da Cambridge University Press) ou de variantes, num total de oito vezes. É possível perceber que os Estados Unidos enfrentavam um momento de redefinição do seu lugar no sistema internacional e da sua identidade, que já não era construída tendo a URSS e o bloco comunista como contrapontos. Ao longo de décadas, a ameaça do expansionismo soviético tinha servido de permissa para a preponderância dos Estados Unidos no combate ao comunismo e à União Soviética, visto que apenas Washington tinha capacidades materiais que lhe permitia fazer frente a Moscovo e obstaculizar as suas ambições imperialistas e expansionistas.

Assim, na madrugada de uma nova estrutura do sistema internacional, Clinton reafirmava a importância de serem os Estados Unidos a tomar as rédeas da construção do novo mundo, ficando sempre à cabeça de todas as mesas de negociações, de forma a poder proteger os seus interesses nacionais e internacionais, bem como para poder aplacar quaisquer tentativas de subversão da sua posição no sistema internacional do pós-Guerra Fria.

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No que toca à forma como os Estados Unidos iriam intervir no estrangeiro, o discurso não entrava em pormenores, apenas indicando que «Quando os nossos interesses vitais forem desafiados ou a vontade e a consciência da comunidade internacional foram ameaçadas, nós agiremos, através da diplomacia pacífica quando possível, com a força quando necessário» (Clinton, 1993).

Foram escassas as referências a países estrangeiros. É importante notar que não houve qualquer referência direta à União Soviética ou à Rússia (apenas ao comunismo, palavra que é referida duas vezes ao longo de toda a intervenção) nem aos países independentes resultantes da dissolução do bloco comunista de Leste, tendo Clinton apenas referido o Golfo Pérsico e a Somália para louvar o trabalho desenvolvido pelas forças militares norte-americanas nessas regiões do mundo. Talvez tenha sido o objetivo de Clinton focar as atenções dos norte-americanos e dos aliados no futuro, no pós-Guerra Fria, virando a página do conflito bipolar.

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IV.

“Envolvimento e Alargamento”: a estratégia dos EUA para o

pós-Guerra Fria

A mesma escassez de referências à Rússia, a herdeira de facto da União Soviética, não é observável na Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos publicada em julho de 1994 pela Casa Branca. Esta é a primeira Estratégia de Segurança Nacional da presidência de Bill Clinton, e estabelece o posicionamento dos Estados Unidos no mundo pós-Guerra Fria.

Para o pós-Guerra Fria, a Administração Clinton desenvolveu uma estratégia de “Envolvimento e Alargamento”, ou Engagement and Enlargement na língua inglesa original. Esta é uma estratégia que tem como objetivo cimentar a superioridade estratégica dos Estados Unidos num sistema internacional que não está mais sob a sombra da ameaça de um conflito nuclear, em que as ambições e raios de ação dos antigos rivais estão circunscritos a dimensões regionais e em que não existe mais a necessidade para que os Estados Unidos dispensem recursos nacionais – cada vez mais parcos – para estender proteção aos aliados e outros governos companheiros de armas da Guerra Fria.

Ademais, esta estratégia de "Envolvimento e Alargamento" visa criar uma base justificativa para a continuação da presença de forças militares norte-americanas no estrangeiro, mesmo depois do desaparecimento da ameaça soviética - algo que exige o robustecimento do orçamento da Defesa e o acordo de ambos os partidos no Congresso - e para a expansão do que a Administração Clinton chama de «comunidade das nações democráticas», algo que é essencial à consolidação da ordem internacional liberal e dos valores norte-americanos no exterior, bem como ao robustecimento da economia dos Estados Unidos e à criação de emprego através do acesso a cada vez mais mercados estrangeiros.

Bill Clinton tomou a liderança dos Estados Unidos num momento de relativa invulgaridade do sistema internacional: a União Soviética havia desaparecido, os Estados Unidos estavam na posse de capacidades – tanto materiais como ideológicas – que não conseguiam ser rivalizadas por nenhuma outra grande potência e a sua influência política estendia-se da Ásia-Pacífico ao continente europeu.

Referências

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