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I 222 conto contigo dossier

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Academic year: 2021

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A literatura infanto-juvenil:

Práticas pedagógicas ao serviço do

voluntariado

Claudio García Pintos

A Logoterapia em Contos

S. Paulo, Paulus, 1999

(excertosadaptados)

Para uma biblioterapia

No ano de 1977, o Professor Viktor Emil Frankl ** inaugurou aFeira do Livroda Áustria com uma conferência sobre o livro como recurso terapêutico, na qual defendeu a possibilidade de cura através da leitura. Na oportunidade assinalou, até, casuisticamente, situações em que um livro salvou uma vida, fazendo o leitor desistir da ideia de suicídio, e outras em que pessoas doentes, no seu leito, se viram reconfortadas pela leitura. Comentou igualmente o caso de pessoas que, estando presas, melhoraram a sua atitude de vida por intermédio de um livro. Citou, por exemplo, Mitchell, um preso de San Quentin, em San Francisco, sentenciado à pena de morte na câmara de gás. Inteirado de tal circunstância por ocasião de uma palestra para presidiários, Frankl convidou-o a descobrir o sentido da sua vida, mesmo estando em vésperas da morte. Incitou-o até, de alguma maneira, à leitura da obra de Tolstoi,A morte de Ivan Illitch.

A personagem de Tolstoi vive uma circunstância semelhante à do presidiário. Tempos depois, Mitchell foi conduzido à câmara de gás e a condenação foi executada. Lendo uma entrevista que concedeu aoChronicle de São Francisco, alguns dias antes do cumprimento da sentença, podia-se perceber que a mensagem de Tolstoi havia sido captada por aquele homem, que, embora não tivesse podido evitar a condenação, pôde evitar recebê-la no meio do vazio e do desespero.

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Da biblioterapia ao bibliodiagnóstico

Em última análise, o livro como recurso terapêutico realiza um serviço formidável ao despertar no paciente uma resposta operacional pessoal e significativa perante a situação crítica que o inibe de decidir e actuar conscientemente. A palavra escrita, com toda a riqueza encoberta do “não-escrito”, transforma-se em presença permanente, que assume características dinâmicas especiais: o texto interage connosco (de certo modo, poder-se-ia dizer que nos ouve e nos fala, dialoga incondicionalmente com o leitor); no contexto desse diálogo, não deixa de nos dar respostas, não se furta a fazê-lo e compartilha os nossos próprios pensamentos.

Várias vezes se apresentou o livro como uma boa companhia; podemos encará-lo também como uma boa companhia terapêutica, que nos acompanha na busca de respostas novas para situações de vida. Desse modo, bem poderíamos afirmar que o livro, na sua finalidade biblioterapêutica, nos

revelatanto quanto nosrebela. Quero dizer que, num primeiro momento, faz-nos ver, ilumina uma situação, revelando-nos aspectos, matizes, circunstâncias, alternativas, caminhos, que até então não eram vistos nem apreciados por nós. Uma vez iluminado o panorama, sacode-nos, estimula-nos e incentiva as nossas genuínas possibilidades de elaborar uma resposta própria e significativa, rebelando-nos no tocante à situação a ser resolvida, incitando-nos a sair do desespero, da confusão ou da resignação, e actuando em função de uma resposta nova e possível.

Quando esta revelação e esta rebeldia se conjugam, o indivíduo apropria-se da situação de vida que tem diante de si e fica em posição de resolvê-la significativamente. Esse objectivo é, seguramente, “o objectivo” fundamental da psicoterapia, isto é, que o indivíduo acabe por ser cada vez mais ele próprio. O livro não é a única alternativa para o conseguir, mas a biblioterapia oferece-se como espaço nobre para que todas as pessoas possam acabar por fazer da sua biografia uma história dotada de sentido.

Considerando pois o valor testemunhal e referencial do livro, podemos facilmente compreender que a sua implementação terapêutica pode ser válida e efectiva. Muitas vezes, como se tem dito, actua de maneira espontânea, quando o paciente chega à consulta motivado pelo que leu ou está a ler. Mas, então, se falamos de biblioterapia, não poderíamos falar de bibliodiagnóstico? Sim. De facto, o livro também pode ser usado como recurso de diagnóstico. Não podemos, obviamente, estabelecer convalidações estatísticas nem pautas psicométricas, mas sim compreendê-lo como um recurso projectivo ao serviço do diagnóstico. Como método de conhecimento do paciente, não obedece, decerto, a parâmetros convencionais, mas apresenta-se como excelente recurso para o conhecimento intuitivo do outro. “Intuitivo” significa que se pode praticar um minucioso processo de observação das respostas do paciente à narrativa, isto é, pode observar-se os seus comentários a

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respeito do conteúdo, assim como as suas mudanças durante a leitura, tanto quanto as conclusões a que chega.

Dever-se-á então, de acordo com cada caso, escolher a narrativa que mais se adapte às necessidades do diagnóstico e trabalhar o conjunto das respostas obtidas. Desde já, assim como a biblioterapia se reconhece integrada, como técnica, num conjunto terapêutico, actuando somente em conjunção com outros modos de abordagem, também o bibliodiagnóstico será apenas concebido como mais uma técnica projectiva em colaboração com outras, integradas em função de um processo de psicodiagnóstico. Apresento a seguir uma série de histórias através das quais pretendo exemplificar o uso concreto dapalavra escritacom uma finalidade terapêutica. Trata-se de três casos em que integro a utilização da biblioterapia na prática individual ou grupal, de acordo com a dinâmica própria de cada circunstância. Vejamos:

Caso 1: Trata-se de João, um homem de 37 anos, casado com Maria, de 32, e pai de dois filhos, Roberto, de 6 anos, e Fernanda, de 3. João é funcionário público. O relato da sua vida está repleto de factos dramáticos, como a morte prematura da mãe, o falecimento posterior do pai, as suas dificuldades para ser alguém na vida, até conhecer Maria, tendo a situação, a partir daí, começado a tornar-se um pouco melhor. Nasceram filhos sadios, e agora vive as dificuldades económicas de todo o empregado cujo salário não é suficiente para uma vida tranquila. João começou então a assumir perante a vida uma atitude francamente pessimista. Vive num estado de derrotismo, agravado, obviamente, pelas suas actuais condições. Muito embora seja verdade que o dinheiro é escasso e que a realidade não corresponde nem um pouco às suas pretensões, pode-se dizer que a vida de João é uma vida feliz. A mulher ama-o, os filhos são saudáveis e ele tem a possibilidade de trabalhar e de manter a casa dignamente. De qualquer maneira, a sua atitude transforma-lhe a vida numa pesada carga. A sensação de vazio apodera-se dele com frequência, acompanhada de estados de angústia e de desânimo. João comenta que um domingo, seguindo uma sugestão minha, foi com a família ao parque que fica perto de uma auto-estrada.

Era um dia soalheiro e muita gente já se encontrava no local. Enquanto Maria caminhava com Fernanda, João começou a jogar a bola com Roberto. Todos se divertiram muito, com excepção, é claro, de João.Enquanto jogava com Roberto, olhava para toda aquela gente… pareciam tão felizes, como se não tivessem problemas… tive de fazer um grande esforço para sair com as crianças e com Maria e, acredite, eles divertiram-se bastante, mas eu continuei a sofrer por dentro… Perguntava-me como é que aquelas pessoas faziam para não terem problemas…

O discurso de João era, evidentemente, tão pessimista como sempre. Continuava a dar às circunstâncias um carácter determinante, como se estas o obrigassem a viver mal, a sofrer. A certo momento faz o seguinte comentário: Sabe que… eu estava a olhar para as crianças que faziam

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papagaios de papel e pensava nos papagaios de papel… lá em cima, livres, fazendo o que querem… como seria lindo ser um papagaio de papel, ou um avião, ou um pássaro, e poder voar, ignorar os problemas e ser livre…Naquele preciso momento recordei uma canção escrita por um grande amigo meu, um poeta popular brasileiro, que se chama Pipa (Papagaio de papel). Disse então a João que

queria que ele ouvisse aquela canção. A melodia é muito simples, mas muito bonita, e a letra, em português, mesmo para quem, como eu, fala espanhol, é fácil de entender. João ouviu-a duas vezes e logo lhe dei a letra por escrito. Eis o final da canção:

… voar com liberdade… ser livre é um desafio quando se tem a vida sempre presa por um fio.

João leu e releu a letra várias vezes. Em determinado momento, olha para mim e diz-me: Sabe que é certo… nunca havia pensado que o papagaio de papel, que voa tão alto e parece tão livre, está preso… a letra é boa…A partir dali começámos a reflectir juntos sobre o carácter condicionante – não determinante – das circunstâncias e do espaço de liberdade que sempre podemos encontrar mesmo na situação mais adversa. Abordámos a sua tendência para se sentir “uma vítima” e propus-lhe que assumisse a atitude de protagonista da sua própria existência. Finalmente, João pediu-me que lhe desse a letra dePipa. Obviamente, a minha ideia era que ele a levasse.

Pipade Luiz Falcão

Pipa(o nome brasileiro para papagaio de papel), do poeta brasileiro Luiz Falcão, apresenta-nos, de uma maneira muito simples e bela, a vivência da liberdade. A imagem de um papagaio de papel a brincar no ar, a fazer piruetas vistosas e coloridas, associa-se imediatamente à ideia de liberdade. Voar, subir, chegar onde os olhos não abarcam, são circunstâncias que muitas vezes percebemos como privilégios dos pássaros ou dos papagaios de papel, especialmente quando nos sentimos prisioneiros de diversas circunstâncias da vida. Nessa busca de liberdade, muitos de nós assumimos o papel de vítima, acreditando que, em certas situações, ser-se livre é difícil. Mas a canção chama a nossa atenção para a própria condição do papagaio de papel, que não deixa de ser livre, não se submete nem assume o papel de vítima, apesar de estar preso a um cordel. E deixa-nos a sua mensagem: ser-se livre é um desafio quando se tem a vida sempre presa por um fio. Da nossa atitude depende, pois, sermos vítimas ou protagonistas das circunstâncias, descobrirmos a verdadeira liberdade ou desistirmos da sua busca.

Pipa vai, pipa vem, voa, voa, me eleva também.

Pipa vai, pipa vem, voa, voa até onde os olhos não vêem.

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Fazendo piruetas no céu, Lindas, tão coloridas, de papel.

Voar por toda parte. Um jogo feito arte.

No ar, sempre alegre como um passarinho. Voar em liberdade.

Ser livre é um desafio. Com a vida sempre presa por um fio.

Pipa vai, pipa vem, voa, voa, me eleva também.

Pipa vai, pipa vem, voa, voa até onde os olhos não vêem.

Na semana seguinte, quando nos reencontrámos, comentou comigo que a pôs debaixo do vidro da sua mesa-de-cabeceira, e que todas as manhãs a lê quando se levanta. Aprendeu a melodia, e durante o dia assobia-a, muito especialmente quando sente que o pessimismo está a surgir, e parece-lhe que ela é muito útil para o afastar. Reflectimos sobre isso e descobrimos juntos que a leitura dePipapela manhã dá-lhe algo de parecido com uma “primeira certeza” ou, como ele prefere dizer, “a certeza do dia”, que lhe recorda que ele pode ser protagonista e não vítima daquilo que lhe acontecer nesse dia que se inicia.

Passadas várias semanas, João faz-me o seguinte comentário:Domingo passado voltei ao parque com Maria e as crianças e estivemos muito bem, porque estava um dia bonito e cheio de gente e, sabe? Comecei a pensar nos papagaios de papel que estavam a subir e dei-me conta de uma coisa que não me havia ocorrido. Os papagaios de papel não somente se movem com liberdade apesar do fio que os amarra, como diz a canção, mas também, se o fio for cortado, já não podem voar… Então pensei naquilo que tantas vezes o senhor me disse acerca de descobrir o sentido das coisas e de dever perguntar-me mais sobre opara quêdo que sobre opor quêde tudo isto… e creio que neste Domingo me dei conta do que o senhor me queria dizer… Se não me tivessem acontecido as coisas que me aconteceram, eu não seria talvez o que sou agora. Ou se tivesse muito dinheiro, não desfrutaria tanto da companhia das crianças, porque com o dinheiro acreditaria poder dar-lhes tudo de que necessitam, não como agora, que não posso dar-lhes um computador de presente para elas brincarem sozinhas ou outra coisa do género; faço por brincar com elas, por sair com elas, nem que seja para jogar a bola no parque ou andar de bicicleta, é uma forma de estarmos juntos…

É evidente que João descobriu muitas coisas, e essa certeza com a qual começa cada dia tem vindo a permitir-lhe abrir-se a uma nova compreensão das circunstâncias, e modificar assim a sua atitude de vida, passando verdadeiramente de vítima a protagonista.

*** O autor, Cláudio García Pintos, é um estudioso argentino, cujo núcleo de interesses se prende com a Logoterapia: uma terapia centrada no sentido, inaugurada pelo médico vienense Viktor Emil Frankl (1905-1997).

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A Logoterapia e Análise Existencial constitui a terceira escola vienense de Psicoterapia, após a Psicologia Freudiana e a Psicologia Individual de Adler, com marcadas vertentes humanística e antropológica.

A partir sobretudo da palavra (escrita e/ou oral) – do Logos –, cada um de nós pode encontrar, nas narrativas, nos contos, nos poemas, nas histórias, pistas fundamentais que nos levam ao encontro do verdadeiro sentido para as nossas vidas. A terapia pela palavra, que nos vem já dos tempos imemoriais, em todas as tradições e culturas!

☼☼☼☼☼

Maureen Murdock

Giro Interior

S.Paulo, Cultrix, 1987

(excertos adaptados)

A hora da tranquilidade

Ao iniciar o trabalho com as imagens mentais, levei vários meses a fazer exercícios de respiração e relaxamento antes de os ensinar aos meus filhos. Utilizei o relaxamento para me concentrar e acalmar durante um período emocional particularmente difícil da nossa vida familiar. Quando apresentei a ideia aos meus filhos pequenos, que tinham então quatro e seis anos, disse-lhes que estava a fazer um exercício divertido que me ajudava a ficar mais calma e a prestar atenção a mim mesmo. Disse-lhes que era muitíssimo parecido com “sonhar acordado” e que acreditava que isso nos ajudaria a aprender mais, a ficar mais tranquilos e a divertirmo-nos mais.

Convidei-os a fazermos uma tentativa e tratámos de encontrar uma hora que fosse adequada às necessidades de cada um. Escolhemos o fim da tarde para “brincar” com as nossas imagens, e demos a esse momento em que ficávamos juntos o nome de “hora da tranquilidade”. O horário de cada família ditará o melhor momento para o uso das imagens mentais. Muitas famílias preferem o início da manhã, antes da ida para a escola e para o trabalho. Alguns pais disseram-me que estes exercícios de imagens mentais substituíram a televisão à noite, e eram seguidos pelo relato de histórias originadas pelas imagens. Algumas pessoas fazem um breve exercício de relaxamento antes do jantar, para que cada membro da família possa comer sem tensão e sem a confusão que muitas vezes caracteriza as refeições em família.

Os pais que estão em casa quando os filhos voltam da escola servem-se com frequência dos exercícios de imagens mentais para ajudar os filhos a aquietarem-se depois de um dia agitado. Os professores utilizam um breve exercício de relaxamento no início do dia, depois da merenda, antes de

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certas aulas ou antes dos testes. A constância é o segredo. Realizar o exercício à mesma hora, todos os dias ou uma vez por semana, cria continuidade para nós e para as crianças. Essa hora torna-se para as crianças o momento que aguardam ansiosamente. E nós não precisamos de muito tempo: cinco minutos bastam para começar, mas podemos aumentar a duração à medida que exploramos o processo. São 8:55 da manhã e eu apago as luzes da sala. As crianças, na sua maioria, detêm-se no meio dos movimentos ou das frases. Um grupo de “espertos”, que joga no canto almofadado dos livros, prossegue num tom abafado de voz. As pombas arrulham na gaiola. Ouvimos o barulho dos dominós desabando um a um na complicada estrutura criada pelo Tiago. Torno a acender as luzes e as crianças completam as palavras ou frases que estavam na ponta da língua. Põem de lado os jogos ou canetas, penduram os agasalhos e reúnem-se lentamente sobre o tapete.

Sentados no tapete, nós, que somos ao todo vinte e oito, formamos dois círculos concêntricos. Espero até que todos estejam acomodados. “Por que não penduras o teu blusão, Joaquim? Creio que ficarias mais à vontade... André, achas que te podes sentar perto do Joel sem sentires vontade de conversar com ele?...Oh! Marisa, estás de volta! Como foi a viagem?” Depois de alguns minutos de contorções e bocejos, as crianças e eu conseguimos ficar quietos e tem início a nossa “hora diária de tranquilidade”. E eu começo: “Procurem uma posição que possam manter durante vários minutos e fechem os olhos. Concentrem a atenção na respiração. Muito bem, relaxem apenas e sintam que a tensão nos músculos do corpo desaparece a cada respiração que fazem. Inspirem... e expirem... inspirem... e expirem.”

Em casa, por exemplo, deve-se desligar o telefone. Importa preparar um ambiente que seja reservado para essa hora, com almofadas ou esteiras e plantas. Façamo-lo bonito. Algumas pessoas disseram-me que cada membro da família traz a sua própria almofada de relaxamento para a sala de estar quando chega a hora de começar. Isto indica, com um mínimo de conversas e recomendações, que o processo está prestes a começar. Uma criança de dez anos organizou um “cantinho de meditação” no seu guarda-roupa. Tirou os sapatos do chão do armário e encheu-o de almofadas azuis macias. Então convidava a mãe todas as noites para refazer com ela o exercício de imagens mentais que tínhamos realizado naquele dia, na instituição. E esses exercícios ajudaram a mãe a passar por um divórcio muito penoso.

Por vezes, nas escolas, não há muitas condições. Então, os alunos mais velhos sentam-se nas suas carteiras, com a cabeça baixa, ou simplesmente fecham os olhos ou olham para o chão. É bom que haja um sinal combinado previamente para dar início ao exercício de imagens mentais. Eu apago as luzes. Outros professores têm utilizado com sucesso música suave, o som de um gongo ou de um sino ou o acender de uma vela. É melhor trabalhar com as imagens mentais quando se está bem relaxado.

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Tentar começar um tal exercício quando se está irritado ou perturbado interferirá provavelmente no processo. Algumas famílias e turmas escolares chegam a servir-se dos exercícios de relaxamento antes de tentar resolver uma discussão, pois acham que as soluções se tornam então mais flexíveis e criativas. Estes exercícios são agradáveis. Partilhamos com os nossos filhos aspectos de nós mesmos que habitualmente não revelamos aos outros, e por isso podemos descobrir que nos tornamos mais próximos. Podemos descobrir que a “hora tranquila” se torna uma oportunidade para partilharmos os nossos desejos, sonhos e temores uns com os outros.

Por exemplo:Senta-te numa posição confortável e fecha os olhos. Põe as mãos nas coxas, com as palmas para cima. Concentra a atenção na respiração e quando respirares, o corpo e a mente ficarão cada vez mais relaxados. (Pausa) Imagina que estás sentado debaixo da tua árvore predilecta e que começa a soprar uma brisa suave. (Pausa) Sentes as folhas que caem da árvore. Queres falar com elas? Imaginar o que te dizem?

OUTRAS SUGESTÕES……

Aventura com a Fada das flores

Às vezes pode criar-se um exercício de imagens mentais dirigidas com base numa história escrita pelas crianças. Depois de ler a história da minha filha de 9 anos, que acompanha este exercício, usei o tema dela para criar este exercício sobre as fadas das flores. Estas imagens mentais permitem que as crianças satisfaçam plenamente o seu sentido de magia e de aventura.

Fecha os olhos e concentra a atenção na respiração. Suavemente, inspira... e expira. Enquanto respiras calmamente, o teu corpo torna-se cada vez mais relaxado. Imagina agora que estás sentado ao ar livre na relva, num belo dia de sol quente. Estás a deleitar-te ao contemplar o desabrochar de novas flores. Sentes prazer nas suas cores e aromas. De repente, vês um ser pequenino à tua frente, subindo pela haste de uma linda margarida. Esse ser não é maior do que o teu dedo médio; ao voltar-se para ti, faz um sinal de que deves segui-lo. Percebes que também te tornaste pequeno e apressas-te a acompanhar a tua nova amiga. O que te diz ela?

O Aliado Interior

Fecha os olhos e concentra a atenção na inspiração e na expiração. Continuando a respirar no teu ritmo, imagina que estás a passar por um caminho numa floresta muito densa. À tua volta há belas árvores verdes, e esse caminho desce em direcção a um murmúrio de água. Chegas a um pequeno curso e aproximas-te dele, até ver o teu reflexo na água. (Pausa) Logo percebes outra presença próxima de ti mas sentes-te inteiramente seguro. Vês outro reflexo junto do teu na água. Que presença? A de um velho sábio, a de um animal ou a de um ser imaginário que sentes como teu aliado, alguém que já conheces há muito tempo, alguém em quem podes confiar? O teu aliado faz um sinal para que o sigas através de uma pequena ponte que cruza o rio. Vais e vês-te a subir um morro que leva a uma gruta. O aliado entra na gruta, senta-se e faz um gesto para que o sigas. (Pausa de um minuto) É possível que tenhas uma pergunta especial para fazer ao teu aliado… Ouve atentamente a resposta…. E continua a dialogar com ele….

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UNS MINUTOS de RELAXAMENTO

[PARA OS MAIS NOVOS QUE AINDA ACREDITAM NO TAPETE MÁGICO!]

Tentem sentar-se confortavelmente no tapete mágico (senão, ele não levanta voo!) ou nas cadeiras, descruzem as pernas e os braços, ponham no vosso regaço as mãos abertas, com as palmas para cima; tentem fechar os olhos e respirem profundamente, pondo a mão direita em cima do peito, para sentirmos o coração; ouçam, em silêncio, o vosso coração; e preparem-se para ouvir uma linda história….

[PARA OS MAIS VELHOS, PODEMOS FAZER ALTERAÇÕES – ELES JÁ NÃO ACREDITAM NO TAPETE MÁGICO!]

Tentem sentar-se confortavelmente no chão ou nas cadeiras, descruzem as pernas e os braços, ponham no vosso regaço as mãos abertas, com as palmas para cima; procurem fechar os olhos e respirem profundamente; sintam o bater do coração; descontraiam os músculos todos do vosso corpo: os dos pés, das pernas, do tronco, dos braços, dos dedos das mãos; concentrem-se no vosso rosto e descontraiam também todos os músculos da cara, a começar pela testa, pelas faces, pelo queixo, pelos olhos e finalmente pelos lábios; se quiserem, imaginem na vossa mente uma paisagem do vosso agrado onde se sintam leves, serenos e felizes; desfrutem da paisagem que vos rodeia e caminhem por ela, sem pressa, ouvindo o bater tranquilo do vosso coração; [APÓS CERCA DE CINCO MINUTOS…] Mexam, aos poucos, os dedos dos pés e das mãos e abram os olhos (ou, se preferirem, mantenham-nos fechados); vamos ouvir uma linda história….

♫♫♫Uma música tranquila pode acompanhar os minutos de relaxamento….Por exemplo, se a história que vamos ouvir fala de um violino, porque não convocar o som suave dos seus acordes?

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Katherine Paterson

The Invisible Child

New York, Dutton Children’s Books, 2001

(excertos adaptados)

A Criança no Sótão

Vou chamar-lhe Walter, embora esse não seja o seu verdadeiro nome. Walter era uma criança esperta que não se empenhava muito nos estudos. Um dia, a sua vida mudou radicalmente. O pai abandonou-o e aos irmãos, deixando a mãe com três rapazes para cuidar. Como o Estado não fornecia qualquer tipo de apoio a mães trabalhadoras, a mãe de Walter trabalhava em vários lados a fim de assegurar o sustento dos filhos. À medida que as férias grandes se aproximavam, começou a preocupar-se com os perigos a que os filhos estariam sujeitos ao vaguear pelas ruas enquanto ela trabalhava.

Walter foi trabalhar numa quinta, onde deparou com um patrão severo. Frequentemente castigado, o seu local de expiação era um velho sótão. Nesse sótão, Walter encontrou vários livros velhos que o dono da quinta também lá tinha exilado: Dickens, Austen, Twain e Stevenson tornam-se companhias permanentes e desejadas. Walter fazia com que o patrão o castigasse frequentemente, de forma a poder estar com os seus livros adorados.

Há algo de tão evocativo na imagem da criança só, incompreendida, desprezada, que vários escritores de ficção resolveram fazer dela personagens suas. Talvez a mais conhecida seja Sara Crewe, de Frances Hogdson Burnett, no livroA Little Princess. Embora muitas das realidades que Burnett descreve sejam reprováveis – a fortuna de Sara provém de minas onde gente miserável é obrigada a trabalhar em condições degradantes e Becky é salva no fim para se tornar, não numa amiga de Sara, mas na sua criada pessoal – há, contudo, uma ideia que importa reter no livro.

Quando Sara é enviada para o sótão por Miss Minchin, a directora da escola onde ela estudava, por já não ser herdeira de uma grande fortuna, Sara tira partido da sua imaginação fértil e constrói um mundo onde imagina ser uma princesa prisioneira de uma tirana, o que a vai ajudar a lidar com as vicissitudes a que está sujeita.

Um livro pode ajudar uma criança a auto-valorizar-se e isso é o início de um processo de crescimento da alma. Por isso, sou contra a ideia de personagens modelo, nas quais a criança não se reconhece. Há muitas crianças entre nós que estão fechadas em sótãos que as aterrorizam. Os livros podem ser a chave que abre essas portas fechadas.

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Regressemos agora à história de Walter. Quando voltou para a cidade, Walter não se tornou um aluno mais diligente. Contudo, levou consigo uma avidez de leitura que fez com que se candidatasse à universidade e acabasse por se licenciar em Harvard. Os mundos que a leitura abrira para ele expandiram a sua mente e o seu coração, como nada antes o havia feito. Tornou-se um empresário bem sucedido e um marido, pai e avô dedicados.

Os livros salvaram-lhe a vida. Suponhamos que não havia livros no sótão para o qual Walter foi enviado. Se coloco esta hipótese é porque, hoje em dia, há muitas crianças cujas vidas são difíceis, cujos espíritos estão sedentos, que estão isoladas, com medo e que não têm livros. Muitas pessoas do sector do governo e da educação acha que se lhes proporcionarem uma ligação à Internet contribuirão para aliviar as suas múltiplas fomes.

Mas, quando os jovens se comportam agressivamente na escola e são expulsos, isso só os conduz a um isolamento maior. Justamente quando estão mais vulneráveis e isolados, vão para uma casa, tantas vezes vazia, passar o tempo a ver jogos de vídeo violentos ou a navegar na Internet. Com quem é que eles estabelecem relações? As mais das vezes fazem-no com indivíduos que têm uma auto-estima tão baixa quanto a deles e que, assim, ajudam a perpetuar todos os seus receios e ódios.

O acesso à Internet não é a solução para estas “crianças no sótão”e nem sequer os bons livros são já suficientes. Do que eles precisam é de vós, professores, adultos dedicados e atentos. Para mim, a coisa mais importante do mundo é que o verbo se torne carne. Posso escrever histórias para crianças e oferecer-lhes palavras, mas os professores são a palavra encarnada dentro da sala de aula. Ao preocuparem-se com elas e ao mostrar-lhes essa preocupação, os professores partilham com elas o que eu também quero partilhar quando escrevo. Quero dizer a cada criança no sótão que se sente só, triste, zangada e com medo, que não está sozinha nem é desprezível. É um ser único e tem um valor infinito no seio da família humana que todos formamos. Posso dizer isto através de uma história, mas os professores dizem-no através da sua própria presença.

☼☼☼☼☼

Etty Buzyn

Papa, maman, laissez-moi le temps de rêver !

Paris, Albin Michel, 1995

(excertos adaptados)

Para uma verdadeira escuta

Na sua ânsia de comunicar com os filhos, os pais usam explicações complexas e intermináveis, em vez de se cingirem a respostas simples e concisas, mais consentâneas com a maturidade deles. Responder às perguntas das crianças funciona, muitas vezes, para o adulto, embora de forma

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inconsciente, como uma forma de demonstrar o seu saber e o seu poder sobre a criança. Mas também implica limitar a possibilidade da criança formular hipóteses, algo que para ela é imprescindível. Mesmo que digam que querem saber, a maior parte das crianças não quer saber tudo, de repente.

Uma jovem mãe contava-me que, quando a filha lhe fazia perguntas, e ela se preparava para lhe “explicar”, a filha dizia logo: “Não quero saber!” E isto acontecia tanto em relação a perguntas simples com em relação a interrogações mais essenciais. As crianças preferem manter as ilusões o mais tempo possível e não tomar conhecimento de verdades que as perturbam. É um direito que lhes assiste e que devemos respeitar. O facto de uma criança perguntar consecutivamente a mesma coisa é prova de que a pergunta se dirige a ela mesma, mais do que ao adulto. Daí a sua reacção face à intromissão abusiva do saber do adulto.

Ao antecipar as perguntas da criança e ao ir além daquilo que ela quer saber, os adultos exigem dela um esforço para o qual não está preparada e cujos efeitos nefastos podem ser claramente detectados. Com efeito, este tipo de crianças exibe normalmente um leque de comportamentos ou sintomas físicos disfuncionais. Embora dê a impressão de se ter acomodado à situação, a criança procura inconscientemente proteger-se do excesso de informação, fechando-se no seu mundo interior a que os pais não têm acesso. Ora, este isolamento pode ser assaz perigoso para o seu equilíbrio futuro. Pais há que, impregnados do mito da eficácia, exigem que os filhos estejam constantemente a aprender. Esta exigência restringe o direito da criança ao imaginário e ao sonho, que são características do desenvolvimento psico-afectivo infantil.

Antoine é um rapazinho de sete anos, muito desenvolvido em termos escolares. Os pais trazem-no à consulta porque tem problemas de comportamento e dificuldade em dormir. O mais velho de quatro filhos, todos muito seguidos, Antoine tem ciúmes dos irmãos. Os pais dão aos filhos uma prioridade absoluta. Contudo, Antoine reivindica cada vez mais a atenção dos pais, sem nunca se sentir satisfeito. A mãe confessa que chega a odiar o filho por ele a estar sempre a solicitar, o que faz com que negligencie os outros filhos. Na hora de ir para a cama, Antoine exige a presença dos pais, sem deixar de os solicitar durante a noite. É insaciável e tirânico a vários níveis.

A mãe assegura-me que se documentou o mais que pôde antes do filho nascer. Quis sempre explicar-lhe as suas motivações e gestos, numa tentativa de evitar ambiguidades e fantasmas. Confessa mesmo a sua angústia por poder ter “negligenciado uma qualquer palavra importante do filho.” Esta preocupação está patente aquando da consulta. Quando Antoine lhe faz alguma pergunta, ela interrompe o diálogo comigo para lhe responder, com uma disponibilidade próxima da abnegação, que gera em mim alguma impaciência… Antoine está sempre a verificar se a mãe “está lá”. A disponibilidade da mãe mascara, porém, uma agressividade subjacente que se sente no tom controlado com que se dirige ao filho.

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Na escola, onde é o melhor aluno, Antoine afasta-se dos companheiros e participa pouco nas brincadeiras. Tem dificuldade em integrar-se, quer em grupos de crianças, quer em grupos de adultos, uma vez que estes grupos não lhe dão a mesma atenção que a mãe. Esta criança mostra-se incapaz de se adaptar a um ambiente que não reproduza o ambiente familiar. Não adquiriu o código comunicativo que lhe permitiria tornar-se autónomo. Em vez de o encorajarem a fazer descobertas pessoais daquilo que o rodeia, os pais de Antoine encheram-no, desde muito cedo, de conhecimentos abstractos, encorajando-o a racionalizar, em vez de explorar o mundo através dos sentimentos. Antoine não teve alternativa senão adaptar-se às exigências dos pais.

O eu de uma criança constrói-se progressivamente em função da experiência que ela tem dos sentimentos na sua relação de dependência com a mãe e com os adultos que cuidam dela. A criança tem de enfrentar o mundo exterior e as decepções e frustrações inevitáveis. Muitas vão gerar nela uma angústia e uma agressividade que a criança deve poder exprimir. Se não o fizer, porque a mãe não o permite, seja por ser demasiado solícita, seja por ser indiferente, a criança acciona os mecanismos de defesa que lhe permitem não se expor demasiado.

Bloqueado no seu processo de individuação, Antoine ficou “colado” aos pais, sobretudo à mãe, numa relação que o protege de um mundo exterior que lhe parece inquietante já que o rapazinho não construiu um “eu” autónomo. A mãe antecipou todos os seus desejos, não lhe dando a possibilidade de se sentir frustrado ou enraivecido por não conseguir o que queria. Não tendo construído defesas face ao mundo exterior, a única hipótese de Antoine é ficar “colado” à mãe, numa relação fusional que não o decepciona. A mãe evitou sempre a expressão de sentimentos desagradáveis, no filho e nela mesma. Antoine exige cada vez mais, e não tolera qualquer adiamento da gratificação.

Um desenvolvimento psico-afectivo harmonioso proporciona um equilíbrio que é fruto de trocas emocionais e da “segurança” que a criança pode encontrar na partilha de experiências com quem lhe é próximo, cujo papel é impor-lhe limites. Esta partilha deve ser fonte do enriquecimento e da estruturação indispensáveis que vão permitir à criança abrir-se ao mundo e enfrentá-lo.

É no contexto de uma verdadeira palavra, essencialmente impregnada de afectividade, que pode existir uma verdadeira comunicação entre a criança e o adulto: a inteligência e a afectividade desenvolvem-se ao mesmo tempo e torna-se nefasto privilegiar uma em detrimento da outra, o que acontece frequentemente com pais que querem filhos bem-sucedidos.

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João Gomes-Pedro

Para um sentido de coerência na criança

Mem Martins, Publ. Europa-América, 2005

(excertos adaptados)

O Afecto

Esta é a história mais dramática que eu conheço e foi protagonizada por este profissional, herói dum quotidiano porventura igual ou semelhante ao de cada um de nós. Este nosso herói, Harold Skeels, era psicólogo de formação. Tratava-se de um psicólogo recém-formado que arranjou o seu primeiro emprego num orfanato especificamente dedicado a receber crianças sem pais ou sem vínculos, e que ali estavam para serem seleccionados para adopção. Naquele tempo, nos EUA, as crianças com danos biológicos ou psicológicos graves não eram seleccionadas e, por isso, não podiam ser adoptadas.

Desde o princípio que Harold revelou ter um espírito acutilante, capaz de identificar diferenças e de estar atento a essas diferenças, quando circulava pelas salas frias da sua instituição, porventura não menos frias que as das nossas salas de aula, dos nossos centros de saúde ou dos nossos hospitais. Harold reparou em dois bebés, do sexo feminino, que tinham sido abandonados pelas mães e chamou-lhe a atenção o seu ar desnutrido, pálido, o cabelo fino e sem cor, o seu ar de infinito, o balançar constante, o choro sofrido.

Avaliou aquelas duas meninas com idades cronológicas de dezasseis e vinte e um meses e constatou que a sua idade de desenvolvimento era apenas de seis meses. Com este estado de deterioração do seu desenvolvimento não puderam ser seleccionadas para adopção. Assim, foram transferidas para uma instituição de senhoras com grande atraso mental (era assim que nos anos 30 se apelidava o défice cognitivo). Harold foi visitá-las três meses depois e não quis acreditar no que via.

Tinham um ar alerta, sorriam e interagiam com aquelas mulheres adultas que tinham uma idade mental de aproximadamente entre cinco e nove anos. As meninas tinham sido «adoptadas» por duas daquelas mulheres. Elas passaram a ter o seu afecto, brincavam juntas, jogavam e conversavam. Harold Skeels ficou extremamente emocionado. Voltou passados alguns meses. Dois anos depois, em nova sessão de avaliação, aquelas duas meninas tinham uma idade de desenvolvimento correspondente à sua idade cronológica!

Por essa altura, Skeels foi nomeado Director do internato de crianças e tomou logo a decisão de realizar uma experiência com a qual, estou certo, todos nos identificamos. O que ele decidiu foi arranjar dois grupos de crianças, todas sensivelmente na idade do início de marcha. No primeiro,

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incluiu crianças com atraso, condenadas a não serem seleccionadas para adopção. Transferiu este grupo para o internato de senhoras com deficiência mental.

No segundo grupo, a que chamou de controlo, incluiu crianças da mesma idade mas com uma idade de desenvolvimento correspondente à idade cronológica. Estas crianças, tal como estava destinado, continuaram no orfanato, aguardando adopção. À partida, o grupo experimental tinha um QI médio < 64, enquanto que, no grupo de controlo, o QI médio era superior a 82. O que é que aconteceu? Repetiu-se o que tinha acontecido com as outras duas meninas.

Dois anos depois, os valores médios do QI nos dois grupos ficaram invertidos. Entretanto, as crianças do grupo experimental tinham sido também adoptadas por senhoras do asilo e subiram, em média, trinta pontos no seu quociente de desenvolvimento, enquanto que as do grupo de controlo perderam sensivelmente o mesmo número de pontos, deixando então de ficar seleccionadas para adopção. Cinco anos depois, onze das treze crianças do grupo experimental foram adoptadas por famílias da comunidade.

Em 1996, foi publicado um «follow-up» de 30 anos desta história. Dramático! Do grupo experimental, onze das treze crianças foram adoptadas, doze casaram, quase todas fizeram pelo menos o 12° ano, e tiveram vinte e oito filhos com um QI médio de 104. Sobre o grupo de controlo é melhor não falar; a história trágica da deterioração nunca mais parou. Nenhuma das crianças deste grupo foi adoptada, permaneceram em instituições com uma vida cada vez mais degradada, o máximo que conseguiram foi a terceira classe, e só duas casaram, resultando daí cinco filhos, alguns com atraso.

Creio que todos podemos postular que se as crianças do grupo de controlo pudessem ter sido «adoptadas» — mesmo por pessoas com compromisso grave no seu desenvolvimento —, teriam hoje um desenvolvimento normal, A única coisa que inverteu o seu destino foi um pouco de ternura, o q.b. que faz a diferença para se ter sentido de pertença e, a partir daí, sentido de coerência na vida, resiliência enfim. Creio ser esta a bandeira que temos de hastear no nosso mundo em mudança.

Só mais um pormenor na história deste estudo e que nos deixará, provavelmente, mais uma vez sem voz. Doze anos depois da sua publicação, há pouco mais de dez anos, a Universidade de Minessotta resolveu conferir um grau honorífico a Harold Skeels, pelo seu espantoso estudo sobre o sucesso que, no fundo, corresponde a mais uma reflexão sobre empatia e adaptação na espécie humana.

O Reitor que lhe entregou o diploma referente a esse grau fez um pequeno discurso elogiando as qualidades científicas e humanas de Skeels. No fim, acrescentou o que disse ser um pormenor, mas também mais uma razão especial para estar ali, emocionado. É que, disse ele, «Eu fui uma daquelas crianças que o Senhor salvou!»…

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Boris Cyrulnik

Le Murmure des Fantômes

Paris, Éditions Odile Jacob, 2003

(excertos adaptados)

Uma varinha mágica: a roda infantil

Quando não é possível trabalharmos as recordações, é a sombra do passado que nos trabalha a nós. Os carentes, hipersensíveis à menor informação afectiva, podem fazer dela um acontecimento magnífico ou desesperante consoante os encontros que o meio lhes proporciona.

Bruno fora abandonado por ter nascido fora do casamento, o que, no Canadá de há quarenta anos, era tido como um crime maior. Isolado, o menino mantinha apenas relação com as suas próprias mãos, que agitava sem cessar, e com o seu próprio rodopiar, que criava nele uma sensação de vida. Após vários anos de isolamento afectivo, fora posto num centro de acolhimento suficientemente caloroso para fazer desaparecer aqueles sintomas. Mas conservara uma forma de amar aparentemente distante e fria, que, pelo menos, não o assustava. Esta adaptação que lhe dava segurança não era um factor de resiliência porque, embora acalmando a criança, a impedia de retomar o seu desenvolvimento afectivo.

Uma noite, ao serão, uma simpática religiosa organizara uma roda em que, quando um rapaz convidava uma menina, ele tinha de cantar: “Escolho a Rosine por ser a mais bela das duas / Ah, Ginete, se julgas que gosto de ti / O meu pequeno coração não foi feito para ti / É para aquela que eu amo e que é mais linda do que tu.” Quando Bruno e um outro rapaz foram convidados por uma rapariga para darem umas voltas no meio da grande roda feita pelas outras crianças, ficou como que anestesiado por essa espantosa escolha.

Mas, ao ouvir toda a roda infantil repetir em coro: “Escolho o Bruno…”, não escutou mais nada do resto da canção, porque o seu mundo acabava de explodir, como uma grande luz, numa alegria imensa, numa expansão que lhe proporcionava uma admirável sensação de leveza. Rodopiou como um louco com a menina, e depois, esquecendo-se de que devia voltar para a roda, correu a esconder-se debaixo da cama, incrivelmente feliz. Afinal, podia ser amado!

O outro miúdo, algo desapontado, amuou durante uns trinta segundos, tempo suficiente para se aperceber de que outros meninos podiam, da mesma forma que ele, ser preteridos. Depois, nunca mais se lembrou de tal. Este pequeno insucesso nunca se tornou para ele um acontecimento, porque, por causa do seu passado de menino amado, esta roda não fora significativa. Ao contrário, para Bruno, a mesma roda tinha assumido o valor de uma revelação. Durante a sua infância, voltou a pensar nisso

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mil vezes e ainda hoje, quarenta anos mais tarde, fala a sorrir desse grande acontecimento que transformou – para sempre – a sua forma de amar.

O acontecimento é uma inauguração, é como que um nascer para a representação de si mesmo. Para Bruno, haverá sempre um antes e um depois da roda. A falta de afecto tinha-o deixado esfomeado e aterrorizado pela intensidade dessa carência. A desgraça marcara-o com um traço biológico, com uma sensibilidade inclinada a este tipo de acontecimentos, que ele captava melhor do que quaisquer outros. Se tivesse perdido esta roda, encontraria mais tarde circunstâncias análogas. Mas, se o contexto cultural tivesse proibido estas rodas ou organizado uma sociedade em que as crianças nascidas fora do casamento não tivessem o direito de dançar, então Bruno teria gravado na sua memória esses traços de privação afectiva. Tê-los-ia aprendido à sua custa, e o seu comportamento centrado em si mesmo, aparentemente gelado, nunca teria a possibilidade de ser acalentado por este género de encontro. O “acontecimento” nunca teria ocorrido.

Hoje, a cena da roda constitui um marco da identidade discursiva de Bruno: “Aconteceu-me uma coisa extraordinária, mudei graças a uma roda.” Mas um ciclo de vida, uma existência inteira, não podem encerrar-se logo após o primeiro capítulo. Então, ao recordar o passado, Bruno vai buscar os episódios que permitam continuar a sua transformação e trabalha-os para iluminar a escuridão da sua infância. “Não quero mal à minha mãe por me ter abandonado. Era uma exigência da época. Também ela deve ter sofrido muito.” A história do seu passado, a sua recomposição intencional alivia a sombra que o esmagava. O abandono que impregnara nele a sua triste maneira de amar, tornou-se, na representação de si, um acontecimento, uma ferida, uma falha que, recuando no tempo, ele pôde trabalhar. Determinadas aventuras são metáforas de cada um: “Depois desta roda, compreendi como se podia fazer amigos. Tive muita sorte na vida. A Irmã Maria dos Anjos, quando me levou a fazer os testes de Q.I., soprou-me as respostas que eu tinha de dar. Os meus resultados foram bons. Encaminharam-me para o Liceu. Hoje, sou professor de Letras.”

☼☼☼☼☼

Birgitte Brun, Ernst W. Pedersen, Marianne Runberg

Symbols of the Soul. Therapy and Guidance through Fairy Tales

London, Jessica Kingsley Publishers, 1993

(excertos adaptados)

Os contos de fadas

no cuidado e tratamento de crianças com perturbações emocionais

Este capítulo trata, em primeiro lugar, da utilização de contos de fadas na ajuda a crianças com perturbações emocionais. A ajuda pode ser-lhes dada por pessoas que com elas contactem diariamente,

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por exemplo, os seus tutores. Tanto o meu marido como eu própria trabalhamos com crianças em regime de tutela há muitos anos. Em Beyond the interest of the child (Goldstein et ali., 1973), descreve-se a importância dos chamados “pais psicológicos” na vida duma criança, sejam eles pais biológicos, tutores ou pais de acolhimento. No que diz respeito ao conceito de “pais psicológicos”, o que importa é um desejo sincero e profundo de tomar conta da criança a nível prático e a nível emocional, dando-lhe a oportunidade de ter um desenvolvimento pessoal e social saudáveis.

Obviamente, isto não implica apenas sentimentos positivos. O essencial é que estes sentimentos predominem, baseados num contacto diário feito de partilha de experiências. É isto que dá à criança a possibilidade de sentir que é um membro integrante da família. Para se conseguir uma relação satisfatória é vital que esta seja mútua. Se os sentimentos positivos da criança em relação aos “seus pais” não são recíprocos, a criança nunca se sentirá realmente amada e apreciada por, pelo menos, uma pessoa. Não será capaz de se amar e respeitar a si própria, o que a impedirá de tomar conta de outros quando crescer. É necessária uma vida que lhe forneça um sentimento de continuidade, o que implica estabilidade na vida familiar, no jardim-de-infância, na escola, etc… O desenvolvimento emocional na infância nunca se faz sem sobressaltos. Por vezes, o crescimento pode ser rápido; outras vezes, pode haver uma paragem ou mesmo regressão. A criança precisa de estabilidade e harmonia no seu mundo exterior para compensar a falta de equilíbrio interno. Muitas vezes, tal necessidade é subestimada por aqueles que têm a criança a seu cargo.

Ler contos de fadas a uma criança parece ser uma oportunidade de compensar aquilo de que ela sente falta. O conto de fadas pode inculcar-lhe sentimentos de segurança, previsibilidade e continuidade. Isto acontece na situação de leitura em que a criança e o adulto partilham uns momentos tranquilos antes de se deitarem. Importa criar uma situação estável em que as mesmas coisas se repetem vezes sem conta. A criança torna-se assim capaz de prever a situação; a vida torna-se mais segura e possibilita-lhe ter uma relação mais próxima e calorosa com um ou dois adultos.

Além da situação de leitura, o conto de fadas comunicará estabilidade e segurança à criança através da música e do ritmo que, tantas vezes, caracterizam estes contos. Neles, o tempo não se mede em dias, meses ou anos mas num certo número de provas. É assim que a perspectiva temporal se torna facilmente visível e passível de ser entendida por uma criança. O herói/heroína é, frequentemente, alguém não desejado, perseguido por pessoas/poderes maus mas, no fim, o príncipe fica com a princesa ou vice-versa. Desta forma se comunica à criança – que se sente rejeitada pelos próprios pais – a esperança de se tornar membro desejado de uma família. Quanto às crianças mais velhas, elas aceitarão por vezes – a nível simbólico – sentirem-se ligadas a novas pessoas. Trata-se de um processo frequentemente difícil dado que as crianças estão sobrecarregadas com sentimentos de culpa e têm medo de ser desleais para com os pais biológicos, mesmo se o contacto com estes é muito raro ou já não existe.

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O conto de fadas é como que um elo de ligação entre a criança e a pessoa que dela cuida e é, igualmente, um instrumento através do qual a criança pode receber ajuda na sua caminhada de desenvolvimento harmonioso. Não se pode pedir a uma criança pequena que nos conte os sentimentos que teve durante a primeira infância: como era viver longe de casa, provavelmente sem nenhuma relação com os pais. Contudo, muitas crianças conseguem referir um conto de fadas predilecto: ao depararmo-nos com este conto e ao identificarmos cuidadosamente os símbolos que são importantes para a criança, pode-se atingir uma compreensão das necessidades e sentimentos da criança.

Para abrir caminho às experiências pessoais da criança, parece ser relevante escolher contos de fadas que possam ser lidos ou contados sem ilustrações. A criança fica assim livre para criar as suas imagens interiores. Se lemos ou contamos a história, a criança pode mesmo sentir-se encorajada a tomar as rédeas e acabar a história como e quando quiser. Talvez desenhe ou pinte as suas próprias ilustrações. Um paciente de psicoterapia fez as suas próprias ilustrações enquanto escutava uma passagem dum conto. As imagens mostravam as transformações que o herói tinha de enfrentar. Mas, ao mesmo tempo, era óbvio que também ilustravam as dificuldades, a ansiedade e confusão em que o paciente se encontrava. O herói corria grande perigo. Foi então que a terapeuta decidiu dedicar algum tempo aos desenhos. Desenhou um colete de salvação para resgatar o herói em perigo e, através do desenho, tentou estabelecer, verbalmente, uma ponte com a realidade.

A partir da realidade, ela pôde levar o paciente de volta à história e juntos puderam encaminhar-se para um final feliz. Quando nos deslocamos de uma área para outra, temos a oportunidade de orientar o paciente através da história. A tensão interna e os sentimentos de ansiedade tornaram-se menos intensos e mais suportáveis. É possível, por um curto período, chegar perto dos problemas do paciente e permitir que ele liberte, de forma realista, alguns desses sentimentos e se possa criar novamente um equilíbrio quando se retomar a história. Da mesma forma, ao contar uma história, a pessoa empenhada no bem-estar da criança poder-lhe-á fornecer um colete de salvação – se a criança dele precisar. Esse colete pode ser fornecido por palavras ou pela proximidade física (no contacto entre a criança e o adulto).

Estrutura e símbolos nos contos de fadas

Os contos de fadas apelam para nós a dois níveis. O primeiro nível tem a ver com o imediato e o espontâneo: boas e más forças lutam umas contra as outras e as boas saem vencedoras. O herói funciona como um modelo a imitar na medida em que é uma projecção do “Si Mesmo” (o nó mais íntimo da Consciência) que ajuda o ego a evoluir. A aparência imediata tem a ver com o ego consciente, visto que a criança sempre se identificará com o herói. O segundo nível faz apelo ao inconsciente por meio de símbolos profusamente representados nos contos de fadas. Neste nível

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inconsciente, a criança relacionará os símbolos com os seus conflitos internos. Gradualmente, ela poderá tomar consciência dos seus conflitos e aceitar ajuda para os trabalhar.

Bettelheim explica isto da seguinte forma: “Dado que tudo nos contos de fadas é expresso com uma linguagem simbólica, a criança poderá não tomar em conta aquilo para que não está ainda preparada e responder apenas àquilo que lhe é dito a nível da superfície. Mas é-lhe igualmente permitido desvendar, camada por camada, alguns dos significados escondidos por detrás do símbolo, à medida que se vai preparando gradualmente e sendo capaz de dominar esse símbolo e dele tirar proveito.” O tempo e o espaço nos contos de fadas têm um valor eterno devido ao seu carácter abstracto. As personagens são claramente descritas como sendo boas ou más e o seu comportamento não se altera de forma imprevisível, o que poderia perturbar a criança. Outro aspecto importante é a sua orientação para o futuro, normalmente positivo: “Enquanto que a fantasia é irreal, os bons sentimentos que nos oferece sobre nós próprios e o nosso futuro são reais e estes bons sentimentos efectivos são aquilo de que precisamos para nos apoiar”, diz ainda Bettelheim.

O conto de fadas não nos fala de uma solução feliz que se atingiu sem qualquer esforço. As mais variadas histórias falam todas de um certo problema que só se resolve quando o herói ou a heroína se submetem a provas e a sofrimentos. Isto significa que a criança não ultrapassará a sua crise até estar pronta para evoluir por meio de um combate e até que seja capaz de reconhecer, de forma ampla, o seu problema, e tenha assim atingido a maturidade. Através dos contos de fadas, a criança auto-motiva-se para fazer algo, para ser activa.

Através de um registo eminentemente simbólico e arquetípico, o conto de fadas dá assim à criança a oportunidade de expressar sentimentos de catarse e aliviar a sua tensão interna. Mostra-se à criança a possibilidade de reparar, a nível simbólico, as suas feridas. Nasce, deste modo, um novo ser.

☼☼☼☼☼

Katherine Paterson

Um Coração à Escuta (The Spying Heart)

New York, E.P. Dutton, 1989

(excertos adaptados)

Um coração à escuta

A tarefa básica da educação é cuidar da, e alimentar a, imaginação. A forma mais antiga de educação consistia em contar histórias. Hoje, as histórias foram relegadas para o reino da frivolidade. Agora, a educação consiste mais em trabalhar com computadores do que em cultivar a imaginação. Podemos decidir em que anos vamos ensinar que factos, funções ou palavras, e podemos dar ao aluno um teste de escolha múltipla para saber se assimilou o que queríamos que assimilasse. Queremos

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compartimentar a matemática e a mitologia, porque sabemos que a imaginação é algo de selvagem e incómodo. Dado que não podemos medi-la objectivamente, qualquer disciplina do currículo que tenha a ver com o crescimento da vida interior de uma criança é classificada de frívola, o que faz com que a eliminemos por completo, ou que a coloquemos à margem.

Recordo o choque que senti quando fui visitar uma escola nova na área onde resido. Vi as salas de aula, o ginásio, o laboratório de economia doméstica, a sala de artes industriais, e reparei que nenhum deles tinha janelas. A minha guia elucidou-me, dizendo que há estudos que provam que as janelas levam os alunos a uma perda de tempo, já que se distraem a olhar lá para fora. Não teci comentários, mas sei perfeitamente que, se sobrevivi à minha educação escolar, foi devido às janelas das minhas salas de aula. O crescimento da imaginação exige janelas – janelas através das quais possamos olhar o mundo e janelas através das quais possamos olhar-nos a nós mesmos.

As histórias antigas funcionavam como janelas deste tipo. A história fornece-nos uma linguagem para lidar com o desconhecido. Modela o caos e enche-o de sentido. Tem de nos dizer algo que já sabíamos, mas que não sabíamos que sabíamos. Exigimos que as crianças sejam criativas, que desenvolvam a sua imaginação a partir do nada. Se elas falham nessa tarefa, culpamos a televisão e os jogos de computador. Esquecemo-nos de que precisamos de cultivar e desenvolver a relação entre as imagens que guardamos dentro de nós e a forma de as exprimirmos exteriormente.

Este processo enceta-se quando lemos histórias às crianças desde muito cedo, mesmo antes de elas compreenderem as palavras. Devemos ler-lhes narrativas antigas, mas também partilhar com elas obras mais recentes. A criança sente que pode aventurar-se e que pode, no entanto, regressar sempre ao aconchego do lar, o que lhe permite expandir as suas viagens interiores.

No ano passado, numa conferência pediram-me para fazer parte de uma mesa-redonda que englobava dois psiquiatras e uma assistente social. O tema em debate era o uso da literatura no tratamento de crianças com distúrbios psiquiátricos. Declinei o convite porque não gosto que se diga a uma criança o que ela deve extrair de determinado livro. Sentei-me no fundo da sala e ouvi o que aquelas pessoas tinham para dizer. Foi uma experiência muito gratificante ver como elas acreditavam no poder curativo da imaginação.

Nunca prescreviam um livro a uma criança. Eram leitores assíduos e tinham nos seus gabinetes uma enorme quantidade de livros. Depois de conhecer melhor uma criança propunham-lhe a escolha de uma obra entre várias. A criança fazia a sua própria selecção e não se sentia obrigada a falar sobre o que tinha lido. Quando a criança não gosta de um livro, seja porque não lhe diz nada seja porque lhe diz coisas que não quer ouvir, deixa de o ler.

Há tempos, recebi uma carta da dona de uma livraria que tinha para venda um livro que traduzi do Japonês. Contava-me que, um dia, uma senhora entrou na loja e lhe pediu um livro sobre a morte, para o dar a ler à menina de dois anos que trazia consigo. A dona da livraria tentou saber se a morte tinha a ver com uma avó ou com um animal. Mesmo em frente à menina senhora disse: "Acontece que o pai dela matou a mãe dela e depois se suicidou." Tive exactamente a mesma reacção que vocês estão a ter ao ler isto. Nunca ninguém escreveu um livro para uma situação desse teor.

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Mesmo que o tivessem escrito, duvido que tivesse sido publicado ou comprado. O filho da dona da livraria sugeriu o livro que eu tinha traduzido:A mulher do grou. Embora reticente, aquela vendeu o livro. Passada uma semana, a senhora veio dizer-lhe que o livro tinha ajudado a criança. A carta dela destinava-se a agradecer-me, em nome de todos eles.

Temos de agradecer, de facto, mas não a mim. Escolhi traduzir o livro por causa do seu poder imaginativo. O grou ferido que volta à vida sob a forma de uma jovem, constrói um tear e esconde-o atrás de portas de papel, pedindo ao marido que nunca a observe enquanto ela tece. A tecelagem parece enfraquecer a jovem esposa mas o tecido que deriva desse esforço tem uma beleza fora do comum, e o marido pode vendê-lo a um preço muito elevado. Mas, à medida que o tempo passa, o homem torna-se avarento e consumido pela curiosidade. Quando não consegue resistir mais, abre a porta e vê que o tecelão é um grou ensanguentado, que arranca as próprias penas com o bico para as transformar em fio.

Quando li isto, percebi que a arte é um tecido feito através das penas do nosso próprio peito. Só que ninguém pode ser testemunha do processo. Ninguém; nem o próprio tecelão. Os seus pensamentos e sonhos devem ser deixados em paz. A razão, a cobiça e a impaciência devem ser vigiadas. Se não, a mulher do grou pode levantar voo e ir embora, para sempre.

☼☼☼☼☼

IPLB

Maria do Rosário Pontes

Referências

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