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A invenção da indução por Aristóteles e o eclipse da cosmologia pré-socrática *

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Academic year: 2021

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A invenção da indução por Aristóteles e o eclipse da cosmologia pré-socrática*

Karl R. Popper

[1] Com a única exceção, talvez, de Protágoras, que parece argumentar contra isso, todos os pensadores sérios antes de Aristóteles teriam feito uma nítida distinção entre conhecimento, conhecimento genuíno, verdade certa (saphes, alētheia; depois: epistēmē), que é divino e somente acessível aos deuses, e opinião (doxa), a qual mortais são capazes de possuir, e é entendida por Xenófanes como conjecturas que podem ser aperfeiçoadas.

Parece que o primeiro a se revoltar contra essa opinião foi Protágoras. No início da sua obra, há uma passagem que ele diz: ‘Nós não conhecemos nada sobre os deuses – nem se eles existem, nem se eles não existem’. Eu sugiro que a sua proposta do homo mensura – ‘O homem é a medida de todas as coisas’ – é derivada dessa, e que seu argumento era como se segue: ‘Sobre os deuses nós não sabemos nada, então não sabemos o que eles sabem. Dessa forma, o conhecimento humano deve ser tomado como nosso padrão, como nossa medida. Em outras palavras, a proposta de Protágoras do homo mensura é uma crítica da distinção predecessora entre mera opinião humana e o conhecimento divino. ‘Portanto, nós devemos tomar o conhecimento humano como nosso padrão ou medida’.

Outros pensadores agarraram-se a opiniões similares, mas todos eles podem ser posicionados historicamente depois de Protágoras: por exemplo Demócrito, cuja cidade

* “Aristotle’s invention of induction and the eclipse of Presocratics cosmology”, in: POPPER, K. R.. The

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nativa era Abdera, a mesma de Protágoras; embora Demócrito fosse, segundo Diôgenes Laêrtios, o professor de Protágoras, fontes históricas mais confiáveis os colocam em ordem inversa. Protágoras foi mais provavelmente um empirista revoltado contra o racionalismo de Parmênides.

Ainda antes de Protágoras – mas somente até Aristóteles – muitos pensadores de importância continuaram a sustentar a opinião de Parmênides e seus predecessores que somente os deuses possuem conhecimento. Isso está perfeitamente claro em Sócrates. É até mesmo mais evidente no muito mais dogmático Platão, porque o dogmatismo de Platão pertence principalmente às leis do Estado; embora ele não desejasse essas leis reduzidas a escrito, elas deveriam ser rígidas e bastante imutáveis. Com relação ao campo que nós agora chamamos de ciência natural, Platão diz explicitamente (no Timeu, por exemplo, mas também em outros lugares) que tudo [2] que ele pode nos dizer é, na melhor das hipóteses, ‘próximo a verdade’ e não a verdade: é, na melhor das hipóteses, próximo a verdade. Esse termo é geralmente usado para traduzir ‘provável’, mas temos que fazer a distinção entre probabilidade no sentido matemático e no sentido totalmente diferente de verossimilhança. Portanto, eu rompo com a tradição de confundir essas duas noções; e visto que não podemos esperar mudar o que os matemáticos querem dizer por ‘probabilidade’, uso o termo ‘verossimilhança’, ou ‘verossimilitude’, especialmente para teorias. A palavra que Platão realmente usa é ‘similar’, e às vezes ele diz ‘similar a verdade’; a palavra está também conectada com ‘similaridade ou semelhança pictórica’, e essa parece, de fato, ser a base da sua significação. Segundo Platão, humanos podem ter somente esse tipo de conhecimento; ele raramente chama isto de opinião, que é o termo geralmente usado, por exemplo, pelo seu contemporâneo Isócrates, quem diz ‘Nós temos somente opinião’.

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O rompimento decisivo vem com Aristóteles. Por mais estranho que pareça, embora Aristóteles seja um teísta – ele próprio possui uma espécie de teologia – rompe definitivamente com a tradição de distinguir entre conhecimento divino e conjecturas humanas. Ele acredita que ele conhece: que ele mesmo possui epistēmē, conhecimento científico demonstrável. Essa é a principal razão pela qual não gosto de Aristóteles: o que para Platão é hypothesis científica torna-se com Aristóteles epistēmē, conhecimento demonstrável. E para muitos epistemólogos do Ocidente, continua sendo assim desde então.

Desta maneira Aristóteles rompe com a sensata tradição que diz que nós conhecemos muito pouco. Ele próprio acha que conhece muito; e tenta propor uma teoria da epistēmē, do conhecimento demonstrável; e sendo um homem engenhoso, e um bom lógico, percebe que sua suposição que há conhecimento demonstrável envolve-o num regresso ao infinito, porque esse conhecimento, se demonstrado, pode ser logicamente deduzido de algum outro, o qual, por sua vez, também deve ser conhecimento demonstrado, e portanto, por sua vez, deduzido de algum outro, etc.

Assim ele chega ao problema: como pode esse regresso infinito ser parado? Ou: Quais são as primeiras premissas verdadeiras, e como derivamos seguramente delas a verdade? Ele resolve esse fundamental problema do conhecimento pela doutrina que as primeiras premissas verdadeiras são enunciados de definições. Aqui ele invoca, pelo menos algumas vezes, um tipo de ‘contradição’ ou ‘ambiguidade’ estranha. Definições, por um lado, fornecem às palavras uma significação pela convenção e são, por conseguinte, certas (analíticas, tautológicas). Mas se elas são apenas convencionais, e por conseguinte, certas, então toda epistēmē é verdade por convenção e por conseguinte certas. Em outras palavras, toda epistēmē é tautológica, deduzida de nossas definições.

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Aristóteles não queria essa conclusão, e então ele propôs que existe, por outro lado, definições que são não convencionais e incertas. Contudo, ele não enfatiza que elas são incertas, somente que elas são o resultado de ‘apreensão da essência das coisas’, e mais sintético; elas são o resultado de indução.

Essa parece ter sido a forma pela qual a indução entrou na teoria do método científico, na epistemologia. Segundo Aristóteles, [3] a indução é o procedimento que conduz o discípulo (ou aluno no sentido de estudante) a colocar-se, numa perspectiva, da qual ele pode compreender a essência do objeto de seu interesse. A descrição dessa essência ele estabelece então por definição como um dos seus princípios fundamentais, a archai. Em Aristóteles esses princípios são definições, e ao mesmo tempo eles se tornam (eu sugiro que pelo mesmo tipo de ‘ambiguidade’ a verdade certa que somente definições convencionais ou tautológicas podem possuir.

O método da indução de Aristóteles é similar à iniciação social do jovem: é o procedimento de aderir a uma perspectiva pelo qual você pode realmente compreender a essência da vida adulta. Induzir é um modo de constituir para as definições uma fonte rica de conhecimento. Mas definições não são assim na realidade: não podem existir tais coisas como definições informativas.

A teoria da indução de Aristóteles – o modo como somos levados a ver, por intuição, a saber, a propriedade essencial, a essência, a natureza, das coisas – é ambígua nesses vários sentidos também: é obtida em parte examinando as coisas criticamente de vários aspectos (como numa discussão socrática), e em parte pela consideração de muitos casos, muitas instâncias delas. O sentido posterior de indução leva a construção de uma espécie de silogismo indutivo. Premissas: Sócrates é mortal; Platão é mortal; Simmias é mortal; etc. Todos esses são homens. Conclusão (a qual, Aristóteles sabe, é

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invalidamente inferida): Todos os homens são mortais. Ou até mesmo a conclusão adicional, que vai a essência do problema: está na natureza de toda coisa gerada que tem que se decompor e perecer.

Como mencionado, o próprio Aristóteles teve a consciência pesada quando introduziu essa teoria. Há dois argumentos apoiando essa conjectura. A primeira é que, apesar da sua frequente objetividade, ela se transforma, de maneira estranha, num subjetivismo em teoria do conhecimento: ela ensina que a apreensão de algo, na intuição dele, o conhecedor e seu conhecimento tornam-se um com o objeto conhecido; uma teoria que pode justamente ser descrita como misticismo.1 Uma teoria que a apreensão e o conhecido são idênticos é, claramente, uma forma de subjetivismo, e muito diferente do objetivismo da demonstração ou do conhecimento silogístico. Porém, de alguma maneira, ela ajuda a superar o abismo sobre o qual a indução oferece uma ponte muito insegura.

O outra indício o qual Aristóteles teve a consciência pesada quando criou a indução é que ele projeta sua invenção da indução sobre Sócrates. Contudo, Sócrates teria sido a última pessoa a reivindicar que ele (ou qualquer homem) possui epistēmē baseado sobre tal procedimento, simplesmente porque ele sempre afirmou não possuir epistēmē: Sócrates [4] diz nada saber, enquanto o próprio Aristóteles afirma isso – embora, o que ele diz, mais literalmente traduzido, é que Sócrates declara-se (ou pretende) nada saber.

Parece muito estranho atribuir particularmente a Sócrates, a responsabilidade pela invenção da indução. O motivo pode ser a ideia de que se Sócrates viu a necessidade da indução, então não pode ser um resultado de uma argumento ruim, um argumento inquestionável. Mas Aristóteles tem que superar duas dificuldades. Ele tem que negar que Sócrates afirmou seriamente nada saber; e, de fato, ele sugere que a profissão de

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ignorância de Sócrates é simplesmente irônica. (Essa é a ‘ironia socrática’). A outra dificuldade é interpretar (ou converter) o método socrático – o elenchus, refutação crítica por contra-exemplos – num método positivo de demonstração.

O que Sócrates tenta, com o seu elenchus, é revelar a ignorância daqueles que acreditam que sabem. No início, eles acreditam que sabem tudo sobre um assunto (virtude, por exemplo); e então Sócrates mostra a eles com ajuda do sensível, casos experimentais – de contra-exemplos – que eles nada sabem. Esse método Aristóteles agora interpreta como um método de busca pela essência por meio provas concretas. Embora essa interpretação tenha uma certa plausibilidade, a conversão do elenchus num epagōgē (demontração indutiva) cria para Aristóteles uma necessidade de invocar a ironia socrática.

Agora é compreensível porque Aristóteles escolhe Sócrates para atribuir a responsabilidade pela invenção que ele próprio teria feito e pela qual ele, como seja, não se atreveu a assumir a responsabilidade. Essa parece ter sido a situação: Aristóteles tem certeza que sabe (e essa certeza de conhecimento o faz um pouco semelhante a Protágoras, que também foi um empirista). Porém, Aristóteles não admite o que Protágoras possa talvez ter admitido – nomeadamente, que o conhecimento humano não é certo. Protágoras pode ter admitido na verdade que, mesmo que sejamos medida de todas as coisas não podemos fazer muito melhor do que fazemos, podemos talvez melhorar um pouco nosso conhecimento, mas não muito, e portanto, temos que tomar o conhecimento humano como medida de todo conhecimento. Isso não é dizer, todavia, que ele acredita na epistēmē na qual Aristóteles acreditou.

Aristóteles foi descrito admiravelmente por Dante como “O mestre de todos os sábios”. Na minha opinião essa é uma descrição correta, mas ele não poderia ser

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admirado por isso, visto que conhecimento no sentido aristotélico é inacessível ao homem. Xenófanes e Sócrates (e Platão também, na medida que ocupou-se com problemas da ciência natural) estão corretos em dizer ‘Não sabemos nada, somente conjecturamos’. Aristóteles foi indubitavelmente um grande cientista (embora não tão grande como Demócrito, quem Aristóteles apreciava mas que Platão jamais menciona e – segundo tradições confiáveis – é possível tê-lo odiado); mas ele foi um erudito preeminente e um grande lógico, a quem podemos agradecer pela invenção da lógica, e um grande biólogo. Há muitas coisas que falar em seu favor, embora suas teorias são todas estudos [5] dogmáticos. Na verdade Aristóteles foi o primeiro dogmático genuíno – nem mesmo Platão, embora um dogmático político, foi um dogmático em epistemologia.

Podemos dizer que o ideal de ciência aristotélico é mais ou menos uma enciclopédia cheia de conceitos, os nomes das essências. O que é sabido sobre essas essências definidas como conceitos, podemos deduzi-las dos conceitos de suas diversas definições e interconexões. Essa é a estrutura de uma enciclopédia dedutiva com todos os seus conceitos obtidos por procedimentos indutivos: a archai da qual podemos então derivar todos os outros por meio da derivação lógica, o silogismo.

Admitidamente, Aristóteles, pela sua teoria da derivação lógica, e pela sua teoria das quatro causas, ou mais precisamente sua terceira causa (a mudança ou causa imediata ou eficiente), atingem uma considerável clarificação do essencialismo de Platão (que, por exemplo, fazia da beleza a causa do belo).2

Todavia, acho que com a teoria de Aristóteles, que ciência, epistēmē, é (demonstrável e portanto) conhecimento certo pode ser dito que o grande

2 Para um estudo minucioso dessa melhora na compreensão e explicação dos fenômenos naturais, ver

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empreendimento do racionalismo crítico grego chegou ao fim. Aristóteles matou a ciência crítica a qual ele mesmo deu uma importante contribuição. A filosofia da natureza, a teoria da natureza, a grande tentativa original em cosmologia, falhou depois de Aristóteles, devido principalmente a influência de sua epistemologia, a qual demandou demonstração (incluindo demonstração indutiva).

Penso que essa é a breve história de como podemos vir a ser dominados pelo que Parmênides teria chamado de “caminho errado”, o caminho da indução.

Referências

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