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A mesma escassez de referências à Rússia, a herdeira de facto da União Soviética, não é observável na Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos publicada em julho de 1994 pela Casa Branca. Esta é a primeira Estratégia de Segurança Nacional da presidência de Bill Clinton, e estabelece o posicionamento dos Estados Unidos no mundo pós-Guerra Fria.

Para o pós-Guerra Fria, a Administração Clinton desenvolveu uma estratégia de “Envolvimento e Alargamento”, ou Engagement and Enlargement na língua inglesa original. Esta é uma estratégia que tem como objetivo cimentar a superioridade estratégica dos Estados Unidos num sistema internacional que não está mais sob a sombra da ameaça de um conflito nuclear, em que as ambições e raios de ação dos antigos rivais estão circunscritos a dimensões regionais e em que não existe mais a necessidade para que os Estados Unidos dispensem recursos nacionais – cada vez mais parcos – para estender proteção aos aliados e outros governos companheiros de armas da Guerra Fria.

Ademais, esta estratégia de "Envolvimento e Alargamento" visa criar uma base justificativa para a continuação da presença de forças militares norte-americanas no estrangeiro, mesmo depois do desaparecimento da ameaça soviética - algo que exige o robustecimento do orçamento da Defesa e o acordo de ambos os partidos no Congresso - e para a expansão do que a Administração Clinton chama de «comunidade das nações democráticas», algo que é essencial à consolidação da ordem internacional liberal e dos valores norte-americanos no exterior, bem como ao robustecimento da economia dos Estados Unidos e à criação de emprego através do acesso a cada vez mais mercados estrangeiros.

Bill Clinton tomou a liderança dos Estados Unidos num momento de relativa invulgaridade do sistema internacional: a União Soviética havia desaparecido, os Estados Unidos estavam na posse de capacidades – tanto materiais como ideológicas – que não conseguiam ser rivalizadas por nenhuma outra grande potência e a sua influência política estendia-se da Ásia- Pacífico ao continente europeu.

No entanto, sem a ameaça da URSS para estabelecer o norte da sua bússola de política externa, Clinton, tal como seria de esperar, reorientou as prioridades da Casa Branca: redução da presença militar no estrangeiro e concentrando-a em regiões-chave (como a Ásia-Pacífico e a Europa); maior foco nas questões internas, como a redução do défice norte-americano e a escassez de empregos; fortalecimento do modelo de ordenamento internacional de natureza liberal que brotou do final da II Guerra Mundial e que se conseguiu conservar, na sua essência, depois do final do conflito bipolar entre a União Soviética e os Estados Unidos.

A Estratégia de Segurança Nacional de 1994, a primeira divulgada pela nova Administração democrata, estipula três grandes objetivos: fortalecimento das forças militares de forma a que os Estados Unidos possam intervir rápida e facilmente nas regiões de maior interesse nacional; revitalização da economia e abertura de mercados externos; promoção da democracia além-fronteiras, com vista ao aumento do número de países democráticos. Para Clinton, estes três macro-objetivos estão intimamente interligados e são mutuamente capacitadores, na medida em que «Nações seguras têm maior propensão para apoiar o comércio livre e manter estruturas democráticas. Nações com economias em crescimento e fortes laços comerciais têm maior propensão para se sentir seguras e trabalhar em prol da liberdade. E Estados democráticos têm menor propensão para ameaçar os nossos [dos EUA] interesses e maior propensão para cooperar com os EUA com vista a dar resposta a ameaças à segurança e a promover o desenvolvimento sustentável» (The White House, 1994, i-ii). Clinton sublinha a indispensabilidade sem precedentes da liderança dos Estados Unidos, cuja vigilância e presença além-fronteiras são consideradas o garante da estabilidade internacional e a proteção das democracias contra as ameaças que as pretendem subverter e que adquirem novas formas no pós-Guerra Fria (como o terrorismo, a degradação do meio ambiente, ambições revisionistas por parte da China e da Rússia e a disseminação de armamento com capacidades de destruição de massas).

Para conservar a sua pertinência no teatro internacional e para justificar a continuação da presença das suas forças militares no estrangeiro, os Estados Unidos precisam de declarar a sua liderança como a única linha de defesa das democracias face às ameaças que, embora já não tivessem a cara do comunismo, proliferarão sem a intervenção de Washington.

No Prefácio da Estratégia de Segurança Nacional de 1994, Clinton afirma que, apesar de os Estados Unidos já não enfrentarem a ameaça soviética do passado, «ainda subsiste um leque de novos e velhos desafios securitários que a América deve endereçar à medida que nos aproximamos de um novo século» (The White House, 1994, 1).

Clinton sublinha a necessidade da liderança norte-americana da nova ordem internacional e o seu papel indispensável enquanto garante da estabilidade internacional. A Administração norte-americana acredita que o fim da Guerra Fria não exige uma retirada dos Estados Unidos dos assuntos internacionais.

Os Estados Unidos pretendem exercer uma «diplomacia preventiva» (The White House, 1994, 5), através do apoio às democracias, de assistência económica, da presença de forças militares norte-americanas no estrangeiro, de contactos entre forças militares e de negociações multilaterais.

Contudo, a liderança e envolvimento dos Estados Unidos é condicional, devendo Washington canalizar os seus esforços e recursos para assuntos que digam diretamente respeito aos interesses norte-americanos e que nos quais a sua atuação possa realmente fazer a diferença. A promoção da democracia – ou, por outras palavras, o apoio ao desenvolvimento e consolidação de democracias de mercado – é um dos lados do triângulo que dá corpo à primeira estratégia de segurança nacional arquitetada pela Administração Clinton. Este apoio concentra-se, sobretudo, na «preservação de processos democráticos em Estados democráticos emergentes essenciais, incluindo a Rússia, a Ucrânia e os outros novos Estados da antiga União Soviética» (Ibid.).

O aumento da esfera dos países com regimes democráticos, esfera essa encabeçada por Washington, é visto como um elemento indispensável à segurança nacional norte-americana. Os Estados Unidos afirmam estar empenhados em conceder apoio à transição económica e política nas antigas repúblicas comunistas, em matéria de constituição de instituições de democráticas e de abertura de mercados. «Todos os interesses estratégicos da América (...) são cumpridos através do alargamento da comunidade das nações democráticas e de mercado livre» (The White House, 1994, 19-20).

Apesar de assumir a liderança do desenvolvimento da nova ordem pós-Guerra Fria, os Estados Unidos reconhecem que não conseguem alcançar os seus objetivos unilateralmente, e sublinham a importância de solução cooperativas e multilaterais e da nutrição de «relações duradouras com aliados e outras nações amigas» (The White House, 1994, 6).

Mas esta afirmação da indispensabilidade da convergência de esforços intergovernamentais para assegurar a segurança coletiva contrasta com a declaração de que «para dissuadir a agressão, prevenir a coerção de aliados ou governos amigos e, em última instância, vencer a agressão caso ela ocorra, nós [Estados Unidos] precisamos de preparar as nossas forças para enfrentar este nível de ameaça, preferencialmente em concerto com os nossos aliados, mas unilateralmente se necessário» (The White House, 1994, 7). O binómio unilateralismo- multilateralismo é evidente nesta estratégia de segurança nacional, e poderá advir do facto de os Estados Unidos desejarem conduzir a nova ordem internacional enquanto a única superpotência mundial, ao mesmo tempo que reconhecem a necessidade de um retraimento estratégico que deverá dar lugar a um envolvimento mais seletivo e a necessidade de partilharem essa liderança (bem como os custos associados) com os países aliados e governos amigos, que, em certas circunstâncias e em certas questões, podem estar melhor capacitados para atuar.

A intervenção dos Estados Unidos em questões além-fronteiras está, acima de tudo, dependente dos interesses nacionais. Só quando os «interesses vitais ou de sobrevivência» estiverem sob ameaça, «o uso da nossa força será decisivo e, se necessário, unilateral» (The White House, 1994, 10). Nos restantes casos, em que a ameaça aos interesses nacionais não seja tão premente, os Estados Unidos atuarão cautelosamente, mediante um envolvimento militar seletivo.

No que toca à ação multilateral, mais especificamente, a Administração Clinton assegura que os Estados Unidos procurarão, sempre que possível, o apoio dos aliados. Porém, em matérias que digam respeito diretamente aos interesses dos aliados, os Estados Unidos exigem que os aliados assumam um papel mais preponderante e mais ativo nas iniciativas conjuntas.

V.

Estados Unidos e a Rússia: avanços, recuos e uma relutância