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A CONTRIBUIÇÃO DO LEGADO DE MILTON SANTOS ( ) PARA COMPREENDER A EDUCAÇÃO DO CAMPO COMO FORMA DE RESISTÊNCIA

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RESISTÊNCIA

Jeinni Kelly Pereira Puziol1 Irizelda Martins de Souza e Silva

Maria Aparecida Cecílio

Introdução

Neste ano, 2011, mais precisamente no dia 24 de junho, completou-se uma década da morte de Milton Santos, um dos geógrafos mais importantes do Brasil. Para além da quantidade de livros e artigos publicados, de entrevistas concedidas, de prêmios, condecorações e homenagens recebidas, o legado de Milton Santos representa uma profunda reflexão dos fundamentos materiais e políticos da sociedade capitalista, a fim de compreender as dores do mundo atual e o papel do homem na luta por uma globalização que não deve apresentar-se com uma fábula e nem como uma fábrica de perversidades, mas uma globalização mais humana, ou seja, “uma outra globalização”.

Inicialmente será abordada de forma sucinta a biografia de Milton Santos no qual serão ressaltadas as suas origens e sua opção pela Geografia, ou como o próprio Milton dizia, a opção pelo “movimento”. Sua trajetória não foi apenas nacional, mas internacional, no qual pode vivenciar diferentes realidades de países desenvolvidos e confirmar a possibilidade de no mínimo melhorar a condição social do Brasil. Enfrentou embates e dificuldades como qualquer intelectual crítico da sociedade, mas com um “agravante”, era negro.

Num segundo momento serão discutidas algumas categorias do pensamento geográfico pautadas na reflexão de Milton Santos, como o “lugar,” o “cotidiano”, as “horizontalidades”, as “verticalidades” e o “território”. E também compreensões basilares sobre a globalização como fábula e como perversidade para entender a tirania da informação e a violência do dinheiro, o desfalecimento da política social dos Estados e a imposição das políticas comandadas pelas empresas, o espaço geográfico como

1 Universidade Estadual de Maringá (UEM) – Programa de pós-graduação em Educação (PPE).

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limite da perversidade e dominação sistêmica do capital, o papel dos “de baixo” contra a escassez resultada da riqueza dos “de cima”, e possibilidade de transição para uma outra globalização por meio da luta e da resistência.

Na parte final do trabalho será aportada a Educação do Campo, especificamente ancorada na luta realizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), suas origens, objetivos e avanços a partir da tomada de consciência em relação à candente necessidade de educar o camponês. O direito a Educação do Campo não significa apenas a possibilidade de frequentar uma escola, mas de construir essa escola e o seu projeto educativo pautado na realidade do campo, de um campo enquanto espaço de vida, dignidade e resistência, e não como local de atraso e preconceito, visão predominante do cenário atual.

Na conclusão apresenta-se a relação do legado de Milton Santos com a busca de uma educação enquanto forma de resistência, a Educação do Campo. O cenário mundial pautado na globalização dos espaços tende a obscurecer a compreensão das desigualdades inerentes ao modo de produção capitalista e apresentar a realidade da sociedade atual pautada na homogeneidade, quando na verdade as diferenças entre a riqueza e a miséria são acirradas. A Educação do Campo, longe de ser a panacéia para as mazelas sociais do mundo ou mesmo do campo, representa uma forma de resistência fundamentada na materialidade do território camponês, evidencia o poder da contra-racionalidade diante de um modo de produção que considera as mercadorias como força central e o homem como algo residual. Como analisou Santos (2008b, p. 174): “A mesma materialidade, atualmente utilizada para construir um mundo confuso e perverso, pode vir a ser uma condição da construção de um mundo mais humano”.

Objetivos

O presente trabalho objetiva discutir, mesmo que de forma breve, em função da dimensão máxima do artigo, um pouco do legado teórico deixado pelo geógrafo Milton Santos. Mais especificamente procura-se problematizar de que maneira a sua reflexão, tão abrangente sobre o cenário global, pode auferir subsídios para o entendimento da Educação do Campo enquanto forma de resistência dos movimentos sociais do campo brasileiro.

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Metodologia

As análises aqui mediadas possuem como referencial teórico metodológico a compreensão dialética da materialidade histórica da sociedade capitalista e sua relação com a vida social humana. Busca-se apresentar o legado intelectual de um pensador a partir da leitura de suas obras e problematizar as possíveis contribuições para entender e também subsidiar a Educação do Campo enquanto uma forma de resistência dos movimentos sociais do Campo.

Resultados

Século XX, 03 de maio de 1926, Brasil, Bahia, Chapada Diamantina, Brotas de Macaúba, nasceu Milton Almeida dos Santos, mais conhecido com Milton Santos, filho de professores primários formados pelo Instituto Central de Educação Isaías Alves (ICEIA) de Salvador, Adalgisa Umbelina de Almeida Santos e Francisco Irineu dos Santos2. Contexto de agitação política marcado pela insatisfação popular em relação ao então Presidente da República Arthur Bernardes e a eleição de Washington Luís.

Os pais, educadores, desde cedo compreendiam que a educação era o caminho para a liberdade e incentivaram Milton Santos a investir nos estudos. Seu tio, Dr. Agenor de Almeida, irmão de sua mãe, foi decisivo para a escolha profissional que Milton fez ao ingressar na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) em Salvador. Um defensor da democracia, como ela deveria ser realmente, Milton era admirado pelos colegas estudantes de advocacia e os empolgava com seu estilo ácido de criticar. Era um profundo apreciador de grandes nomes da literatura e da Geografia brasileira e portuguesa como: Castro Alves, Rui Barbosa, Gilberto Freyre, Machado de Assis, Eça de Queiroz e Josué de Castro.

Depois de concluir o curso de Direito pela UFBA em 1948, Milton começou a lecionar em Ilhéus e Salvador. Mesmo formado em Direito não perdeu o gosto e admiração pela Geografia, ou como mesmo disse ele numa entrevista para o filme “Encontro com Milton Santos – O Mundo Global visto do lado de cá” (2006) de Silvio Tendler, ele optou por entender o “movimento” das populações que o impressionava

2 Os dados biográficos apresentados estão pautados na Biografia de Milton Santos publicada pela

Fundação Perseu Abramo – FPA, elaborada pela professora do Departamento e Mestrado de Geografia do IGEO-UFBA, Maria Auxiliadora da Silva. Site: <http://www2.fpa.org.br/biografia-do-milton-santos>

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quando criança e a história do presente ancorada no processo contraditório da sociedade.

Em Ilhéus, na década de 1950, Milton publicou importantes trabalhos considerados inéditos e audaciosos por geógrafos brasileiros, como: “Povoamento da Bahia” (1948), “O futuro da Geografia” (1953) e a “Zona do Cacau” (1955). Na vida pessoal casou-se com Jandira Rocha e teve seu primeiro filho, Milton Santos Filho. Em 1956 conheceu grandes nomes da Geografia internacional, como Orlando Ribeiro, Pierre Monbeig, Pierre Deffontaines, Pierre Birot, André Cailleux e Jean Tricart, quem o convidou para realizar o doutorado em território francês. Em 1958 terminou sua tese de doutoramento em Geografia, intitulada “O Centro da Cidade de Salvador”, pela Universidade de Estrasburgo, na França.

De volta para a Bahia, Milton foi professor da UFBA até 1964, promoveu nesse período várias conferências aberta ao público com professores da Geografia do Brasil e do mundo como Jean Tricart, Pierre George, Jacqueline Beaujeu-Garnier, Monbeig, Guy Lassèrre, Bernard Kayser, Orlando Ribeiro, Manoel Correia de Andrade, Araújo Filho, Aziz Ab’Saber, Aroldo de Azevedo, Orlando Valverde, Lyzia Bernardes e Nilo Bernardes. Nesse período também trabalhou no Jornal A tarde, foi sub-chefe da casa civil da Bahia no curto governo de Jânio Quadros em1961 e foi membro da Comissão de Planejamento Econômico da Bahia.

O contexto político, econômico e social do Brasil da década de 1960 foi muito conturbado em função do golpe militar aplicado ao governo brasileiro com ajuda dos Estados Unidos da América a fim de conter as possíveis influências socialistas, já que o período pós-guerra até o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas foi respaldado pela Guerra Fria. O então Presidente da República, João Goulart (1961-1964), popular Jango, que assumiu a presidência após a renúncia de Jânio Quadros, era tido como comunista pela elite brasileira e foi obrigado a renunciar a dar lugar para o governo dos militares que se estendeu de 1964-1985.

Na noite de 31 de março de 1964, Milton foi avisado do perigo que corria com a articulação do golpe militar em processo no Brasil. Como muitos outros intelectuais, músicos e políticos de esquerda, Milton foi detido pelos militares antes que pudesse fugir, ficou preso por três meses no 19º Batalhão de Caçadores localizado no bairro Cabula em Salvador. Milton recebeu vários convites de amigos franceses para passar

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uma temporada na Europa e aceitou quando percebeu que as condições para sua atuação intelectual no Brasil estavam comprometidas diante da censura imposta ao país pelos militares.

Milton partiu novamente para a França, mais precisamente para a Universidade de Toulouse-Le-Mirail, onde foi recebido pelo Prof. Bernard Kaiser. Recebeu o título de Dr. Honoris Causa pela referida Universidade, o primeiro título dos 20 que recebeu durante toda a sua vida. Depois de três anos em Toulouse mudou-se para a cidade de Bordeaux no sudoeste da França, onde conheceu uma inteligente aluna que mais tarde tornou-se sua segunda esposa, Marie Hélène Tiercelin.

Com o auxilio de sua nova esposa, a década de 1970 foi para Milton, um período de grande efervescência intelectual e produtiva. Marie Hélène, geógrafa, ofereceu-lhe um ambiente de trabalho, tranqüilidade e equilíbrio necessários ao grande intelectual, os dois trocavam ideias e ela traduziu vários de seus livros. Milton e Marie saíram de Bordeaux para Paris, Venezuela, Haiti (onde os dois oficializaram a união), Canadá, Peru, Estados Unidos e Nigéria.

Depois de 13 anos fora do Brasil, Milton retornou para Bahia em 1977 junto a Marie, para que o segundo filho, Rafael, pudesse nascer em solo baiano. Sem emprego na Bahia, pois a UFBA não manifestou nenhum interesse em reintegrá-lo no corpo docente, Milton trabalhou entre o final da década de 1970 e meados de 1980 com consultor no Rio Grande do Sul e depois entre São Paulo e Rio de Janeiro. Em 1979 foi contratado como professor assistente na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e somente em 1984, com o auxílio de amigos da Universidade de São Paulo (USP) prestou concurso para Professor Titular da USP e engrenou novamente no contexto acadêmico brasileiro.

Depois de estabelecido no Brasil continuou a exercer suas reflexões pelo mundo, foi professor visitante da Universidade de Stanford na Califórnia, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais em Paris, consultor das Nações Unidas, Organização Internacional do Trabalho, Organização dos Estados Americanos e da UNESCO. Consultor junto aos governos da Argélia e Guiné Bissau. Consultor junto ao Senado Federal da Venezuela para questões metropolitanas. Foi membro do comitê assessor do CNPq, coordenador da área de Arquitetura e Urbanismo da FAPESP (Fundação para o

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Amparo a Pesquisa no Estado de São Paulo), entre várias funções que exerceu fora e dentro do país.

Milton recebeu em 1994 o Prêmio Internacional Vautrin Lud, correspondente ao Nobel da Geografia, um fato inédito na história deste prêmio, que pela primeira vez na história foi outorgado a um geógrafo que não era nem francês nem norte-americano. Também recebeu ainda mais de duas dezenas de medalhas, tais como: Medalha de Mérito da Universidade de Havana em Cuba (1994), a 11ª Medalha Chico Mendes de Resistência, Grupo Tortura Nunca Mais, Rio de Janeiro (1999), Medalha do Mérito, Fundação Joaquim Nabuco, Recife (1999) e prêmios de destaque como Homem de Idéias (1998), O Brasileiro do Século (1999), Prêmio Jabuti pelo melhor livro de Ciências Humanas (1997).

Milton publicou mais de quarenta livros e mais de trezentos artigos em revistas cientificas, em português, francês e espanhol e inglês. Organizou diversos livros, números especiais de revistas científicas. Realizou pesquisas e conferências em diversos países, dentre os quais: Japão, México, Colômbia, Costa Rica, Índia, Argentina, Uruguai, Tunísia, Argélia, Costa do Marfim, Benin, Togo, Gana, Panamá, Nicarágua, Espanha, Portugal, República Dominicana, Cuba, Estados Unidos, França, Tanzânia, Venezuela, Peru, Inglaterra, Suíça, Bélgica, Senegal e Itália.

Ao completar 70 anos em 1996 foi homenageado por grandes intelectuais e amigos no Seminário Internacional: O mundo do Cidadão. Um cidadão do mundo. No entanto, cinco anos depois, no dia 24 de junho de 2001, aos 75 anos, debilitado pelo câncer, mas atuando ativamente nas suas pesquisas, Milton Santos parte dessa realidade material, porém o seu legado teórico permanece vivo para aqueles que se utilizam das suas reflexões. O conjunto da obra de Milton Santos representa um intrépido compromisso com o entendimento da sociedade globalizada e a luta por um mundo mais humano, traduz o pensamento geográfico crítico ancorado na compreensão dialética do espaço geográfico e da ação humana.

O legado teórico de Milton Santos está pautado na realidade material do século XX, emerge na compreensão da problemática econômica, política, social e cultural presente no mundo e no Brasil. Como já foi mencionado, o período de ebulição intelectual do referido autor, se concentrou, principalmente, a partir da década de 1970, período marcado por profundas mudanças no modo de produção capitalista.

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Em meados da década de 1970, a economia mundial capitalista apresentou significativas perturbações que alteraram a configuração da ordem mundial burguesa. Um novo complexo de reestruturações produtivas foi impulsionado pela crise estrutural do capital. Uma “mudança sistêmica radical” foi necessária para regular as contradições que são inerentes ao modo de produção (MÉSZÁROS, 2009). A organização produtiva do capital, até então baseada na acumulação rígida (fordista-taylorista), foi reformulada e a nova acumulação passou a ser flexível (toyotista), que, sob a égide do capital financeiro, transformou o cenário mundial por meio de mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais (HARVEY, 2009).

A fantasia de um capitalismo sem contradições foi rompida com a redução da onda de crescimento econômico e a queda das taxas de lucro deflagradas com a crise de superprodução e o choque do petróleo. Na primeira metade da década de 1970, a influência candente das mudanças na organização produtiva do trabalho capitalista refletiu no movimento da contracultura, no movimento feminista, na revolta estudantil e no retrocesso do movimento operário (NETTO; BRAZ, 2007).

Frente às contradições cada vez mais explosivas, o contexto da grave recessão generalizada, que envolveu a economia mundial a partir de 1970, criou-se condições para uma nova ofensiva do capital (MÉSZÁROS, 2009). Ancorado no tripé: reestruturação produtiva, financeirização e ideologia neoliberal, o capital criou novas formas de dominação, exploração e controle (NETTO; BRAZ, 2007). Começaram a ser introduzidas alterações nos circuitos produtivos baseados na acumulação flexível do capital em detrimento da acumulação rígida anterior.

Por meio da fundamentação dos padrões flexíveis, buscou-se criar uma nova lógica produtiva capaz de lidar com a instabilidade do crescimento econômico mundial e com o mercado restrito, atendendo às particularidades do consumo. Da crise dos mercados de massa, buscou-se uma produção voltada para os nichos de mercado. Dessa forma, procurou-se uma fuga da standardization, e promoveu-se uma desconcentração industrial que desterritorializou a produção na busca por mão-de-obra de baixo preço, intensificando a exploração da força de trabalho e a consequente desregulamentação de suas relações (NETTO; BRAZ, 2007).

A obsessão por novos mercados foi e ainda é facilitada pela globalização do capital que se propaga em alta velocidade nas técnicas atuais. A organização flexível da

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produção permitiu maior fluidez e agilidade do capital em movimento sob as condições de um capitalismo global instável, marcado pela financeirização da riqueza capitalista instabilidade política crescente (HARVEY, 2009).

A nova etapa do capitalismo global significou no plano da produção (e reprodução social) a incorporação das novas tecnologias advindas da Revolução Técnico-científica (1970) que propiciaram o aumento da qualidade e quantidade produtiva que influem diretamente e auxiliam nesse processo (SANTOS, 1996). A introdução da microeletrônica, da robótica e dos recursos informáticos auxiliou o desenvolvimento de uma economia mundializada, na precarização das condições de trabalho e da vida do trabalhador (ALVES, 2007).

Nesse contexto, os países centrais, expressos no final do século XX pela Tríade (EUA, Japão e Europa Ocidental), reforçaram sua condição dominante e paralelamente aprofundaram a condição de dependência do Terceiro Mundo (TOUSSAINT, 2001). As potências centrais, ancoradas no capital reestruturado e globalizado buscaram em suas estratégias mercadológicas e políticas ampliar o seu poder pelo globo junto às multinacionais, a ideologia neoliberal e as políticas do FMI, Banco Mundial e OMC. A ofensiva neoliberal amparou-se nas privatizações do serviço público, na desregulamentação das relações de trabalho e na competitividade despótica entre o mercado e as nações.

No contexto do pós-guerra (1945) e no interior dessa realidade globalizada configurada a partir da década de 1970, Milton Santos empreendeu sua análise geográfico-crítica com o objetivo de entender a situação do Terceiro Mundo no cenário mundial (SANTOS, 2003). Milton Santos buscou uma ressignificação das categorias geográficas para auxiliar na análise das metamorfoses do território habitado pelo homem. Sobretudo a partir da dedada de 1970 sua obras mostraram um aprofundamento teórico sobre a condição “técnica-científica-informacional” da sociedade, ou seja, quando o desenvolvimento das ciências deixou-se cooptar intensamente pelos interesses dos atores hegemônicos para potencializar os objetivos econômicos em detrimento do social (SANTOS, 1988).

Para Santos (2008b) o desenvolvimento das técnicas possibilitou o surgimento de uma sociedade global no lugar das sociedades nacionais. Realidades e problemas nacionais mesclam-se com as realidades e os problemas mundiais, ou seja, o local,

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regional, nacional, ou mesmo continental, entram no jogo das relações internacionais. Santos (2008b, p.81) afirma que “A globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista”.

Diante da internacionalização capitalista as atuações do mercado financeiro permeiam a sociedade global em todos os âmbitos, “[...] todo e qualquer pedaço da superfície da Terra se torna funcional às necessidades, usos e apetites de Estados e empresas nesta fase da história”. E contraditoriamente, as relações globais não apenas realizam a homogeneização dos espaços, mas também promove sua fragmentação. Quando se faz uma análise profunda da realidade global é possível perceber que a globalização vale-se da tirania das informações destinadas à maioria da população, e apresenta uma globalização como fábula, pautada na homogeneização dos espaços, quando na verdade a verdadeira globalização funciona como uma fábrica de perversidades que sobrevivem na exploração das classes pobres (SANTOS, 2008b).

O processo de transformação e ocupação dos territórios, inserido no movimento do capital, foi intensificado e pautado no rápido avanço tecnológico, que, de um lado, propiciou a integração e, de outro, a fragmentação das partes que não concordam com as lógicas dominantes da sociedade que lhe são impostas. As tensões e interesses políticos fazem emergir as contradições nos territórios que expressam as manifestações espaciais de poder, e, portanto, a renovação da Geografia sob uma perspectiva crítica foi e é fundamental para aproveita-se dos veios contraditórios da relação-capital e promover mudanças. Para Santos (1988, p. 12), “[...] embora assinalado por atividades quase sempre desviadas para preocupações imediatistas e utilitárias, o atual período histórico encerra igualmente o germe de uma mudança de tendência”.

No bojo da renovação geográfica, o Espaço Geográfico, adquiriu novos significados no desenvolvimento da sociedade e da globalização, sendo considerado como um “[...] conjunto de formas contendo cada qual frações da sociedade em movimento. As formas, pois têm um papel na realização social” (SANTOS, 1988, p. 10). O espaço geográfico possui importância fundamental, pois é ele que viabiliza a materialização da globalização, pois toda a natureza e os lugares tem se configurado de forma produtiva de acordo com as necessidades do processo de produção (SANTOS, 2008a).

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Nos espaços geográficos se processam os lugares, e aqui lugares são entendidos como “[...] ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente”, onde a cultura cotidiana ganha sua dimensão simbólica e material, combinando matrizes globais, nacionais, regionais e locais (SANTOS, 1996). Santos (2008b, p. 112) considera que: “[...] os lugares são, pois, o mundo, que eles reproduzem de modos específicos, individuais, diversos. Eles são singulares, mas são também globais, manifestações da totalidade-mundo, da qual são formas particulares”.

Espaço Geográfico e Lugar são caracterizados de acordo com o interesse que os define, a serviço da classe hegemônica é manipulado pela violência monetária do modo de produção capitalista. A homogeneização do espaço geográfico e dos lugares é disseminada pelos meios de comunicação dominantes, junto a uma uniformidade de ações e culturas e a construção de uma cidadania planetária, “[...] quando, na verdade, as diferenças locais são aprofundadas” (SANTOS, 2008b, p. 19). É uma globalização como fábula que tenta ocultar a realidade desigual.

Outra categoria primordial para a leitura e análise da sociedade global atual é o

Território. Sua existência se dá, pela dinâmica dos lugares, e está condicionada ao seu

uso. “É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto de análise social [...] o território usado são objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado” (SANTOS, 2005, p. 255). O autor desmistifica o conceito de território como fundamento do Estado-Nação amparado pela realidade da transnacionalização territorial, no qual “[...] a interdependência universal dos lugares é a nova realidade do território” (SANTOS, 2005, p. 255). Porém, sem considerar o total desfalecimento das fronteiras e a homogeneização hegemônica dos países. Santos (2008b, p. 42) pontua que “[...] as fronteiras mudaram de significação, mas nunca estiveram tão vivas, na medida em que o próprio exercício das atividades globalizadas não prescinde de um chão

governamental capaz de torná-la efetivas dentro de um território”. A partir das novas mutações da sociedade capitalista resulta, portanto, a

construção de um novo espaço e de um novo funcionamento do território por meio de “verticalidades” e “horizontalidades”. As verticalidades são entendidas como espaços de fluxos constituídos por redes, um espaço fluído e veloz regidos por um relógio despótico a serviço dos atores hegemônicos. E as horizontalidades são expressas pelos

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espaços banais constituídos pelas vivências cotidianas e pela solidariedade (SANTOS, 2008b).

As horizontalidades podem tentar se opor às verticalidades por meio das lutas sociais e produzir contra-racionalidades, ou seja, formas de resistência que ao contrário da ordem que se impõe aos espaços em redes, marcados pela alienação e obediência dos atores subalternos, construa novas formas de vivência. Contra-racionalidades são, para Santos (2008b, p. 110), “[...] formas de convivência e de regulação criadas a partir do próprio território e que se mantêm nesse território a despeito da vontade de unificação e homogeneização, características da racionalidade hegemônica típica das verticalidades”. Nesse contexto de horizontalidade e verticalidade, o território e o lugar são considerados esquizofrênicos, pois abrigam desde os pragmatismos hegemonizados até as contra-racionalidades (SANTOS, 2008b). A “ordenação espaço-temporal”, que representa a mobilidade do capital no território pela busca de acumulação de capital e poder político, também esbarra em territórios que resistem aos processos acumulativos (HARVEY, 2005). Para Santos (2008b, p. 79): O território e o lugar são entendidos como esquizofrênicos “[...] porque de um lado acolhem os vetores da globalização, que neles de instalam para impor sua nova ordem, e, de outro lado, neles se produz uma contra-ordem, porque há uma produção acelerada de pobres, excluídos, marginalizados”.

O contexto produtivo capitalista globalizado é, portanto, apresentado a maioria da população mundial como uma fábula. Uma ideologização maciça esforça-se em obscurecer a imoralidade do capitalismo por meio do discurso e da retórica, no qual uma aldeia global e um planeta cada vez mais homogêneo são proclamados. No entanto, deste mesmo contexto de fábulas e suas imanentes contradições, surge à possibilidade de perceber que o capitalismo global se impõe, de cada vez de forma mais profunda, como uma “fábrica de perversidades”. O aumento da pobreza, o desemprego crônico, os baixos salários, a fome, o desabrigo, as enfermidades, a mortalidade infantil e educação precária, compõem a perversidade sistêmica do capital que em tempos de globalização se alastra pelas mais distantes latitudes e longitudes do globo terrestre (SANTOS, 1996; 2008b).

As próprias contradições internas do capitalismo evidenciam os seus limites, de um lado a produção exacerbada de riquezas que beneficia uma minoria e de outro a

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produção acelerada de pobres que são capazes de impor uma revanche (SANTOS, 2008b). Essa revanche se efetiva no entendimento progressivo do mundo e das relações de poder que nele são operadas para que estruture a resistência ancorada nas lutas sociais. A tomada de consciência não é homogênea e nem ocorre na mesma velocidade nos diferentes indivíduos viventes em diferentes realidades, mas é o caminho para o exercício da luta e da atuação política que pode ser capaz de se apropriar das possibilidades de mudanças já existentes. De acordo com Santos (2008b, p. 173-174): “Diante do que é mundo atual,como disponibilidade e como possibilidade, acreditamos que as condições materiais já estão dadas para que se imponha a desejada grande mutação [...]. A globalização atual não é irreversível”.

As lutas sociais travadas no perímetro das horizontalidades simbolizam e constituem, materialmente, a possibilidade de construção de uma globalização mais humana. O protagonismo atuante do MST, desde a década de 1980 no Brasil, expressa a resistência ao modus operandi e vivendi do capitalismo globalizado que luta para manter a concentração de renda e de terras a qualquer custo, seja de ordem econômica, política, social ou cultural. O MST representa a tentativa de fortalecer o campo para além da estrita política do agronegócio e seus braços latifundiários, e também para além da dicotomia campo e cidade no qual o campo é sinônimo de atraso e a cidade de modernidade.

A luta camponesa do MST nasceu no sul do Brasil, foi oficializada em 1984 em Cascavel – PR, e logo se expandiu para a imensidão do território brasileiro. Na atualidade está organizado em 23 Estados. Do decorrer da luta, seus objetivos extrapolaram as premissas da Reforma Agrária, o Movimento se deu conta da necessidade de lutar por uma formação educativa para qualificar o seu povo, pois produzir e reproduzir determinado território só é possível pelo conhecimento e ação de seus sujeitos. Em 1987 foi criado o Setor Nacional de Educação e efetivou-se oficialmente a luta pela Educação para as populações do campo.

O campo, enquanto território de resistência e vida, fundamenta a construção da sua educação. Desde 1997, com o Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da

Reforma Agrária – ENERA, e depois em 1998, com a I Conferência Nacional Por uma Educação Básica do Campo, foi quebrado o silenciamento do campo em relação à

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Campo está vinculada ao movimento da história e a própria vivência das populações camponesas, ou seja, a vida cotidiana das “horizontalidades” que pode se opor a ideologização das fábulas pregadas pela classe hegemônica.

A prática educacional do movimento social não se fundamenta estritamente nas relações pedagógicas (educador e educando), mas na própria dinâmica social, na qual cabe ressaltar a reciprocidade entre as práticas educativas e a dinâmica da sociedade. Além do conhecimento sistemático representado pela educação formal, existe também o aprendizado presente nas próprias lutas do Movimento, por meio da ocupação da terra, reuniões, manifestações públicas, vida nos acampamentos, e enfrentamentos. O trabalho é, também, um princípio educativo da Educação do Campo, fundamenta-se na teoria de pensadores como Gramsci, Thompson, Marx, Engels, Hobsbawm e Mészáros.

O MST, como sujeito pedagógico, produz e transforma identidades ao longo de sua trajetória histórica com diferentes vivências e realidades que dão vida ao “movimento do Movimento” (CALDART, 2004). A história do MST e da Educação do Campo é transformada constantemente e procuram consolidar uma pedagogia do Movimento e não para o Movimento. As conquistas do MST na Educação do Campo são expressas materialmente pelas escolas de ensino fundamental, médio, EJA, ensino técnico e superior espalhados pelos diversos territórios de resistência do Movimento.

A Educação do Campo possui uma intencionalidade política na medida em que busca formar os camponeses e atuar contra a política exploratória do capitalismo no campo (ARROYO; CALRDART; MOLINA, 2004). É necessário evidenciar que embora se discuta a Educação do Campo e a luta social camponesa do MST, a busca por um mundo mais humano se expande por todos os territórios, ao passo que as lutas sociais carecem de pares coletivos e força resistência, seja do campo ou da cidade, para construir um novo projeto de vida, de Brasil ou de mundo.

Enfatiza-se que a prática educativa não é aqui entendida como a solução para os problemas da sociedade burguesa em vigência, mas como um instrumento de luta que objetiva desvendar pela raiz o caráter alienante do discurso hegemônico e construir novas consciências a partir da realidade material que se constitui sob o modo de produção capitalista. Caldart (2004) descreve e analisa as cinco matrizes pedagógicas (pedagogia da luta social, pedagogia da organização coletiva, pedagogia da terra, pedagogia da cultura, pedagogia da história) que o MST põe em movimento no

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processo de formação dos sem-terra, que reflete exatamente a compreensão da importância da luta social, da coletividade, da valorização do lugar de origem, da cultura e da história, que consequentemente de produzem e reproduzem no espaço geográfico, nos lugares e nos territórios.

Conclusões

De fato a acumulação capitalista e a globalização são acontecimentos profundamente geográficos. Sem a possibilidade de expansão geográfica, da reorganização espacial e o inerente desenvolvimento geográfico desigual, o capitalismo não se materializaria. Nesse sentido, a renovação das categorias geográficas realizadas por Milton Santos é de essencial importância neste novo contexto histórico-mundial delineado principalmente após a década de 1970.

A interdependência globalizada dos lugares exige uma compreensão mais aprofundada no sentido de desvelar os mitos que se instalam na sociedade a partir dos ideais hegemônicos disseminados pela sociedade burguesa. A precarização candente das relações sociais traduz uma humanidade a serviço de um relógio despótico mundial no qual uma minoria tem se beneficiado amplamente e uma maioria tem sido explorada.

A educação nesse emaranhado histórico-mundial despende de uma importância fundamental enquanto instrumento de interpretação, contestação e superação. Interpretação e contestação de uma homogeneidade limitada e empobrecedora como fábula que nos é imposta e na sua superação, com o intuito de valorizar as heterogeneidades do universo cotidiano dos lugares. É importante esclarecer que neste trabalho a educação não é considerada a panacéia da sociedade, mas valoriza-se o seu potencial transformador.

A construção das contra-racionalidades possui campo fértil na Educação do Campo, uma vez que ela está fundamentada nas lutas sociais que possuem em sua raiz o caráter de contestação. A compreensão de um “mundo como fábula”, ou seja, um mundo como nos fazem ver, e de um “mundo como perversidade”, ou seja, tal como ele é, abre possibilidade de um novo mundo amparado “por uma outra globalização”, pois nunca a sociedade atingiu um grau de desenvolvimento econômico e técnico-científico-informacional tão grande.

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Os limites do poder das palavras, ou seja, do conhecimento, devem ser reconhecidos frente à lógica econômica dominante da sociedade do capital. Entretanto, o protagonismo das lutas populares prova que é possível questionar e tencionar as engrenagens do modo de produção capitalista e se contrapor aos poderes hegemônicos que tendem a dominar a maior parte dos territórios. A contradição corrente do processo de globalização, característico da sociedade atual, demonstra que ainda é possível fragmentar territórios e ousar a se pensar novas formas de organização sócio-espacial.

Diante de um mundo confusamente percebido, em meio ao aprofundamento dos problemas sociais, ainda é possível visualizar, junto ao movimento social e à educação do campo, alternativas dentro da conjuntura imposta pela lógica global. O conhecimento pode ser apropriado de diversas formas de acordo com as diversas realidades sócio-espaciais, no qual considera-se suas singularidades. O pensamento de Milton Santos apresenta contribuições essências para o entendimento das dinâmicas territoriais atuais e da ação do homem nesses territórios. O conhecimento que representa a Educação do Campo é uma forma de resistir junto ao movimento social e mostrar a vivacidade de um povo que não aceita a dominação capitalista globalizada como verdade final e eterna.

REFERÊNCIAS

ALVES, G. Dimensões da Reestruturação Produtiva: ensaio de sociologia do trabalho. 2. Ed. Londrina: Práxis, 2007.

ARROYO, M. G; CALRDART, R. S; MOLINA, M. C. Por uma educação do campo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

CALDART, R, S. Pedagogia do Movimento Sem Terra. São Paulo: Expressão Popular, 2004.

HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2009 HARVEY, D. O Novo Imperialismo. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005.

NETTO, J. P; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2007.

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SANTOS, M. Economia Espacial. São Paulo: EDUSP, 2003.

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Referências

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