• Nenhum resultado encontrado

O Enactment como Instrumento de Compreensão de um Processo Psicanalítico

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O Enactment como Instrumento de Compreensão de um Processo Psicanalítico"

Copied!
30
0
0

Texto

(1)

Prêmio de psicanálise de crianças e adolescentes

O Enactment como Instrumento de Compreensão de

um Processo Psicanalítico

Nelson José Nazaré Rocha - SBPSP

O resumo

Após dois anos de trabalho analítico com um

adolescente borderline, um fato criado pelo paciente permitiu ao autor identificar um enactment acontecendo na situação analítica.

Em seguida à apresentação dos elementos clínicos, o autor identifica o referido fato como o catalisador do reconhecimento do enactment, discutindo o conceito e sua aplicação naquela experiência clínica.

O autor discute ainda a validade do conceito de enactment para a compreensão e para o trabalho com os fenômenos clínicos, em suas diferenças relacionadas aos conceitos de acting out e identificação / contra-identificação projetivas. Conclui ressaltando a utilidade do conceito para o esclarecimento de uma situação clínica e afirmando que enactment parece-se mais a uma descrição fenomenológica do que a um conceito metapsicológico.

O conceito

O conceito de enactment tem sido muito usado ultimamente na literatura psicanalítica. A palavra não tem correspondente em Português, como vários dos conceitos psicanalíticos. Seria algo como colocar em cena, encenar, mas não só. Pressupõe sim, uma espécie de encenação, mas é algo além disso. No meu modo de entender, concordando com muitos dos autores, difere do

(2)

conceito de ‘acting’ e ‘acting out’ na medida em que pressupõe uma encenação, uma atuação – também no sentido teatral, não só no sentido de

acting out (ou in1), quer seja, ação no lugar de palavras – em que tanto o paciente quanto o analista tomam parte.

A despeito de ser relativamente novo, já é muito discutido por vários autores. Alguns rejeitam a proliferação de conceitos, postulam que já existe uma infinidade de conceitos novos na nossa ciência e que conceitos já existentes dariam conta de tratar daquilo a que o novo conceito se propõe. Outros defendem o uso do termo, exatamente por permitir salientar a grande diferença com o conceito de acting out, mormente pela conotação negativa que este último adquiriu com o uso. Penso também que a grande validade do conceito de enactment é distinguí-lo do conceito de acting out, por ressaltar seu aspecto comunicativo. Não que o conceito de acting out não tenha sido usado também nesse sentido. Foi, mas, concordando com muitos autores (entre os quais destaco: Roughton, 1993; Boesky, 1998; e, Thomä & Kächele, 1989), o conceito ficou impregnado de conotação pejorativa, designando atos impróprios produzidos pelo paciente, às vezes até com características delinqüenciais e, ademais é usado até para descrever comportamentos do paciente, que fazendo parte de sua própria psicopatologia, nada têm a ver com a situação analítica em si.

Contudo, o maior diferencial do conceito de enactment é seu o aspecto inter-relacional: é a concepção de um fenômeno que ocorre envolvendo a díade paciente-analista, levando, entre outras coisas, à compreensão da contratransferência como uma criação conjunta do paciente e do analista, como diz Gabbard (1995).

Não vou aqui, neste espaço, tecer considerações conceituais sobre o tema, para tanto, recomendo o artigo de Cassorla (2001), onde são levantados vários postulados a favor e contra o conceito. Apenas salientarei um ou outro aspecto dessa discussão.

1

Sobre esta discussão, remeto o leitor ao capítulo “In Versus Out: A Spurious Distinction” do inteligente artigo de Dale Boesky (1998), no qual o autor aponta para o ofuscamento que essa discussão traz para a distinção metapsicológica entre intrapsíquico e ação, concluindo: “Muitas discussões sobre dentro versus fora confundem geografia com metapsicologia.”(p.49)

(3)

Começo por definir como vou utilizar este termo, uma vez que não há uma definição universal. Algumas tentativas de tradução já foram feitas. Alguns autores já usaram “posta em cena”, ou, “colocar em cena”, por exemplo. Prefiro, como outros, utilizar o termo em Inglês, como já fazemos com tantos outros termos estrangeiros de difícil ou impossível tradução (insight, acting,

rêverie, etc.) Entendo por enactment um fenômeno clínico, que pode ocorrer na

inter-relação entre paciente e analista, iniciado por qualquer dos partícipes, mas necessariamente envolvendo uma espécie de encenação inconsciente dos dois – do contrário será uma atuação – na qual ambos representam papéis inconscientemente inter-relacionados e interdeterminados.

Considerando ainda a falta de expressão equivalente em nossa língua, cito uma idéia apresentada por McLaughlin (Panel, 1992) na abertura de um dos famosos Painéis sobre o tema, promovidos pela American Psychoanalytical Association. Este, o de 1989, do qual McLaughlin era o coordenador: “Na fala comum e na definição do dicionário, a palavra

‘enactment’ sugere uma ação, cujo propósito, força e intenção são elevados à alta intensidade. Essa intensidade dá concretude e realidade ao impacto que causa na outra pessoa, implícita no campo da ação. É, portanto, um ato cuja intenção é persuadir ou forçar o outro a uma ação recíproca. A mensagem é expressa em palavras, silêncios, atitudes e particularmente em comunicações não-verbais.” (p.827) (tradução livre)

E assim, partindo desta idéia emprestada, saliento o que considero fundamental na descrição, ainda que fenomenológica, desse conceito: uma ação que tem tal característica de força e intenção que, encontrando no receptor condições que impeçam este último de processar conscientemente os efeitos dessa ação, determina como resposta uma outra ação, com características semelhantes e, desta forma, o processo se desenrola, com maior ou menor magnitude.

O enactment, em seu aspecto comunicativo, costuma veicular atualizações na transferência (Roughton, 1993), traumas, repetições, processos mentais muito primitivos e desta forma acontece uma espécie de formação de compromisso da dupla (Boesky In Panel, 1992), no qual, ao

(4)

mesmo tempo elementos são revelados enquanto outros são escondidos. Isto também já evidencia seu aspecto resistencial, o que não deixa de ser também uma comunicação. De qualquer forma, a função que será cumprida dependerá do uso que o analista puder fazer do fenômeno. Quando um enactment é percebido pelo analista, a análise obterá o que de mais precioso um enactment pode oferecer: compreensão dos mecanismos da dupla, dos mecanismos mentais do paciente e os do analista, o que implicará no desenvolvimento do processo. Quando, ou enquanto não é percebido, cumpre com sua função resistencial, ou, na melhor das hipóteses, segue-se colhendo o que de bom uma formação de compromisso pode oferecer numa situação dessas.

Jacobs (2001) faz uma interessante distinção entre o que ele classifica como enactments “abertos” e “encobertos” (“overt” e “covert” enactments). Afirma que os abertos, os mais evidentes exatamente por esta característica, são logo percebidos pelo analista e tornam-se óbvios e abundantes materiais para análise. Por sua vez, os que ele classificou como encobertos, aqueles mais sutis, não são tão facilmente perceptíveis e podem passar assim por um período de tempo bastante longo, carregando o risco de produzirem outras conseqüências para o processo analítico.2 Este tipo de enactment, “...

condutores primordiais de comunicação entre analista e paciente” (Jacobs,

2001, p.8), carregam mensagens que têm um maior impacto no processo. Também postula este autor que, por estarem na raiz de um impasse que se estabeleceu na dupla, eles têm o potencial de veicular conflitos entrelaçados entre paciente e analista, que assim podem ser compreendidos e a análise retomada.

Apresentarei a seguir material clínico, com o intuito de ilustrar e embasar clinicamente a discussão de um conceito que, como a própria psicanálise, nasceu da clínica. Como a situação, que nessa vivência defini como

enactment, é bastante intensa e complexa do ponto de vista da experiência

emocional, me vejo forçado a uma descrição do desenvolvimento da história clínica do meu trabalho de análise com um adolescente, desde o início. Justifico assim o extenso material clínico que se segue.

2

Penso que podemos postular que os primeiros funcionam num registro de Pré-consciente e os últimos num registro de Inconsciente.

(5)

O contato com os pais

Recebi para a entrevista um casal que desejava tratamento para seu “filho”, Adriano, de quinze anos. O que de imediato chamou minha atenção é o que está contido nas aspas de “filho”: Marcos era namorado de Raquel, mãe de Adriano e fez questão de estar presente na entrevista, uma vez que o casal planejava morar junto, reunindo os quatro filhos (dois de cada).

Apresentaram Adriano como um menino extremamente destrutivo, que quebrava tudo o que tocava, brinquedos, aparelhos eletrônicos, principalmente coisas dos outros. “Um menino que não tem responsabilidade. É preciso ficar

em cima para que ele estude e cumpra suas obrigações. Mente muito, sobre o que faz e sobre o que não faz.” Acrescentaram que ele apresenta enurese e

encoprese (“faz xixi na cama quase todas as noites e muitas vezes faz cocô na

calça”), o que dificulta em muito a socialização de Adriano: fica difícil para ele

sair de casa, ir à casa de amigos, etc., fazendo com que ele se retraia mais ainda.

Ao mesmo tempo em que apresentavam esses “problemas” de Adriano, Raquel ia relatando a história de seu filho, parecendo-me uma tentativa de justificar, do ponto de vista do menino, suas queixas. Nesses momentos, Marcos respeitosamente escutava, mostrando compaixão por Adriano.

Eis a história de Adriano, conforme ouvi nesta entrevista (complementando um dado ou outro com informações que recebi em ocasiões posteriores):

Adriano é o segundo filho do casamento de Raquel com um homem bem mais velho que ela. Era o segundo casamento dele, do primeiro ele tinha duas filhas. Tiveram o primeiro filho, Max, três anos mais velho que Adriano. Quando Adriano nasceu a relação do casal já não era boa. Apresentou o ex-marido como um homem muito agressivo, mal-humorado, e “cheio de manias”. Antes de Adriano completar dois anos o casal separou-se, ficando os meninos com a mãe. Por conta de “uns problemas” (ela tinha de trabalhar para sustentar-se e aos filhos), a mãe viu-se impedida de continuar com os filhos e, com pouco menos de cinco anos, Adriano e o irmão passaram a viver com o pai. A mãe

(6)

chegou a ser impedida de entrar na casa para visitar os filhos e quando o fazia, seus encontros eram no portão. Vez ou outra eles tinham permissão para passar um final de semana juntos. Quando Adriano estava com nove anos o pai teve um câncer. A progressão da doença foi muito rápida, culminando com sua morte em menos de um ano, pouco antes de Adriano completar dez anos. Nos últimos três meses de sua doença, Raquel voltou para a casa do ex-marido para cuidar dele e das crianças. “Ele morreu nos meus braços...”, disse-me ela.

Adriano reagiu muito mal à morte do pai. Raquel contou que tentava dizer ao menino sobre o estado do pai, com o intuito de prepará-lo para a iminente morte, mas “ele negava a doença do pai, fazia de conta que não

entendia o que estava se passando. A morte foi um grande choque para ele”.

Seis meses após a morte do pai, a meia-irmã mais velha de Adriano morreu subitamente. Era com essa irmã que Adriano era mais apegado. Sua morte deixou-o mais abalado ainda.Conta ainda que desde a morte do ex-marido os filhos vivem com ela.

Marcos me contou que separou-se recentemente da mulher e que alugou um apartamento no mesmo condomínio onde Raquel mora com os filhos. Contou que o plano deles era “juntar a família”, numa casa onde caibam todos: os dois da Raquel e seus dois. Para isso estavam tentando resolver algumas questões e os problemas do Adriano preocupavam muito o casal no que dizia respeito a este objetivo: achavam que Adriano fazia essas coisas “de

caso pensado”, “para chamar a atenção”, que com este objetivo, ele mexia nas

coisas dos outros e as estragava; que ele fazia cocô na calça de preguiça de ir ao banheiro, assim como o xixi na cama durante a noite; que ele “não tem

limites”, etc. E acrescentou: “– Mas você vai gostar dele, o Adriano é um menino extremamente simpático e agradável, ele conversa muito, é inteligente e espirituoso!” Por causa disso, na visão de Marcos, ele acabava sendo

mimado e protegido: “Para qualquer coisa errada que ele faça, ele tem sempre

uma história bem estruturada, justificada nos mínimos detalhes para explicar. Daí fica difícil ele levar a bronca ou as conseqüências que muitas vezes seriam necessárias.”

(7)

Perguntei sobre essas conseqüências e eles me disseram que tinham tomado algumas atitudes mais duras com ele, citando como exemplo o fato de ele estar sendo obrigado a lavar suas cuecas quando as sujava e a colocar a roupa de cama na máquina de lavar e a limpar o colchão sempre que acordava molhado, o que acontecia quase toda manhã. Marcos disse que o estabelecimento de conseqüências para as atitudes de Adriano havia sido algo com o qual ele vinha insistindo com Raquel, que segundo ele, tendia a ser

“muito mole” com o filho. Raquel reconheceu isso, bem como os resultados

positivos decorrentes da mudança de sua atitude.

Expliquei a eles minha forma de trabalhar com adolescentes: eu precisava conhecer Adriano, encontrar-me com ele algumas vezes para poder responder a eles se poderia fazer alguma coisa por ele e como. Que daria esta resposta numa entrevista, na qual provavelmente Adriano estaria presente.

Durante esta entrevista tive a sensação de que eles tentavam me passar a imagem de um psicopata que “faz tudo de caso pensado”, que não tem limites, um mentiroso contumaz que, falsamente simpático, conta histórias mirabolantes para enganar todo mundo e que eu tinha de me precaver com relação a isso para não ser enganado também. Penso que fiquei precavido, mas desde esta entrevista esta imagem não me convenceu, e até hoje não sei explicar suficientemente o porquê. Talvez seja a sensação de que o tempo todo eles julgaram o filho para mim, apresentaram todas as suas conclusões, como uma forma de eximirem-se de qualquer responsabilidade presente ou histórica.

O contato com Adriano

De fato, Adriano mostrou ser muito simpático e agradável. Meio constrangido no início, foi logo ficando mais à vontade e me contando coisas de sua vida passada e presente.

Falou muito do pai, da sua morte e da morte da meia-irmã. Falou que não sabia o que acontecia com ele que acabava dando essas “mancadas”, referindo-se às coisas que quebrava ou pegava dos outros. Achava que era meio “desajeitado” e, quando percebia, já tinha quebrado alguma coisa. Contou que por isso, ele não podia usar nenhum aparelho do irmão, nem aparelho de

(8)

som, nem computador. Tinham cada um seus próprios aparelhos, os dele mais antigos ou com menos recursos eram “as sobras do Max. Ele ganha

computador novo e eu fico com o velho! O som dele quebra, ele ganha um novo e eu fico como que ele já escangalhou!”

Sobre a enurese também não conseguia explicação. No começo ficou muito encabulado ao tocar no assunto. Disse que já havia tentado de tudo, desde ficar sem beber água a partir do fim da tarde, até colocar despertador durante a madrugada para ir ao banheiro, mas nada adiantava. “Mas eu já tô

acostumado, de manhã já tiro a roupa da cama, passo no tanque e coloco na máquina. Pego um pano com um negócio que tira o cheiro e limpo o colchão, que é forrado com um plástico bem grosso.”

Sobre a encoprese, disse que acontecia de vez em quando, e também não conseguia entender direito. Achava que “sentia vontade de fazer cocô”, mas que era só vontade, às vezes nem isso sentia e, quando percebia, já tinha feito uma quantidade na cueca. Queixou-se de que desde algum tempo, sua mãe e o Marcos vinham dizendo que ele fazia de propósito, que ele seria capaz de controlar se quisesse, mas isso não era verdade. “Se eu conseguisse você

acha que eu ia querer ficar lavando cueca cheia de merda? É! Porque agora eles me obrigam a lavar!”

Falou bastante da avó materna, de quem gostava muito. Contou-me que seu avô era piloto de avião e que morrera num acidente aéreo antes de sua mãe nascer. Falou também de um tio, irmão mais velho da mãe, e de um casal de primos. O menino era quase da sua idade e ele gostava muito de brincar com esse primo. Ocasionalmente ia à casa dele ou ele à casa de Adriano, mas de qualquer maneira sempre se encontravam na casa da avó. É pródigo nos detalhes sobre as histórias familiares.

Nesses primeiros contatos que tive com Adriano ficava procurando onde estava a psicopatia apontada pelos pais e não conseguia achá-la. Apesar da alegria de Adriano – ele mostrou sempre um refinado senso de humor, fazendo graça de tudo, construindo piadinhas, principalmente com trocadilhos e jogos de palavras – ele transpirava tristeza. Uma tristeza muito profunda, que ele parecia disfarçar com sua vivacidade e muita graça. Muito inteligente, versado

(9)

em vários assuntos, tentava passar-me a impressão de alguém livre e bem relacionado. Nunca me convenceu. Tinha sempre muito clara a impressão de que por trás daquela imagem de conversador residia alguém absolutamente solitário e arredio a contatos.

A hipótese clínica que ia se formando em minha mente era a de alguém muito regredido, alguém que ainda tinha buracos na pele (Bick, 1968), carecendo de formação e fortalecimento de funções de esfíncter (Bick, 1968 e Meltzer, 1975). A agressividade-sujeira vazava por esses buracos sem esfíncter, sem que ele pudesse se dar conta disso.

Com essas idéias em mente e considerando a boa relação que se estabeleceu entre nós, propus análise a Adriano. Expliquei-lhe a forma como trabalhava: o sigilo profissional era garantia para ele, eu falaria com seus pais quando eles necessitassem, sempre com o conhecimento dele e com a possibilidade dele participar da conversa. Nada que dissesse respeito a ele seria falado por mim sem o conhecimento e consentimento dele. Ele aceitou e conversamos sobre a entrevista que teria com seus pais, da qual ele participaria e na qual eu apresentaria a eles esta proposta de trabalho.

Marcamos a entrevista, eles vieram, os três. Foi um momento que me impressionou muito. O que eu via era uma sessão de acusação e defesa, um grupo de ataque-fuga (Bion, 1961). Raquel e Marcos acusando Adriano e ele se defendendo dessas acusações. Falavam das mentiras, da falta de responsabilidade com a escola e com o que não lhe pertencia. Adriano argumentava e contra-argumentava defendendo-se, sempre colocando outrem ou alguma situação como causadores ou responsáveis pelo acontecido, até que não mais agüentou e mostrou raiva, erguendo rispidamente a voz e depois fechando-se, “de bico”.

Na sessão seguinte disse que “nunca mais” queria participar dessas conversas; que tinha se sentido muito mal, que ele não suportava “terapia

familiar”; que eles tinham se aproveitado da presença de um psicólogo para

(10)

A nossa história

Começamos assim o nosso trabalho. Além das queixas sobre a

“pegação de pé” em casa, Adriano falava muito do pai como uma criatura

idealizada, que trabalhava muito, era bravo e duro, mas dava atenção para os filhos o tempo todo, os levava para viajar, etc. “Se ele não tivesse morrido...”

Falava de uma forma muito vitimada da maneira como foi feita a partilha dos bens do pai, descrevendo detalhes de perdas e injustiças sofridas por ele e pelo irmão. Penso que esse movimento de vitimação, aliado ao impacto que sua história de abandonos teve sobre mim e às cenas que vi de acusações a ele (bem como às que pude inferir), me fizeram entrar no mesmo diapasão da dinâmica familiar – grupo de ataque-e-fuga (Bion, 1961) – ora colocando-me como defensor de Adriano, ora tentando fazer o papel do que dá o limite, ora duvidando de Adriano, ora desculpando Adriano, ora culpando Adriano, ora vigiando Adriano, ora sendo vigiado por ele.

Relatarei algumas passagens que acredito serem relevantes para a compreensão da evolução de nossa dinâmica.

Por volta do sexto mês de análise Adriano disse numa das sessões, em tom queixoso: “– Minha mãe agora leva tudo pra casa do Marcos. Tudo que

tem de bom na casa tá indo pra lá... Ontem ela levou um jogo de copos, o melhor que tinha em casa. Eu reclamei e ela falou que o Marcos não tem e a gente não usa mesmo! Gozado, né?” Nessa sessão pudemos trabalhar com

alguns aspectos relacionados à falta sentida por Adriano de um objeto continente. Lembro-me de ter sido uma sessão muito produtiva, mas, apesar dessa produtividade, ficou em mim um sentimento de censura à mãe de Adriano: “Será que Adriano vai passar por mais um episódio de abandono?!”

Pouco tempo depois os pais3solicitaram uma entrevista. A despeito da minha insistência, Adriano cumpriu a palavra recusando-se a estar presente, dizendo que confiava em mim e que, ademais, “...você me disse que vai me

contar tudo o que eles falarem! Por que eu vou vir? Pra agüentar encheção de saco?”

3

(11)

Nessa entrevista eles falaram de alguns progressos de Adriano: ele estava mais dócil, menos agressivo na relação com eles e com o irmão. Por outro lado, os problemas escolares haviam aumentado e o que eles consideravam pior, era a “sujeira, a porquice do Adriano”, seu quarto era a maior bagunça e ela, a mãe, tinha de obrigá-lo a arrumar e limpar toda hora. Conta ainda que, por causa disso, ela tem às vezes passado a noite na casa do Marcos. Nesta conversa eles acabaram indicando que apesar de manterem o objetivo de reunir todos os filhos numa casa, era intenção deles morarem por um tempo na casa do Marcos, só o casal, e que a escolha do apartamento ocorreu em função desta intenção. Apesar de estarem em outra casa, eles estariam ao lado dos meninos. Eles tinham medo de que, naquele momento, a lida com os problemas de Adriano interferisse na relação do casal, no início de vida em comum. Assim ela estava, aos poucos, mudando-se para a casa do namorado. “Mas é devagar. Passo uma noite ou outra lá. Apesar da gente se

conhecer há muito tempo, nunca moramos juntos e precisamos ter alguma privacidade. E de mais a mais, o apartamento do Marcos é no prédio ao lado, dentro do mesmo condomínio, ainda que eu esteja morando lá eu posso estar a toda hora com os meninos.”

Minhas suspeitas se confirmaram. E eu não conseguia me conformar com essa idéia, com o fato do Adriano sofrer mais este abandono concreto. Ressalto que naquela época eu não me dava conta deste meu sentimento de indignação, nem da minha reprovação. Como descreverei adiante, foi só mais tarde que pude me dar conta destes meus movimentos internos. Nesta mesma entrevista apontei para o casal o quanto a questão de abandono era complicada para o Adriano e o quanto ele precisava de continência e contenção.

Com o tempo Adriano foi trazendo associações relacionadas ao Marcos num outro tom; não mais como alguém que “só pega no pé”, mas como uma figura de identificação, alguém que tem o que ser admirado. Marcos é piloto amador de aviões e tinha dois aviões. Nos finais de semana ele costumava voar e levar a família junto. Adriano sempre vinha contando desses passeios e dos aviões, sua mecânica, manutenção e operação, etc. Passou a dizer que

(12)

gostaria muito de ser piloto também, que o Marcos disse que “dava a maior

força”. Como estava terminando a oitava série, resolveu que iria cursar o

Colégio Técnico de Mecânica e que depois se especializaria em mecânica de aeronaves para poder ganhar dinheiro e fazer o curso de pilotagem. Inscreveu-se para a Inscreveu-seleção no Colégio Técnico mais conceituado da cidade e um dos mais disputados da região.

Um dia chegou contando que havia ido a um jantar com sua avó e, em um sorteio, ganhara uma viagem de uma semana para Porto Seguro, com direito a um acompanhante. Entre os dois únicos amigos que tinha (fato que não admitia na época), escolheu o Fred para acompanhá-lo e marcou a tal viagem para a semana anterior ao exame de seleção. A decisão de ir viajar, e com um amigo, surpreendeu a todos, inclusive a si mesmo, em virtude de sua enurese, que sempre foi o grande impedimento para dormir fora de casa. Conversamos muito sobre esta decisão e sobre o quanto ele estava podendo enfrentar situações outrora nem imaginadas.

Viajou, voltou contando que tinha aproveitado muito, que não havia urinado na cama nenhuma noite e nunca contou muitos detalhes desta viagem, a não ser sobre o vôo de ida e o de volta. Assim que chegou, prestou o exame para o Colégio Técnico e surpreendeu-se, e, a todos, mais uma vez, quando da divulgação de seu nome como um dos primeiros classificados na lista de aprovados naquele colégio.

Ficou radiante, não se cansava de fazer planos, de imaginar o quanto iria ganhar de salário como Técnico em Mecânica, na empresa que iria trabalhar, etc. Contrapunha essas idealizações com a constatação dos fatos: o quanto teria que “ralar” para cursar o tal colégio com aulas em período integral, com muitas disciplinas e muito trabalho. Estávamos terminando o ano e completando nosso primeiro ano de análise.

Logo no começo do ano seguinte, assim que começaram as aulas, seus pais solicitaram outra entrevista “urgente”. Mais uma vez Adriano não quis participar. Vieram para dizer que no primeiro dia de aula, no novo colégio, a mãe foi chamada pela orientadora educacional, porque o Adriano tinha furado uma porta da escola. Dentro da sala em que ele estava havia uma porta no

(13)

fundo que dava para uma sala contígua. “– Com a ponta de um compasso ele

abriu um rombo nessa porta! No primeiro dia de aula! Veja o cartão de visitas que ele entrega para a orientadora!”, disse-me a inconformada mãe.

Contou-me ainda que explicou à orientadora que Adriano estava em trataContou-mento e que havia dado a ela meu nome e telefone, caso ela precisasse de “algum

esclarecimento” e, com o mesmo objetivo, me deu o nome e o telefone da

orientadora.

Fazendo analogia com o cartão de visitas, apontei o quanto Adriano tinha dentro de si buracos e vazios e que poderíamos entender sua atitude deste ponto de vista: de fato Adriano estava apresentando seu cartão de visitas. Senti que esses apontamentos não fizeram grande sentido para o casal. Eles continuavam insistindo na agressividade e principalmente na inadequação do filho.

Falaram-me ainda sobre os progressos de Adriano, sua viagem, a surpresa de todos com o ingresso na escola e de como estavam decepcionados com essa atitude dele em relação à escola. Raquel falou sobre sua preocupação com os sobrinhos, filhos do irmão que moravam com sua ex-cunhada, (pessoa que ela não aprova), contando-me que “– Temos sérias

desconfianças que o menino está se envolvendo com drogas, e temos certeza de que as companhias dele não são recomendáveis...” Adriano já havia

comentado que a mãe não estava mais permitindo que ele fosse à casa do primo, ou eles se encontravam na casa da avó ou os primos iam à sua casa; Raquel só confirmou esta história.

Eles saíram e eu fiquei com essa história na cabeça: “Por que Adriano

fez isso? Será que é para já chegar como um incômodo? Num ambiente novo, no qual ele poderia conquistar pessoas, já chegou destruindo? Ele gosta tanto do primo, será que o rapaz está mesmo envolvido com drogas? É tão difícil para ele fazer amizades...”

Na sessão seguinte contei a Adriano sobre a entrevista e ele foi ajudando com perguntas, mostrando-se interessado em saber o que havia sido conversado. Com ares de arrependido contou-me sobre o episódio do furo na porta, dizendo não saber por que havia feito aquilo. Disse-me: “– Tinha um furo

(14)

e eu fiquei cutucando e quando eu vi já tinha aberto um puta rombo na porta! Também, a porta é velha, madeira podre! Mas daí eu tapei o furo com um compensado que tinha lá, achei que ninguém ia notar, mas a vaca da orientadora viu e deu todo esse rolo!” Conversamos sobre sua impulsividade,

sobre isso que ele dizia acontecer sem que ele percebesse, tentando abordar a forma agressiva e intrusiva com a qual ele se apresentara a um ambiente novo. Somente depois pude me dar conta de que eu me limitara a interpretar a violência e a impulsividade de Adriano, “esquecendo-me” do outro vértice de compreensão, rechaçado pelos pais.

Nas sessões seguintes foram aparecendo oportunidades que nos permitiram começar a conversar sobre sua tendência de produzir situações, que acabavam fazendo com que as pessoas –principalmente seus pais – se voltassem contra ele. A partir deste ponto Adriano foi alcançando muitos

insights, pudemos aprofundar a análise de sua impulsividade e de sua

destrutividade. Adriano me contou que a mãe tinha mudado para o apartamento do Marcos, “... mas toda hora ela tá lá em casa enchendo o saco:

— ‘Seu quarto tá um chiqueiro, Adriano! Arrume isso agora!’ (imitando a mãe)”.

Falamos muitas vezes sobre essa nova situação de abandono, do quanto ele sentia que para ele só sobravam as “porcarias” e as “encheções de saco” e da raiva que isso produzia.

Aos poucos o relacionamento de Adriano com seus pais foi melhorando, ele ia se aproximando cada vez mais de Marcos, que passava a sentir como uma pessoa com quem podia contar, apesar de ser muito exigente e crítico.

Poucos meses depois recebi novamente um pedido de Raquel para um encontro. Marcamos, o casal veio para me contar uma “mentira muito séria” de Adriano: ele disse para o Marcos que um professor havia mandado comprar um paquímetro4, que deveria ser de modelo e marca específicos. Marcos estranhou porque o aparelho determinado era demasiadamente caro para uma escola de segundo grau, mas mesmo assim comprou. Alguns dias depois, em uma reunião que tiveram na escola, Marcos questionou o fato e o professor afirmou que jamais havia sequer solicitado a compra de qualquer paquímetro,

4

(15)

muito menos obrigado a compra de um tão caro e preciso. Marcos ficou indignado e com muita raiva porque sentia que Adriano havia feito aquilo como uma forma de ataque a ele (ataque consciente), como uma forma de

“sacanagem” através do dinheiro. Raquel discordava, ela achava que era algo

que Adriano fazia sem pensar, inconscientemente, com o objetivo de ter algo que o valorizasse perante aos colegas. Contaram-me ainda que haviam conversado com o Adriano sobre essas coisas e que como “castigo”, Marcos havia recolhido o aparelho de Adriano e que iria guardá-lo para quando, e se, Adriano precisasse. Reclamaram muito das mentiras de Adriano, das histórias que ele inventa para justificar o que faz e o que deixa de fazer.

Na sessão seguinte Adriano me disse que queria muito o tal paquímetro, mas sabia que se dissesse isso seus pais não concordariam em comprar, por isso disse que a escola tinha obrigado a compra. Pedi a ele que me falasse sobre o aparelho e ele me deu uma aula sobre paquímetros, descrevendo função, precisão, os vários tipos, etc. Disse-me que aquele era muito bonito e preciso, que lhe daria condições de medir peças com grande precisão, ao mesmo tempo em que admitia que não teria a menor necessidade concreta de tais medidas, acrescentando: “– Quando cheguei com aquele paquímetro no

Colégio os caras babaram! Todo mundo arregalou o olho para o meu paquímetro!”. Esta situação nos permitiu conversar sobre algumas de suas

exigências internas de precisão, que ele claramente projetava nos objetos externos; sobre a questão da inveja, da admiração e da sua autovalorização.

E assim fomos trabalhando, mais alguns meses, Adriano fazendo conquistas na análise e conseqüentemente fora dela. Até que um dia novamente os pais solicitaram outra entrevista e vieram para contar que o Adriano estava indo muito mal na escola, corria o risco de ficar em dependência em uma disciplina e, por isso, haviam decidido contratar um professor particular para ajudá-lo. Mas, como entendiam que Adriano deveria ter de assumir as conseqüências de seus atos e na medida do possível pagar sozinho por eles, determinaram que ele não teria carona para a aula particular, ele iria de ônibus para a casa do professor. Principalmente Marcos deixou muito clara a certeza de que Adriano fazia esse tipo de coisas como um ataque

(16)

a eles. “Porque o Adriano é assim mesmo, Bruno, ele não estuda, precisa de

um professor particular e aí é mais uma obrigação que os outros têm de cumprir: levar o Adrianinho para mais um lugar... Já tem que levar na escola, pegar na escola e trazer aqui, pegar aqui! Agora mais uma tarefa para a mãe ou para a avó! Tenha dó!”.

Na sessão seguinte Adriano chegou muito bravo, reclamando muito do fato de ter de fazer aula particular ainda mais tendo que ir de ônibus. Contou mil histórias sobre o professor da tal disciplina, que o persegue, que “tirou nota” dele, etc. Conversamos sobre essa situação, em que para mim a projeção era evidente, mas me lembro claramente de meu desconforto por ter de ficar atento às minhas palavras para que Adriano não me ouvisse como ao Marcos, dando bronca ou duvidando dele.

Fomos conversando sobre esses assuntos. Adriano me contava que às vezes faltava às aulas particulares. Eu ficava apreensivo, tentava trabalhar psicanaliticamente com aquela informação, mas me percebia apreensivo tanto em relação à minha atitude com ele, permanecendo atento para que ele não me ouvisse como crítico, como quanto às conseqüências que poderiam advir para Adriano caso seus pais descobrissem. Minhas apreensões se justificaram (de parte delas só fui me dar conta muito depois): um dia Adriano chegou com a notícia de que sua mãe havia descoberto que ele faltava às aulas particulares quando foi buscá-lo na casa do professor e ele não estava lá e que, por causa disso, eles queriam uma entrevista comigo. Dessa vez Adriano me pediu para

“dar uma força” para ele na conversa com seus pais no sentido de minorar o

castigo que certamente teria. Conversamos a respeito disso, disse a ele que não poderia interferir nas coisas que acontecem fora do meu consultório e mais uma vez o convidei para participar da reunião; como de todas as outras vezes ele se recusou peremptoriamente.

Adriano faltou à sessão anterior à reunião com seus pais, que seria na manhã seguinte. Neste dia, logo cedo me chamou a atenção no jornal da cidade a notícia sobre o assassinato de um homem que havia sido vítima de assalto. Ao ler a notícia reconheci o nome do tio de Adriano. Fiquei muito impactado pela notícia em si e bastante preocupado com Adriano. O casal não

(17)

compareceu à entrevista e eu imaginava o motivo. Após o horário deles, saí do consultório para tratar de assuntos pessoais. Raquel, conforme me explicou, ligou no meu consultório e como não me encontrou, procurou o telefone de minha casa no catálogo e lá deram o número do meu celular. Foi numa ligação para o meu celular que Raquel me contou esta história, dizendo que em função dos fatos que haviam acontecido, precisavam muito conversar comigo. Marcamos novo horário.

Raquel contou-me sobre o assassinato do irmão. Contendo o choro, disse que não queria falar muito sobre o assunto a não ser sobre sua preocupação com os ecos que isso teria em Adriano. Contaram-me que Adriano havia ficado muito triste, muito deprimido e que havia pedido para faltar à sessão do dia anterior e eles concordaram. “Decidimos respeitar”, disse-me Marcos. Disseram-me ainda que haviam solicitado aquela entrevista para falar das mentiras do filho em relação às suas faltas às aulas particulares e passaram a tratar do assunto, falando da raiva que as mentiras e “sacanagens” de Adriano despertava neles, juntamente com a preocupação deles com um problema de caráter do filho. Lembro-me de ter ficado muito chocado com a recusa de Raquel em lidar com a própria dor e com a conseqüente impossibilidade de acolher a dor do filho, valendo-se, mais uma vez, de julgamentos e críticas sobre o comportamento de Adriano.

Quando Adriano veio nas sessões seguintes falou um pouco da morte do tio, disse que no dia não quis vir porque estava muito abalado e não queria ficar falando do assunto. Falou muito sobre os primos, que com a morte do pai ficavam mais desamparados ainda e de sua disposição em ajudar o primo a sair do caminho das drogas. Para mim era muito claro o movimento de idealização que ele fazia de si, como o salvador do primo, talvez tentando ocupar o lugar do pai perdido (do primo e dele, projetado no primo). Eu pensava muito também que aquele era mais um trauma na sua vida, nos traumas cumulativos (Khan, 1963).

Por causa dessa situação com o primo e das questões escolares (Adriano acabou sendo reprovado naquela disciplina), os pais de Adriano voltaram ao meu consultório para mais três entrevistas em quatro meses.

(18)

Pouco tempo depois aconteceu o fato que considero central para o que me proponho discutir nesse artigo.

O fato

Adriano e eu trabalhávamos juntos há pouco mais de dois anos. Num dia comum até então, se é que existem dias comuns no trabalho psicanalítico, fui até a sala de espera para recebê-lo e me deparei com um rapaz que o acompanhava e que me disse:

“– Bruno, boa noite! Eu sou o Max, irmão do Adriano. Vim hoje com ele porque aconteceu uma coisa que você precisa saber e talvez o Adriano não tenha coragem de contar. Então eu peço a você que me deixe entrar para contar isso e depois eu saio e vocês conversam”.

Fiquei aturdido com esta inusitada solicitação. Tentando encontrar algum norte olhei para Adriano, que estava com uma expressão muito embaraçada, e perguntei:

“– O que você acha disso, Adriano?”

Adriano meneou a cabeça afirmativamente, alternando seu olhar desconcertado para mim e para o irmão.

“– Você quer que o Max entre junto conosco, Adriano?”, indignado,

insisti.

“– Fui eu que pedi para ele vir”, respondeu-me.

“– Então vamos”, disse eu, vencido, mas não convencido.

Quando entramos na minha sala, Max ia se sentando na poltrona que Adriano costumava usar. Sem pensar indiquei-lhe outra poltrona dizendo:

“– Sente-se aqui, esse é o lugar do Adriano”.

Max então me contou, com expressão grave e voz embargada:

“– Minha mãe foi para os Estados Unidos com o Marcos. O Adriano foi dormir na casa do Fred, amigo dele. Estava lá um priminho do Fred de cinco anos. A mãe do Fred saiu com a irmã, mãe do menininho e daí, enquanto o Fred estava tomando banho o Adriano abaixou as calças do menino e enfiou o dedo no ânus dele, dizendo que iam fazer igual papai e mamãe faziam. O molequinho contou para a mãe e a mãe do Fred veio na hora trazer o

(19)

Adriano de volta em casa e me contou o que tinha acontecido dando o maior escândalo. Eu falei para o Adriano que conversasse isso com você, mas ele falou que não sabia se ia ter coragem de te contar essas coisas. Eu não sabia o que fazer, minha mãe não está aí... Daí eu propus para o Adriano que eu viesse te contar, assim pelo menos eu teria certeza de que você ficaria sabendo... Ele topou, achou melhor assim. Eu só combinei com ele que eu não contaria nada para a minha mãe por telefone, quando eles chegarem a gente conversa. É isso!” Fez menção de levantar-se.

Perguntei a Adriano: “– Tem alguma coisa que você queira conversar

enquanto o Max está aqui?”

Fez que não com a cabeça dizendo muito baixinho, quase chorando: “–

Só que fui eu que pedi para ele vir te contar isso”.

Max levantou-se, dirigiu-se ao irmão e muito afetivamente disse: “–

Espero você lá fora, Adriano”. Agradeceu-me e saiu da sala.

Eu estava mais aturdido ainda. Meus sentimentos completamente confusos. Entre outros sentimentos, sentia compaixão e raiva ao mesmo tempo. “Por que Adriano foi fazer isso?”; “Por que esse moleque que se acha

pai do Adriano tinha de invadir o espaço analítico?”; “Por que eu deixei?”; “... mas eu nunca notei nada de perverso no Adriano, o que será isso que ele fez?”; “Como o Marcos e a Raquel vão reagir a isso quando souberem? Vão esfolar o Adriano!...”; “Coitado do Max! É praticamente um menino ainda e tendo que segurar esse rojão!”; “Puxa vida, a mãe do Fred conhece o Adriano desde pequeno, além disso, é a médica dele! Será que ela não poderia ter sido mais continente com ele? E com o Max? Afinal, ela os conhece desde criancinhas e está sabendo que a mãe deles não está no país!...”; “E por que essa mulher tem de largar tanto os filhos assim também?” Enfim, minha mente

estava num redemoinho de perguntas e de sentimentos.

Ao mesmo tempo eu sentia que tinha de oferecer alguma segurança para aqueles dois rapazes-meninos que estavam ali perdidos, na minha frente. Enquanto me levantava para abrir a porta para Max sair, disse a ele: “– Acho

que foi bom você não ter contado para a sua mãe por telefone. É melhor que eles fiquem sabendo quando chegarem. Se enquanto isso você precisar de

(20)

alguma coisa, eu estou à sua disposição.” Foi o máximo de reasseguramento e

de continência que consegui oferecer ao Max, além da minha escuta. Sem ter consciência disso, estava me sentindo na obrigação de tomar conta dos dois, de dar suporte e continência a eles; eu era quem estava “me achando” pai deles, do Max também, não só do Adriano!

Os desdobramentos do fato

Naquela sessão e na seguinte conversamos sobre o ocorrido. Adriano, muito constrangido, dizia não entender o que havia se passado, porque havia feito aquilo. Dizia não sentir nenhum tipo de atração sexual por aquele garoto em especial, nem por qualquer outro. “... Tava lá de bobeira, o Fred foi tomar

banho, o molequinho tava ali, não sei o que me deu, eu pensei: ‘Vou sacanear esse moleque!’ e falei para ele: ‘— Vem cá! Vamos fazer o que o papai faz com a mamãe?’ E aí, quando vi, o menino reclamou de dor aí eu parei e falei para ele não contar para ninguém. Mas assim que a mãe chegou ele contou...’

De imediato consegui apontar para Adriano novamente sua tendência de fazer as situações se voltarem contra ele e, como conseqüência, afastar as pessoas que eram importantes para ele. Fred e Welder eram os únicos amigos de Adriano, eles formavam um trio e era claro para Adriano que ele havia perdido esses dois amigos, além da mãe de Fred, pessoa muito marcante na vida dele. Conversamos sobre essas perdas e sobre a certeza que Adriano tinha de que tanto um amigo quanto outro não o aceitariam mais. Falamos também sobre o medo e o constrangimento que ele sentia para enfrentar os pais, quando chegassem da viagem.

Nessas duas sessões eu procurei, mas não detectei nada que pudesse indicar perversão em Adriano, não consegui perceber o ocorrido desta forma, mas sim como mais uma atuação agressiva de Adriano.

No outro dia, dois dias após o fato, recebi uma chamada em meu celular. Era Max que dizia precisar falar muito comigo. Disse não haver agüentado segurar sozinho aquela situação e que havia ligado para a mãe. A mãe deu o número do meu celular e pediu a ele que me ligasse para que eu marcasse um horário para ela me ligar. Pedi seu telefone e liguei para ela. Raquel estava

(21)

muito aflita pela notícia e pela distância. Aos prantos me perguntava se o filho era um “homossexual pervertido” e “pedófilo”. Tentei acalmá-la em relação a essas angústias, dizendo a ela que não era esse o diagnóstico, que o sentido da atitude de Adriano havia sido o mesmo de outras tantas vezes, ou seja, mostrar sua capacidade destrutiva e autodestrutiva. Conversamos longamente, entre outras coisas, ela falava que teriam que pensar em algum castigo para Adriano, que precisaríamos falar sobre isso, etc. Pedi a ela que não tomassem nenhuma atitude contra Adriano antes de conversarmos. Teríamos uma entrevista assim que chegassem.

Chegaram dois ou três dias depois, vieram para a entrevista e trouxeram Max. Raquel disse que Max estava muito assustado com tudo e que queria entender o que estava acontecendo com o irmão. Tentei mostrar que o ocorrido não caracterizava Adriano como homossexual ou pervertido, que aquilo fazia parte da dinâmica que estávamos trabalhando, disse: — “Essa atitude veicula

um ataque inconsciente de Adriano, que produziu esse efeito todo, mobilizando-nos todos desta maneira. Na verdade Adriano enfiou o dedo nos nossos ânus.”

Eu estava também bastante assustado com tudo. Não me dava conta disso, só de uma grande preocupação; com todos, com Adriano, com seus pais, com Max. Percebia em mim a necessidade de defender Adriano e de aplacar a angústia de seus pais.

Nos dias seguintes seus pais voltaram mais duas vezes ao meu consultório.

O insight

Uns dias depois recebi através minha secretária eletrônica, o pedido de uma colega, a analista de Max e num recado subseqüente, o mesmo pedido de outra colega, a terapeuta do casal, para que conversássemos sobre o ocorrido. Na hora fiquei muito incomodado. Meu primeiro sentimento foi de que devia a elas uma explicação. Depois pensei: “Explicação de que? Devo por quê? De

quem é essa análise?” Neste momento tive o insight e pude vislumbrar o que

(22)

mente era promiscuidade. No dicionário encontrei esta definição de promíscuo:

“[Do lat. promiscuu.] Adj. Agregado sem ordem nem distinção; misturado, confuso, indistinto” (Ferreira, 1999). Meus pensamentos concentravam-se

nesta definição. De fato era isso o que vinha acontecendo, havia perdido minha intimidade com Adriano. Veio-me à cabeça (peço licença pela crueza, mas sinto que tenho que expressar pontualmente como me veio): “Foi no meu cu

que ele enfiou o dedo! E não para me foder, mas para me mostrar isso!” Esse

“isso” era exatamente o que eu chamei de promiscuidade, a perda de nossa intimidade, a minha identificação ora com seus pais, ora com ele, fazendo com que eu me desculpasse por ele ou permanecesse em uma posição crítica, censora, ou preocupada em relação a ele. Ficou evidente também que não me senti na posição do que é usado como objeto de um perverso.

Minha primeira atitude foi fechar-me com Adriano. Não tive mais nenhum contato com seus pais. Não respondi às colegas; já me desculpei com elas, hoje agradeço-lhes, por escrito!

A compreensão

Aos poucos fui tentando metabolizar as informações que podia colher de minhas reflexões e leituras. Pude ver que deveria existir um conjunto de identificações e contra-identificações projetivas cruzadas (Cassorla, 1997) entre Adriano, seus pais e eu. Pensava em enactment, assunto que busquei para tentar melhor compreender.

Pouco tempo depois procurei supervisão e essas reflexões e outras muitas puderam ser aprofundadas. Como conseqüência imediata da limpeza do campo analítico (Baranger, Baranger, e MOM, 1982), Adriano e eu pudemos resgatar nossa intimidade, tão necessária à dupla. A evidência concreta disso foi o pedido de Adriano para aumentarmos o número de sessões, “Três tá

muito pouco!” Ele pôde trazer assuntos muito importantes e de difícil

abordagem, como suas angústias em relação ao seu corpo e à sua sexualidade; a sua dificuldade de relacionar-se com as pessoas, e, principalmente, a sua solidão.

(23)

Minha compreensão sobre ele foi crescendo. Fui, por exemplo, estudando e compreendendo mais as questões do paciente borderline (Kernberg, 1984; Woiler, 2001); fui compreendendo melhor a configuração de sua personalidade, de sua analidade defensiva (Freud, 1908; Shengold, 1985); pude aprofundar as relações entre o que era observado e analisado com sua história de vida; pude ampliar a compreensão da dinâmica familiar e suas implicações na vida de Adriano; etc. Poderia me estender sobre qualquer um desses temas ou outros ainda (este é um dos riscos de apresentar material clínico tão vasto), mas vou me ater a discutir aquilo a que me propus neste artigo: os processos que determinaram a forma como se estabeleceu o contato entre Adriano e eu na sua análise e que me levaram à compreensão do que vinha acontecendo.

A Discussão

Poderíamos considerar como enactment, o episódio que eu relatei sob o título “O fato”. Não creio que esta asserção esteja de todo errada, todavia ela não expressa a real extensão do que penso, uma vez que nosso enactment iniciou-se muito tempo antes; o referido fato foi o precursor, ou, melhor dizendo, o catalisador do insight sobre o longo enactment crônico que estava acontecendo.

As pressões externas, vindas dos pais de Adriano, são inegáveis, bem como as contingências de estar atendendo um adolescente, com a história e as características de personalidade de Adriano. Mas o que dizer da minha, vamos dizer assim, falta de cuidado com o setting? Em função do que já descrevi, fui me colocando numa situação, que de uma forma ou outra, permitiu aquilo que depois se revelou para mim como uma falta de intimidade com Adriano. Não creio que isso tenha ocorrido somente devido às pressões e contingências externas, nem somente às internas (evidente também, que há que se considerar meus pontos cegos e o que já descrevi como identificações projetivas cruzadas). Penso que algo, na minha relação com Adriano mobilizou isso tudo.

(24)

Não consigo precisar o instante zero, ou seja, quando, como ou quem deu início ao enactment. O certo é que, desde cedo, flancos foram abertos que permitiram a entrada do mundo externo em minha relação com Adriano, inclusive das citadas pressões feitas pelos pais. E essa não é minha prática ordinária com nenhum outro paciente, adolescente ou não, borderline ou não. Pude pensar, a posteriori5, aspectos mentais de Adriano que provavelmente me colocaram nessa situação, fazendo com que repetíssemos na relação analítica situações muito primitivamente vividas por ele.

Adriano nunca teve um espaço seu, próprio. Ainda pequeno os pais se separaram, ele ficou “na casa da mãe”, depois foi para a “casa do pai”, depois ficaram um tempo sem casa, a mãe morando com eles na “casa do pai”, onde também todos entravam (suas meias-irmãs, sobrinhos, etc.). Quando finalmente eles estavam morando os três numa casa, a mãe já estava saindo e indo para outro lugar. Ele dorme na sua casa e faz as refeições na “casa do

Marcos” (é assim que Adriano se refere a essas casas). Mesmo assim, seu

quarto é vigiado e vasculhado o tempo todo pela mãe, irmão e empregada, todos em busca de sujeiras escamoteadas e de desvios no padrão de organização preconizado por outrem. Partindo de informações que me foram fornecidas pela mãe, podemos ainda conjecturar sobre tempos mais primitivos: devia haver uma falta de espaço para Adriano desde o útero materno e no início de sua vida, quando o casal já vivia às turras; isso me permitiu levantar como uma hipótese muito provável, que essa gravidez foi a derradeira e desesperada tentativa de salvar um relacionamento.

Penso que, de alguma forma, Adriano me colocou no papel – que eu assumi – de ser o porteiro que permite a entrada dos pais para dizer que tudo está direitinho no seu (nosso) quarto-análise. Do ponto de vista da comunicação, ele expressava no nosso enactment, concomitantemente a outros, o desejo de que eu repetisse a atitude do pai, que não permitia a entrada da mãe na casa, fazendo-a permanecer no portão. Contudo, seguindo

5

Compreender a posteriori é uma das contingências lógicas do enactment, uma vez que ele é definido como um fenômeno que acontece fora do campo da consciência do analista, só depois que ele é desvendado é que o material por ele veiculado pode ser compreendido e utilizado no processo analítico. Sobre o uso do conceito de posteridade – “a posteriori”, traduzido no Francês por “après-coup” e assim consagrado por Lacan – remeto aos comentários feitos por Laplanche e Pontalis (1975).

(25)

essa linha de pensamento, temos que considerar também a angústia que essa atualização na transferência traria: se assim eu procedesse, correria o risco de me estragar, de adoecer e ter de tê-la junto a nós, para nos cuidar. Eu, por minha vez, permanecia firme: por um lado não impedia a entrada da mãe, mas por outro não repetia o papel do irmão e da empregada, não contava para os pais o que estava em desordem ou sujo.6

Estarmos neste enactment garantia que esses e outros assuntos não pudessem ser percebidos, vistos e analisados. Como descrevi anteriormente, meus sentimentos eram de compaixão, raiva, culpa, etc., todos misturados. Essa mistura fazia com que, de um lado, eu me ocupasse em atender as demandas dos pais, tentando corrigir Adriano. De outro lado, me sentia no dever de convencer seus pais de que Adriano não era uma pessoa de má índole, que ele não fazia as coisas “por sacanagem”, como dizia Marcos. De qualquer maneira, eu estava contratransferencialmente desempenhando um papel muito parecido com o daqueles com quem Adriano estava habituado a relacionar-se, ora vigiando, ora corrigindo, ora admirando, e assim por diante. Aliás, no começo deste trabalho, ao contar a história de Adriano, relatei os sentimentos produzidos em mim pelo movimento de vitimação de Adriano. Ainda é impossível para mim, precisar que seja esse o “momento zero” do

enactment, mas com certeza, isso que chamei de vitimação, aliado aos outros

aspectos descritos, fazem parte deste fenômeno clínico. Assim como também faz parte meu sentimento de indignação – do qual não podia me dar conta – em relação aos constantes abandonos sofridos por Adriano.

E assim poderia continuar recapitulando o relato que fiz de minha história com Adriano e apontando várias situações nas quais a presença deste

enactment se faz notar. Foi só a partir de um fato clínico de muita intensidade

em si e nas conseqüências por ele produzidas, que eu pude ter o insight sobre o enactment. Entre essas conseqüências estão, evidentemente, os insights e análise de meus pontos cegos vinculados ao que vinha ocorrendo na relação com Adriano, os quais pude trabalhar em minha análise pessoal. Ressalto isso

6

Este pode ser um exemplo dos ganhos advindos de uma formação de compromisso, conforme disse acima.

(26)

para evidenciar, uma vez mais, a inter-relação inconsciente entre paciente e analista, implícita no fenômeno clínico que estou discutindo.

Junto com a compreensão das minhas dificuldades contratransferenciais, pude entender alguns dos processos mentais de Adriano veiculados através do enactment. De pronto, por exemplo, fui capaz de perceber e analisar com ele uma das funções de seus atos impulsivos, das coisas que ele fazia sem que percebesse estar fazendo (“... quando vi, já

fiz...”). O “fazer para chamar a atenção”, conforme diziam seus pais, foi

compreendido com outro sentido. Efetivamente, dentro da análise, o fato serviu para – teve a função de – chamar minha atenção para o que vinha acontecendo em nossa relação analítica. Adriano, elevando a falta de intimidade, a promiscuidade, ao nível de um grande cutucão, pôde reclamar o espaço próprio que não estava tendo comigo, e, com isso, chamar minha atenção, despertando-me para o que vinha ocorrendo.

A conclusão

Antes de concluir quero ressaltar que, a despeito das controvérsias, o conceito de enactment me foi muito útil nas conjecturas, análise e compreensão de um processo analítico. Porém, deixo aqui uma dúvida: em outras duas ocasiões (Bruno, 1999, 2001) examinei a inter-relação paciente-analista. Na primeira, foquei a inter-relação de identificações projetivas e contra-identificações projetivas; na segunda, estudei as organizações defensivas do paciente e do analista produzindo um impasse no processo analítico. Minha pergunta é: poderia ter examinado de uma outra forma aquelas situações clínicas através deste conceito de enactment? Se a resposta for afirmativa – o que implica ainda que toda a presente análise poderia ter sido feita tendo como base os conceitos de identificação e contra-identificação projetivas – necessário se faz pensar mais profundamente a metapsicologia do conceito. Penso que o que de melhor está contido na idéia de enactment, é a rede de identificações e contra-identificações projetivas, que produz uma encenação inconsciente, da qual analista e analisando participam igualmente. Parece-me evidente que a idéia de enactment traz um seu bojo uma descrição

(27)

fenomenológica, não um conceito metapsicológico. Concordando com Friedman e Naterson (1999), que afirmam que os enactments são “apenas

uma outra maneira de descrever o processo analítico” (p. 226) e concluem

seu artigo afirmando: “Transferência-Contratransferência é essencialmente um

sinônimo para o fenômeno do enactment” (p. 246).

Concluo este trabalho, retornando à clínica e citando a letra de uma música, que Adriano pôde trazer para uma sessão, após a já mencionada limpeza do campo analítico. Este “pôde” está sublinhado para marcar uma transformação: conforme já descrevi, nos primeiros tempos de nossa análise as sessões eram quase sempre alegres. Adriano sempre fazia graça com as situações, me falava de coisas interessantes e diferentes de um modo leve e animado. Este modo de apresentar sempre foi dissonante com a sensação de profunda tristeza e solidão que eu percebia nele e com a certeza que eu tinha de que eram aspectos que não poderiam ser evidenciados por ele.

Esta é a música:

“Under the bridge Sometimes I feel

Like I don't have a partner Sometimes I feel

Like my only friend Is the city I live in The city of angels Lonely as I am Together we cry I drive on her streets

'Cause she's my companion I walk through her hills 'Cause she knows who I am She sees my good deeds And she kisses me windy I never worry

Now that is a lie

I don't ever want to feel Like I did that day

Take me to the place I love Take me all the way

It's hard to believe

“Embaixo da ponte Às vezes eu sinto Que eu não tenho um parceiro Às vezes eu sinto Que meu único amigo É a cidade em que moro A cidade dos anjos Solitária como eu Nós choramos juntos Eu dirijo em suas ruas Porque ela é minha companheira Ando pelas suas colinas Porque ela sabe quem eu sou Ela reconhece meus bons feitos E ela me beija com seu vento Eu agora nunca me preocupo Mas isso é mentira Eu nunca mais quero sentir Como eu me senti naquele dia Leve-me para o lugar que amo Leve-me até o fim É difícil acreditar

(28)

That there's nobody out there It's hard to believe

That I'm all alone At least I have her love The city she loves me Lonely as I am

Together we cry

I don't ever want to feel Like I did that day

Take me to the place I love Take me all that way

Under the bridge downtown Is where I drew some blood Under the bridge downtown I could not get enough Under the bridge downtown Forgot about my love

Under the bridge downtown I gave my life away”

(Kiedis, Balzary, Smith, Frusciante, 1992)

Que não há ninguém lá fora É difícil acreditar Que eu estou completamente só Pelo menos eu tenho o amor dela A cidade, ela me ama Solitária como eu Nós choramos juntos Eu nunca mais quero sentir Como eu me senti naquele dia Leve-me para o lugar que amo Leve-me por todo aquele caminho Debaixo da ponte no centro

É onde eu tirei sangue Debaixo da ponte no centro

Eu não consegui ter tudo Debaixo da ponte no centro

Esqueci do meu amor Debaixo da ponte no centro

Eu entreguei minha vida”

(Tradução livre)

A partir dessa música, fomos capazes de compreender, de forma mais profunda, seu sentimento de solidão e abandono. Através de material deste tipo, construímos uma profícua “parceria” que descobriu e percorreu diversos novos “caminhos” e “ruas” em lugares e “cidades” até então desconhecidos. Assim, Adriano conseguiu sair “debaixo da ponte” em que se encontrava. Pôde encontrar no analista um “parceiro”, uma pessoa com a qual pudesse contar, sem mais ter necessidade de personificar coisas e situações que servissem de continentes – sempre insuficientes – para suas angústias. Pude ser o analista-amigo-parceiro que reconhece seus “bons feitos” e que, através disso o ajudou a encontrar novos companheiros e a sair das sombras para a luz. Assim como um dia, Adriano apontou o caminho para que nossa análise também saísse das sombras para a luz.

(29)

As referências bibliográficas

BARANGER, M., BARANGER, W. e MOM, J. (1982). Proceso y no proceso en el trabajo analítico. Rev. Psicoanal., 39 (4): 527-549.

BICK, E. (1968). The experience of the skin in early object relations. In MELTZER, D. et all. Explorations in Autism. London: Clunie Press, 1991. pp: 231-234.

BION, W. R. (1959). Ataques ao elo de ligação. In SPILLIUS, E. B. (org).

Melanie Klein Hoje. Rio de Janeiro: Imago, 1991. Vol. 1, pp:95-109.

____________ (1961). Experiências com Grupos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago; São Paulo: EDUSP 1970.

BOESKY, D. (1998). Acting out: a reconsideration of the concept. In ELLMAN & MOSKOWITZ (org.). Enactment. Toward a New Approach to the

Therapeutic Relationship. London: Jason Aronson Inc., 1998, pp.37-61.

CASSORLA, R. M. S. (1997). No Emaranhado de identificações projetivas cruzadas com adolescentes e seus pais. Rev. Bras. Psicanál., 31(3): 639-676.

__________________ (2001). Acute enactment as a ‘resource’ in disclosing collusion between the analytical dyad. Int. J. Psychoan., 82(6): 1155-1170.

FERREIRA, A. B. H.(1999). Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXI. Editora Nova Fronteira, 1999.

FREUD, S. (1908). Caráter e erotismo anal. S.E.B. vol IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

FRIEDMAN, R. J. and NATTERSON, J. M. (1999). Enactments: an intersubjective perspective. Psychoanalytic Quarterly, LXVVIII: 220-247. GABBARD, G. O. (1995). Countertransference: the emerging common ground.

Int. J. Psychoanal., 76: 475-485.

JACOBS, T. J. (2001). On unconscious communications and covert enactments: some reflections on their role in the analytic situation.

Psychoanal. Inquiry, 21(1): 4-23.

LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.-B. (1975). Vocabulário da Psicanálise. Santos: Martins Fontes, 1975.

KERNBERG, O. F. (1984). Transtornos Graves de Personalidade. Estratégias

Psicoterapêuticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

KHAN, M. M .R (1963). O Conceito de trauma cumulativo. In Psicanálise:

teoria, técnica e casos clínicos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2ª ed,

1984, p. 57-75.

KIEDS, BALZARY, SMITH & FRUSCIANTE (1992). Under the bridge. In Red Hot Chilli Peppers, What hits?!. USA: E.M.I. Records, 1992.

(30)

PANEL (1992). Enactments in psychoanalysis. Reported by Morton Johan. J.

Amer. Psychoanal. Assn., 40(3): 827-841.

ROUGHTON, R. E. (1993). Useful aspects of acting out: repetition, enactment, and actualization. J. Amer. Psychoanal. Assm., 41 (2):443-472.

SHENGOLD, L. (1985). Defensive Anality and anal narcissism. Int. J.

Psycho-Anal., 66: 47-73.

THOMÄ, H. & KÄCHELE, H. (1989). Teoría y Práctica del Psicoanálisis. Barcelona: Editorial Herder, 1989.

WOILER, E. (2001). Da Margem da vida para a vida: estudo de algumas

funções e qualidades do psicanalista na experiência com o paciente borderline. Apresentado na SBPSP em 03/05/2001.

Referências

Documentos relacionados

O emprego de um estimador robusto em variável que apresente valores discrepantes produz resultados adequados à avaliação e medição da variabilidade espacial de atributos de uma

Para o controle da salivação, gosto muito de usar metáforas, como pedir para o paciente imaginar um ralo dentro de sua boca, por onde a saliva escorre, ou uma torneirinha que vai

Neste tipo de situações, os valores da propriedade cuisine da classe Restaurant deixam de ser apenas “valores” sem semântica a apresentar (possivelmente) numa caixa

A partir deste momento é dada indicação para a seleção da população em estudo e é ativado o envio da medicação pelo promotor, ficando o FH da Unidade de

De seguida, vamos adaptar a nossa demonstrac¸ ˜ao da f ´ormula de M ¨untz, partindo de outras transformadas aritm ´eticas diferentes da transformada de M ¨obius, para dedu-

Estaca de concreto moldada in loco, executada mediante a introdução no terreno, por rotação, de um trado helicoidal contínuo. A injeção de concreto é feita pela haste

O objetivo do curso foi oportunizar aos participantes, um contato direto com as plantas nativas do Cerrado para identificação de espécies com potencial

A versão reduzida do Questionário de Conhecimentos da Diabetes (Sousa, McIntyre, Martins & Silva. 2015), foi desenvolvido com o objectivo de avaliar o