• Nenhum resultado encontrado

Palavras-Chave: Violência. Relações de gênero. Justiça. República Brasileira

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Palavras-Chave: Violência. Relações de gênero. Justiça. República Brasileira"

Copied!
10
0
0

Texto

(1)

Violência tem gênero?

Crimes de Estupro em inícios do século XX no Brasil

Gleidiane de Sousa Ferreira1

RESUMO:

Este trabalho tem como objetivo discutir sobre a ideia de violência na justiça brasileira no início do século XX, destacando os debates em torno dos crimes de Estupro, definidos pelo Código Penal de 1890 como Violência Carnal. Este crime compunha o leque de práticas que ameaçavam a moral das famílias e os bons costumes, assim como os Atentados ao Pudor, Raptos, Defloramentos e Lenocínios. No entanto, a Violência Carnal era o único descrito pelo Código Penal como prática em que o uso da violência era fundamental para sua definição. Nesse sentido, e tomando como base alguns casos de Violência Carnal na cidade de Fortaleza no início do século XX, busco entender quais os elementos utilizados para a definição do que se entendia por violência, e de que modo essa conceituação construía e/ou reforçava relações de gênero. Assim, destaco algumas indagações pertinentes a esse trabalho: Que tipo de práticas podiam ser vistas como violentas? Quais os argumentos utilizados por representantes da medicina, e especialmente da justiça, para classificar uma relação como violenta? Quais as relações estabelecidas entre sexo e violência nesse período?

Palavras-Chave: Violência. Relações de gênero. Justiça. República Brasileira

Introdução

A violência sexual é um tema de grande discussão em toda a sociedade brasileira, tanto em âmbito médico e jurídico, como nos meios de comunicação, e também, nos mais variados grupos feministas. Nas últimas décadas, esse tipo de violência faz parte das consideradas violências domésticas, e que podem causar danos físicos e psicológicos às pessoas ofendidas. No entanto, diversos grupos de mulheres ativistas e feministas vêm demonstrando que, no cotidiano criminal, as vítimas de violência sexual são recorrentemente consideradas “culpadas”, ou detentoras de parcela de culpa, devido aos seus comportamentos e condutas, muitas vezes, considerados fora dos padrões morais esperados para as mulheres. Um grande exemplo dessas discussões foi o recente fenômeno de organização das Marchas das Vadias no mundo, em que o tema da “criminalização da vítima” foi colocado como um desconforto latente sobre as hierarquias ainda existentes para homens e mulheres quanto aos temas do sexo, do prazer e do exercício de uma sexualidade livre e autônoma.

A abordagem policial e judicial da violência sexual a partir dos modelos e idealizações sobre a sexualidade de mulheres e homens, e também, sobre a relação entre

1 Mestranda em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista Capes-Reuni. Orientadora: Profª. Drª. Joana Maria Pedro. E-mail: gleidiane_cultura@hotmail.com

(2)

essa sexualidade ideal e os modelos de família, não é algo recente. Em fins do século XIX e inícios do século XX, esse tema mobilizou vários debates em âmbito criminal e judicial, especialmente, a partir do início da República Brasileira em 1889. O Código Civil de 1916 e o Código Penal de 1890 foram bastante elucidativos desses debates entre moral, justiça e cidadania republicana, e a forma com que estes construíram e/ou reforçaram relações de gênero2 (SCOTT, 1990) de forma patriarcal, cuja figura feminina era entendida, legalmente, a partir da subjugação aos interesses dos pais e dos maridos (CAUFIELD, 2000). 3

Nas primeiras décadas da República brasileira, a questão da violência sexual estivera relacionada aos temas da honra, da moral e da família, e se constituíram, a partir do Código Penal de 1890, em crimes que se relacionavam a ofensas contra toda uma família e aos preceitos morais da sociedade, e não apenas a crimes que lesionavam a dignidade física de uma pessoa. Nesse Código, a descrição desses delitos estava no Título VIII, que definia os crimes “contra a segurança da honra e honestidade das familias e do ultraje publico ao pudor”. 4 Nesse sentido, crimes como Defloramentos, Estupros, Atentados ao Pudor, Raptos e Lenocínios (“cafetismo”), eram crimes relativos às práticas e condutas sexuais que infringiam os modelos sexuais idealizados para homens e mulheres, e constituíam uma forma de legitimar a atuação disciplinadora do Estado nas relações familiares da sociedade.

Enquanto que o casamento civil se consolidava como instituição primeira para a legitimação das relações familiares do Estado Republicano, e também, como o lugar para o exercício de uma sexualidade “sadia” - defendida por médicos e higienistas do período - e não apenas para os preceitos morais religiosos (MATOS, 2003); as práticas sexuais antes do casamento, a prostituição e as práticas reveladoras de “instintos bestiais” - como no caso da sodomia - foram consideradas ameaçadoras de toda uma

2 A categoria gênero neste trabalho aparece baseada nas definições trazidas pela historiadora Joan Scott, ao enfatizar a importância do caráter relacional dos estudos sobre homens e mulheres, e entendendo que o gênero é uma construção social e cultural das distinções sexuais. Nesse sentido, as legislações civis e penais que vigoraram durante o recorte aqui proposto (1890-1940) são entendidos aqui, como dispositivos de disciplina construídos de forma extremamente generificada, cujas relações de desigualdade entre homens e mulheres era chancelada pela jurisprudência, e justificada pela manutenção da ordem e da segurança da família.

3 Analisando as diferentes perspectivas do Direito que influenciaram os juristas brasileiros, o primeiro capítulo do trabalho de Sueann Caufield esboça algumas discussões sobre como os direitos das mulheres e os direitos da família foram definidos desde o século XIX, e quais os debates que se colocaram para os reformadores da legislação republicana. A autora destaca que, mesmo com algumas dissonâncias, a submissão civil das mulheres às figuras paternas e maritais foi um fator que permaneceu na legislação civil.

4 Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil. DECRETO N. 847 - DE 11 DE OUTUBRO DE 1890.

(3)

ordem social que se queria para a sociedade brasileira. Desse modo, na consolidação dos modelos burgueses de trabalho, família e lazer, a sexualidade era elemento importante e estratégico de disciplina para o desenvolvimento e para a modernização.

Idealizando comportamentos sexuais: o recato e o instinto

No Brasil, uma ampla historiografia tratou de discutir o modo como a sexualidade, a conduta e o corpo das mulheres foram importantes alvos de disciplina para a construção de uma moralidade burguesa para a sociedade brasileira de fins do século XIX e inícios do século XX, e foram fundamentais para o estabelecimento de padrões oficializados de comportamento femininos – estes, geralmente relacionados aos parâmetros de comportamentos das mulheres de elite no Brasil.

Trabalhos como os das historiadoras Joana Maria Pedro (PEDRO, 1994), Margareth Rago (RAGO, 1985; 2ª ed. 2008), Raquel Soihet (SOIHET, 1989) e Martha Abreu (ESTEVES, 1989) demonstraram como o recato, o pudor, a virgindade, a submissão, o mito do amor materno, dentre outras questões, foram temas de debates políticos, religiosos, médicos, higienistas, e, especialmente, jurídicos, como forma de reforçar - nesse período de reformas urbanas e de modernização do Brasil - a ideia de que às mulheres cabiam, principalmente, o “papel” de boa esposa e boa mãe, e que deveriam dedicar-se exclusivamente ao espaço doméstico, aos cuidados dos filhos e dos maridos.5 .

Nesse sentido, esses trabalhos apontaram para o perfil elitista com que os modelos de feminilidade e masculinidades eram construídos, visto que, grande parte das mulheres das classes mais pobres não tinham possibilidades de restringir suas vivências ao âmbito doméstico, pois que, muitas dessas mulheres exerciam diferentes atividades de trabalho e organização familiar que não dependiam – e nem podiam depender pela própria possibilidade de subsistência - exclusivamente das figuras masculinas. (SOIHET, 1989). Ao mesmo passo, a idealização das condutas masculinas, principalmente, como “bom trabalhador” e de “pai provedor”, também foram referências centrais para a constituição de uma “norma familiar” (COSTA, 1983) em moldes burgueses na virada para o século XX no Brasil.

5 Apesar de referenciar apenas os trabalhos mais clássicos dessas autoras, é importante destacar que todas possuem uma ampla produção acadêmica que aborda temas transversais sobre esses temas e sobre o período em questão: os feminismos de primeira onda; a maternidade como obrigação para as mulheres e os crimes de infanticídio; e a prostituição.

(4)

Assim, no que se refere à sexualidade, as relações de gênero pensadas pelos discursos oficiais – médicos e jurídicos - sobre a organização social e familiar, se constituíram como elementos fundamentais na construção de um perfil sexual idealizado. Esboçando algumas dessas questões, e enfatizando a forma com que os discursos médicos atuavam na tentativa de naturalizar os comportamentos de homens e mulheres, a historiadora Rachel Soihet afirmou que:

Eram conhecidas como virtudes essenciais ao sexo feminino a fraqueza, a sensibilidade, a doçura, a indulgência, o recato e a submissão. Por todos esses atributos a mulher estava definitivamente destinada ao amor. O homem era o oposto exato da mulher. O vigor físico e intelectual dominavam seu perfil emocional. Este deveria ser mais seco, duro, racional, autoritário, altivo, etc. Dominado por tais qualidades másculas e viris era menos propenso ao amor que as mulheres. Sua verdadeira inclinação era para o desejo do gozo puramente sensual (SOIHET, 1989, p. 115).

Nesse sentido, ao problematizar os crimes de cunho sexual no início do século, vários desses elementos citados por Soihet se destacaram, no cotidiano criminal de diferentes cidades do Brasil, como forma de legitimar os discursos entre os que acusam e os que defendem em um momento de julgamento. Comprovar a condição de vítima de violência ou de alguma ofensa sexual no início do período republicano significava operar com os simbolismos de gênero que demarcavam o aceito e o proibido para homens e mulheres, do ponto de vista sexual. A fragilidade, o recato, a inocência, o pudor, a tentativa de defender-se a todo custo diante de uma agressão como defesa da própria honra eram requisitos importantes para legitimar uma denúncia de violência sexual, especialmente, nos crimes de Violência Carnal (Defloramentos, Estupros e Atentados ao Pudor).

O trabalho pioneiro da historiadora Martha Abreu (ESTEVES, 1989) utilizando como fontes de pesquisa os processos criminais entre os períodos de (1900-1913) como fonte central; e as pesquisas realizadas pela brasilianista Sueann Caufield (CAUFIELD, 2000), problematizando essas e outras questões em âmbito jurídico, dissertaram sobre as conflitivas relações entre os comportamentos idealizados oficialmente para as mulheres, e os comportamentos “transgressores” no Rio de Janeiro do início da República Brasileira. Essas pesquisas buscaram perceber a relação que se estabelecia, nesse período, entre justiça e controle social das pessoas mais pobres daquela cidade, e tiveram como foco central entender os conflitos existentes entre as classes dominantes e as classes populares sobre os temas do amor, do sexo, da moral e da família. As autoras

(5)

consideram que, além das desigualdades de gênero e de classe social, as questões étnico-raciais também apareceram como elementos de disputas discursivas no cotidiano criminal e em âmbito judicial. Uma das questões mais interessantes colocadas nesses trabalhos é a demonstração de que além de um caráter punitivo, o aparato jurídico também atuava de modo educacional, ou seja, ao construir discursos sobre as práticas criminalizáveis - delegados, advogados, promotores, curadores, juízes e médicos-legistas – discorriam sobre as idealizações que os representantes do Estado e as elites brasileiras buscavam para os comportamentos de homens e mulheres, e justificavam suas ações reformadoras sobre os grupos mais pobres.

Na região Nordeste, seguindo a mesma perspectiva, o trabalho da historiadora Andréa Ribeiro da Silva Lessa, denominado Moças Abusadas: concepções de honra e conflitos amorosos em Santo Antonio de Jesus – Bahia, (1890-1940), também buscou problematizar a forma com que a justiça baiana buscou regulamentar as relações amorosas e sexuais entre homens e mulheres, buscando estabelecer ideias de honra, honestidade, pudor e violência de forma bastante hierarquizada e generificada. Esse trabalho leva em consideração, além das tentativas disciplinadoras das elites da cidade em relação às pessoas mais pobres, as desigualdades étnico-raciais, as diferenças entre geração e a religiosidade como forma de entender as especificidades colocadas para a atuação da justiça na cidade de Santo Antônio de Jesus.

Levanto esses trabalhos como forma de apresentar, de forma geral, como os crimes sexuais no início do século estavam diretamente relacionados às construções das relações de gênero desse momento no Brasil - reformas urbanas, consolidação dos discursos médicos e higienistas, regulamentação das relações íntimas por parte do Estado - e esboçavam, nos momentos de definir, classificar e julgar os delitos, variadas relações de poder, como as desigualdades de classe e étnico-raciais.

No entanto, é possível afirmar que as mulheres, cada vez mais, tinham a sexualidade relacionada à função procriativa, e sua honra dependia da manutenção de um comportamento delicado e submisso. E, embora as condutas masculinas também fossem alvo de disciplina nesse momento, o “instinto sexual” e as “necessidades fisiológicas” dos homens eram elementos recorrentemente apresentados no cotidiano criminal, reforçando os aspectos de sexualidade masculina ligada ao desejo e ao prazer, e à feminina, ao amor e à família.

(6)

Os trabalhos aqui apresentados, além de colaborarem grandemente para um estudo mais aprofundado da construção da legislação republicana brasileira, problematizando os princípios que permearam os debates sobre a sua construção, são fundamentais para pensar as tensões existentes quanto às concepções de honra, honestidade, e dos modelos de masculinidade e feminilidade que foram se construindo nas primeiras décadas dos séculos XX. Esses modelos podem ser percebidos na própria organização legal dos crimes de violência carnal, em que a ideia de passividade e inocência eram fundamentais para a classificação, fundamentação e penalização dos crimes de cunho sexual. Um dos delitos mais recorrentes nos Tribunais de Justiça no início do século foram os Defloramentos. As várias pesquisadoras que se dedicaram ao estudo dos delitos sexuais nesse período apontaram para a imensa superioridade desses crimes, em relação aos Estupros e aos Atentados ao Pudor. Segundo o artigo definidor do Defloramento:

Art. 267. Deflorar mulher de menor idade, empregando seducção,

engano ou fraude:

Pena - de prisão cellular por um a quatro annos. (BRASIL, 1890)

Nesse sentido, o Defloramento se referia aos crimes cujas mulheres eram defloradas, “perdiam sua flor”, ou seja, a virgindade. No geral, esses crimes contemplavam as mulheres mais jovens, moças que perdiam a virgindade com namorados, e tinham como possibilidade de “penalidade” o próprio casamento. Esse Artigo fora recorrentemente usado como forma de obrigar o acusado a casar, depois de ter mantido relações sexuais com a moça queixosa. É bastante recorrente que o pai ou a mãe da moça buscasse o auxílio da justiça como forma de limpar a “honra” da filha. A promessa de casamento como uma atividade de “sedução” também fora recorrentemente usada como forma de fazer com que a moça justificasse a sua “concessão” ao rapaz. Dizer que ele prometera casamento, e que teria assumido publicamente um compromisso com a moça, significava responsabilizar o acusado pela “mancha na honra” da ofendida, que só poderia ser limpa, ou com a prisão, ou com o casamento.

Diferentemente dos Defloramentos, os crimes de Estupro - previstos no Art. 268 do mesmo Código - estavam relacionados diretamente à questão da violência. Estuprar significa “abusar” violentamente de uma mulher. Diferentemente do Defloramento, o crime de Estupro podia ser aplicado não apenas em mulheres jovens e reconhecidamente virgens, já que não se tinha a necessidade de que estas

(7)

comprovassem virgindade e inocência quanto às questões sexuais. No entanto, algumas hierarquias baseadas em uma dupla moral que definia a sexualidade feminina entre as “recatadas” e as “não-recatadas” estavam presentes diretamente no texto do Código penal de 1890. O artigo, assim era definido:

Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:

Pena - de prisão cellular por um a seis annos. § 1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta: Pena - de prisão cellular por seis mezes a dous annos.

§ 2º Si o crime for praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a pena será augmentada da quarta parte.

Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com

violencia de uma mulher, seja virgem ou não. (BRASIL, 1890)

A partir da definição legal existente no Código Penal podemos levantar algumas questões importantes. A primeira é que a ideia de honestidade se colocava como forma de hierarquização e disciplinarização das condutas femininas, e aparecia explicitada na definição do artigo, e também, nas distinções entre as penas. Ao acusado que estuprasse uma mulher “honesta” poderia ter decretada a prisão celular de um a seis anos, enquanto que, em caso do estupro contra uma “mulher publica ou prostituta” o acusado teria uma pena menor, entre seis meses e dois anos. Nesse sentido, além da necessidade da mulher primeiramente demonstrar a sua “honestidade” nos casos de crimes sexuais, as mulheres que não fossem consideradas “honestas” pelos representantes da justiça, ou fossem “prostitutas” poderiam ter, de algum modo, suas agressões “legitimadas” pelo próprio código penal.

Tomando como referência os crimes de Estupros (Art. 268) encontrados na cidade de Fortaleza em fins do século XIX e inícios do século XX,6 pude perceber vários dos elementos encontrados nos trabalhos anteriormente citados, principalmente, quanto à questão da honra e da honestidade das mulheres, como fator central de legitimação da queixa de crimes sexuais. No entanto, o objetivo da pesquisa que venho realizando desde o ano de 2012, na Universidade de Santa Catarina, tem como questões primeiras pensar o que poderia ser considerado “abusar” de uma mulher para os discursos oficiais. Quais os atos, gestos e práticas poderiam ser considerados, no cotidiano policial e judicial, atos abusadores de uma mulher? É interessante destacar

6 As fontes utilizadas nessa pesquisa fazem parte do fundo do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, disponibilizadas para pesquisa no Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), na cidade de Fortaleza.

(8)

que, nesse momento, os crimes de violência carnal (Defloramentos, Estupros e Atentados ao pudor), tinham como elemento central a questão da honra. Para além da violência física e sua materialidade, as violências carnais eram entendidas, principalmente, a partir das lesões causadas à honra da pessoa ofendida. Era a mancha da honra, causada por uma prática sexual ilegítima, e menos a integridade física que mobilizava uma ação judicial, e uma punição à figura do acusado. E nesse sentido, a definição do que poderia ser considerado violência, transitava entre as violências físicas e as violências morais que correspondiam os atos sexuais.

Nesse sentido, busquei compreender quais os argumentos utilizados por representantes da medicina, e especialmente da justiça, para classificar uma relação como violenta. E também, buscar compreender quais as associações estabelecidas entre o sexo e a violência nesse período. Os crimes de Defloramento e Estupros são crimes em que as vítimas eram sempre mulheres. Para a proteção da família, e a definição dos Códigos, as mulheres eram figuras centrais de “proteção” e disciplina quanto à questão da sexualidade. Nesse momento, a virgindade e o comportamento recatado foram fundamentais na definição da honra destas, e dos desdobramentos dos processos mobilizados contra possíveis ofensores.

Esse fator foi de extrema importância para a composição dos crimes de Estupro na cidade de Fortaleza. Dos quinze processos cuja denúncia apontava para a classificação no Art.268 encontrados durante o recorte da pesquisa, apenas três correspondiam à praticas de violência contra mulheres adultas, enquanto que a maior parte das ações se referiam à violências cometidas contra crianças menores de doze anos de idade. A questão da menoridade e da inocência da vítima se apresentava como questões legais, e valores implícitos para a confirmação do Estupro, ao passo que às mulheres adultas, para a comprovação da prática de violência eram necessários uma longa demonstração de que a pessoa possuía um comportamento recatado, ou seja, era mulher “honesta”.

O que busco chamar atenção é para a forma com que a legislação republicana no início do século, assim como a prática dos representantes da justiça na cidade de Fortaleza, compunha uma imagem da vítima de crime sexual baseada na inferioridade física, na inocência psicológica e no comportamento recatado para legitimar a denúncia. Esses fatores faziam das vítimas figuras primeiras de investigação em casos de uma violência carnal, e era principalmente mediante a comprovação desses valores que o crime tornava-se passível de credibilidade. A ideia de violência transitava entre os

(9)

valores morais e os elementos físicos que construíam sensos de justiça, ideias de permissividade e de merecimento quanto à questão do delito sexual.

Por fim, mais do que levantar novos dados ou dar novas respostas, o objetivo desse texto foi refletir a forma com que os delitos sexuais no início do século estiveram fortemente marcados pelos valores sociais esperados para homens e para mulheres nesse momento, e que tinham, cada vez mais, os discursos médicos e jurídicos chancelando algumas naturalizações quanto aos temas da sexualidade. A forma com que a ideia de hierarquizar e/ou relativizar as violências de acordo com os comportamentos “idealizados” e condições sociais das vítimas, desde o fim do século XIX vem sendo práticas no cotidiano criminal e judicial recorrentes para as classificações e os julgamentos de delitos sexuais, e continuam sendo um campo de disputas no estabelecimento de padrões de comportamentos de gênero e de sexualidade.

Referências Bibliográficas

CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de janeiro (1918-1940). Campinas: Editora Unicamp, 2000.

BRASIL. Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Código Penal da

República dos Estados Unidos do Brazil. Disponível em:

< http://pt.scribd.com/doc/55636995/1/DECRETO-N-847-DE-11-DE-OUTUBRO-DE-1890> Acesso: 06/07/2013

COSTA, Jurandir Freire da. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

LESSA, Andréa R. da Silva. Moças Abusadas: concepções de honra e conflitos amorosos em Santo Antônio de Jesus – Bahia (1890-1940). Santo Antônio de Jesus: UNEB. Dissertação de Mestrado – UNEB, 2007.

RAGO, Luzia Margareth. Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985

MATOS, Maria Izilda. Delineando corpos: a representação do feminino e do masculino no discurso médico. In: MATOS, Maria Izilda; SOIHET, Rachel (Org.). O corpo feminino em debate. São Paulo: Editora UNESP, 2003. p. 107-127.

SCOTT, Joan W. Prefácio de Gender and politics of history. Cadernos Pagu, n. 3, p.11-27, 1994, p.11.

(10)

Abstrack

This paper to aim to discuss the idea of violence in Brazilian courts in the early twentieth century, emphasizing the debate surrounding the crimes of Rape, defined by the Criminal Code of 1890 as Carnal Violence. This crime composed the full range of practices that threatened the morals of families and the morality in general, as well as the Shame Attacks, Kidnapping, Deflorations and Pimpings. However, Carnal violence was the only type of violence described by the Criminal Code as a practice in which the use of violence was central to its definition. Accordingly, grounded on some cases of Carnal Violence in the city of Fortaleza in the early twentieth century, I try to explore what kind of elements were used to define violence., and how this conceptualization built and / or strengthened relationships gender. This paper proposes some relevant issues: What kind of practice could be seen as violent? What are the arguments used by representatives of medicine and especially justice, to classify a relationship as violent? What are the relations between sex and violence in this period?

Referências

Documentos relacionados

Não basta rediscutir a distribuição e o quanto se paga de royalties, é preciso que este debate enfrente os temas da transparência, do controle social e das

a administração pública federal direta, autárquica e fundacional poderá solicitar a cessão de servidor ou empregado oriundo de órgão ou entidade de qualquer dos poderes da

A autoavaliação consiste em processos de avaliação cíclica dos resultados da instituição, como um todo, no sentido de aferir o cumprimento da sua missão e objetivos.

O candidato que necessitar de condições especiais para realização das provas deverá encaminhar, por meio de correspondência com AR (Aviso de Recebimento) ou

Com o objetivo de compreender como se efetivou a participação das educadoras - Maria Zuíla e Silva Moraes; Minerva Diaz de Sá Barreto - na criação dos diversos

[r]

Por outro lado, no modelo SURGE o conhecimento do comportamento do usu´ ario e do conte´ udo do servidor s˜ ao utilizados para atingir uma melhor aproxima¸ c˜ ao do tr´ afego

• Os municípios provavelmente não utilizam a análise dos dados para orientar o planejamento de suas ações;. • Há grande potencialidade na análise dos micro dados do Sisvan