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O funcionário fascinado

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Academic year: 2020

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Gustavo Bernardo K R A U S E1

• RESUMO: Reflexão filosófica sobre o sujeito no final do século. A transformação do sujeito em funcionário fascinado. A necessidade da ironia.

• PALAVRAS-CHAVE: Fenomenologia; sujeito; Vilém Flusser.

A representação do sujeito nesse século que se esvai destaca-se tanto na literatura quanto na filosofia. Gostaria de me apoiar prioritariamente, no artigo que ora se inicia, na r e p r e s e n t a ç ã o filosófica. C o m e ç o recorrendo a uma pequena piada, contada por Ortega Y Gasset em A rebelião das massas.

Um cigano foi se confessar; mas o padre, por precaução, começou por perguntar se ele sabia os dez mandamentos da lei de Deus. O cigano respondeu: "bem, padre, eu ia aprender, mas ouvi um zumzumzum de que eles iam cair". (1987, p.147).

Para n ó s , o cigano parece bastante familiar. Escutamos (ou proferimos) frases muito semelhantes, em r e l a ç ã o tanto às menores quanto às maiores coisas. Alunos, por exemplo, costumam desculpar-se de n ã o usar o trema com o mesmo argumento do cigano: "mas não estão dizendo que vai cair?". Certo, o trema n ã o é t ã o importante. Mas motoristas, com aparência de cidadãos responsáveis, desculpam-se de não cumprir o c ó d i g o de trânsito "porque o Estado n ã o faz a sua parte", isto é, n ã o coloca a polícia na rua para melhor reprimi-los.

Ortega se referia ao europeu da segunda d é c a d a do s é c u l o : " h á um rumor de que os mandamentos europeus j á n ã o valem mais e, em vista disso, as pessoas -homens e povos - aproveitam a o c a s i ã o para viver sem imperativos". Naquele momento, ele percebia algo insalubre acontecendo na Europa. A festa da liberdade, correlata à d e s m o r a l i z a ç ã o dos poderes, das nações e das classes dominantes, n ã o só dura pouco como parece antecipar uma ressaca extremamente perigosa, retorno amplificado da noite de S ã o Bartolomeu.

Ortega, como Kafka em O processo, via a besta no horizonte p r ó x i m o . Observava que os e q u í v o c o s do poder, que as violências do poder, n ã o podiam justificar o avesso da força, que no f i m t a m b é m é força - sem controle. Sem mandamentos, sem imperativos, a vida transtorna-se em disponibilidade, formando g e r a ç õ e s isentas de

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determinada - é cumprir u m encargo - , e na medida em que nos esquivamos de p ô r nossa vida a serviço de alguma coisa esvaziamos nossa existência".

Todos os éticos, desde o recado a N i c ô m a c o , tecem v a r i a ç õ e s em torno do imperativo fundamental: "ser o que se é". A necessidade deste imperativo só se explica, primeiro, porque é muito difícil ser o que se é (antes, foge-se dos encargos do tempo e do próprio caráter, por uma sucessão de d e n e g a ç õ e s políticas e psicológicas), e segundo, porque n ã o se delibera, consciente e voluntariamente, o que se é. Para "liberar" o indivíduo de ser o que é (que implica a necessidade de descobrir e formular o que se é), o século (ou o capitalismo, se quisermos) estabelece níveis, degraus, patamares, distribuindo os c i d a d ã o s "generosamente" nestes leveis.

Em seu arqui-conhecido texto sobre a indústria cultural, Adorno e Horkheimer comentam como se acentuam as distinções para melhor garantir a indiferenciação. Os a u t o m ó v e i s da Chrysler e da General Motors "fingem" que s ã o diferentes, assim como os filmes da Warner Brothers e da Metro G o l d w i n M a y e r " f i n g e m " que concorrem entre si - and the Oscar goes to the System. Trazendo a c o m p a r a ç ã o automobilística para os termos artísticos, a obra medíocre sempre se ateve à semelhança com outras, preocupada com sua identidade. A indústria cultural precisa da obra medíocre não apenas em função da quantidade, se a obra-prima é por definição rara, mas t a m b é m por colocar a imitação como algo absoluto. O estilo da indústria cultural é ao mesmo tempo a n e g a ç ã o do estilo, simultaneamente negando o grande artista - que, não sendo epígono nem formando escola, acolhe "o estilo em sua obra como uma atitude dura contra a expressão caótica do sofrimento, como verdade negativa" (1986, p. 116-22). O grande artista é, enquanto faz, ao mesmo tempo, o seu tempo ser.

O texto "a indústria cultural", datado de 1947, deve ser lido hoje com certa reserva. A sua extrema agressividade, se eficiente para demolir o objeto da crítica, por outro lado compromete o argumento, caracterizando um pensamento apocalíptico que tem prazer em jogar-se no abismo do próprio discurso. Por isso, faz-se necessário o contraponto com Ortega e com outro filósofo: V i l é m Flusser. Flusser, tcheco naturalizado brasileiro, que escrevia indistintamente em p o r t u g u ê s e em a l e m ã o , explorando a fenomenologia de origem husserliana, possui uma marca de estilo que pouco se percebia em Ortega, e de que mal há sombra em Adorno: a ironia. É a ironia, como pretendo demonstrar mais adiante, que vai preservar o pensamento crítico do caráter apocalíptico, assim como a paródia, entre outras técnicas de narrador, de ficcionista, teria preservado o pensamento de Nietzsche.

Observe-se esta passagem, do primeiro l i v r o de Flusser:

A grande conversação da qual participamos e que é toda a realidade vem do nada e trata do nada. Entretanto esta afirmação não tem mais, a esta altura da

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discussão, nenhum sabor de derrota ou de desespero. O nada, longe de ser um conceito vazio e negativo, torna-se um superconceito sinônimo do indizível. Reformulando, portanto, podemos dizer que a grande conversação que somos surge do indizível e trata do indizível. Creio que com esta frase ficou delimitado o território da língua. Esta frase, que é uma tentativa de formular um pensamento que já quase não é mais pensamento, esta frase que tende, pois, a superar-se a si mesma, aniquilando-se nessa tentativa, parece ser, por isto mesmo, paradoxal, de um lado, e tautológica, do outro. Que a conversação, vem do indizível e dele trata parece paradoxal porque parece dizer que a conversação discute o indiscutível. E parece tautológica porque parece dizer que a conversação significa algo além de si, a saber, o significado. Sendo, entretanto, indizível sinônimo de nada, o paradoxo e a tautologia aparentes da frase se dissolvem. Para quem acompanha o argumento atenta e pacientemente, deve ter-se tornado claro que seus dois pólos, entre os quais ele oscila, são justamente o paradoxo e a tautologia. Necessariamente, porque é um argumento que vibra entre os dois horizontes da língua. Chocando-se contra um, torna-se aparentemente paradoxal. Aí volta-se e choca-se contra o outro, tornando-se aparentemente tautológico. Contudo no processo da oscilação progride. (1963, p.142)

Essa f o r m u l a ç ã o mostra que a ironia, associada à errância, à o s c i l a ç ã o referida, fazem do "nada" e da n e g a ç ã o uma d i m e n s ã o sine qua non (sem trocadilho) da filosofia. Eis o que protege o pensamento do "apocaliptismo". Verdade que um pouco de ironia e n c o n t r á v a m o s em Ortega, quando ele afirmava n ã o ser "totalmente por acaso que a lei de L i n c h é americana, j á que os Estados Unidos são, de certo modo, o p a r a í s o das massas". Dizia que, quando a massa atua por si mesma, só o pode fazer de um modo: pelo linchamento. O triunfo das massas é o próprio triunfo da violência. Quando o protagonista n ã o tem mais e s p a ç o , porque o coro retumbante ocupou todo o palco, o patriota pega em armas e, para defender a b s t r a ç õ e s e interesses alheios, mata quem n ã o conhece, ou morre nas m ã o s de quem n ã o o conhecia. E o que j á assustava Ortega.

Por toda parte tem surgido o homem-massa de que este livro trata, um homem feito de pressa, montado simplesmente sobre poucas e pobres abstrações e que, por isso, é idêntico de um extremo a outro da Europa. A ele se deve o triste aspecto de asfixiante monotonia que a vida vai tomando em todo o continente. Esse homem-massa é o homem previamente esvaziado de sua própria história, sem entranhas de passado e, por isso mesmo, dócil a todas as disciplinas chamadas "internacionais". Não é um homem, é apenas uma forma de homem constituída por meros idola fiori; carece de um "dentro", de uma intimidade própria, inexorável e inalienável, de um eu que não se possa revogar. Eis porque está sempre disposto a fingir que é alguma coisa. Só tem apetites, pensa que só tem direitos e não acha que tem obrigações: é um homem sem obrigações de nobreza - sine nobilitate - snob. (1987, p. 12)

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Para o filósofo espanhol, ao c o n t r á r i o do que se costuma pensar, a nobreza define-se pela e x i g ê n c i a , pelas o b r i g a ç õ e s , n ã o pelos direitos: noblesse oblige. C i t a Goethe, para quem " v i v e r à vontade é de plebeu: o nobre aspira à ordem e à l e i " . Qualquer s e m e l h a n ç a com Nietzsche e seu elogio a r i s t o c r á t i c o do guerreiro nobre, em o p o s i ç ã o à l a s s i d ã o burguesa e c r i s t ã , n ã o é mera c o i n c i d ê n c i a , uma vez que, para ambos, nobre n ã o é aquele que herdou u m t í t u l o e u m castelo, mas aquele que se fez conhecer por sobressair da massa a n ô n i m a , pelo seu e s f o r ç o , pela sua coragem, pela sua obra: res severa verum gaudium. O u : "a severidade é a verdadeira alegria".

Flusser se apropria dessas idéias n ã o as dissociando da sua c o m p r e e n s ã o da língua. Toda formulação, lingüística, filosófica ou política, tenderia a ser paradoxal ou tautológica, conforme a circunstância do discurso. A crítica, humana, ao ser humano, roda de volta como um bumerangue, parecendo incorrer, no limite, em uma petição de p r i n c í p i o ; em um c í r c u l o viciado. Ou é tautológica, reafirmando, sem o querer, o que critica, ou é paradoxal, quase non sense. como todo pensamento que tenta se pensar, ou toda serpente que tenta se devorar.

Huang-Po, mestre zen, alerta: "permiti-me lembrar-vos que o percebido n ã o pode perceber". Seng Ts'an diz o mesmo, com mais humor: "se teu espírito é objeto de trabalho para o teu espírito, como evitarás uma tremenda c o n f u s ã o ? " Por isso os mestres zen insistem t a m b é m , como a fenomenologia, na s u s p e n s ã o do discurso, contentando-se, por meio de perguntas-respostas abruptas, em apontar, t ã o - s o m e n t e , alguma direção (Varenne, 1986, p.77). A fenomenologia e a mística oriental aproximam-se pelo humor e pelas perguntas-respostas abruptas que, antes de determinarem um caminho, exploram caminhos. A diferença, entre as duas maneiras de caminhar, é grande.

O humor fino de Vilém Flusser vai ver o homem-massa de Ortega de outro modo. E n x e r g a r á , nele, um funcionário (retomando termo de Nietzsche, que o usava para desqualificar Kant e sua filosofia), e um funcionário fascinado. Para chegar a enxergar, e portanto filosoficamente construir, o funcionário, Flusser assume a postura de olhar o vale do alto da montanha, panoramicamente, para e n t ã o c o m e ç a r a descer, cuidadosamente (qualquer s e m e l h a n ç a com Zarathustra t a m b é m n ã o nos parece mera coincidência). Descortina, assim, a paisagem do funcionário fascinado.

Essa visada se mostra no seu ú l t i m o livro publicado ainda em vida, Gesten. O primeiro c a p í t u l o desse l i v r o se encontra traduzido para o p o r t u g u ê s e publicado na coletânea Literatura e sistemas culturais, de onde retiro as p r ó x i m a s citações. Flusser divide, ali, o pensamento em três movimentos e a história em três partes, articulando as duas d i v i s õ e s : o pensamento toma as formas da ontologia, da deontologia e da metodologia: " A ontologia se ocupa do problema de como é o mundo, enquanto que a deontologia cuida de como ele deveria ser e a metodologia, da maneira de transformá-lo. Estas q u e s t õ e s se e n t r e l a ç a m . " A ontologia, propriamente metafísica, cuida do

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ser; a deontologia, cuidando do dever-ser, implica a ética; a metodologia equivale ao estudo da técnica, ou das técnicas.

Ele compreende a história como um desenvolvimento desta d i v i s ã o tripartite, mas em outra ordem. Durante sua primeira fase (na a n t i g ü i d a d e e na idade m é d i a ) , a história estaria insistindo no dever-ser do mundo. Quer dizer, se trabalharia por realizar um valor desde uma perspectiva ética, política, religiosa e prática; em uma palavra, se trabalharia "de b o a - f é " . Durante a segunda fase (na idade moderna), a história acentuaria o descobrimento do ser do mundo. D i t o de outro modo: se trabalharia em forma e p i s t e m o l ó g i c a , científica, experimental e teórica; em resumo, "sem fé". E durante sua fase terceira (no presente), a história passa a insistir no m é t o d o , o que significa que se trabalha em um plano técnico, funcional, eficiente, estratégico e c i b e r n é t i c o , que é o mesmo que dizer, "cheio de d ú v i d a " , ou: "desesperado". A o longo da primeira fase prevaleceriam as perguntas teleológicas ("para q u ê ? " ) , durante a segunda fase as causais ("por q u ê ? " ) e no curso da terceira as perguntas formais ("como?"). Deste modo, a história nos oferta três modelos de trabalho: o trabalho c l á s s i c o (comprometido), o trabalho moderno (investigador) e o trabalho presente (funcional).

Entretanto: "a maior parte da humanidade n ã o trabalha. Serve ao trabalho de outros como instrumento". Como se vê, o seu conceito de "trabalho" é bastante p r ó x i m o ao marxista. Entende "trabalho" como transformação consciente da matéria e da natureza que, por sua vez, transforma quem trabalha. O homem que trabalha a madeira (ou na madeira) transforma-se em carpinteiro, quiçá artesão, ou artista da goiva. A pessoa que escreve n ã o colhe suas idéias do p o ç o da i n s p i r a ç ã o , mas antes produz as idéias no ato mesmo de dizê-las, de lhes dar forma e verbo, verbo este que, em c o n s e q ü ê n c i a , transforma o sujeito na pessoa que e n t ã o " t e m " aquelas idéias (e, quiçá, aquele estilo). No entanto, são poucos os carpinteiros. S ã o poucos os escritores. H á muitos operários de marcenaria, operando máquinas. H á muitos escrivãos copistas (que nunca leram Bartleby, logo, nunca disseram: " I prefer not t o . . . " ) . O paralelo pode-se fazer com todas as profissões humanas do final do s é c u l o . De acordo com o conceito de trabalho como t r a n s f o r m a ç ã o da natureza que transforma, ao mesmo tempo, quem trabalha, de fato a maior parte da humanidade n ã o trabalha, porque está servindo ao trabalho de outros como instrumento. Confunde-se com as engrenagens, atrapalha-se com o teclado do computador.

N ã o transforma. N ã o se transforma.

Essa parte da humanidade s ó participa da história de forma passiva: em outras palavras, apenas a sofre. Apenas sofre. N ã o manifesta o desejo de querer saber como é o mundo, muito menos como ele deveria, ou poderia, ser. Donde, nem sequer lhe ocorre a idéia de que se poderia mudar o mundo. Porque nem sequer lhe ocorre esta idéia, pode respaldar o otimismo curioso que caracteriza a idade moderna: g r a ç a s ao progresso e, principalmente, à fé no progresso, acredita-se piamente que algumas

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m á q u i n a s "quase" inteligentes substituirão o trabalho humano em todos os campos, para que o homem ele mesmo se faça " l i v r e " . A c o n t r a d i ç ã o , todavia, deveria ser flagrante: a fé do homem no progresso depende da descrença do homem em si mesmo. Construímos um tempo em que ao desmesurado poder da espécie ("podemos" destruir o planeta ene vezes, mesmo que apenas uma j á fosse suficiente) corresponde o enfraquecimento acentuado do poder do i n d i v í d u o .

A revolução industrial "desembocou em aglomerações de máquinas que funcionam como acoplamentos sincronizados e complexos"; é isso que Flusser entende por "aparato". A c o n c e p ç ã o do aparato é fundamental para identificar o funcionário fascinado (ou mesmerizado). Para chegar a ela é preciso c o m e ç a r a descer o vale da história, a partir do momento em que se d á a tecnificação crescente do trabalho. Quando o aspecto o n t o l ó g i c o do trabalho se separa de seu aspecto d e o n t o l ó g i c o , aquele que triunfa é o aspecto m e t o d o l ó g i c o . N ã o mais se pergunta para que ou por que trabalhar, mas apenas "como?". Minimizam-se (como se fazem com as windows da tela do computador) o " b o m " e o "verdadeiro", maximizando-se o "eficiente". H á c o n s e q ü ê n c i a s , algumas brutais, como Auschwitz, as armas a t ô m i c a s e as diversas tecnocracias. A l i aonde o interesse se translada para a política e a ciência para o m é t o d o , "qualquer questionamento de o r i e n t a ç ã o a x i o l ó g i c a se faz " m e t a f í s i c o " , no sentido pejorativo da palavra, exatamente igual a qualquer pergunta acerca da coisa-em-si." A ética e a ontologia se convertem em discursos sem sentido.

Se a pergunta "para q u ê ? " n ã o tem sentido, o gesto do trabalho redunda absurdo. Já n ã o se trabalha para realizar um valor, ou para valorizar uma realidade, porque se funciona como " f u n c i o n á r i o de uma f u n ç ã o " , tautologicamente. Funciona-se efetivamente "como a função de uma m á q u i n a , a qual funciona como uma função do funcionário, que por sua vez funciona como função de um aparato, e esse aparato funciona como função de si mesmo."

Esse conjunto de reflexões pode parecer r o m â n t i c o , no sentido r e t r ó g r a d o do termo, manifestando saudade de um passado que nem teria existido. A fé no progresso se estaria opondo t ã o - s o m e n t e a rejeição de todo o progresso, mas n ã o : é todo o contrário disso. Quando Flusser fala das m á q u i n a s , ele n ã o as exclui - o que seria besteira. As m á q u i n a s s ã o objetos c o n s t r u í d o s para vencer a resistência do mundo. Para isso s ã o boas. A flecha paleolítica era boa para matar a rena, o arado neolítico era bom para trabalhar a terra e o clássico moinho de vento era bom para converter o trigo em farinha. Ora, nenhum problema em ver m á q u i n a s solucionando problemas. Mas h á um momento em que as m á q u i n a s elas mesmas se tornam p r o b l e m á t i c a s , criando problemas derivados da sua i n v e n ç ã o e de seu uso. As m á q u i n a s se tornam sistemas que podem servir como modelos do próprio mundo, produzindo, justamente, modelos mecanicistas do mundo (e do homem). Acrescem-se as cruciais q u e s t õ e s políticas: "quem deve possuir as m á q u i n a s ? " e "para fazer com elas, o q u ê ? " .

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Nas relações pré-industriais, a m á q u i n a se encontrava entre o homem e o mundo pelo homem elaborado. Durante seu trabalho o homem podia substituir uma m á q u i n a por outra. O homem era a constante, enquanto a m á q u i n a era a variável. Na era do aparato, o homem é que se torna o seu atributo, pois ele pode ser substituído por outro homem (ainda que p a r e ç a m continuar existindo proprietários humanos da m á q u i n a ) . A m á q u i n a se faz a constante - o homem é a variável. A pergunta "quem deve possuir a m á q u i n a ? " adquire uma nova f o r m u l a ç ã o : " h á a l g u é m , ou algo, mais além da m á q u i n a ? " .

Franz Kafka j á havia desenhado essa c o n c e p ç ã o do aparato, procurando a porta da lei e o guarda atrás do guarda atrás do outro guarda. U m aparato, decididamente impessoal e multinacional (ou, globalizado), que n ã o tem centro mas muitas e muitas ramificações, controla a tudo e a todos, do capitalista ao clochard. Agora c o m e ç a m o s a desconfiar de que a c i r c u n s t â n c i a de ser liberado do trabalho pela m á q u i n a n ã o equivale a ser o sujeito da história, mas equivale melhor a um funcionar "melhor", em forma de consumo-consumidor, como uma função do aparato.

Temos aprendido que sem o aparato e fora do aparato n ã o podemos viver - por isso um personagem como Robinson Crusoé, hoje, não faz sentido. N ã o é possível, sequer verossímil. Nossa dependência do aparato nos impede de colocar questões finalistas ou causais, "para que existe F r a n ç a ? " , ou, "por que a industrialização?", são perguntas existencialmente falsas, supondo uma transcendência a respeito dos aparatos de que nós não dispomos. Estamos limitados a formular apenas questões funcionais. Entretanto, pode-se funcionar de diferentes maneiras (o que é ironia, e n ã o consolo):

Com uma participação pessoal: deseja-se o aparato, do qual se funciona como uma função (é o caso do bom funcionário que faz carreira). No desespero: gira-se em círculos dentro do aparato, até que alguém desiste (tal é o caso do homem da cultura de massas). Com método: funciona-se dentro do aparato, ainda que alternando suas funções por feedback e conexão com outros aparatos (é o caso do tecnocrata). Com uma atitude de protesto: se odeia o aparato e se pretende destrui-lo, pretensão que o aparato recupera e transforma em seu funcionamento (é o caso do terrorista). Com enorme esperança: pretende-se desmontar lentamente o aparato, para enfraquecê-lo; em outras palavras, pretende-se reduzir a "quantidade de funcionamento" a fim de potencializar a "qualidade de vida", que automaticamente se converte em uma nova função (tais são os protetores do meio-ambiente, os hippies, etc). (1998, p.17)

Quando ao m é t o d o se incorpora o ser e o dever e quando à técnica se anexa a c i ê n c i a e a política, o absurdo a tudo invade e corrói. O m é t o d o pelo m é t o d o , a t é c n i c a como f i m e l'art pour l'art, ou seja, o funcionamento como função de uma função: temos aqui a vida pós-histórica sem trabalho. E s t a r í a m o s na pós-história (não confundir com a p ó s - m o d e r n i d a d e , conceito precário que inviabiliza muitas reflexões estéticas e políticas), porque a história é o processo em que o homem transforma o

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mundo para que seja como deve ser. Ora, se o trabalho se d e t é m , cessa t a m b é m a história. Poderia ser "bom" - a existência liberada do trabalho, a existência emancipada para a arte pela arte, a e x i s t ê n c i a do consumo e da c o n t e m p l a ç ã o - se n ã o f ô s s e m o s incapazes de representar uma vida sem trabalho nem significado.

N o seu texto mais c o n h e c i d o , t r a d u z i d o em 13 l í n g u a s , a Filosofia da caixa preta, o f o t ó g r a f o ( d i s f a r ç a d o a t r á s de uma lente grande angular) estaria assumindo, sem o perceber, o lugar do h i s t o r i a d o r da é p o c a p ó s h i s t ó r i c a -" f o t o g r a f a n d o -" as c o n t r a d i ç õ e s presentes do trabalho e da e x i s t ê n c i a . A r l i n d o M a c h a d o , em c o n f e r ê n c i a p r o f e r i d a no evento " A r t e en la Era E l e c t r ó n i c a -Perspectivas de una nueva e s t é t i c a " , realizado em Barcelona, comenta que Flusser j á dava o nome de funcionário ao u s u á r i o que l i d a c o m as m á q u i n a s f o t o g r á f i c a s e delas extrai as imagens t é c n i c a s . Para o f u n c i o n á r i o , tais m á q u i n a s s e m i ó t i c a s s ã o "caixas pretas" cujos funcionamento e mecanismo lhe escapam. As caixas parecem a m i g á v e i s (user-friend): elas podem funcionar mesmo quando o f u n c i o n á r i o que as m a n i p u l a desconhece o que se passa lá dentro ( c o m o o m o t o r i s t a pode d i r i g i r u m carro sem se preocupar c o m o f u n c i o n a m e n t o do carburador, ou da i n j e ç ã o e l e t r ô n i c a ) . O f u n c i o n á r i o d o m i n a r i a apenas o input e o output das caixas pretas. Sabe c o m o acionar os b o t õ e s e escolher, dentre as categorias d i s p o n í v e i s no sistema, aquelas que lhe parecem mais adequadas. U m a vez que pode escolher, o f u n c i o n á r i o - f o t ó g r a f o acredita estar exercendo a sua l i b e r d a d e , sem perceber que a sua escolha encontra-se p r e v i a m e n t e programada (como as famigeradas q u e s t õ e s de " m ú l t i p l a " escolha, nas escolas, escondem perversamente o fato de que o estudante n ã o tem escolha alguma, se apenas uma das falsas alternativas - falsas, porque n ã o se tratam de alternativas, mas de armadilhas - será a correta). Para produzir novas categorias, n ã o previstas na c o n c e p ç ã o do aparelho, seria n e c e s s á r i o i n t e r v i r na p r ó p r i a engenharia do d i s p o s i t i v o , reescrevendo o seu programa, ou seja: penetrar no i n t e r i o r da caixa preta e d e s v e n d á - l a .

A r l i n d o lembra que m á q u i n a s e programas baseiam-se, em geral, no poder de r e p e t i ç ã o , e o que elas repetem até a e x a u s t ã o s ã o os conceitos da f o r m a l i z a ç ã o c i e n t í f i c a . A r e p e t i ç ã o exaustiva conduz à estereotipia, à homogeneidade e previsibilidade dos resultados. A multiplicação de modelos pré-fabricados, generalizados pelo software comercial, conduz à p a d r o n i z a ç ã o e à impessoalidade, conforme se constata em encontros tipo Siggraph, onde tudo o que se exibe parece do mesmo designer ou da mesma empresa de c o m u n i c a ç ã o . De fato, n ã o é absurdo, é até mesmo desejável, que uma m á q u i n a de lavar roupas repita sempre a mesma o p e r a ç ã o técnica, que é a de lavar roupas. Mas não é a mesma coisa que se espera "de aparelhos destinados a intervir no i m a g i n á r i o , ou de m á q u i n a s semióticas cuja função básica é produzir bens simbólicos destinados à inteligência e à sensibilidade do homem."

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Flusser advertia sobre o perigo da atuação apenas do lado de fora da caixa preta. O artista, n ã o sendo capaz de inventar o seu equipamento, n ã o sendo capaz de ( d e s ) p r o g r a m á - l o , queda-se reduzido a u m operador de aparelhos, isto é, a u m f u n c i o n á r i o do sistema produtivo. Nada pode ser mais d e s c o n f o r t á v e l , para u m realizador de trabalhos de c o m p u t a ç ã o gráfica ou multimídia, do que aquela pergunta i n e v i t á v e l : "que programa v o c ê usou para fazer isso?" Este desconforto, todavia, raramente é objeto de reflexão e, em c o n s e q ü ê n c i a , de alguma ação a respeito: os aparelhos, os aparatos e os programas tornam-se perigosamente onipresentes, confundindo-se com os próprios funcionários.

T í t u l o de u m artigo seu, de 1982, " O instrumento do fotógrafo ou o fotógrafo do instrumento?", faz espelho do espelho, mantendo sob s u s p e i ç ã o a m í m e s e que se mimetiza a tal ponto que n ã o mais se a reconhece como tal. As m á q u i n a s fotográficas, instrumentos do fotógrafo, ficam progressivamente menores e mais baratas, a l é m de mais eficientes e onipresentes. Torna-se sempre mais fácil e a c e s s í v e l a sua manipulação, ao mesmo tempo em que fica muito mais difícil compreendê-las: "devido à facilidade da m a n i p u l a ç ã o os aparelhos parecem funcionar em função do homem; devido à sua complexidade parece que o homem funciona em função dos aparelhos".

Acontece que homem e aparelho se co-implicam, formando um amarrado de funcionamento: "a m á q u i n a funciona em função do fotógrafo se, e somente se, este funcionar em função da m á q u i n a " . E m outro artigo, datado de 1983, Flusser tenta responder a pergunta muito curiosa: "a imagem do cachorro m o r d e r á no futuro?" Esta pergunta antecipa as tensões entre o que chamamos "realidade" e o que chamamos "o que chamamos realidade", isto é, a r e p r e s e n t a ç ã o da realidade. Esta pergunta t a m b é m nos permite "fotografar" o fascínio do funcionário. Ele comenta, na esteira de Benjamin, que a fotografia se distingue das imagens tradicionais por duas características: foi produzida por aparelho, e é multiplicável. Estas características t ê m c o n s e q ü ê n c i a s profundas para a maneira de ser do homem e da sociedade. A o inverso das pinturas, a superfície fotográfica despreza o seu suporte ( n ã o h á tela, mas, sintomaticamente, o que existe é o "negativo"), e está livre para mudar de suporte: jornal, revista, cartaz, lata de conserva. O desprezo do suporte material caracteriza o mundo futuro das imagens, o que, por sua vez, serve de modelo estético, é t i c o e e p i s t e m o l ó g i c o do nosso mundo.

Nas imagens tradicionais a informação está impregnada no objeto que a suporta: o quadro é a tela, e ainda a moldura. Por isto, as imagens tradicionais t ê m valor enquanto objetos, objetos que guardam alguma coisa da antiga aura da obra de arte, como comentava Benjamin. Na fotografia, entretanto, a i n f o r m a ç ã o despreza o seu suporte, logo, n ã o tem valor enquanto objeto. O valor se concentra sobre a informação mesma. O valor n ã o está nem na c ó p i a nem no "original" (no negativo), mas sim no p r ó p r i o gesto e f ê m e r o de fotografar. A despeito do seu caráter e f ê m e r o , no entanto, o

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valor, de maneira curiosa, mostra-se potencialmente eterno: jamais será "gasta" a i n f o r m a ç ã o produzida, por ser eternamente copiável.

Querer possuir a fotografia de uma cena de guerra n ã o tem sentido: sentido tem querer ver a fotografia para ter i n f o r m a ç ã o quanto ao evento. Se a i n f o r m a ç ã o transmitida por uma foto me interessa, não me interessa deter a posse do seu "negativo". Nos antigos romances p o l i c i a i s , chantagistas t r o c a v a m fortunas por fotos comprometedoras e respectivos negativos, porque ainda n ã o se percebia que se podia tirar uma fotografia de uma fotografia: o negativo, desde o princípio, é irrelevante. O argumento permite observar, de modo p r ó x i m o ao transparente, a d e c a d ê n c i a do mundo "objetivo" enquanto sede do valor e do real, e a e m e r g ê n c i a c o n s e q ü e n t e do mundo s i m b ó l i c o enquanto centro do interesse existencial. Nesse terreno, o poder, hierarquizado e des-humanizado, pertence aos programadores de aparelhos. O fotógrafo exerce poder sobre o receptor da sua mensagem, sobre o espectador da foto, porque lhe i m p õ e determinado modelo de vivência, de valor e de conhecimento. Mas "a c â m a r a exerce poder sobre o fotógrafo, ao estruturar seu gesto de fotografar, e ao limitar sua a ç ã o às possibilidades programadas no aparelho. A indústria fotográfica exerce poder sobre a c â m a r a , ao p r o g r a m á - l a . O aparelho industrial, administrativo, político, e c o n ô m i c o e i d e o l ó g i c o exerce poder sobre a indústria fotográfica, ao p r o g r a m á - l a . E todos estes aparelhos gigantescos são, por sua vez, programados para programarem. Se analisarmos, cautelosamente, n ã o importa que fotografia individual, poderemos, desde j á , verificar como funciona a cultura de imagens."

O que permite responder afirmativamente à pergunta: "a imagem do cachorro m o r d e r á no futuro?" Sim, morderá, no sentido de que m o d e l a r á a ação, e a experiência mais íntima, do homem futuro. Isto tem, é verdade, c o n s e q ü ê n c i a s funestas, como imaginarmos que, na sociedade do e s p e t á c u l o , o show estaria substituindo toda a realidade, com os diferentes índices de audiência, mesclados à cultura do "politicamente correto", programando a escolha tanto da escova de dentes quanto do amor e do ódio.

Essa abordagem da fotografia e do fotógrafo fazem emblema da cultura em que vivemos (ou que nos vive), dando ao seu profissional uma i m p o r t â n c i a única. Talvez isto seja possível porque a profissão fotográfica é profissão pós-industrial em contexto ainda industrial. Semelhante descompasso coloca muitas dificuldades para a inserção do fotógrafo no mundo, mas ao mesmo tempo lhe p õ e nas m ã o s perguntas recalcadas pelos demais funcionários: como deve ser o mundo?; qual deve ser a atitude do homem informado a respeito do mundo?

A o comentar, em artigo de 1969, o estudo de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal, no processo de Eichmann, em que se pergunta como gente insignificante f o i transformada pelo aparelho nazista em funcionários poderosos e destrutivos, Flusser tenta olhar o outro lado do problema: gente r e s p o n s á v e l e culta sendo transformada

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em f u n c i o n á r i o s insignificantes, i n c ô m o d o s e chatos, que, aos poucos, acabam promovendo sem o perceber males gigantescos, adequados aos aparelhos agigantados que os empregam e transformam. Quem entra, desprevenido, na engrenagem do aparelho "chato" (por exemplo, uma firma comercial, u m instituto de ensino) teria a s e n s a ç ã o do c ô m i c o e da futilidade. Se n ã o se importar com isso, pondo o aparelho e seus zelosos funcionários na conta de i n c ô m o d o s inevitáveis mas suportáveis, tende a n ã o perceber a r e p r o d u ç ã o do aparelho em t e n t á c u l o s que formam um monstro inesperado. N o p e r í o d o de f o r m a ç ã o do nazismo, os aspectos c ô m i c o s e fúteis eram perfeitamente visíveis - mas o terror foi apagando estes aspectos.

Charlie Chaplin, que nasceu quase no mesmo dia que A d o l f Hitler, em 1889, realizou The greaí dictator em 1940 (no mesmo ano, aliás, em que o tcheco Vilém Flusser fugia do seu país). Trata-se de uma bela sátira sobre o totalitarismo, misturando a comicidade corrosiva com boa dose de i n d i g n a ç ã o explícita. Anos depois, Chaplin afirmou, textualmente: "se eu tivesse conhecimento das atrocidades cometidas nos campos de c o n c e n t r a ç ã o a l e m ã e s , n ã o teria podido filmar O Grande Ditador, n ã o seria capaz de brincar com a d e m ê n c i a homicida dos nazistas". Na sombra de Hynkel - ou de Hitler - , o funcionário fascinado. Para descrever os monstrinhos que nos cercam de todos os lados (e que, às vezes, e s t a r í a m o s encarnando), Flusser parte de uma premissa assustadora: "tivesse sido tomado a sério o nazismo, quando ainda aparelhinho c ô m i c o , talvez n ã o tivesse havido Eichmann".

Para provar que os monstrinhos nos cercam de todos os lados, Flusser descreve, no artigo referido, uma cena que podemos reconhecer:

Pessoas adultas e cultas estão sentadas em redor de uma mesa. Mas não convivem, não conversam, não se comunicam enquanto homens de carne e osso. Estão engajadas em ritual característico da nossa época: funcionam. Os seus gestos são levemente caricatos, os seus rostos máscaras, ora de seriedade animal, ora de hilaridade levemente idiota, as suas vozes têm timbre mecânico, conseqüência de uma imitação de emoções, e o mais cômico do ato ritual é a sua terminologia. Apoiam moções, repartem departamentos, votam membros natos, criam comissões, deliberam, os que concordam ficam como estão, dirigem-se uns aos outros em ordem hierárquica, e passam nessa redoma de termos horas a fio.

Qualquer s e m e l h a n ç a com uma reunião de conselho departamental universitário não é mera coincidência, assim como várias outras s e m e l h a n ç a s que podemos elencar não serão mera coincidência t a m b é m . N ã o se trata, apenas, de u m pesadelo kafkiano: trata-se de um rito com finalidade precisa, a saber, o produto visado pelo aparelho (por exemplo, parafusos, leis, alunos formados). A finalidade, entretanto, n ã o se mostra de maneira transparente. A complexidade da engrenagem faz com que o produto se d ê encoberto pelas rodas e alavancas (como na cena de outro filme de Chaplin, um dos ícones do século). Entre o funcionário e o produto estariam as

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repartições, as c o m i s s õ e s e os departamentos, permitindo que o produto se apresente muito distante...

Acresce que a m o t i v a ç ã o do funcionário - quer, ou n ã o quer, produzir aquele produto específico? - n ã o tem i m p o r t â n c i a nenhuma. Importa-lhe o emprego, ou, em outras palavras, importa-lhe estar funcionando e ser funcionário. Logo, o produto tende a transcender o horizonte do funcionário, tornando-se indiscutível. N ã o é difícil imaginar o espanto coletivo se r e t o r n á s s e m o s àquela mesa-redonda e p r o p u s é s s e m o s a d i s c u s s ã o da utilidade dos parafusos, ou da necessidade de tal ou qual disciplina. O ensino de segundo e de terceiro grau no Brasil, para usar, como sempre, um exemplo interessado, se encontra, por qualquer â n g u l o que se observe, sobrecarregado de disciplinas que n ã o interagem entre si. Fazer essa c o n s t a t a ç ã o relativamente ó b v i a , dentro de uma escola ou dentro de uma universidade, n ã o provoca nenhuma refutação, assim como n ã o provoca a menor ação a respeito. A s fisionomias de espanto sugerem que se falou em grego antigo. A constatação, ainda que óbvia, soa como completamente absurda, porque j á se tornou impensável pensar ou discutir a necessidade de funcionar assim, ou assado (porque só pode ser "assim"). Na "melhor" das hipóteses, o aparato b u r o c r á t i c o - p e d a g ó g i c o desdobra-se em mais um tentáculo, criando uma c o m i s s ã o que terá a i n c u m b ê n c i a p r e c í p u a de n ã o se reunir e n ã o chegar a c o n c l u s ã o alguma, realocando o i n c ô m o d o da c o n s t a t a ç ã o numa gaveta mais adequada, a saber, ou a n ã o saber, sob a responsabilidade da tal c o m i s s ã o que só funcionará bem se n ã o funcionar.

Cabe distinguir, apenas, entre funcionários natos e naturalizados, se funcionários s e r í a m o s , atualmente, todos. O problema da banalidade do mal se dá apenas para os naturalizados; os funcionários natos se sentem no melhor dos mundos. O funcionário naturalizado ainda tenta, às vezes desesperadamente, transferir valores p r é - a p a r e l h o para o aparelho, do tipo diálogo aberto, amizade, busca da verdade e, principalmente, busca da r e a l i z a ç ã o de si mesmo, e da humanidade em si mesmo, na obra. Mas tais valores n ã o cabem no aparelho, deixando o funcionário naturalizado perplexo com as atitudes dos funcionários natos, sem perceber que eles n ã o s ã o mais as pessoas que conhecera fora do aparelho: tornaram-se rodas da engrenagem. O dilema parece posto para o funcionário naturalizado: ou tentar transformar-se de vez em funcionário nato, feliz com a baia que lhe cabe no aparelho (o que é i m p o s s í v e l , para quem uma vez se deu conta de valores), ou sair do aparelho e recusar-se a funcionar (o que t a m b é m é i m p o s s í v e l , sem o recurso do suicídio e da literatura - penso em um e s c r i v ã o chamado Bartleby...).

Mas Flusser v ê uma fenda no d i l e m a que p e r m i t i r i a a terceira alternativa, isto é, que permitiria a s a l v a ç ã o : pela reconquista do senso de ironia. A reconquista do senso de ironia seria hoje a forma da conquista da liberdade, tarefa que se i m p õ e a todo ser que se pretenda humano. A conquista da liberdade se processa a t r a v é s da luta, n ã o contra a natureza ou contra os outros homens, mas "contra o

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aparelho em sua cretinice infra-humana". Esta luta só pode se dar na d e p e n d ê n c i a dos aparelhos, sem os quais sobreviver afigura-se i m p o s s í v e l . Por isso, o grito do Ipiranga é u m exagero: " n ã o se trata de i n d e p e n d ê n c i a ou morte, mas de liberdade na d e p e n d ê n c i a , ou morte. N ã o podemos ser independentes dos aparelhos, mas podemos constantemente lutar para sermos livres deles. Esta liberdade reside na nossa s u p e r a ç ã o do aparelho pela nossa t r a n s c e n d ê n c i a c o m o homens. Pela atitude i r ô n i c a que podemos assumir diante deles."

E eu n ã o vejo melhor ironia, com o que acredito Flusser concordaria, do que a p i n t u r a surrealista, precisamente a pintura de R e n é M a g r i t t e . O quadro A filosofia no camarim ( 1 9 4 7 ) mostra bem, pela ironia, a i n d i s t i n ç ã o e s t é t i c a do f u n c i o n á r i o , ou da f u n c i o n á r i a , com o instrumento de que parece se servir, na verdade, servindo-o e ao aparato que os c o n t é m . D i z o p r ó p r i o M a g r i t t e : "o p r o b l e m a dos sapatos demonstra q u ã o facilmente as coisas mais assustadoras p o d e m ser f e i t a s p a r a p a r e c e r e m completamente inofensivas a t r a v é s do poder da n e g l i g ê n c i a . G r a ç a s ao modelo, sente-se que a união do p é humano com u m sapato se baseia afinal num monstruoso costume", (em Paquet, 1995, p.61) A .

escolha por u m sapato de salto alto somente R Magritte, A filosofia no camarim (1947)

reforça a ironia, enfatizando a futilidade

estetizante que cerca a mescla "funcional" das coisas com as pessoas. E o que n ã o dizer da união da camisola feminina com os seios da mulher? A ironia, desde o título do quadro - que "despe" a filosofia dentro de u m camarim, ou seja, dentro de um espaço que prepara a representação teatral - , é sempre auto-ironia. A filosofia t a m b é m está no camarim, preparando-se, como o trabalho e a c i ê n c i a , para subir ao palco e f i n g i r que n ã o e s t á em u m palco.

Pelo recurso, s e r í s s i m o , do humor, Magritte chama violentamente a a t e n ç ã o para o poder da n e g l i g ê n c i a , combatendo, deste modo, n ã o contra a l g u é m ou algo, mas contra as idéias prontas e os icebergs congelados do discurso. A filosofia de V i l é m Flusser e, mais modestamente, esse artigo, tentam o mesmo.

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• ABSTRACT: A philosophical consideration of the individual at the end of the century. The transformation of the individual into a fascinated clerk. The necessity for irony. • KEYWORDS: Phenomenology; individual; Vilém Flusser.

R e f e r ê n c i a s Bibliográficas

ADORNO, T., HORKHEIMER, M . Dialética do esclarecimento. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

FLUSSER, V. Da banalidade do mal. O Estado de São Paulo, São Paulo, 26 jul. 1969. . O futuro e a cultura da imagem. Revista íris, p.33-6, maio 1983.

. O instrumento do fotógrafo ou o fotógrafo do instrumento?. Revista íris, p.26-9, ago. 1982.

. Para além das máquinas. Trad. Gustavo Bernardo Krause. In: KRAUSE, G. B. (Org.). Literatura e sistemas culturais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. p.9-18.

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. Gesten: Versuch einer Phänomenologie. München: Düsseldorf und Bensheim, 1991. . Língua e realidade. São Paulo: Herder, 1963.

. Los gestos: fenomenologia y comunicación. Version de Claudio Gancho. Barcelona: Herder, 1994.

. Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas Cidades, 1983. ORTEGA Y GASSET, J. A rebelião das massas. Trad. Marylene Pinto Michael. São Paulo:

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PAQUET, M . René Magritte: o pensamento tornado visível. Trad. Lucília Filipe. Köln: Taschen, 1995.

VARENNE, J. O Zen. Trad. Gílson César Cardoso de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

Referências

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