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Literatura e Leituras do Milenarismo em Georges Duby (1919-1996)

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LITERATURA E LEITURAS DO MILENARISMO EM GEORGES DUBY (1919-1996)

LITERATURE AND LECTURES OF THE MILENARISM IN GEORGES DUBY (1919-1996)

Diogo da Silva Roiz1

Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul

Resumo: O objetivo deste texto é

analisar de que maneira o medievalista francês Georges Duby (1919-1996) procurou analisar a literatura e o milenarismo, principalmente, entre seus livros: O ano mil, de 1967, e Ano 1000, ano 2000, de 1995.

Palavras-chave: Milenarismo; Progresso e circularidade; Georges Duby.

Abstract: The deal of this article is to

analyze the way of French’s medievalist Georges Duby (1919-1996) sought to analyze the literature the millenarianism, especially in his books: L’an mil, in 1967, and An 1000 an 2000 - Sur les traces de nos peur, of the year 1995.

Keywords: Millenarianism; arogress

and circularity; Georges Duby.

Recebido em: 17/09/2010 Aprovado em: 15/12/2010

1 E-mail: diogosr@yahoo.com.br.

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Por muito tempo os historiadores imaginaram o ano mil como um momento de terror, trevas e torpor, em que os cristãos do Ocidente, persuadidos da iminência do fim do mundo, viviam transidos de pavor e incapazes de qualquer empreendimento. Sem dúvida, tudo leva a crer que, em ambas camadas da sociedade, a expectativa do fim dos tempos, nutrida pela assídua meditação sobre o Apocalipse, tornou-se mais ansiosa ao cabo do primeiro milênio da era cristã: mas não é menos certo que os dirigentes mais esclarecidos da Igreja combateram tais crenças, que a maioria dos homens sobrepujou seu medo e seguiu adiante. Na realidade, o ano mil não surgiu absolutamente como um acabrunhado crepúsculo, mas como uma brilhante aurora: é então que a nova primavera da Europa, preparada de longa data, se afirmou em todos os domínios2.

O texto de Georges Duby (1919-1996), A nova primavera da Europa (séculos

XI e XII), escrito nos anos iniciais da década de 50 e incluído no sétimo volume

da História Geral das Civilizações, sob a direção de Maurice Crouzet, já sintetizava algumas das principais ideias que o autor viria a desenvolver nas décadas seguintes em seus principais livros. Não sem razão, a obra de Georges Duby é considerada rica e instigante, das mais expressivas do século passado3. Em

especial, por questionar e interpretar o que foi a ‘sociedade medieval’ (e sua estruturação clerical, cavaleiresca e feudal) e, a partir desse problema, conferir novos ângulos de análise sobre o tema. Daí resultariam algumas de suas principais contribuições, a pensar: a) como determinados momentos e acontecimentos são construídos e permanecem na ‘memória coletiva’ ao longo do tempo, do espaço e das gerações?; b) de que maneira a fonte literária atribui sentido ao passado e vem a formar também uma ‘memória coletiva’?; c) por que a ideia de ‘milenarismo’ foi fundamental para a consolidação de uma sociedade tripartite, em que as ‘três ordens’ (os que ‘rezam’, os que ‘guerreiam’ e os que ‘trabalham’) sintetizavam o funcionamento da sociedade do ocidente medieval, e que relações manteria com a contemporânea?; d) em que medida as mulheres participavam dessa sociedade, como agiam e como se representavam e eram

2 DUBY, G. A nova primavera da Europa (séculos XI e XII). In. PERROY, E. (org.) História Geral das Civilizações. Tradução de J. Guinsburg e Vitor Ramos – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994b,

p. 15-88 (1ª Ed. 1953), p. 15.

3 COSTA, M. C. Compreender Georges Duby: introdução à obra de um medievalista dos Annales. Tese

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representadas?; e) e qual a função da representação da morte, dos funerais e do clero para o funcionamento dessa sociedade?4

Ao mesmo tempo, tais estudos proporcionaram um intenso debate historiográfico, na medida em que autor e obra eram questionados sob os aspectos: a) por que aproxima História e Literatura, justamente num momento de questionamento dos fundamentos da ‘escritura da história’ e de sua representação da ‘realidade’?; b) o historiador deve escrever para quem?; c) em que medida sua obra perpassa da globalidade do objeto, da abordagem e da época, para a globalidade do público, da linguagem e da apresentação das fontes?

Tendo em vista esses pontos, o principal objetivo deste texto é analisar de que maneira o medievalista francês Georges Duby procurou analisar a ‘literatura’ e o ‘milenarismo’, principalmente, entre seus livros: O ano mil, de 1967, e Ano 1000, ano 2000, de 1995.

No início da década de 90, Nilo Odália5 procurou demonstrar de que

maneira o pensamento historiográfico de Georges Duby estaria intimamente ligado ao próprio desenvolvimento do movimento dos Annales, entre os anos de 1950 e 1980, quando as ideias de ‘mentalidade’, ‘imaginário’ e ‘representações coletivas’ vieram a se tornar os pontos centrais da discussão do movimento e das publicações, inclusive, as da revista. De modo semelhante, Luiz Alberto Sant’Anna6 constatou que o “território intelectual e científico de Georges Duby

é a ‘Nova História’, como se costuma identificar [n]a produção historiográfica, as orientações teóricas e os procedimentos metodológicos presentes na terceira geração dos Annales”7. Para François Dosse8, herdeiro “de Marc Bloch no que se

4 Essas indagações são facilmente encontradas em seus livros: Idade Média. Idade dos homens, do amor e outros ensaios. São Paulo, Companhia das Letras, 1990; O ano Mil. 2ª Edição.

Lisboa/Portugal: Edições 70, 1993 (1ª ed. 1967); Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. Tradução de Eugênio Michel da Silva. São Paulo: Edunep, 1997a (1ª ed. 1995); A história

continua. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997b; O tempo das catedrais. Arte e sociedade, 980-1420. Lisboa/Portugal: Estampa, 1978; As três ordens, ou o imaginário do Feudalismo. Lisboa/Portugal: Estampa, 1994; Guerreiros e camponeses. Lisboa/Portugal:

Estampa, 1993; A Europa na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988; As damas do século XII:

Heloisa, Leonor e muitas outras. Portugal: Teorema, 1995; As damas do século XII: lembranças das antepassadas. Portugal: Teorema, 1996; As damas do século XII: Eva e os padres. São Paulo:

Companhia das Letras, 2001; Guilherme marechal ou o maior cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro: Graal, 1987; O Domingo de Bouvines. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

5 ODALIA, N. O saber e a história: Georges Duby e o pensamento historiográfico contemporâneo. São

Paulo: Brasiliense, 1994.

6 SANT’ANNA, L. A. S. Georges Duby e a construção do saber histórico. Dissertação de mestrado

em História, Universidade Federal de Pernambuco, 2001.

7 Idem, p. 12.

8 DOSSE, F. Georges Duby, o historiador da globalidade. In. Idem. A história à prova do tempo: da história em migalhas ao resgate do sentido. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:

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refere à preocupação constante de delimitar bem as categorias sociais que estuda, Georges Duby também é herdeiro direto de Lucien Febvre, no que tange à atenção dada aos fenômenos das mentalidades, bem como de Fernand Braudel, que ele conhece em 1956 e cuja ambição de globalidade adotará, rejeitando a fragmentação do campo de estudo do historiador”9. De acordo com

ele:

Como se pode verificar do itinerário de Georges Duby, a história global se enriquece cada vez mais com novos aspectos sem que seja possível encontrar injunções que a delimitam. Seu horizonte é indefinido, o que fundamenta a sua riqueza e o seu caráter sempre mais promissor. A característica da história global é a incompletude; no entanto, é tendendo para a sua realização que o historiador nos completa10.

Aliás, retomando parte desse itinerário, Maria Eurydice de Barros Ribeiro11

procurará reconstituir de que maneira ele irá rever o uso das fontes literárias, não apenas para visitar novos temas, com base em novas abordagens, para recompor os mosaicos sobre a ‘sociedade medieval’, e que também será fundamental para o próprio movimento dos Annales avançarem sobre os estudos das sociedades do passado, mas ainda lhe serviram de base para rever seus estudos sobre a sociedade cavaleiresca, as representações da morte e as imagens construídas sobre as mulheres. Georges Duby também deixou registro dessa questão. Para ele:

O itinerário a que chamo braudeliano tem o seu início muito mais cedo, nos anos que precederam a guerra. Estava então na escola dos Annales. Situada deste modo na frase, associação dessas três palavras tem um sentido. Terá sentido isolado? Dito de outro modo, existe uma ‘escola dos Annales?’ Hoje em dia, certamente que não. Vêem-se ainda instituições e herdeiros que as ocupam. Essas instituições desempenharam agora plenamente as suas funções, sei que elas espalharam por todo o lado, liberal e obstinadamente, essas idéias, esses métodos, essas interrogações que formaram, enriqueceram, desenvolveram no seu seio, estimulando assim, renovando a investigação histórica no mundo inteiro, mas em primeiro lugar, não nos esqueçamos, na própria França, e por todo lado, até nas cidadelas mais diminutas onde as rotinas arrogantes resistiram durante muito tempo12.

9 Idem, p. 102. 10 Idem, p. 110.

11RIBEIRO, M. E. B. Georges Duby, o prazer da história. Revista Signum, n. 4, 2002.

12 DUBY, G. O prazer do historiador. In. NORA, P. (org.) Ensaios de ego-história. Tradução de

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Essa constatação não é, aliás, diferente da que fora apresentada pelo grupo nessa época. Destacadamente por Jacques Le Goff13, que percebia na obra

de Georges Duby, uma via precursora de temas e problemas que viriam inovar e agitar os estudos históricos nos anos de 1960 e 1970, e com os quais iriam instigar o movimento, naquele momento, com a direção colegiada da revista e das instituições, que alicerçavam a ação dos Annales na França.

Não é uma tarefa simples a de sintetizar a trajetória intelectual de Georges Duby, tão pouco a sua contribuição para os estudos sobre a ‘sociedade feudal’, exercício a que o próprio autor, em momentos distintos14, percebeu a

dificuldade, mesmo que o fazendo em meio a uma autoanálise de ‘ego-história’15. Em seu texto O prazer do historiador, destaca que sua predisposição

para os estudos históricos foi formada mais ao ‘acaso’, e pelo gosto que foi tendo pela área ao longo de anos de pesquisa, do que propriamente por uma predisposição de infância, por leituras ou por professores. É bem provável que foi seduzido pela ‘cultura camponesa’ da França do final do século XIX, à qual estavam ligados seus avós, dos quais corriqueiramente relembrará em sua obra. Por outro lado, ressaltará a importância de sua experiência em universidades do interior do país, que lhe deram liberdade para efetuar suas pesquisas, abordagens e análises das fontes, antes de seguir para Paris, e lecionar no

Collège de France. De acordo com ele:

Desde a minha entrada no ensino superior, sofri a acção dessa ciência de ar livre. Ela modelou imperativamente os modos como pratiquei a minha profissão. O que se vê em dois níveis. Primeiro, por me ter assiduamente interrogado diante dos mapas, das cartas contraí a necessidade de dar, desde que possível, consistência visual aos fenômenos de sociabilidade situando-os, inscrevendo-os exactamente no espaço. Segundo, de consequência muito mais profunda, fundamental, foi aquela certeza que me veio à força de analisar as paisagens e de interpretar as transcrições cartográficas: em toda a actividade humana

13 LE GOFF, J. O imaginário Medieval. Lisboa/Portugal: Editorial Estampa, 1994; LE GOFF, J. Para um Novo Conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no ocidente. Lisboa/Portugal: Estampa,

1980; LE GOFF, J. Uma vida para a História. Conversações com Marc Heurgon. Tradução de José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Edunesp, 1998.

14 DUBY, G. O prazer do historiador. In. NORA, P. (org.) Ensaios de ego-história. Tradução de

Ana Cristina Cunha. Lisboa/Portugal: Edições 70, 1989, p. 109-138; DUBY, G. A história continua. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997b.

15 De acordo com Pierre Nora: “Um género novo, para uma nova idade da consciência histórica,

que nasce do cruzamento de dois grandes movimentos: por um lado, o abalo das referências clássicas da objectividade histórica, por outro, a investigação do presente pelo olhar do historiador”. NORA, P. (org.) Ensaios de ego-história. Tradução de Ana Cristina Cunha. Lisboa/Portugal: Edições 70, 1989, p. 9.

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encontram-se indissociavelmente ligados o que vem do material e o que não vem, aquilo que é da natureza e o que é da cultura16.

A isso, acrescenta quatro momentos que se cruzam e se articulam em seu itinerário. O primeiro situado na formação universitária, e suas leituras, pesquisas e indagações iniciais, no campo dos estudos históricos. Um segundo, em ‘Aix’, universidade em que inicia sua carreira profissional, na qual propõe seminários e discussões, em meio à liberdade de pesquisa que ela dispõe. O terceiro, de reconhecimento profissional, “mas igualmente pela preocupação de acentuar o essencial, como braudeliano”17. Por fim, o momento que começou em

1958, com Albert Skira e, depois, com Pierre Nora e a editora Gallimard, com seus pedidos de livros e pesquisas ao autor.

Foi seguindo esses mesmos passos, que, em A história continua, ele retomaria pontos de sua biografia acadêmica, a partir de 1942. Nela, articulou os momentos em que a historiografia francesa se desenvolveu e questionou a produção oitocentista. E demonstrou de que maneira os estudos medievais se apresentavam, nessa época, na França e em outros lugares. Deu atenção especial à discussão efetuada pela historiografia dos anos 1930 e 1940 sobre os estudos medievais, com destaque para a forma como o período era então apresentado por esses trabalhos. Demonstrou quais leituras foram feitas sobre a Idade Média, aliás, sendo vista como época de trevas, de resignação, de opressão e de subdesenvolvimento da civilização do ocidente cristão. Mas, se esse era o clima, e essas eram as circunstâncias em meio às quais se desenvolveu o percurso intelectual do autor, em que medida sua obra contribuiu para revisitar o tema? Em parte, o próprio autor respondeu tal indagação, ao articular os livros que publicou, e as respostas que apontava para rever o período, com as discussões da historiografia francesa e europeia. No entanto, convém nos determos mais atentamente em alguns traços que destacam seus textos.

Por certo, as características da documentação, em muitas situações, indicaram a forma mais adequada de proceder ao recorte do tema e do espaço da análise. Com essa perspectiva, não deixou de observar a ‘mobilidade’ do homem medieval em todos os ‘estratos sociais’. Além de primar que as fontes indicam mais ‘revelações’ sobre as situações em ação, do que propriamente ‘revoluções’, para as pessoas do período, e para aquelas que as produziram, e quando não a elas, por que se perdem ou não são conhecidas na época, o faz com o historiador, ao indagá-las adequadamente. Por sua vez, o distanciamento com as fontes é sempre móvel e dinâmico, quando cotejadas corretamente.

16 Idem, 1989, p. 117. 17 Idem, 1989, 123.

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Esses cuidados metodológicos podem ser aferidos com maior sistematização em sua aula inaugural, Sociedades Medievais, apresentada em 4 de dezembro de 1970 no Collège de France, na qual Georges Duby ressaltará que: 1 – “a história social é, de fato, toda a história”; 2 – “procurar captar, no seio de uma globalidade, as verdadeiras articulações”; 3 – e vislumbrar “a necessidade de, ao analisar com a maior minúcia possível a interação entre resistências e pulsões entrecruzadas, as aparentes rupturas que essa interação provoca e as contradições que aviva, a necessidade, dizíamos, de dissipar, em cada um dos momentos que o historiador decide observar, a ilusão de uma diacronia”18. Não

há dúvida de que dos três princípios metodológicos elencados pelo autor, o terceiro foi o que fincou raízes mais profundas, ao longo de sua trajetória profissional. Evidentemente, não só de cuidados metodológicos foi matizada a obra do autor, haja vista o aparente uso livre de termos como: ‘ideologia’, ‘mentalidade’, ‘imaginário’, ‘representação’, ‘sistemas ideológicos’, ‘consciência histórica’, ‘realidade’, ‘acontecimento’, ‘gerações’, ‘memória coletiva’, ‘estrutura’, etc. O que não vale para toda obra, e mesmo onde a observação é válida, não diminui a contribuição do texto. Mas de que maneira ocorreu esse movimento na obra do autor?

Ao sintetizar, no início dos anos de 1950, sua interpretação da ‘sociedade medieval’ num texto agrupado em um dos 17 volumes da História Geral das

Civilizações, Georges Duby diria que:

Assim, a distribuição dos poderes após o desmoronamento da autoridade monárquica comanda a disposição da sociedade. Os homens deste tempo, conforme a sua disposição com respeito às forças de repressão, dividem-se em três ordens. Estendamo-las como categorias muito nitidamente delimitadas, estáveis, estabelecidas por Deus mesmo e, todos o crêem, desde a criação, para assegurar a ordem do mundo, e cada qual corresponde a um estado particular, a uma missão especial. Na primeira classe situam-se os que rezam, e sua missão é cantar a glória de Deus e obter a salvação de todos; seguem-se os que combatem, encarregados de defender os fracos e impor a paz divina; enfim, abaixo destas duas elites, figuram os trabalhadores, que, segundo o plano providencial, devem contribuir, pelo seu labor, para o sustento dos especialistas da prece e do combate. Tal é o esquema que, penetrando a consciência coletiva por volta do ano mil, se expressa, doravante, em toda parte, tanto nos tratados didáticos ou nos sermões, como nas cerimônias mais banais, e que, transmitido de geração em geração, se converterá durante séculos na estrutura básica da sociedade ocidental19.

18 DUBY, G. Sociedades Medievais. Tradução de Augusto Joaquim. Portugal: Terramar, 1999, p.

12, 15, 20.

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Esse problema percorre, entre idas e vindas, quase toda obra do autor. Em 1967, quando foi lançado seu livro Guerreiros e camponeses, perscrutou de que modo as duas ordens, dos que ‘guerreiam’ e dos que ‘trabalham’, que foi a base da civilização do ocidente medieval, a partir do século V, também contribuiria, após o ano mil, para o aparecimento de uma terceira ordem, dos que ‘rezam’, cuja base estaria na Igreja, instituição a qual mediaria os conflitos dessas duas, e as tensões entre o ‘mundo dos vivos’ e o ‘mundo dos mortos’20.

Demonstrou como os guerreiros se tornam cavaleiros no interior desse processo, e saqueadores passam a ser senhores, cuja proteção dos camponeses será uma de suas funções. Igualmente ressaltou de que modo os camponeses e os servos, cujas funções se encontravam distribuídas distintamente no início deste período, aproximam-se aos poucos. Por mais que a Igreja agregasse poder ao longo dessa época, sua ação permaneceria esparsa e, na maioria dos castelos, seus códigos seriam consideravelmente flexíveis, quando não totalmente desrespeitados21. Nesse livro, Duby dedicou-se a apresentar a fragilidade dos

procedimentos quantitativos, seriais e econométricos para pensar a Idade Média, primeiro, por causa da escassez de fontes do período, segundo, em função da distribuição geográfica dos povoados e dos homens que inviabilizava estatísticas minimamente aceitáveis e confiáveis ao pesquisador. Não por acaso, procurou avançar sobre tais procedimentos, ao apoiar-se na antropologia e na arqueologia, tendo em vista fontes literárias e meteriológicas – ainda que se pautando também no marxismo.

De modo semelhante, em seu livro As três ordens, de 1978, o autor demonstra como, ao longo dos séculos XIV e XVI, se conforma a esse imaginário, uma quarta ‘ordem’, formada nas cidades. Destacadamente se distanciando do marxismo e se apoiando numa abordagem antropológica, ao perceber a história cultural do período, centrando sua análise sobre o imaginário, então construído sobre as ‘três ordens’. Mas, diferente de Guerreiros

e camponeses, a estrutura teórica e metodológica de As três ordens é explicitada

pelo autor desde o início do texto. Para ele:

A ideologia [...] não é reflexo do vivido, mas um projecto de agir sobre ele. Para que a acção tenha qualquer possibilidade de eficácia, é preciso que não seja demasiado grande a disparidade entre a representação

20 DUBY, G. Guerreiros e camponeses. Lisboa/Portugal: Estampa, 1993b.

21 DUBY, G. As damas do século XII: Heloisa, Leonor e muitas outras. Portugal: Teorema, 1995;

DUBY, G. As damas do século XII: lembranças das ancestrais. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1997c; DUBY, G. As damas do século XII: Eva e os padres. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; DUBY, G. Guilherme Marechal ou o maior cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro: Graal, 1987.

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imaginária e as ‘realidades’ da vida. Mas a partir daí, se o que se diz e o que se escreve é entendido, novas atitudes cristalizam e vêm modificar a forma pela qual os homens compreendem a sociedade de que fazem parte22.

Desse modo, Georges Duby distinguia o que estaria entendendo por ‘ideologia’ (e ‘sistemas ideológicos’) em sua pesquisa, ao mesmo tempo em que tomava certa distância quanto à maneira pela qual o termo fora definido no marxismo, como ‘uma falsa consciência da realidade’, fruto da vontade das ‘classes dominantes’, que impunham suas formas de agir e pensar as massas, sem que estas ao mesmo tempo tivessem vontade ou decisão, pois se encontravam apáticas no interior do sistema, em função do efeito das ideologias em suas mentes. Adiante, o autor indicaria ainda que: “Os sistemas ideológicos não se inventam. Existem, difusos, aflorando apenas a consciência dos homens. Nunca imóveis. Elaborados na memória dos homens, intrinsecamente, através de uma lenta evolução, imperceptível, mas cujos efeitos se descobrem de longe em longe, efeitos que no conjunto se deslocam e que podemos reconstruir”23.

Dado que as ideologias só se conformam na realidade, quando se assemelham a ela, e na medida em que sua repetição, sobre os corações e as mentes das pessoas, estabeleça-se mediante uma relação entre grupos e indivíduos, e essas relações se cristalizem em novas atitudes na sociedade, esta não seria apenas um reflexo deste vivido, mas uma ação direta sobre ele.

Para ele, o esquema trifuncional aparece nas Gestas e em obras literárias. As Gestas são um gênero literário que se assemelham à epopeia (mas sem a presença de deuses). Os poemas seguem características semelhantes, quanto à cobrança de ordem, como ‘arma doutrinária’. Desse modo, não é por acaso que sua reflexão tem base na obra de G. Dumezil, com sua análise das organizações das sociedades indo-europeias, que entre seus vários esquemas funcionais, haveria predominância do trifuncional, ainda que suas representações fossem diversas. Aliás, ao planejar a obra em seus seminários, ministrados junto com Jacques Le Goff, Duby fez questão de contar com a participação de Dumezil.

Neles, Duby questionava se esse modelo analítico poderia ser aplicado para pensar a ‘sociedade medieval’ (que não se limitou a um esquema trifuncional, mas também se pautou, em certas ocasiões, a esquemas binários, entre monges e não monges, e quaternários: clérigos, guerreiros, camponeses e aqueles que não se alocam a nenhuma dessas camadas). Mesmo que se detivesse sobre a França do norte nos séculos XI e XII, não deixaria de observar esses esquemas em outros locais e períodos. O momento do Eclipse do esquema trifuncional, para ele, coincidiria com o sucesso da sociedade feudal, por que

22 Idem, 1994a, p. 21. 23 Idem, 1994a, p. 81.

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seria um período de enfraquecimento e fragmentação do poder, inclusive, o monárquico.

Como esse esquema ressurge? Em muitos personagens, que serão identificados como ‘típicos’ da representação desse ordenamento tripartite. Ele ressurge, portanto, nas cortes. E por que nas cortes? Por que nelas se discutirá a distribuição de funções entre os homens. Por que em algumas houve uma produção significativa de poemas e obras que, notadamente, voltavam a representar a ordem, por meio de um esquema trifuncional. E essas cortes, redescobrem esse esquema trifuncional, que antes serviram de base a Adalberão de Laon e a Gerardo de Cambrai, ao se utilizarem dos mesmos textos, num momento de crise do monacato, servindo para as cortes recomporem a ordem daquela sociedade.

Mas, em muitas ocasiões, também não deixaria de haver uma coexistência de sistemas funcionais: binários, terciários e quaternários. Mesmo se considerássemos sua viabilidade ao representar as funções sociais, do imaginário construído para as relações sociais estabelecidas entre os homens e os grupos, esses esquemas explicativos eram parciais e não conseguiam sintetizar a movimentação e as complexas redes de relações mantidas entre eles. Embora o juramento fosse uma maneira de manter o esquema trifuncional, em função das consequências de sua recusa ser a morte, havia certamente o desrespeito do juramento, seja pela hierarquia, opressão e rebelião, seja ainda, pela simples discordância entre servos e senhores.

Da dialética entre relações sociais e conformação do imaginário, exposta em Guerreiros e camponeses, para a tensão entre imaginário fundado num ordenamento tripartite da sociedade e sua mediação nos modos de agir e pensar vinculados às relações materiais dos grupos e das pessoas, apresentado em As três ordens, é justamente no interior desse processo de viragem analítica e historiográfica do tema, que abordou de que modo se formou a ‘sociedade feudal’. E é possível observar de que maneira o autor deu destaque ao estudo

da ‘literatura’, para analisar o ‘milenarismo’ e criticar as ‘filosofias da história’. As ‘fontes literárias’ demonstraram ser um campo fértil para a pesquisa

histórica. Ao longo de sua trajetória, Georges Duby notou sua contribuição e as reviravoltas que produziu em sua obra. Para ele:

Eu estava mudando de material, mais ou menos como um escultor que troca a madeira pelo mármore. Desviava minha atenção das cartas, inventários, dos testamentos breves fornecidos pelas fontes abruptas, ásperas, sem preparo sobre as quais se baseava toda minha tese de doutorado. Dali para a frente, eu leria sobretudo narrativas, poemas, em latim ou outras línguas, escritos que refletiam de maneira menos direta, menos ingênua, a vida em sociedade, deformados, complicados que são

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pela preocupação de agradar, de disseminar determinada doutrina, mas também menos secos, mais loquazes, e em todo caso de interpretação mais difícil. Para extrair-lhes o sentido, prevalecia-me da experiência récem-adquirida, quando me interroguei sobre a obra de arte para situá-la em seu contexto24.

Com isso, “me apego, retendo de suas palavras, para começar, o que revelam sobre sua própria cultura, suas esperanças, seus temores, a maneira como pensa o mundo e a si mesmo”. Em vista disso, sua maior preocupação, sobretudo quando se debruçou sobre fontes literárias, era interrogar a “imagem que tem de si mesmo” e é isso “o que procuro reconstituir”25. Avançando nesta

análise, em seu livro As damas do século XII: a lembrança das ancestrais, notaria ainda que:

Os historiadores positivistas o desprezaram e desprezam, cumulando de sarcasmo Dudon [uma fonte literária], o fantasista, Dudon, o manipulador. Tenho essa obra por um documento de primeiríssimo valor. Também eu sou positivista. À minha maneira. Para mim, o positivo não está na realidade dos ‘pequenos fatos verdadeiros’: bem sei que não a apreenderei jamais. O positivo é esse objeto concreto, esse texto que conserva um eco, um reflexo, palavras, gestos irremediavelmente perdidos. Para mim o que conta é esse testemunho, imagem que um homem de grande inteligência propôs do passado, seus esquecimentos, seus silêncios, como ele trata a lembrança para ajustá-la ao que pensa, ao que crê verdadeiro, justo, ao que querem crer justo e verdadeiro aqueles que o escutam. Assim Dudon, quando evoca a mãe de Guilherme Longa Espada ou a de Richard, talvez não diga delas a verdade exata. Tenho consciência disso. E, não obstante, retenho preciosamente as palavras que ele emprega. Elas revelam como se gostava de representar as ancestrais em uma corte principesca emergindo pouco a pouco da selvageria do ano 100026.

Para ele, as “mulheres têm na verdade muito pouco lugar nessa história de guerreiros, de furiosos pouco a pouco acalmados”, e sempre “em segundo plano, são joguetes nas mãos desses brutos”. Ainda assim, as “mulheres se fazem muito mais presentes a partir do século XII”27. Como indicaria em A

história continua, após concluir a sua tese, na década de 40, teve duas

24 Idem, 1997b, p. 99.

25 Idem, 1997b, p. 100. 26 Idem, 1997c, p. 55-56. 27 Idem, 1997c, p. 57, 58.

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preocupações centrais: 1 – com a morte e sua representação; 2 – e com o papel das mulheres nesse momento. E é por isso que houve certas alterações significativas quanto à própria maneira como o autor entendeu as mulheres na história da sociedade medieval, entre seus livros Guilherme Marechal e a trilogia sobre As damas do século XII. Para que esse entendimento fosse possível, foram fundamentais as pesquisas que empreendeu para compreender de que modo o passado era usado como forma de conformar um tipo de ‘memória coletiva’ e não outro. No percurso que se seguiu a essa virada historiográfica, o uso das fontes literárias balizaram parte essencial de suas revisões do tema. Daí não surpreende seu questionamento constante do que é a literatura medieval e de que maneira foi produzida28. É seguindo esse rastro deixado pela documentação

que iria inquirir tanto como se forjou a memória sobre o Domingo de Bouvines, quanto sobre as visões do ano mil.

Ao tratar da maneira como um acontecimento é rememorado, em O

Domingo de Bouvines, de 1973, que reconstitui a batalha de 27 de julho de 1214 e

a forma como esta se tornou um marco para o povo francês pensar a constituição de sua nação, o autor também demonstrou como o passado é usado para determinados fins, em diferentes momentos, por diferentes pessoas. Nesse processo, de que modo a ‘memória coletiva’ de certos momentos, pessoas e acontecimentos é transmitida de uma época para outra, de uma geração para outra, e de que forma o próprio passado e o presente são também ressignificados? Como um acontecimento é usado para justificar um passado comum a pessoas que não o viveram, e a partir dele definir a própria maneira como um sentimento de pátria, nação, tradições, linguagens e histórias em comum são construídos ao longo do tempo?

São essas as questões fundamentais que o autor se propõe. Com base em anais, crônicas e relatos literários, visando ‘observar como antropólogo’ o movimento da história, e a maneira como a realidade é balizada por ideologias, o autor passou a reconstituir o acontecimento e suas várias rememorações, no tempo e no espaço. Para ele, entre os séculos XII e XIII, os relatos monásticos, amparados na ideologia cavaleiresca, convertiam o evento em momento simbólico da ação divina sobre o povo francês. No século XIV, seriam produzidos os primeiros relatos profanos, cujo objetivo principal era o de exaltar o rei. A partir do século XVII, em meio ao desenvolvimento da pesquisa antiquária e erudita, visava-se reconstituir todos os traços do passado. No século XIX, com o Romantismo, primou-se pela descoberta da ‘verdadeira revivecência do passado’. No final daquele século, buscar-se-ia analisar a ‘história verdadeira’ a partir dos documentos oficiais. Depois de 1945, Bouvines

28 DUBY, G. Idade Média. Idade dos homens, do amor e outros ensaios. São Paulo, Companhia das

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seria totalmente esquecida, e em seu lugar seriam rememoradas, nos livros e manuais didáticos, as batalhas de Crécy e de Marignan. Portanto, ao demonstrar que aquela batalha não era apenas de homens, mas também entre religiões greco-romanas e cristãs, Atenas versus Deus, e a maneira como se daria o processo de rememoração e esquecimentos, o autor visava rever a importância de tal acontecimento, num momento em que ele próprio estava sendo esquecido pelo povo francês, no século XX. Donde, a importância de reconstituir os momentos decisivos do processo, revisitar criticamente suas principais fontes e demonstrar as disputas pelo poder que mediavam os usos do passado, ao forjar a ‘memória coletiva’ sobre o acontecimento, a batalha do

Domingo de Bouvines29.

Em 1952, foi lançado postumamente o livro O ano mil pela editora e livraria Armand Colin, na França, de Henri Focillon (1881-1943), resultado de seus cursos ministrados na França e nos Estados Unidos, entre os anos de 1930 e 1940. Nele, o autor propôs estudar o problema dos terrores provenientes do ‘milenarismo’, cujos estudos apocalípticos representavam parte significativa dos testemunhos da época, para os quais o autor se deteve com maior atenção aos oferecidos por Raul Glaber. Dedicou-se a mostrar de que maneira estava sendo construída a paisagem histórica do Ocidente durante esse período, circunstanciando o pontificado de Gerberto de Aurillac, bem como o império de Otão III. Para ele:

A história não é o devir hegeliano. Não se assemelha a um rio que transportasse à mesma velocidade e na mesma direcção os acontecimentos e os resíduos de acontecimentos. É até a diversidade e a desigualdade das correntes que constituem propriamente o que chamamos História. Deveríamos antes pensar numa sobreposição de camadas geológicas, diversamente inclinadas, por vezes interrompidas por fendas bruscas, e que num mesmo lugar e num mesmo momento nos permitem distinguir várias idades da Terra, de modo que cada fracção do tempo decorrido é simultaneamente passado, presente e futuro30.

A esse aspecto, completa informando que: “é muito raro a História ser absoluta e rigorosamente contemporânea de si mesma, pois como mostrei é sem dúvida sobreposição de correntes muito desiguais em intensidade, velocidade e duração”. Parte da constatação de que a “ideia do fim do Mundo aparece em

29 DUBY, G. O Domingo de Bouvines – 27 de julho de 1214. São Paulo: Paz e Terra, 1993a.

30 FOCILLON, H. O ano mil. Tradução de Adelino dos Santos Rodrigues. Portugal: Edições

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quase todos os povos antigos como elemento fundamental da sua religião ou da sua filosofia, bem como a ideia do renascimento glorioso e o tema da periodicidade milenária”. Por sua vez, a paisagem histórica deste período é ainda “uma paisagem florestal, como no século X”, e os “acontecimentos políticos que se verificam no Ocidente no ano 1000 não têm menor influência no futuro da Europa”31. Nesse sentido, progresso e regressão, linearidade e

circularidade histórica, agrupavam-se dialeticamente ora em tensão, ora se complementando.

Em 1967, num livro de mesmo título, Georges Duby, apoiando-se em parte dos argumentos de Focillon, demonstrou, com um mosaico de fontes documentais e literárias, como as pessoas que viveram pouco antes, pouco depois, do ano mil criaram certas expectativas sobre o fim dos tempos, preveniram os homens sobre sua conduta na Terra e prescreveram caminhos para que a humanidade se reencontrasse com Deus. Ainda que a obra traga apenas uma fonte apocalíptica, e as outras indiquem mais expectativas “entre os anos vizinhos de 980 e os de 1040”32, o autor trouxe toda a paisagem mental

que permeou aquela época, constituindo-se num momento de reestruturação da cristandade ocidental, tanto como da política e da economia que dariam base a ‘sociedade feudal’, nos séculos XI e XII. Para ele:

Santo Agostinho, Dionísio o Areopagita e Gregório Magno são, de facto, os autores fundamentais em que se baseia, nos claustros do Ano Mil, o esforço de elucidação do mistério, e o que leva a meditação a atingir as iluminações divinas. Adalberão refere-se a eles para definir as duas características mais importantes da Jerusalém Celeste, essa morada radiosa que, no fim do mundo, a humanidade ressuscitada contemplará: ela está disposta em hierarquia como a cidade terrestre; ‘morada dos anjos’, está completamente aberta aos mortais que caminham para ela, porque, no plano divino a comunicação deve finalmente estabelecer-se entre as duas partes do universo33.

Por sua vez, “os esquemas milenaristas ainda não perderam completamente, na nossa época, o seu poder de sedução na consciência colectiva”34, o que também justificava tal empreendimento, circunstanciando

relações entre passado e presente, ‘sociedade feudal’ e ‘sociedade

31 Idem, p. 13, 45, 75, 98.

32 DUBY, G. O ano Mil. 2ª Edição. Lisboa/Portugal: Edições 70, 1993c (1ª ed. 967), p. 10. 33 Idem, p. 69-70.

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contemporânea’35. Essa questão é igualmente aferível ao nos deslocarmos para a

virada do ano 1000 para o ano 2000, no qual o ano de 1999 instigou a publicação de várias obras sobre o tema36. Em vista de tal ensejo, também Georges Duby37,

em meados da década de 1990, aproveitaria a circunstância, a convite de Michel Faure e François Clauss, para livremente, por meio de uma entrevista, retomar o tema do ‘milenarismo’, e comparar os medos do ano 1000, com os do ano 2000. Para ele, ainda que destaquemos as diferenças e as especificidades de cada momento, assemelham-se grandemente na forma como pensaram os medos: da miséria, do outro, das epidemias, da violência e do além. Contudo:

Estou certo de que existia, ao término do Primeiro Milênio, uma espera permanente, inquieta, do fim do mundo, porque o Evangelho anuncia que Cristo voltará um dia, que os mortos ressuscitarão e que ele fará a escolha entre os bons e os maus. Todo o mundo acreditava nisso e aguardava o dia da cólera que provocaria, evidentemente, o tumulto e a destruição de todas as coisas visíveis. No Apocalipse, lia-se que, quando mil anos tivessem decorrido, Satã seria libertado de suas correntes e viria, então, o Anticristo38.

A ideia de ‘solidariedade’ sobrepunha-se, naquela sociedade, ao nosso ‘individualismo’. Os homens viviam em bandos. Além disso:

A grande diferença com relação à Idade Média é que a Europa da época feudal não era como hoje uma região pouco povoada, cercada de espaços exteriores muito cheios, suscetíveis de precipitar-se sobre ela. Era o inverso. A Europa estava em plena progressão demográfica, em plena expansão; era ela que transbordava. De fato, muito rapidamente a Europa estendeu-se para o leste, até os confins do Báltico, pela cristianização das tribos eslavas, pagãs. Ela estendeu-se em direção ao

35 Para maior detalhamento dessa questão ver: DOBRORUKA, V. História e Milenarismo: ensaios sobre tempo, história e o milênio. Brasília: Ed. UNB, 2004. Para ele: “Ainda que se possa estender a

genealogia das concepções ocidentais sobre o sentido da história até muito longe, no antigo Oriente Próximo, em termos mais imediatos nossa concepção da história como processo tem origem medieval, na obra de um abade calabrês que se tornaria famoso pela agudeza das suas reflexões sobre o sentido da história” (p. 77), que foi Joaquim de Fiore (1132-1202).

36 FRANCO Jr., H. O ano 1000 – Tempo de medo ou esperança? São Paulo: Companhia das Letras,

1999; LACEY, R.; DANZIGER, D. O ano 1000: a vida no final do primeiro milênio. Tradução de Alfredo Barcellos Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro: Campus, 1999.

37 DUBY, G. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. Tradução de Eugênio Michel da Silva.

São Paulo: Edunep, 1997a (1ª ed. 1995).

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sul, pela reconquista da Espanha, a liberação do sul da Itália, da Sicília, a instalação, por um momento, no Magrebe. Houve, até mesmo, uma tentativa de expansão mais longínqua, para Constantinopla, que foi conquistada, e para a Terra Santa, a Síria e a Palestina. Os europeus daquele tempo jamais se sentiram em situação de ser submersos por uma onda demográfica vinda de outro lugar, exceto diante das hordas mongóis que vinham dos confins da Ásia e traziam consigo o terror39. O essencial naquela época era, para o autor:

[…] garantir a graça de Deus. Isso explica o poder extraordinário da Igreja, dos servidores de Deus na terra, pois o Estado, tal como o concebemos hoje, não existia. O direito de comandar, fazer justiça, proteger, explorar o povo dispersava-se entre vários pequenos núcleos locais. […] O que diferencia mais claramente a civilização europeia das outras é que ela é essencialmente historicizante, ela se concebe como estando em processo. O homem do Ocidente tem o sentimento de que progride em direção ao futuro e, assim, ele é muito naturalmente levado a considerar o passado. O cristianismo, que impregnou fundamentalmente a sociedade medieval, é uma religião da história. Proclama que o mundo foi criado num dado momento e que, num outro, Deus fez-se homem para salvar a humanidade. A partir disso, a história continua e é Deus quem a dirige. Para conhecer as intenções divinas é necessário, portanto, estudar o desenrolar dos acontecimentos. É isso o que pensavam os homens cultos, os intelectuais daquela época, ou seja, os membros da Igreja. Todo o saber estava em suas mãos. Um monopólio exorbitante. […] Somente os servidores de Deus sabiam escrever e ler, e consideravam como seu dever explicar a história, de maneira a nela detectar os sinais de Deus. Estavam convencidos de que não há barreiras estanques entre o mundo real e o sobrenatural, que existem sempre passagens entre ambos e que Deus se revela naquilo que Ele criou, na natureza, mas também na maneira pela qual orientou o destino da humanidade40.

Por intermédio dessas comparações, o autor demonstrava que, ainda que o progresso material e espiritual, assim como considerar a história em processo, fosse a marca da civilização ocidental, tanto no período medieval quanto no contemporâneo, este não era totalmente linear, constante e ascendente. Em linhas gerais, esse foi o contexto social no qual a obra de Georges Duby

39 Idem, p. 68. 40 Idem, p. 15-17.

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procurou repensar as ideias de progresso, linearidade, desenvolvimento e leis gerais, as quais as ‘filosofias da história’ procuravam prescrever de que maneira se desenrolariam os processos históricos entre o passado, o presente e o futuro41. Como vimos, na medida em que se distanciava criticamente do

marxismo e se aproximava de uma abordagem antropológica das estruturas mentais e culturais dos homens e dos grupos do passado, mais o autor também se afastava de um entendimento que prescrevia somente o progresso na história, vendo-o mais em constante tensão com retrocessos, redefinições e alteração de caminhos.

Se “a principal função do discurso histórico sempre foi divertir” e a “maioria das pessoas lê história para relaxar e sonhar”42, como indicaria o autor

em A história continua, vale destacar que o próprio caminho que o levou a tal constatação não foi nem simples, nem tão pouco linear. Foi justamente a partir do momento em que passou a se debruçar com maior atenção nas fontes literárias, e com elas reconstituir a história da ‘sociedade cavaleiresca’, que ele iniciaria sua crítica aos fundamentos da escrita da história, em fins dos anos de 1960. Contudo, apenas quando verificou os principais aspectos do milenarismo, no ano 1000 e, depois, entre o ano 1000 e o ano 2000, que sua interpretação do processo histórico destacaria de modo mais sistemático a inevitável relação entre linearidade, retrocesso e circularidade nas ações dos grupos e dos indivíduos no tempo. Vale, nesse aspecto, apresentar sua análise da exploração do medo da violência, entre o período medieval e o contemporâneo:

A sociedade medieval vive, morre e se diverte com uma grande brutalidade. Os camponeses preferem ver os cavaleiros partirem em cruzada ou matarem-se nos torneios a vê-los saquear as colheitas e

41 No início dos anos 1940, foi publicado postumamente o livro: A ideia de Históriade Robin

George Collingwood (1889-1943). Nele o autor destacaria que: “A expressão ‘filosofia da história’ foi inventada, no século XVIII, por Voltaire, que entendia por tal nada mais do que a história crítica ou científica, um tipo de pensamento histórico em que o historiador resolvia por si próprio, em vez de repetir quaisquer histórias encontradas em alfarrábios. A mesma expressão foi usada por Hegel e outros escritores, em fins do século XVIII, dando-lhes eles, porém, um sentido diferente, ao considerá-la simplesmente como história universal. Encontra-se um terceiro emprego dessa expressão em vários positivistas do século XIX, para quem a filosofia da história era a descoberta das leis gerais que regem o curso dos acontecimentos que devem ser referidos pela história” (1981, p. 9). As três definições, mesmo que consideremos suas especificidades, entendem por ‘filosofia da história’ uma interpretação do processo histórico a partir de um fim previamente estabelecido, embora em um tempo não determinado, quer dizer, “como demonstração de um sentido, de uma direção única e inexorável do trajeto da humanidade ao longo do tempo em direção a um fim [...], seja ela religiosa ou materialista [...] [e] opera com a idéia de término do processo histórico em um ponto ideal de chegada para a humanidade” (MANOEL, 2004, p. 13).

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espoliar os vilarejos. Pois a grande insegurança no ano 1000 é sustentada por esses bandos de cavaleiros [...]. Violências, no entanto, menos destruidoras do que as carnificinas contemporâneas de Verdun a Stalingrado 43.

As fontes literárias que estiveram em O ano 1000, Domingo de Bouvines,

Guilherme Marechal e na trilogia sobre As damas do século XII, como os principais

documentos analisados pelo autor, foram interpretadas não porque constituíssem uma fonte fidedigna sobre a ‘realidade do passado’, tão pouco pela sua racionalidade, imparcialidade e objetividade, mas porque restaram como o ‘melhor testemunho’. Evidentemente, elas mesclavam realidade e imaginação, o acontecido e o imaginado, mas não era menos certo que o próprio período, envolvido pelas questões terrenas e divinas, também se fazia em meio a tais dilemas. Por outro lado, para o autor, uma coisa é a literatura cavaleiresca e outra totalmente distinta a literatura burguesa, que passaria a ser produzida a partir do final do século XVI, seja em função dos temas e da descrição das cenas, seja em função da escolha e caracterização das personagens envolvidas no drama. Se por suas escolhas, as obras do autor podem ser lidas como um romance, sem dúvida, não são nem romance histórico, cujas regras o autor não deixaria de lado, nem romance de cavalaria, haja vista que a pesquisa histórica tem suas próprias regras. Mesmo discordando de parte dos fundamentos que se tornaram canônicos, a partir do final do século XIX, na pesquisa histórica, em sua obra, Georges Duby procurou demonstrar que tanto o discurso quanto a pesquisa histórica só ganhariam ao não se limitarem a essas regras, que deixavam de lado uma questão crucial ─ os fundamentos da própria escrita da história. Melhor dizendo, a retórica, a estilística, a gramática ficavam em segundo plano, em função da objetividade, da imparcialidade e da cientificidade a que o discurso deveria atingir. O que o autor demonstrou em seus livros é que o historiador nada perde ao dar maior atenção a essas questões, já que uma das principais funções do historiador, além de reconstituir a ‘memória coletiva’ das sociedades, está em analisar, (re)construir e efetuar uma constante manutenção das identidades coletivas do passado e do presente.

Ao nos debruçarmos em seu Guilherme Marechal, o autor destacou que o “principal é que ele [Guilherme] não se esqueça de nada”44, por que deve

“restituir tudo o que tomou, as presas que fez por cobiça, se quer escapar, na outra vida, dos tormentos”45. Assim como Guilherme, a escrita da história e

também o historiador carregam um pouco esse traço, pois, na medida em que cala, o historiador reproduz a memória do vencedor e deixa de lado o

43 Idem, 1997a, p. 98 – 99. 44 Idem, 1987, p. 26. 45 Idem, 1987, p. 27.

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testemunho daqueles que foram silenciados no passado. É, muitas vezes, nas lacunas deixadas pelas fontes oficiais, que as literárias podem ser cotejadas, inquiridas e utilizadas pelo historiador, até a contrapelo como cogitava Walter Benjamin, para fazer ressurgir os silenciamentos, retomar as relações de força, averiguar as tensões dos testemunhos, a elaboração da memória coletiva e as circunstancias em que aqueles discursos foram produzidos. Porque:

Dentre seus mais altos méritos, o texto que utilizo tem o de lançar viva luz sobre o jogo dos poderes nesse estágio superior da sociedade que chamamos feudal. No final do século XII, sabe-se que os homens dados à reflexão pensavam essa sociedade tal como pensavam o conjunto do universo visível e invisível. Isto é: cimentada pelo que os clérigos chamavam de caritas, e a língua das cortes de ‘amizade’, sustentada pela ‘fé’, outra palavra-chave a evocar uma combinação de confiança e fidelidade. Nessa relação efetiva, geradora de deveres e direitos, assentava a coesão de um edifício hierarquizado, construído de finíssimas folhas superpostas; tudo estava em ordem e tudo se conformava às intenções de Deus, quando os homens (ninguém prestava muita atenção às mulheres, as quais constituíam uma outra espécie, subordinada por definição), estabelecidos em tal ou qual nível, viviam juntos na concórdia, serviam fiel e lealmente os que estavam logo acima deles e recebiam serviço adequado por parte dos seus inferiores imediatos. A ordem assim se mostrava fundada numa combinação de desigualdade, serviço e lealdade. Se ela situava em um bloco acima de todos os outros leigos essa parte da sociedade formada pelos fidalgos, por outro lado distinguia na classe dominante múltiplas estratificações, simultaneamente determinadas pelas relações de domesticidade, que garantiam a autoridade do chefe de família sobre toda a gente de sua casa, pelas relações de parentesco, que subordinavam os caçulas aos mais velhos e a geração dos moços a dos anciãos, pelas relações de vassalagem, que alçavam o senhor sobre quem lhe prestava homenagem, pelas relações políticas, finalmente, pregadas sobre a hierarquia das homenagens, formando uma pirâmide cuja base eram os meros cavaleiros; o ápice, o rei; e os barões, o nível mediano. Esses diferentes sistemas de dependência interferiam muitas vezes uns nos outros, suas disposições chegavam a se contradizer, mas sempre a amizade obrigava (com rigor maior ou menor, dependendo da proximidade dos homens e da qualidade de sua relação) ao serviço mútuo, ao auxílio, ao conselho, se traduzia em dois eixos perpendiculares: num plano horizontal, ela mantinha a paz entre os pares; num vertical, ela forçava à reverência face aos superiores, à benevolência pelos inferiores46.

46 Idem, 1987, p. 182-84.

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Mas, se a fonte literária dá vividez ao discurso e conserva os traços da mentalidade da época47, o historiador não pode deixar de lado outros

testemunhos. Somente o cruzamento das fontes permite um melhor cotejamento do passado. E esse era o objetivo do autor ao incluir a fonte literária no corpus possível de ser utilizado pelo historiador48.

No final da década de 70, Alain Guerreau49 pensou a estruturação de

uma ‘longa Idade Média’ na civilização ocidental. De início, apresentando certo distanciamento crítico de tal definição, Jacques Le Goff50 ao poucos tem se

aproximado e concordado com a avaliação de Guerreau sobre esse período, e as raízes profundas que fincou sobre a Europa contemporânea. Já nos anos de 1950 e 1960, embora com um jargão distinto, Georges Duby, pautando-se em Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel, teve a mesma sensibilidade ao interpretar a ‘sociedade medieval’, e destacar quais os laços que a aproximariam e as rupturas que a distanciariam da sociedade contemporânea.

Ao perceber a importância da literatura, como fonte primordial para a compreensão das sociedades do passado, tendo em vista que esta não reproduz a ‘realidade’, mas é produzida a partir dela, o autor demonstraria quais canteiros da pesquisa histórica poderiam ser abertos com esse tipo de documentação, por também permitir que fossem repensadas as representações da morte, o papel da mulher e a organização da ordem cavaleiresca na sociedade medieval. Ao inquirir as mudanças do ano 1000 e, depois, do ano 2000, além de comparar as diferentes projeções quanto às representações e às apropriações do ‘milenarismo’, ainda perscrutaria de que maneira cada momento reviu seus valores, se aproximou e se distanciou, na constituição de seus medos. Ao rever o papel das ‘filosofias da história’, demonstrou que o progresso não era linear, que sua estrutura mantinha uma tensão constante com formas alternativas, inclusive, de regressão, seja no aspecto material quanto no espiritual.

47 Como indica a passagem: “A intenção era a de manter o defunto presente através de palavras.

Mas não, como nas imagens associadas ao culto funerário, apresentando-o em retrato estático, descrevendo com exatidão e minúcia os traços peculiares de sua fisionomia, de sua silhueta, representando o herói através de sua pessoa física”. Idem, 1987, p. 40-1.

48 Se não se encontra uma discussão direta nos textos do autor sobre o impacto da ‘virada

linguística’ sobre a ‘escrita da história’, em vários momentos de sua obra procurou responder aos dilemas colocados por aquele movimento, em especial, no que diz respeito a texto e contexto, realidade e ficção, história e romance. Cf. COSTA, Op. cit, 2010; ODÁLIA, Op. cit, 1994; RIBEIRO, Op. cit, 2002.

49 GUERREAU, A. O feudalismo. Um horizonte teórico. Portugal: Edições 70, 1980.

50 LE GOFF, J. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão (et. al.) – 4ª edição – Campinas:

Ed. Unicamp, 1996; LE GOFF, J. A velha Europa e a nossa. Tradução de Regina Louro. Lisboa/Portugal: Ed. Gradiva, 1995.

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Portanto, seja questionando a estrutura funcional (os que ‘rezam’, os que ‘guerreiam’ e os que ‘trabalham’), a organização dos papéis (inclusive, os sexuais), o estabelecimento da ordem, a produção da arte e os rituais de representação do além e da morte, a obra de Georges Duby foi um marco para os estudos medievais no século passado, contribuindo de modo definitivo para que fossem definidas a sociedade cavaleiresca, o papel da Igreja e a função dos servos e camponeses, que formaram a ‘sociedade medieval’ da civilização do ocidente cristão.

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