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Do mais coletivo dos sentimentos coletivos à mais privada das emoções privadas: uma leitura de "No exílio", de Elisa Lispector

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA - UFSC CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO - CCE DEPARTAMENTO DE LÍNGUA E LITERATURA VERNÁCULAS

ANA BEATRIZ MELLO SANTIAGO DE ANDRADE

“DO MAIS COLETIVO DOS SENTIMENTOS COLETIVOS À MAIS PRIVADA DAS EMOÇÕES PRIVADAS”: UMA LEITURA DE NO EXÍLIO, DE ELISA LISPECTOR

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“DO MAIS COLETIVO DOS SENTIMENTOS COLETIVOS À MAIS PRIVADA DAS

EMOÇÕES PRIVADAS”: UMA LEITURA DE NO EXÍLIO, DE ELISA LISPECTOR

Trabalho de Conclusão de Curso - Letras – Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas do Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina, apresentado como requisito indispensável à obtenção do grau de bacharel em Letras.

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“A literatura e a história contêm episódios heroicos, românticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles não são mais do que esforços para superar a dor mutiladora da separação.” (Edward Said)

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Agradecimentos

À minha orientadora, professora Simone, pela acolhida à minha ideia de pesquisa, por me fazer acreditar que estudar, ler e pensar literatura é um belo ofício a se seguir. Por me ensinar que nossas escolhas são políticas e, por isso, escolher dar visibilidade a uma mulher invisível ao cânone da literatura brasileira valeria a pena. E valeu, professora.

À professora Tânia, pelos quatro anos de nuLIME, pelas trocas diárias de conhecimento, por compartilhar comigo seu entendimento de vida e de literatura, pela oportunidade que tive de ter trabalhado em núcleo de pesquisas desde a primeira fase da graduação, ido a congressos e aprendido a pesquisar literatura.

Ao querido, professor e amigo, Jair Zandoná, pelas leituras indicadas, pelo apoio, pelas ideias, pelos eventos, e por toda a consideração que teve comigo todas as vezes em que lhe procurei em busca de conselhos. Também por me mostrar o quanto estar envolvida em mil e uma atividades é produtivo e faz bem.

À minha avó, Ruth (in memoriam), por toda a dedicação, amor e carinho. Por ter me ensinado que a simplicidade é a maior qualidade que o ser humano pode ter, por ter vivido seus noventa e nove anos com saúde e sabedoria. Por me contar sempre histórias de sua vida e me incentivar a ir sempre em busca daquilo que acho certo.

À minha mãe, Silvana, por ter priorizado meus estudos e minha formação como ser humano. Por ter me ensinado a ser uma pessoa justa, correta e honesta. Por incentivar o gosto à leitura, ao teatro e às demias artes. Por me apoiar e não me deixar fraquejar nos momentos mais difíceis. Por tudo, mamãe.

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Ao meu pai, Nivaldo, por me apresentar a boa música, os bons livros, as biografias. Por ter sido sempre presente, pelas trocas de ideias, pelo apoio, pelo bom humor de sempre e a tranquilidade.

À minha irmã, Ana Luíza, primeira pessoa que me disse que deveria fazer Letras e me fez realmente acreditar que seria uma boa ideia. E foi. Obrigada pelos conselhos de irmã mais velha, pelas trocas com a historiadora, por me entender e me apoiar.

Ao meu namorado, Artur, por ser minha calmaria em momentos de tormenta, dando o apoio necessário para mim da maneira mais carinhosa possível. Por ser presente até nos momentos de ausência, fazendo companhia até quando estava longe.

Ao cunhado, Pedro, que já se tornou um irmão de consideração, pelas risadas garantidas, pela leveza, e pelas muitas trocas de leituras.

Às amigas Ana Carolina e Larissa, pela presença desde a infância, pela cumplicidade, a confiança, a parceria, os conselhos, o apoio, o carinho e a amizade da vida inteira.

À amiga Marina, que me acompanha desde o primeiro dia de aula da graduação, sendo minha dupla dinâmica em muitos dos trabalhos. Agradeço a convivência diária, a ajuda, a companhia e a amizade, que vai da UFSC para a vida.

Às amigas de nuLIME, Julinha, Olívia e Tanay, por terem me acompanhado desde o início, sendo ótimas colegas de trabalho e tornando-se amigas queridas.

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RESUMO:

O presente trabalho tem por objetivo principal apresentar uma leitura de No exíio, romance de Elisa Lispector. A leitura apresentada se faz pelo viés da autoficção, das narrativas de exílio e da narraão em forma de memória e testemunho. Para cumprir tal objetivo, foi necessário um entendimento sobre em que contexto histórico se passa o romance e qual a perspectiva de seu narrador. No romance, Elisa Lispector narra o movimento de exílio de uma família judaica da Ucrânia ao Brasil. A leitura ora apresentada ressalta o tom de registro histórico do romance, calcado em uma narrativa de memórias da autora. O que comprova tal leitura é o cotejo feito entre dados biográficos e aspectos do romance.

Palavras-chave: Elisa Lispector, autoficção, memória, exílio, testemunho.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO p. 7 1. CAPÍTULO I: ELISA LISPECTOR, O ROMANCE E O CONTEXTO

1.1

ELISA LISPECTOR : QUEM ? p .10 1.2 O CONTEXTO HISTÓRICO: REVOLUÇÃO RUSSA, DESDOBRAMENTOS, EXÍLIO 14

1.3

OS RETRATOS ANTIGOS : REGISTROS DE ELISA LISPECTOR 17 2.

CAPÍTULO II :A LEITURA AUTOFICCIONAL DO ROMANCE NO EXÍLIO, DE ELISA LISPECTOR

2.1 O ROMANCE 21

2.2 A LEITURA DO ROMANCE COMO AUTOFICÇÃO 24 3.

CAPÍTULO III: EXÍLIO E TESTEMUNHO: ELISA LISPECTOR E A NARRATIVA DO TRAUMA 31

CONCLUSÃO 39

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho começou a ser idealizado após a leitura de Retratos antigos, quando “conheci” Elisa Lispector. Afeita a (auto)biografias que sou, muito me interessei pela narrativa de Elisa. O que eu realmente buscava ao ler/ver os Retratos era justamente saber da família Lispector aquilo que Clarice não contou. Foi o que encontrei, narrado de maneira detalhada por Elisa Lispector. O que mais chamou a atenção não foi, então, apenas a história dos antepassados de Clarice que tanto busquei; foi a escrita de Elisa. A partir dessa leitura, tornei-me mais atenta ao nome Elisa Lispector.

Tempos depois, numa prateleira da Livraria Cultura, em São Paulo, repleta das obras de Clarice Lispector, um livro jogado por cima dos outros me chama a atenção: No exílio, de Elisa Lispector. Sem hesitar, comprei, não mais em busca da história de Clarice, mas buscando ler o que tinha a dizer Elisa Lispector. E muito ela me disse. No livro, por vezes triste, conheci uma escritora que se ocupava mais do passado que do presente e do futuro. É nítida a preocupação da autora dos

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dois livros supracitados em deixar registrada para a posteridade a história da sua família, desde seus mais distantes antepassados, muitos dos quais nem conheceu, até a sua própria história.

Ao pensar no meu desconhecimento sobre a autora, que comecei a ler em função do interesse por Clarice Lispector, nome incontestável do nosso cânone literário, concluí que pesa sobre a obra de Elisa Lispector o processo de invisibilização que sofreu ao longo de sua carreira de escritora. Curiosamente, após conhecer Elisa por causa de Clarice, passei a buscar Elisa em Clarice: foram necessárias leituras biográficas sobre Clarice Lispector para que chegasse a vestígios de Elisa. Essa busca por Elisa nas biografias de Clarice é justificada pelo fato de No exílio ter alto teor autobiográfico, portanto, para que se compreenda o romance como autobiografia, são necessárias as leituras acima citadas.

A perspectiva que adoto para minha leitura é pautada nas questões de escrita de memória, autoficção e narrativas de exílio. Para tanto, foi necessário um entendimento sobre em que contexto histórico se passa o romance e qual a perspectiva do narrador. Em No exílio, Elisa Lispector narra com riqueza de detalhes o movimento de exílio de uma família judaica da Ucrânia ao Brasil: pai, mãe e três filhas são as personagens do texto da escritora. O plano de fundo do romance é a Ucrânia devastada após a invasão russa, o quotidiano da viagem, os costumes judaicos, e, finalmente, o Brasil dos anos vinte aos anos quarenta do século passado.

Uma leitura paralela de Retratos antigos também é base para este trabalho, visto que as primeiras anotações de Elisa para essa publicação datam dos anos quarenta, época em que é publicado No exílio. O subtítulo que a autora deu ao livro: Esboços a serem ampliados, demonstra seu intuito de ampliar, de fato, as páginas que escreveu. Infelizmente, não houve a ampliação dos esboços que Elisa Lispector almejava.

O objetivo do trabalho é, portanto, ler o romance No exílio através da perspectiva da memória, do testemunho e do exílio. As aproximações com os Retratos antigos auxiliam na leitura do romance como autoficção.

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Para o desenvolvimento do que se propõe, o trabalho se estrutura da seguinte maneira: no primeiro capítulo, será apresentada Elisa Lispector. Pela falta de conhecimento que se tem nos dias de hoje sobre sua biografia, acredito ser necessária esta apresentação. Há, também neste capítulo, uma reflexão acerca do contexto histórico da vinda da família Lispector para o Brasil: o que deixaram na Ucrânia e as condições em que vieram, e o que encontraram, no Brasil. O capítulo encerra com uma breve leitura e discussão de Retratos antigos, o livro de imagens da família publicado por Elisa Lispector.

No segundo capítulo, dedico-me a apresentar o romance No exílio, acompanhado de uma discussão teórica que justifica sua leitura como autoficção.

No terceiro e último capítulo, há uma reflexão acerca da temática do exílio na literatura, pautada, também, na discussão sobre a escrita de testemunho. Tudo isso abordando o romance No

exílio, foco do presente trabalho e, quando pertinente, também os Retratos antigos, como forma de

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CAPÍTULO I: ELISA LISPECTOR, O ROMANCE E O CONTEXTO

Tempo que transcorreu, existências que se findaram...Que restou dos personagens desses retratos, além de uma descendência não muito numerosa? Talvez a memória.

ELISA LISPECTOR

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Elisa Lispector (1911-1989), nascida em Saravan, na Ucrânia, em 24 de julho de 1911, foi uma escritora brasileira. Aos dez anos de idade, veio com a família (pai, mãe e duas irmãs mais novas) para o Brasil em exílio, em decorrência dos desdobramentos da Revolução Russa de 19171. A Revolução culminou na invasão da Ucrânia, país onde morava, com o intuito russo de expansão territorial. Passou a infância em Maceió, a mocidade em Recife e, já adulta, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, em 1937. Foi funcionária pública federal do Ministério do Trabalho, estudou sociologia e crítica de arte. Lançou seu primeiro romance, Além da fronteira, em 1945. No exílio (1948) é, portanto, seu segundo romance. Em 1963, lançou, pela Editora José Olympio, O muro das

pedras, romance que no mesmo ano recebe o prêmio José Lins do Rêgo e, no ano seguinte, recebe o

prêmio Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras. A escritora não se casou e não teve filhos, tendo deixado como herdeiras sua irmã, Tânia, e, posteriormente, a sobrinha Márcia.

Atualmente, o pouco que se conhece da biografia da escritora advém da biografia de sua irmã, a conhecida escritora Clarice Lispector. O que encontramos na biografia e fotobiografia de Clarice são citações do romance de Elisa, além de uma parte de um capítulo dedicada à obra autobiográfica de Elisa Lispector, que narra, de maneira ficcional, o que Clarice não quis: sua origem ucraniana e a religião judaica, a qual, mesmo que não fosse seguida, foi base da criação das irmãs. Enquanto Clarice foi, aos poucos, sendo valorizada dentro do cânone da Literatura Brasileira, Elisa sofreu um processo de apagamento. Talvez o reconhecido talento da irmã mais nova tenha pesado nesse processo de invisibilização. Talvez essa invisibilização tenha ocorrido justamente pelo fato de a obra de Elisa ter uma preocupação nítida em deixar registada a história da família, o que, não sendo interesse da irmã Clarice, possivelmente não chegou a interessar o mercado editorial.

Abaixo, cito o trecho de Clarice, uma vida que se conta, de Nádia Gotlib, dedicado a apresentar uma leitura da obra de Elisa Lispector:

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O romance se inicia quando a narradora, Lizza, ao fazer uma viagem de trem, ouve pessoas em tumulto comentando a notícia da proclamação do Estado Judeu, em 1948, ano da escrita do romance e da sua primeira edição, no Rio de Janeiro. Nesse momento, vem à lembrança da narradora o êxodo judeu de que participou, com fatos “espantosamente vívidos: fugas, desditas, perseguições”, que vão ocupar toda a primeira metade do romance, em cenas de violência e miséria. Ao iniciarem a viagem de exílio, por exemplo, são atacados barbaramente por cossacos, que roubavam todo o ouro que os viajantes levavam. E uma das cenas mais fortes do livro é a que narra o momento em que os russos ‘brancos’ (czaristas), vencidos pelos ‘vermelhos’ (revolucionários bolchevistas), chegam à Ucrânia, espalhando terror. (GOTLIB, 2009, P. 123)

No contexto da biografia da célebre irmã, Elisa Lispector figura como coadjuvante, porém, com importante papel: o de dizer o que por Clarice não é dito. Ao longo de anos, Elisa Lispector dedicou-se a escrever a história de sua família através da perspectiva do álbum fotográfico familiar. O livro Retratos antigos, publicado em 2012, por Nádia Gotlib, vinte e três anos após sua morte, foi escrito ao longo dos anos sessenta e setenta, com anotações que datam desde os anos quarenta, o que demonstra o desejo da autora de registrar a história de sua família e de seus antepassados. Nos Retratos antigos - este é o nome dado ao álbum cuidadosamente organizado e anotado por Elisa Lispector - , é possível notar o viés autobiográfico do texto, bem como a questão da memória, que aparece na escrita da autora. Ao rever o álbum de fotografias da família e ser questionada sobre ele pela sobrinha-neta, a escritora mergulha num processo de rememoração: das pessoas, dos ritos, das festas. Logo no primeiro capítulo do livro, ela defende a importância dos momentos de recordação e de se ter um registro escrito das memórias da família, para que as próximas gerações conheçam a história de seus antepassados. A partir das fotografias, emergem as recordações dos hábitos da cultura judaica. Assim, Elisa Lispector inicia seu texto:

Vive-se em nossos dias atribuladamente e tão à beira do risco que mal dá tempo de parar para pensar, muito menos para recordar. Talvez por isso, sempre que mexo nos meus guardados e deparo com o velho álbum de família, detenho-me a relembrar até onde posso, e a querer penetrar num passado que nem sempre foi o meu. Pois datam as fotografias do começo do século – algumas até de antes- e não poucas retratam pessoas que nem sequer cheguei a conhecer, mas das quais não me posso descartar. Parece-me um relicário que seria um sacrilégio destruir. (LISPECTOR, 2012, p. 81)

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Por mais que se queira distanciar vida e obra, como propõe Roland Barthes em A morte do

autor, no caso de No exílio, conhecendo a história de vida da autora, é bastante difícil. Porém, não

pretendo, aqui, ler a obra pela vida e sim, fazer aproximações. Elisa Lispector (Leia), nascida em 1911 em Saravan, Ucrânia, é a filha mais velha de Pedro (Pinkhouss) e Marieta (Márian) e tem duas irmãs mais novas: Tânia (Tania) e Clarice (Haia)2.

O romance, que inicia com a cena da notícia da criação do Estado Judeu3 em 1948, é narrado em espécie de flashback: a partir desta notícia e pautada nas narrativas da oralidade, a autora se vê diante de lembranças que, por vezes, não são suas, de tempos antes de ela nascer, quando seus pais se conhecem e, daí por diante, a narração da trajetória da família em exílio e a vida no Brasil. Portanto, a leitura que faço do romance No exílio procura aproximar fatos relacionados à biografia da autora e a ficção por ela construída.

Como exemplo do cotejo entre dados biográficos da autora e cenas do romance, cito a violência dos soldados russos que fez com que Márim (no romance) ou Mánia (na vida real) passasse por um trauma físico que a levou à Hemiplegia (paralisia parcial do corpo)4. A doença da mãe sobrecarregou Elisa (ou Lizza) com as funções da casa, a criação das duas irmãs menores e os cuidados com a mãe.

Em No exílio, a personagem Lizza vive desde os dias difíceis da família na Europa em guerra até a tranquilidade encontrada no Brasil. A família vai se desfazendo de seus bens e chega ao Brasil sem nada, contando apenas com o apoio do cunhado de Pinkhas e Márim. Lizza vê-se crescer antes do tempo. Ainda criança, já cuidava da casa, das irmãs e da mãe doente. Na escola, percebe

2Os nomes entre parênteses são os nomes registrados no passaporte russo da família Lispector . In.: GOTLIB, Nádia Battella. Clarice fotobiografia. 2ª edição- São Paulo; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

3 É assim que a autora se refere à criação do estado de Irsael. In.: LISPECTOR, Elisa. No exílio. 3ª Edição – Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

4Apenas com a publicação de Retratos antigos se tem a informação da origem da doença de Márim: Hemiplegia, causada pela violência dos soldados bolcheviques durante pogrom.(In:LISPECTOR, Elisa, 1911-1989. Retratos antigos: esboços a serem ampliados. Elisa Lispector; Nádia Battella Gotlib, organizadora. -Belo Horizonte : Editora UFMG, 2012.)

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ser mais madura do que as colegas. Sua maturidade precoce se deve justamente à carga excessiva de trabalho e de sofrimento que enfrenta, o que faz com que sua relação com a mãe seja mais complicada. “Lizza abre os olhos. Nada está feito, ainda. Nada. Decididamente sonhou. Aí está todo o trabalho por fazer. E bruscamente uma onda de revolta rebenta dentro dela, enrijecendo-lhe os músculos, endurecendo-lhe o coração.” (LISPECTOR, 2005, p. 120)

A obra é uma mescla dos acontecimentos por que passa a família e as sensações que a personagem tem com relação a eles. Ternura, compaixão, desespero, raiva, medo, insegurança, revolta, amor: tudo isso se passa pela mente e no coração da jovem Lizza.

As leituras de No exílio e Retratos antigos são, portanto, complementares. No romance, pode-se ler, de maneira ficcional, uma possível história da família Lispector, enquanto nos Retratos, a narrativa tem teor memorialístico, pois é assumidamente escrito com base nas memórias de Elisa, memórias estas que são (re)criadas com o objetivo de registrar, para as gerações futuras, as origens da família na Ucrânia.

1.2 O contexto histórico: revolução russa, desdobramentos exílio

O recorte histórico das leituras a seguir apresentadas é justamente do período em que se passam as cenas do romance: A Revolução Russa de 1917, seus desdobramentos, que culminaram na vinda de exilados da Ucrânia para o Brasil, onde a família Lispector desembarca em 1921. Segundo Figes, de 1917 a 1921, a Ucrânia viveu breve período de independência da Rússia. E é exatamente em 1921 que a família Lispector sai do país em exílio. Em 1922, a Ucrânia foi absorvida pela então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Apenas com o fim da URSS, em 1991, a Ucrânia volta a ter independência. Nesse período, inicia o processo histórico de perseguição aos judeus.

O objetivo do presente subcapítulo é apresentar o contexto histórico da vinda da família Lispector para o Brasil, exílio que foi, de maneira autoficcional, o mote do romance No exílio (1948), de Elisa Lispector. A Revolução Russa de 1917, na Ucrânia, teve impacto devastador. As

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invasões em território ucraniano culminaram em mortes, fome, miséria e exílio para quem de lá conseguiu escapar com vida.

Ainda que com o risco de parecermos insensíveis, o modo mais fácil de transmitir o escopo dessa revolução seria listar os modos pelos quais desperdiçou vidas humanas: dezenas de milhares foram mortos por bombas e balas disparadas pelos revolucionários e pelas repressões do governo czarista, antes de 1917; milhares morreram em consequência do Terror Vermelho- e outro tanto por conta do Terror Branco, se incluirmos as vítimas dos pogroms5 contra judeus – ao longo dos anos que se seguiram; mais de um milhão pereceu na guerra civil, incluindo civis, mortos na retaguarda; e mais pessoas ainda caíram de fome, frio e doenças, em número muito superior ao das que sucumbiram pelas demais razões. (FIGES, 1999, p. 11)

O Terror Branco (soldados defensores do czarismo) ao qual Orlando Figes se refere em A tragédia de um povo: A Revolução Russa 1891-1924, atingiu os judeus da Ucrânia com os temíveis pogroms. De maneira violenta, os soldados saqueavam o patrimônio da família, espancavam e matavam os que resistiam e violentavam as mulheres. No romance, quando os soldados invadiram a casa dos Lispector, apenas Márim e as filhas estavam em casa. Márim viveu a violência dos russos.

-Pogroms, crimes nefandos.

-E dizer que o tzarismo acreditava poder afogar no sangue judaico a revolução iminente!

-A revolução veio. Está aí – pensou Pinkhas -, mas não para o judeu. Bandeiras vermelhas, lenços vermelhos – tudo tinto de sangue judeu. Tudo crismado de sangue de judeu! (LISPECTOR, 2005, P. 30)

Nesse contexto tratado por Figes, os judeus foram atingidos pela violência tanto por parte dos czaristas quanto dos bolchevistas. A perseguição, iniciada ainda no regime czarizsta, é mantida após a Revolução bolchevique. Por isso, os poucos bens que sobraram após o pogrom serviram para bancar sua fuga para o exílio, incluindo passagens de trem, navio e suborno de guardas, os quais exploravam quem já nada tinha para lucrarem com as viagens dos refugiados. Em No exílio, é narrada uma percepção da Revolução Russa:

5Pogrom:um ataque violento a pessoas, com a destruição simultânea do seu ambiente. O termo tem sido usado para denominar atos em massa de violência, espontânea ou premeditada, contrajudeus e outras minorias étnicas da Europa. In.: GOTLIB, Nádia Battella. Clarice fotobiografia. 2ª edição- São Paulo; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

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1917. Fadiga. Exaustão. Campos abandonados. Estradas obstruídas. Quebranto de forças e esperanças sumidas. E por toda parte uma dolorosa fome de pão e de sossego – pão, para saciar as ânsias do corpo, sossego e esquecimento para apagar as amarguras da alma. (LISPECTOR, 2005, P. 31)

Conforme Richard Pipes (1997), A expansão territorial da Rússia após a Revolução atingiu a Ucrânia em 1921, ano marcado por violência, fome e miséria dos judeus no país. Ano em que os ataques russos atingiram a família Lispector e, por isso, ano em que vieram para o Brasil. Elisa Lispector contava dez anos; Tânia, seis; e Clarice, apenas alguns meses de vida.

A Ucrânia dividia-se também entre poderes conflitantes. Depois da Revolução de Maio de 1917, instaurou-se, de um lado, o Governo Provisório de Petrogrado (então capital da Rússia) e o Conselho Provisório de Kíev, na Ucrânia; de outro lado, com a guerra civil, foi instaurada uma República Popular Ucraniana, que se manifestava contra o regime bolchevique soviético que desde 1917 proclamara como capital a cidade ucraniana de Khárkiv (na forma russa, Khárkov), fundada no século XVII, e que foi sede da capital da República Soviética Socialista Ucraniana de 1917 a 1934. (GOTLIB, 2009, P. 41)

Acima, trecho da fotobiografia de Clarice Lispector que situa o leitor sobre o momento político que se tinha na Ucrânia no contexto da Revolução Russa, o que ajuda a compreender a eclosão dos conflitos tratados neste capítulo.

O Brasil, na época, viveu um momento de certa estabilidade política (apesar da República do Café com Leite6 gerar alguma insatisfação popular) e econômica, com a valorização do café. O

país não estava envolvido em conflitos externos, o que facilitou a acolhida dos refugiados europeus, vindos de um contexto pós-guerra e pós-revolução russa. A família Lispector passou, então, a morar em Maceió, Alagoas, onde já morava o cunhado de Pedro e Mánia.

A conclusão a que se chega, após realizar leituras sobre todo o contexto que engloba o romance No exílio é de que Elisa Lispector, ao escrever – tanto No exílio quanto Retratos antigos –, teve uma preocupação e um cuidado em registrar a história de sua família. No romance, como

6O nome é dado ao momento político em que cafeicultores paulistas e pecuaristas mineiros alternavam no poder, no início do século XX.

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autoficção, há uma mescla de real e ficcional, portanto, uma liberdade de a autora escrever e de o público ler e tirar suas conclusões. Nos Retratos, apesar de se identificar, um compromisso aparentemente maior com o real, a escrita acontece de acordo com a memória da autora, e é, portanto, também passível de (re)criação e (re)invenção do vivido. O desejo de Elisa Lispector em perpetuar sua história e de seus antepassados é o que leva seu leitor a uma viagem no tempo, nos costumes e nos ritos dos judeus do início do século XX.

1.3 OS RETRATOS ANTIGOS: REGISTROS DE ELISA LISPECTOR

Imagem do passaporte russo da família Lispector, emitido em Bucareste, em 27 de janeiro de 1922. In.: LISPECTOR, Elisa, 1911-1989. Retratos antigos: esboços a serem ampliados. Elisa Lispector; Nádia Battella Gotlib, organizadora. -Belo Horizonte : Editora UFMG, 2012, p. 53.

A imagem acima é dos raros registros da família completa: pai, mãe e as três filhas Lispector. O retrato foi feito para o passaporte da família em Bucareste e utilizado no documento, que seria a porta de entrada no Brasil. O livro Retratos Antigos apresenta texto de Elisa Lispector

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sobre ver o álbum de fotografias de seus antepassados, com apresentação de Nádia Gotlib, pesquisadora de Clarice Lispector e, agora, de Elisa Lispector. Já na apresentação, Nádia Gotlib destaca a preocupação da autora em deixar registrada, por escrito, a história de seus antepassados. É interessante notar que as primeiras anotações, do que se tornaria o livro datam, dos anos 1940, mesma época em que Elisa Lispector publicou seu segundo romance, No exílio, tema central do trabalho que ora se apresenta. Logo, é possível tratar os dois livros como leituras complementares, já que ambos demonstram a preocupação da autora em narrar a história de sua família – no romance, na esfera do ‘micro’, ou seja, da família nuclear, enquanto nos Retratos, na esfera ‘macro’, portanto, seus antepassados mais distantes.

Nos Retratos antigos, Elisa Lispector escreve sobre seus antepassados, os quais se tornam “personagens” de sua narração. O foco da narrativa são as tradições judaicas: festas, ritos, alimentação.

Na dedicatória, Elisa inclui seus sobrinhos, em especial Márcia, quando diz “Atenção, Márcia”, num apelo para que a sobrinha leia e entenda sobre os costumes judaicos de seus antepassados. A motivadora da escrita, sua sobrinha-neta Nicole, também é citada na dedicatória.

[…] no relato de memória, Retratos antigos, assumidamente em primeira pessoa, visões e construções de personagens-pessoas surgem a partir da visão de fotos do álbum de pessoas da família, o que permite a montagem sofisticada de uma dupla ação narrativa, pela letra e imagens. (GOTLIB, 2014, p. 65)

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Na imagem acima, fotografias de Pinkhas Lispector e Mánia Krimgold, que viriam a ser os pais de Elisa, Tânia e Clarice. Os retratos aparecem sem legenda escrita no álbum.

A ideia de ver o álbum de fotografias é central no texto.

Passo a mão sobre o álbum, antes de abri-lo. Talvez tenha ele próprio uma história que eu desconheça. Em todo caso, direi que é um álbum aristocrático. Capa e contracapa trabalhadas em alto-relevo e caprichado desenho em metal dourado, lembro-me, mas que, com o tempo, se foi fragmentando e se desprendendo aos pedaços. Também as folhas, em grossa cartolina, estão gastas, e algumas desfalcadas de fotografias que foram sendo subtraídas, ou descoladas e perdidas. (LISPECTOR, 2012, p. 87)

Elisa Lispector, no texto, vê o álbum de fotografias da família e vai contando histórias de seus familiares (mesmo daqueles que nem chegou a conhecer, o que traz ares de ficção ao relato) à sobrinha-neta Nicole - filha de sua sobrinha Márcia, portanto, neta da irmã do meio, Tânia - que também aparece como espécie de “personagem” do ato de ver os retratos.

De fato, trata-se de uma apresentação dos antepassados dessa família Lispector por uma de suas descendentes: Elisa. Talvez uma das características principais do texto seja mesmo esse voltar-se para o passado, mas não como simples rememoração, e sim como uma espécie de cerimônia respeitosa, numa releitura da história que evoca valores há muito creditados nas marcas dos hábitos e costumes desse grupo de trabalhadores rurais e de comerciantes que a narradora faz questão de registrar com detalhes sutis e de rara delicadeza. (GOTLIB, 2012 p.57)

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As imagens do álbum vão suscitando diferentes lembranças/sensações na autora do relato. Os tios, avós e demais parentes surgem como

[...]“personagens” da história. E a simples visão das imagens provoca a volta aos fatos e situações do passado, que certa vez “animaram” tais figuras. A volta às figurações de origem, aos seus próprios fantasmas, causa uma nova configuração das pessoas, revistas nas suas relações sociais de contexto familiar, com seus hábitos, costumes, rituais, alegrias e tristezas, júbilos e tragédias. (GOTLIB, 2012, p. 61)

A leitura que ora apresento dos Retratos tem por principal intuito complementar a leitura de No exílio e, por conseguinte, busca justificar a interpretação do romance como texto de autoficção, fazendo justamente o cotejo entre dados biográficos da autora e cenas do romance de memória de Elisa Lispector. Retratos antigos, portanto

Não se trata mais apenas de uma simples, leve e corriqueira lembrança. O leitor terá, diante de si, o registro condoído, intenso e quase desesperado de uma narradora que conta, de dentro, a experiência dolorosa da perseguição, que acabou ocasionando a migração dos Lispector para o Brasil. (GOTLIB, 2012, p. 62)

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CAPÍTULO II :A LEITURA AUTOFICCIONAL DO ROMANCE NO EXÍLIO, DE ELISA LISPECTOR

Aliás, era tão difícil compreender uma porção de tantas outras coisas. Muitas pessoas não estavam em seus devidos lugares, e sempre aconteciam coisas que não deveriam suceder. Dentro de si mesma esbarrava constantemente numa quantidade de obstáculos e contradições. Olhar para dentro de si própria era como perder-se numa caverna sem fim.

ELISA LISPECTOR

2.1 O ROMANCE

O romance No exílio (1948), de Elisa Lispector, começa com a narrativa da viagem de uma família judaica ucraniana ao Brasil, em 1921, em fuga da violência consequente da Revolução Russa de 1917. Conforme visto no capítulo anterior, após a Revolução, houve invasões russas nos países vizinhos – dentre eles a Ucrânia – com o intuito de expansão territorial. Tais invasões ocorriam de maneira violenta, por meio de pogroms, um dos quais atingiu a família da protagonista do romance, a jovem Lizza. São personagens do romance, além da personagem, seus pais, Pinkhas e Márim, e as duas irmãs mais novas: Ethel e Nina.

–Pogrom, palavra sinistra – murmurou Pinkhas, contraindo os lábios com raiva. – E pogroms só se fizeram em relação aos judeus. Kolchak, Denikin, Yedenich, que lembram esses nomes, senão incêndios, violações, massacres? Massacres de judeus, sobretudo.

Pinkhas fitou a mulher com ternura. O que ela presenciou, quanto sofreu! (LISPECTOR,2005, p.33)

O que Márim presenciou foi a invasão dos russos a sua casa. Os invasores destruíram os pertences da família e a residência. A violência que sofrera foi o estopim para que a família decidisse sair do país. A saída da Ucrânia aconteceu de maneira tumultuada, tendo a família passado por várias cidades antes de sair do país, passado dificuldades e tendo de subornar os soldados para que a fuga fosse segura. Em decorrência desse pogrom anteriormente citado, Márim

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adquiriu uma paralisia parcial do corpo, doença que fez com que Lizza assumisse os cuidados da casa e da família.

No decorrer do romance, são narradas também lembranças da família na Ucrânia, como, por exemplo, o arranjo do casamento de Pinkhas e Márim. Além das lembranças, muitas advindas daquilo que a autora ouviu de e sobre seus antepassados, é narrada a chegada da família ao Brasil, onde já moravam os tios maternos de Lizza, Dora e Henrique, os quais não foram receber os imigrantes e dispensavam tratamento rude aos familiares, fato que marcou a memória da narradora.

A tristeza do lar é uma marca presente no romance:

Poucas eram as famílias que os visitavam, porque Márim era doente, e a casa triste e pouco convidativa para estranhos. De longe em longe, (Pinkhas) levava a filha mais velha ao clube israelita. A mãe dizia que era preciso ir, que não se importassem com ela. Lizza ia. Mas era como sair de um barco e jogar-se ao mar. Sentia-se deslocada naquele meio onde não conhecia ninguém e era diferente de todos, parecia-lhe. (LISPECTOR, 2005, p. 117)

Esta sensação de não-pertencimento de Lizza com relação à cultura judaica que o pai lhe apresentava também é vista no convívio com as colegas de escola. Logo, Lizza não se sentia nem pertencente à cultura judaica, nem uma menina brasileira comum.

Convencera-se de que as relações com meninas de sua idade não mais seriam possíveis. Sofrera durante as aulas, vendo-se demasiado crescida para estar entre as crianças que apenas se iniciavam nas letras; nos recreios, a sensação de mal-estar aumentava.

-Diga cadeado, diga.- As crianças cercavam-na e a apoquentavam, com maldade. -Ca-de-a-do – repetia, pondo acento em cada sílaba, com medo de errar. A meninada ria, pulava em torno, uma puxando-lhe a saia, outra, o cabelo maltratado. Suportava, de dentes cerrados, contendo-se para não dar parte de fraca. Se chorasse, seria pior. Então as crianças cansavam-se desse brinquedo e abandonavam-na no meio do pátio, como uma coisa inútil. Lizza ficava sozinha, a um canto, esperando o recreio acabar. A alegria ruidosa das outras não a contagiava, mesmo quando se mostravam benévolas e condescendentes para com ela, a imigrante. (LISPECTOR, 2005, p.107)

A morte prematura da mãe foi momento de tristeza, dor e culpa para Lizza:

Por toda uma longa noite, eles velaram à cabeceira de Márim, ouvindo-lhe o arfar penoso e tentando captar o sentido de palavras débeis como um sopro. Depois chegaram aos ouvidos de Pinkhas e de Lizza os sons da oração fúnebre, proferida

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entre o pranto de amigos que acorreram. Lizza começou a sentir o coração doendo muito, uma dor como dilacerá-la até o âmago. (LISPECTOR, 2005, p. 141)

Posteriormente à morte de Márim, Lizza manteve-se cuidando das irmãs, ainda meninas, e deu prosseguimento aos seus estudos. Teve dois relacionamentos amorosos, porém, deixou explícito para o pai seu desejo de não se casar e de querer estudar.

Pinkhas contemplava a filha com pasmo. “Que tempos estes, os que corriam? E sua filha, ele simplesmente a desconhecia. Que reservava o destino escolhido por ela? Dizia querer continuar a estudar. Mas que bem poderia advir para uma mulher de muito saber? Por outro lado, como não ceder, se, através dela, revivia seus próprios sonhos fracassados?” Sem confessar, orgulhava-se de Lizza. (LISPECTOR, 2005, p. 148)

Uma das grandes angústias de Lizza está justamente na questão de dar orgulho ao sofrido pai. Sem saber, o fez, mesmo que tendo optado por não se casar e não levar a tradição judaica à sua nova família.

Alguns anos se passam e, novamente, os judeus viram alvo do ódio e da violência antissemita. Dessa vez, o algoz é o austro-húngaro Adolf Hitler (1889-1945) que, com sua doutrina nacional-socialista (nazista), pregava o extermínio dos judeus e a soberania da raça ariana. Nesse período, houve o que ficou conhecido como holocausto, genocídio do povo judeu. Em No exílio, Elisa Lispector trata do assunto, já adulta, através do ponto de vista da personagem e deu seu pai: “O resquício de ódio e violência que ficou germinada no seio do povo alemão extravasava, como lava vulcânica, as sombras estendendo-se sobre a terra, espalhando o luto e a dor sobre culpados e inocentes por total. ” (LISPECTOR, 2005, p. 151).

Vicente, seu namorado, que não era judeu, não compreende a tensão de Lizza com relação ao holocausto, já que ela e seus familiares já haviam fixado, há muito tempo, residência no Brasil. Lizza tenta, então, explicar o sentimento de ser judeu: “-Tudo quanto ocorre no mundo inteiro – respondeu – tem um significado profundo para o judeu. Onde quer que o vendaval irrompa, é primeiramente ao judeu que ele castiga.” (LISPECTOR, 2005, p. 160). Num momento posterior, a morte do pai marca a narrativa: “Numa noite de céu claro, o ar transparente e tépido, o

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silêncio como a envolver a Terra inteira, Pinkhas adormecera para não mais acordar. “ (LISPECTOR, 2005, P. 186). Após a morte do pai, Lizza viu-se sozinha, pois as irmãs, já casadas, tinham suas famílias para se dedicar e em que se amparar.

Ao final do romance, Lizza é internada num sanatório e, em dezoito meses, tem alta. O romance encerra com uma reflexão acerca do sentido da vida, na visão da autora:

Mas o poder da luz é mais forte que o das trevas. Sob a pesada crosta de egoísmo e de cegueira, pulsava no homem aquela centelha generosa e pura, o lume que lhe incutia intuição e discernimento para orientar-se na larga estrada da vida. (LISPECTOR, 2005, P. 201)

2.2 A LEITURA DO ROMANCE COMO AUTOFICÇÃO

Elisa Lispector era irmã da também escritora Clarice Lispector. O peso do sobrenome pode ter sido fator relevante no movimento de invisibilização da obra da irmã mais velha. Devido ao conhecimento que se tem da biografia da irmã de Elisa, escritora já considerada canônica, Clarice Lispector (no romance, Nina, a filha mais nova de Pinkhas e Márim), é possível que se leia o romance No exílio, de Elisa Lispector, como um romance de memória, uma vez que há aproximações e identificações possíveis entre as personagens do romance e os familiares de Clarice, descritos em sua biografia, e também entre o contexto vivido pela escritora e o narrado por Elisa Lispector, que tinha dez anos no momento de vinda da família Lispector para o Brasil. Há uma leve mudança no que diz respeito aos nomes dos membros da família Lispector na Ucrânia – Pinkhouss, Mánia, Leia, Tania e Haia- no romance No exílio – Pinkhas, Márim, Lizza, Ethel e Nina -e no Brasil – Pedro, Marieta, Elisa, Tânia e Clarice, respectivamente.

Os nomes do pai, da mãe e das duas irmãs, Tania e Elisa, ou são exatamente iguais ou muito semelhantes entre si. A alteração mínima ao mesmo tempo favorece a relação de semelhança sem desmanchar a da diferença. O cotejo entre dados aí narrados e registros documentais de pessoas da família permite constatar que a história que aí se conta é a da família Lispector. Toques ficcionais de semelhança (bem urdidos) permitem então o trânsito entre o campo dessa realidade familiar e o campo da ficção, sem, naturalmente, afetar ou prejudicar o poder, em si, de sustentabilidade da própria estrutura romanesca. (GOTLIB, 2012, p. 65)

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Em No exílio, é perceptível o desejo da autora, já adulta, de deixar o registro escrito, em forma de romance, do que viveu, através de sua perspectiva. Outro dado relevante para a leitura que se faz são os elementos extratextuais, como, por exemplo, o prefácio do romance, que apresenta a autora Elisa Lispector e os dados biográficos que se tem da escritora. Aqui podemos ver confirmada a concepção de Philipe Lejeune, um dos mais consagrados autores dedicados ao estudo da autobiografia:

Um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica. Inscrito, a um só tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles. O autor se define como sendo simultaneamente uma pessoa real socialmente responsável e o produtor do discurso. (LEJEUNE, 2008, p. 23).

Portanto, conforme uma leitura da obra da autora pela perspectiva de Lejeune, Elisa Lispector é uma pessoa que publica: uma mulher, de origem judaica, ucraniana, moradora do Brasil, no século XX.

Apesar de o narrador ser em terceira pessoa, a personagem principal, Lizza, é o sujeito cujo foco nos revela o ponto de vista e a voz de Elisa Lispector no texto No exílio. E, assim sendo, é pela perspectiva da criança, jovem e, posteriormente, adulta, que o leitor do romance se guia: acompanha o movimento de exílio da família, as angústias de menina-moça de Lizza, o convívio com as tradições judaicas, as perdas da mãe e, posteriormente, do pai, a solidão. Logo, é possível que o leitor do romance veja Elisa em Lizza, mesmo não sendo a escritora personagem ou narradora da trama.

A leitura que se faz do romance No exílio destaca a linha tênue que há entre a autobiografia e a ficção. O viés adotado é o do espaço biográfico, definido por Leonor Arfuch como espaço textual de fusão de romance, autobiografia e romance autobiográfico:

Qual o limiar que separa a autobiografia de ficção? “Sob a forma de autobiografia ou confissão [dirá Starobinski], e apesar do desejo de sinceridade, o “conteúdo” da

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narração pode escapar, se perder na ficção, sem que nada seja capaz de deter essa transição de um plano para outro” (p. 67). Assim, mesmo quando o caráter atual da autobiografia, ancorada na instância da enunciação, permitir a conjunção de história e discurso, para tomar as célebres categorias de Benveniste (1966, p. 242) , fazendo dela uma entidade “mista”, não poderá escapar de um paradoxo: não somente o relato “retrospectivo” será indecidível em termos de sua verdade referencial, mas, além disso, resultará de uma dupla divergência, “uma divergência temporal e uma divergência de identidade” (Starobinski, [1970] 1974, p. 72; os itálicos são meus.) (ARFUCH, 2010, p. 54)

Em No exílio, é perceptível a dualidade que Arfuch chama de indagação do mundo privado

versus consciência histórica. Ao mesmo tempo em que são narrados os dilemas interiores da

jovem Lizza, o plano de fundo é a invasão russa na Ucrânia, a guerra, a devastação e o exílio da família. A narração da viagem, do quotidiano, das tradições judaicas, da doença da mãe e dos costumes faz com que se construa para o leitor um panorama do contexto específico em que se encontrava a autora/narradora. Portanto,

O espaço biográfico assim entendido - confluência de múltiplas formas, gêneros e horizontes de expectativa - supõe um interessante campo de indagação. Permite a consideração das especificidades respectivas sem perder de vista sua dimensão relacional, sua interatividade temática e pragmática, seus usos nas diferentes esferas da comunicação e da ação. (ARFUCH, 2010, P. 59)

A autoficção é um caminho de leitura também possível para o romance No exílio, visto que:

Apesar de ser difícil fazer a separação clara entre personagem/narradora/autora […] deve ficar claro que mesmo a figura da escritora já é uma ficcionalização, porque não há como escrever sem organizar, selecionar, dar ênfase, ocultar ou velar. (FIGUEIREDO, 2013, p. 10)

Em No exílio, há justamente essa dificuldade em dissociar personagem, narradora e autora. A narradora em terceira pessoa narra a trajetória de Lizza, a protagonista do romance, este, por sua vez, escrito por Elisa Lispector. Como já citado anteriormente, a vida dos familiares da personagem tem significativas e frequentes aproximações com os membros da família Lispector. Pai, mãe e três filhas, no romance, representam, também, os familiares da escritora Elisa Lispector. No romance autobiográfico clássico existe identidade nominal entre personagem, autor e narrador, o que

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acontece em No exílio, visto que Lizza (personagem) e Elisa (autora) têm nomes quase iguais foneticamente.

Para Elisa Lispector, a escrita autobiográfica pode ser entendida com uma terapia, um modo de externar os fantasmas do passado e se livrar deles, num processo de autoreflexividade: o autor reflete sobre si mesmo, fazendo uma (re)leitura daquilo que viveu/sentiu. Dubrovsky propõe que: “Mesmo querendo dizer a verdade, se escreve falso. Se lê falso. Loucura. Uma vida real passada se apresenta como uma vida fictícia futura. Contar sua vida é sempre o mundo às avessas”. (Dubrovsky: 1989, p. 92 apud Figueiredo, 2013, p. 11).

Estão presentes no extratexto elementos que induzem o leitor a ler o romance como uma escrita mais ou menos autobiográfica. No caso de No exílio, as informações sobre a autora aparecem na orelha do livro e em uma breve apresentação – de uma página- antes do primeiro capítulo. A fragmentação do sujeito, questão pertinente às literaturas contemporâneas, faz-se presente no romance de Elisa Lispector. Nele, a leitura da autoficção encontra a escritora em diversos momentos de memória diferentes: ora narra-se o passado mais remoto, ora são tratados temas mais atuais. Focado no presente, o sujeito/autor vai se projetar sobre o passado, criando, assim, uma narrativa de memória individual e coletiva. Essa mescla temporal dá ao leitor a possibilidade de ler, na personagem Lizza , a autora Elisa. Para pensar a autoficção, Dubrovsky propõe que seja:

Ficção, de acontecimentos e fatos estritamente reais; se, se quiser, autoficção, por ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, fora da sabedoria e fora da sintaxe do romance, tradicional de novo. Encontro, fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou de depois da literatura, concreta, como se diz na música. Ou ainda: autoficção, pacientemente onanista, que se espera agora compartilhar seu prazer (DUBROVSKY, 1977, p. 10 apud FIGUEUEIREDO 2013, p. 61)

Dito isto, Dubrovsky postula sobre um novo modelo de romance, no qual podemos situar

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capítulos narrados de maneira fragmentada, de acordo com a memória da autora. A autoficção, logo, contrapõe-se à autobiografia clássica: seria um romance autobiográfico pós-moderno, com formatos inovadores; são narrativas descentradas, fragmentadas, com sujeitos instáveis que dizem “eu” sem que se saiba exatamente qual a instância enunciativa ele corresponde.

Dubrovsky levanta, ainda, a questão da dificuldade de se escrever sobre a própria vida, pois, para o autor, é impossível que se diga toda a verdade, mas tenta-se dizer só a verdade. A proposta da autoficção é, portanto, apresentar ao leitor uma leitura verossímil da vida do escritor. Por essa mesma razão, para Dubrovsky “Não há identidade sólida; mas, ao escrever, ao rememorar, ele se inventa, logo, sua vida adquire um sentido, o que quer dizer que ele é um ser fictício (DUBROVSKY, 1977, p. 22 apud FIGUEIREDO, 2013, p. 71).

Seguindo a proposta do autor, não se deve, portanto, procurar no romance No exílio a identidade real da escritora Elisa Lispector. O que se pode propor é uma leitura de autoficção, na qual identificam-se as personagens com os membros da família da autora; lugares como os frequentados por ela, vivências que talvez tenham sido as da autora. Como exemplo, cito trecho do romance que narra o momento de decisão de Pinkhas trazer a família para o Brasil:

-Vamos para a Amárica, não importa o lugar, contanto que saiamos desse inferno. -Depois, brandamente, por entre a súplica e o desejo de persuasão: - Escuta, Márim, a falar a verdade, ainda não pensei bem para onde podemos ir, mas o que importa neste momento é sair da Rússia. (LISPECTOR,2005, p. 48/49)

Para Vincent Colonna, a autoficção seria um conjunto de procedimentos de “ficcionalização de si” em qualquer tempo, sem se limitar à contemporaneidade. É o caso de No exílio: Uma ficcionalização da autora, que se torna personagem escrita por si, criando, nesse caso, uma autoficção biográfica, na qual Elisa Lispector está no centro do romance. A história contada se oferece ao leitor como sendo verdadeira, ou, ao menos, plausível, verossímil.

A leitura que ora se apresenta do romance No exílio, da escritora Elisa Lispector caminha, portanto, pelo viés da autoficção, pois a proposta do trabalho é apresentar uma análise do romance

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enquanto literatura, notando sua verossimilhança, porém, sem ler a vida da autora através de sua obra.

Os relatos de infância, segundo Denise Escarpit, são

(...) um texto escrito … no qual um escritor adulto, através de diversos procedimentos literários, de narração e de escrita, conta a história de uma criança – ele próprio ou um outro- ou um recorte da vida de uma criança: trata-se de um relato biográfico real – que pode então ser autobiográfico – ou fictício. (ESCARPIT, 1993, P. 24 apud FIGUEIREDO, 2013, P. 44)

O eu adulto que escreve está muito distante, não só temporalmente mas também em termos de identidade, da criança que ele um dia foi. No romance autoficcional de Elisa Lispector, a menina Lizza (re)cria lembranças da autora: a violência na Ucrânia, a longa viagem em exílio ao Brasil, a doença da mãe, as dificuldades de adaptação à nova escola no Brasil, dentre outras tristes memórias da autora, sejam essas memórias reais ou ficcionais, pois as lembranças de infância são fragmentárias e imprecisas, mas condizem, em grande parte, com as informações que temos sobre a trajetória da família Lispector..

Conclui-se, portanto, que os caminhos da memória, da autobiografia e da autoficção estão presentes no romance No exílio, de Elisa Lispector. A leitura que se faz caminha, principalmente, pelo viés da autoficção, pois a proposta, como foi anteriormente citado, é apresentar uma leitura que considere as identificações entre a obra e a vida da autora, percebendo a memória como livre do compromisso com o ‘real’ e, portanto, livre para (re)inventar aquilo que foi ou não vivido.

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CAPÍTULO III: EXÍLIO E TESTEMUNHO: ELISA LISPECTOR E A NARRATIVA DO TRAUMA

Ter raízes é talvez a necessidade mais importante e menos reconhecida da alma humana.

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Como o próprio título do romance de Elisa Lispector sugere, a narrativa central se desenvolve em torno do movimento de exílio vivido pelas personagens principais. O exílio, como anteriormente citado, deu-se em virtude das invasões russas na Ucrânia (1921). O romance de Elisa Lispector inicia com a notícia da criação do Estado de Israel, em 1948:

Nascia-lhe uma doce esperança nos destinos do mundo. A humanidade estava-se redimindo. Começava, enfim, a resgatar sua dívida para com os judeus. Valera ter padecido e lutado. Quantas lágrimas, quanto sangue derramado. Eles não morreram em vão. (LISPECTOR, 2005, p.8)

A visão da personagem sobre o fato é de um recomeço para o povo judeu, agora em um território seu, deixando de ser estigmatizado como povo errante e passando a ter um lugar. A partir daí, surge, no início do segundo capítulo, em flashback, a narrativa de exílio. A viagem da família ucraniana é narrada com riqueza de detalhes sobre os lugares por onde passaram e as sensações da personagem Lizza. Conforme Nádia Gotlib (2014, P. 47):

Essa narradora foi criada por Elisa. Não é Elisa. E a personagem também não é Elisa. É Lizza. Isto é, quase Elisa. A semelhança fonética do nome parece contribuir para que a personagem do romance não seja, na verdade, Elisa, a autora, nem talvez narrador ou narradora, mas que remeta, de certa forma, a esta autora e/ou narradora.

A reflexão acima trata justamente do teor “quase autobiográfico” do relato de Elisa Lispector, o que retoma a ideia do capítulo anterior de ler o romance como autoficção, visto que Gotlib aborda a questão da criação da personagem Lizza, que, por diversos momentos, é o centro da narrativa.

A narração em No exílio é feita em terceira pessoa, mesmo com o foco narrativo estando nas lembranças da personagem Lizza, que representa Elisa Lispector no romance, porém, não é. A narrativa é construída como um espaço de memória da autora, o que deixa evidente o seu teor autoficcional. O ato de escrita do romance, portanto, “deseja perpetuar o vivo, mantendo sua lembrança para as gerações futuras, mas só pode salvá-lo quando o codifica e o fixa, transformando

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sua plasticidade em rigidez, afirmando e confirmando sua ausência — quando pronuncia sua morte. (GAGNEBIN, 2006, p. 11).

O exílio aparece na trama como o evento central a ser narrado, não só o momento da viagem da família como a vida das personagens no Brasil, seus percursos, trajetórias, e, principalmente, o sentimento de Lizza, de ser exilada pelo resto de sua vida Para os Lispector, o exílio foi uma opção de fuga à violência sofrida. Conforme Said:

[...] não falo do exílio como um privilégio, mas como uma alternativa às instituições de massa que dominam a vida moderna. No fim das contas, o exílio não é uma questão de escolha: nascemos nele, ou ele nos acontece. Mas, desde que o exilado se recuse a ficar sentado à margem, afagando uma ferida, há coisas a aprender: ele deve cultivar uma subjetividade escrupulosa (não complacente ou intratável). (SAID, 2001, p. 57)

A subjetividade à qual Said se refere não aparece bem resolvida para Elisa Lispector, visto que a autora praticamente anula sua vida pessoal (não cumpre o esperado para uma mulher de seu tempo, como casar, ter filhos, etc.) em função de uma responsabilidade que toma para si: a de estar presa à memória da família, de registrar as vivências de sua família judaica/ucraniana exilada no Brasil. A função de ser a memória da família – que assume Elisa Lispector, tanto na escrita de No exílio (em forma de romance) quanto na escrita de Retratos antigos (como texto de memória) -chega a ela através de um anseio de seu pai.

Curiosamente, é ele, o pai, que sugere à filha que escreva uma história sobre “um homem que se perdeu”. Esse motivo de peça literária aí aparece como um esboço de história dentro do grande esboço que é o texto de memória de Elisa. Esboço dentro do esboço. Um dos pedaços de vitral desse mural de “destinos descumpridos”. (GOTLIB, 2012, P. 64)

A obra de Elisa apresenta teor de testemunho, pois visa

[…] contar, pela via ficcional, uma história com pilares fundados em territórios que efetivamente fazem parte da história da cultura judaica e da história das famílias judaicas-russo-ucranianas Krimgold (por parte de mãe) e Lispector (por parte de pai). (GOTLIB, 2014, p. 47)

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Dito isto, a leitura que ora apresento de No exílio busca analisar o romance como um testemunho de sua autora, pois a escrita de Elisa Lispector contempla como espaço de memória não só de sua própria família, mas também uma parcela de judeus exilados. A escrita da autora, logo, relata um percurso histórico de perseguição aos judeus: as invasões russas na Ucrânia após 1917 e o contexto da Segunda Guerra Mundial e seu desfecho, com a criação do estado judeu em 1948.

No romance, portanto, Elisa Lispector cria personagens e recria ambientes vividos com o intuito de narrar a saga da família. Usando subterfúgios de ficção, como narrador em terceira pessoa, personagens, descrições, a autora traça o seu testemunho, o qual é descrito como: “Autobiografia disfarçada na forma do romance (...) o percurso da escritora desenha um compromisso respeitosamente sério em relação a valores pessoais, no âmbito familiar, e à cultura judaica, no âmbito coletivo.” (GOTLIB, 2014,P. 65)

No presente trabalho, procuro ler o romance como uma forma de testemunho, visto que:

O testemunho tanto artístico/literário como o jurídico pode servir para se fazer um novo espaço político para além dos traumas que serviram tanto para esfacelar a sociedade como para construir novos laços políticos. Esta passagem pelo testemunho é, portanto, fundamental tanto para indivíduos que vivenciaram experiências-limite, como para sociedades pós-ditadura. (SELIGMANN-SILVA, 2010, p. 12)

Para a família Lispector, a experiência-limite de que trata Seligmann-Silva é o pogrom. A violência sofrida fez com que tomassem a decisão do exílio, pois era a opção que tinham para fugir da violência. Passar pelo momento de registrar seu testemunho foi essencial para Elisa Lispector, já que esse registro fez com que exorcizasse lembranças7.

É, portanto, necessário que se pense o romance como ficção, o que não significa que, nos limites da ficção, não narre algo real. Dentre traços que se podem considerar verídicos dentro da

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narrativa de Elisa8, destacam-se as cenas de terror vividas ainda na Ucrânia. Nessas cenas, o narrador conta com riqueza de detalhes como são os ambientes em que se passa a violência, as reações das personagens a essas violências e, principalmente, focaliza a experiência familiar e coletiva a partir do ponto de vista da personagem Lizza.

Falando na língua da melancolia, podemos pensar que algo da cena traumática sempre permanece incorporado, como um corpo estranho, dentro do sobrevivente. Na cena do trabalho do trauma, nunca podemos contar com uma introjeção absoluta. Esta cena nos ensina a ser menos ambiciosos ou idealistas em nossos objetivos terapêuticos. Para o sobrevivente, sempre restará este estranhamento do mundo, que lhe vem do fato de ele ter morado como que “do outro lado” do campo simbólico. (SELIGMANN-SILVA, 2010, p. 11)

A então sobrevivente Lizza carrega consigo o que Seligmann-Silva trata como estranhamento do mundo, ou seja, para ela, é o sentimento de ser estrangeira de tudo, e até para si mesma. Elisa Lispector trava, em sua obra, uma batalha contra o esquecimento. O desejo de silêncio sobre sua origem que tinha a irmã Clarice é justamente o inverso do desejo de fala e de se colocar em um lugar de estrangeira/judaica em sua fala que tem Elisa.

A narração é um contraponto do não-narrado, bem como a lembrança é contraponto do esquecimento. Para Lívia Reis (2007, P. 80), “a memória existe ao lado do esquecimento, um complementa e alimenta o outro. Para quem conta, a narração combina memória e esquecimento.”. O que se narra é, portanto, resultado desse conjunto de fatores. A ideia de testemunho, para Reis, é a de que, “tem uma conotação política muito marcada que se traduz em permitir o uso da palavra por aqueles que tradicionalmente se encontram excluídos.” (REIS, 2007, p. 79). É o caso de No exílio: através da ficção, uma imigrante judaica/ucraniana toma a palavra para narrar o que viveu, ou viu, ou criou.

O rastro de trauma na narrativa de Elisa Lispector é perceptível em diversos momentos de ação do romance. O trauma atinge todos, é ligado não só à personagem Lizza, mas diz respeito a uma vivência e a um conjunto de sentimentos que são coletivos. Retomando a noção de trauma:

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Parece que as feridas continuam abertas, que não podem ser curadas, nem por encantações, nem por narrativas. A ferida não cicatriza e o viajante, quando, por sorte, consegue voltar para algo como uma “pátria”, não tem nem as palavras para contar, nem os ouvintes afetuosos para escutá-lo. (GAGNEBIN, 2002, p. 127)

A sorte de viver em algo como “pátria” Elisa Lispector não teve, tendo se sentido estrangeira no Brasil e não voltando à Ucrânia, lugar ao qual também, talvez, não pertencesse. Para Said: “O exílio, ao contrário do nacionalismo, é fundamentalmente um estado de ser descontínuo” (SAID, 2001 p. 50). Justamente esse evidente sentimento de não-pertencer, de descontinuidade, é marcado no romance No exílio. No trecho seguinte, é narrado, ficcionalmente, o fim da Segunda Guerra, no momento de criação do tão esperado Estado Judeu, que, para a população judaica, seria justamente uma pátria à qual pertencer.

Na hora derradeira, uns riram, outros choraram. Mais uma vez saíram às ruas, gritaram e se embebedaram. Alguns apenas ergueram os olhos para o alto e fizeram uma prece por um morto querido. Muito poucos foram os que oraram por todos os mortos esquecidos. Houve, ainda, os que não interromperam seus afazeres, não beberam nem oraram. Simplesmente ouviram e silenciaram. (LISPECTOR, 2005, p. 189)

Vale lembrar que a Lizza não foi “devolvida” a sensação de pertencimento, que nunca lhe coube, que nunca chegou a conhecer. Foi exilada ainda menina, vivendo radicalmente o exílio, não só em sua dimensão concreta, mas também nos seus aspectos subjetivos mais sutis, o que reafirma a sensação do modo de ser descontínuo.

O exercício de memória realizado pela romancista traz consigo traços de lembrança, rememoração, (re)vivências.

Porque a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente. (GAGNEBIN, 2006, p.44. )

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No caso dos Retratos antigos o testemunho se dá em forma do que Gotlib chama de “remembrança” - para usar um termo arcaico referente a rememorações e lembranças”.(GOTLIB, 2012, p. 59). É justamente o que Elisa Lispector faz ao longo do texto: rememorações e lembranças. Isso tudo com apenas um objetivo: não esquecer.

A narradora de Retratos é, assumidamente, Elisa Lispector. O foco narrativo está centrado nas fotografias da família, e o objetivo é contar a história dos antepassados à sobrinha-neta. As presenças e ausências da memória da autora são registradas, visto que os retratos, em alguns casos, são de “pessoas que nem sequer cheguei a conhecer, mas das quais não posso me descartar.” (LISPECTOR, 2012, p. 81). Como citado anteriormente, a escritora toma para si essa responsabilidade de contar a história da família, com o peso de não se poder descartar de pessoas que nem mesmo conheceu, mas com as quais assume este compromisso de memória.

Outro aspecto tratado por Gagnebin (2006) sobre a questão das memórias (especificamente as do povo judeu num contexto pós-guerra) é o desejo de extermínio dos judeus também para que não houvesse posterior narrativa do horror vivido. Para a autora,

As teses revisionistas são, com efeito, a conseqüência lógica, previsível e prevista de uma estratégia absolutamente explícita e consciente de parte dos altos dignitarios nazistas. Essa estratégia consiste em abolir as provas de aniquilação dos judeus (e de todos os prisioneiros dos campos). A “solução final” deveria, por assim dizer, ultrapassar a si mesma anulando os próprios rastros da existência. (GAGNEBIN, 2006, p. 46)

A obra de Elisa Lispector (aqui, refiro-me a ambas as publicações estudadas neste trabalho, No exílio e Retratos antigos) remonta a um passado, não sempre o seu, para externar o trauma vivido, o qual não pode e não deve ser esquecido

É próprio da experiência traumática essa impossibilidade do esquecimento, essa insistência na repetição. Assim, seu primeiro esforço consistia em tentar dizer o indizível, numa tentativa de elaboração simbólica do trauma que lhes permitisse continuar a viver e, simultaneamente, numa atitude de testemunha de algo que não podia nem devia ser apagado da memória e da consciência da humanidade. (GAGNEBIN, 2006, p. 27)

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Gagnebin destaca a “impossibilidade do esquecimento”, característica notada no romance e, mais evidentemente, nos Retratos, por estarem inacabados e serem publicados como a autora os deixou: esboços a serem ampliados. Na epígrafe, Elisa Lispector chama a atenção para os descendentes, para que não se desvinculem da história dos antepassados.

Outro traço que merece destaque em No exílio é a violência contra o povo judeu, o que lhe confere grau de texto de memória também coletiva. Através das lembranças da autora e do seu ponto de vista, é possível construir, na leitura do romance, uma noção do que os judeus russos-ucranianos sofreram no início do século XX. Sobre as lembranças coletivas, Halbwachs postula:

Mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. E porque, em realidade, nunca estamos sós. (HALBWACHS, p. 26, 1990).

As memórias narradas no romance variam de foco narrativo, aparecendo ora em falas das personagens, ora ao longo das descrições, na voz do narrador. Varia, também, o agente da lembrança: a fala, em alguns momentos, é de Lizza, em outros, calcada na memória de Pinkhas.

Em seguida eles assistiram à implantação do novo regime, como quem pisa em areias movediças. As ruas, de aparência festiva; as lojas, de portas cerradas. Praças e avenidas constantemente apinhadas de gente que trazia lenços vermelhos, fitas, flores e gravatas da mesma cor. Falava-se em liberdade, igualdade, fraternidade, enquanto municipalizavam casas e confiscavam pequenas indústrias.

“Ao judeu”, rememorou Pinkhas”, “fizeram sentir, uma vez mais, que era judeu”. (LISPECTOR, 2005, p. 45)

Para analisar a escrita de Elisa Lispector como registo de memória, como venho fazendo ao longo deste trabalho, é possível considerar que o exilado apresenta o que Said chama de “uma necessidade urgente de reconstituir suas vidas rompidas e preferem ver a si mesmos como parte de uma ideologia triunfante ou de um povo restaurado” (SAID, 2001 ,p. 50). Tendo em vista a reflexão de Said, é possível entender a obra de Lispector como uma vontade de pertencimento, por assim dizer, a um “povo restaurado”, alimentando, em última instância, um desejo e uma utopia de

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pertencimento e de restituição, ao povo judeu, da paz, da pátria e da dignidade que lhe foram extirpadas.

A conclusão a que chego após as leituras e reflexões neste capítulo abordadas é a de que, em suas obras, Elisa Lispector deixa transparecer a dialética entre a celebração de suas raízes e a falta delas. A escritora vive, portanto, numa espécie de não-lugar, pois carrega consigo sempre o sentimento de não pertencer. Mesmo com a proclamação do Estado de Israel, terra prometida dos judeus, em 1948 (curiosamente, ano de publicação de No exílio), a escritora continua a carregar o fardo de ser estrangeira, juntamente à função de não deixar cair no esquecimento toda a violência vivida por seu povo.

CONCLUSÃO

Por que nada é seguro. O exílio é uma condição ciumenta. O que você consegue é exatamente o que você não tem vontade de compartilhar, e é ao traçar linhas ao seu redor e ao redor dos seus compatriotas que os aspectos mais atraentes de estar no exílio emergem: um sentimento exagerado de solidariedade de grupo e uma

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hostilidade exaltada em relação aos de fora do grupo, mesmo aqueles que podem, na verdade, estar na mesma situação que você. (SAID, 2001 ,p. 51)

As palavras de Said ajudam a encerrar este trabalho. A condição de exilada faz com que a personagem Lizza permaneça, ao longo de toda a narrativa, distante de todos e reclusa em sua solidão. Relaciona-se timidamente com todos, mesmo com suas irmãs, não desenvolve laços sociais, não se casa, como era esperado de uma mulher nessa época. O pai sonhara para Lizza um casamento com marido judeu, que levasse as tradições adiante, mesmo que longe da pátria natal. Lizza não realiza o sonho paterno, dedica-se a estudar e a cultivar uma vida solitária.

Caminho semelhante foi seguido pela autora. A maneira que Elisa Lispector encontra para perpetuar os costumes, a vivência do exílio e do trauma, bem como a história de seus antepassados, foge do ideal doméstico previsto para as mulheres de sua época: sua estratégia é a literatura. Através de sua escrita, cria personagens, momentos, situações que mostram ao seu público leitor, ora como ficção (No exílio), ora como texto escrito em primeira pessoa (Retratos antigos), o que viu e vivenciou.

A conclusão a que chego com a leitura apresentada neste trabalho é a de que a romancista escreve como uma responsabilidade assumida: a de registrar o passado de sua família, marcando bem seu lugar de fala: imigrante judaica, ucraniana, nascida no início do século XX e fugitiva do terror bolchevique instaurado em seu país.

O modo que a escritora encontra para registrar seu testemunho é, primeiramente, o romance. Em No exílio, portanto, há momentos em que a narradora se detém ao momento histórico que se vive na Ucrânia, mostrando preocupação com a memória coletiva. Há, também, momentos em que a maior preocupação do romance é mostrar os sentimentos/as sensações da protagonista Lizza diante de tudo que, quando criança, presencia, e que carrega como pesado fardo emocional ao longo de toda sua vida.

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Num segundo momento, ainda com anseios de registro de memória, Elisa Lispector trata de escrever essa história através do álbum de fotografias da família. Sobre as fotografias, (re)cria cenas e personagens, como se dividisse este momento e fruição das fotografias com o interlocutor.

Tanto lendo No exílio, como Retratos antigos, a leitora se depara, logo, com uma escritora madura, que narra a história familiar com riqueza de detalhes, aliando as descrições de pessoas e ambientes com momentos de reflexão. O que justifica, neste trabalho, apresentar ambas as leituras é que Retratos antigos auxilia a leitora a reconstituir, mesmo que com muitas lacunas, um pouco da biografia da autora e, portanto, valida a leitura de No exílio como autoficção.

Concluo, portanto, que a criação literária, o registro do testemunho e a narrativa de exílio são as linhas traçadas por Elisa Lispector ao seu redor, demonstrando uma noção de coletividade do povo judeu, mostrando-a solidária com seus semelhantes e mantendo viva, ao longo da vida da escritora, a sensação de ser exilada.

Referências

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