PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
MESTRADO EM PSICOLOGIA
A VOZ DO ABUSADOR:
ASPECTOS PSICOLÓGICOS DOS PROTAGONISTAS DE INCESTO
Autora: Heloisa Maria de Vivo Marques Orientadora: Profa. Dra. Deise Matos do Amparo Co-Orientador: Prof. Dr. Vicente de Paula Faleiros
Brasília 2005
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
A VOZ DO ABUSADOR:
ASPECTOS PSICOLÓGICOS DOS PROTAGONISTAS DE INCESTO
Heloisa Maria de Vivo Marques
Dissertação de Mestrado apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia, à Comissão Examinadora da Universidade Católica de Brasília, sob a orientação da Profa. Dra. Deise Matos do Amparo.
Orientadora: Profa. Dra. Deise Matos do Amparo Co-Orientador: Prof. Dr. Vicente de Paula Faleiros
Heloisa Maria de Vivo Marques
A VOZ DO ABUSADOR:
ASPECTOS PSICOLÓGICOS DOS PROTAGONISTAS DE INCESTO
Dissertação de Mestrado apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia, à Comissão Examinadora da Universidade Católica de Brasília, composta pelos seguintes professores:
_______________________________________________________
Profa. Dra. Deise Matos do Amparo (Orientadora)
Universidade Católica de Brasília
_______________________________________________________
Prof. Dr. Vicente de Paula Faleiros (Co-Orientador)
Universidade Católica de Brasília
________________________________________________________
Profa. Dra. Silvia Helena Koller (Examinadora)
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
_________________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Menezes de Oliveira (Examinador)
Agradeço:
Ao meu marido Daniel por me dar segurança, por sempre me estimular e acreditar que eu era capaz, e por me agüentar nos momentos de “stress”.
À minha Nina que ainda não nasceu, mas ficou quietinha na minha barriga, me dando inspiração e permitindo que eu concluísse essa fase da minha vida.
À minha mãe Edna pelas constantes palavras de otimismo.
Ao meu pai Flavio pelo exemplo de honestidade e responsabilidade.
Às minhas irmãs Flavia e Veridiana e à minha prima-irmã Yolanda pela grande ajuda e amizade.
À Profa. Deise e ao Prof. Vicente pela competência e disponibilidade na orientação deste trabalho, e pela imensa oportunidade de aprendizado.
À direção do Centro de Internamento e Reeducação por permitir a realização desse trabalho, e a psicóloga Dra. Nazaré pela disponibilidade em me guiar e orientar.
Aos titulares da Banca Examinadora, Prof. Roberto e Profa. Silvia por aceitarem participar da defesa desse trabalho.
À Profa. Cida Penso por aceitar participar da banca da qualificação.
À Universidade Católica de Brasília, à direção do curso de Mestrado em Psicologia, pela pessoa da Profa. Tânia Rossi, e a CAPES, pela bolsa PROSUP concedida ao longo do mestrado.
ÍNDICE
RESUMO 7
ABSTRACT 8
INTRODUÇÃO 9
CAPÍTULO I
O INCESTO E A PSICOPATOLOGIA DO ABUSADOR 14
1.1. Incesto e tabu 14
1.1.1. Incesto: definições e características 14 1.1.2. Tabu do incesto: do natural ao cultural 21 1.2. Psicodinâmica e psicopatologia do abusador sexual 27 1.2.1. A organização psíquica na perspectiva psicanalítica 27
1.2.2. A psicodinâmica da perversão 33
1.2.3. A psicopatologia do abusador sexual 39
CAPÍTULO II
NATUREZA DO PROBLEMA E MÉTODO 60
2.1. Problema da pesquisa 60
2.2. Objetivos 62
2.3. Questões da pesquisa 63
2.4. Método 63
2.4.1. Participantes 64
2.4.2. Instrumentos 65
2.4.3. Procedimento para coleta dos dados 66 2.4.4. Procedimento para análise dos dados 68
CAPÍTULO III
RESULTADOS E DISCUSSÃO: A VOZ DO ABUSADOR INCESTUOSO 71
3.1. O caso João 74
3.1.1. Histórico 74
3.1.2. Análise das entrevistas 76
3.1.3 Análise do psicodiagnóstico de Rorschach 93
3.1.4. Discussão do caso 97
3.2. O caso Luiz 105
3.2.1. Histórico 105
3.2.3 Análise do psicodiagnóstico de Rorschach 119
3.2.4. Discussão do caso 124
3.3. O caso Pedro 131
3.3.1. Histórico 131
3.3.2. Análise das entrevistas 132
3.3.3 Análise do psicodiagnóstico de Rorschach 146
3.3.4. Discussão do caso 151
CAPÍTULO IV
CONCLUSÃO 158
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 170
ANEXOS 178
Anexo I: Código Penal Brasileiro 179
Anexo II:Termo de Consentimento Livre e Esclarecido 182
RESUMO
Trata-se de uma pesquisa que tem como objetivo principal investigar aspectos psicológicos e psicodinâmicos dos protagonistas de abuso sexual incestuoso, fundamentada na teoria psicanalítica (Stoller, 1975; Balier, 1997; Ferraz, 2001, Cohen, 1992, 1993, 2002; Gobbetti, 2000, 2002; Faiman, 2004; Fuks, 1998, 2005). Justifica-se a pesquisa sobre esse tema, dentre outros motivos, pelo interesse em conhecer o funcionamento mental dos abusadores, a partir do seu próprio discurso e subjetividade. Pretende-se abordar a complexidade do diagnóstico, pois facilmente esses casos, são rotulados como perversos ou pedófilos, sem considerar as particularidades e a elaboração de um psicodiagnóstico diferencial. Utiliza-se o método qualitativo de estudos de caso. Participaram deste estudo três pais/padrastos, entre quarenta e quatro e quarenta e seis anos, que realizaram atividades incestuosas com suas enteadas, e devido a esse fato, encontram-se detidos. Utilizou-se como instrumentos para coleta dos dados, entrevistas semi-estruturadas, aplicação do método de Rorschach e análise documental dos prontuários dos participantes. Em relação às entrevistas, a análise de conteúdo e a análise psicanalítica permitiram que emergissem categorias relativas a elementos que propiciaram a compreensão psicológica dos abusadores, tais como: relacionamentos com figuras parentais e com mulheres, a significação do incesto, narcisismo, auto-imagem. A análise do Método de Rorschach indicou outros aspectos, tais como: condições intelectuais, capacidade de adaptação, controle das reações impulsivas e emocionais, autocrítica e poder de reparação. Concluiu-se em relação aos abusadores que: i) a relação com as figuras femininas mostrou-Concluiu-se um importante aspecto para o entendimento da questão, pois se pode perceber que são vistas de forma desqualificada e sem valor; ii) as significações subjetivas a respeito do ato incestuoso são as mais diversas, porém a tônica que se faz mais presente é a da negação e desculpabilização; iii) percebe-se em todos os casos, a fragilização da representação da lei e conseqüentemente da moral e da ética; iv) o narcisismo é um eixo que comparece na dinâmica psíquica de dois dos três abusadores analisados; v) os abusadores podem apresentar estruturas de personalidade similares, mas também estruturas díspares; vi) é possível considerar o protagonista de incesto como portador de alguma psicopatologia ou transtorno de personalidade, mas também é importante considerar a análise de outros fatores. Enfim, trata-se de um tema complexo que deve ser mais aprofundado, até porque há grandes dificuldades em encontrar estudos relativos ao entendimento subjetivo do abusador incestuoso, bem como da sua psicologia e psicodinâmica, principalmente com a utilização do Método de Rorschach.
ABSTRACT
The aim of this study is to investigate psychological and psychodynamic aspects of the main characters of sexual incestuous abuse based on the psychoanalytic theory. (Stoller, 1975; Balier, 1997; Ferraz, 2001, Cohen, 1992, 1993, 2002; Gobbetti, 2000, 2002; Faiman, 2004; Fuks, 1998, 2005). This topic was chosen because of the interest of knowing the abusers mental operation, from their speech and subjective quality. Since they are easily designated as perverse or pedophile, the intention is to consider their particularity to determinate a specific diagnostic. The research is qualitative and based on a case study. The study depended on the participation of three fathers/stepfathers, between forty four and forty six years, who had realized incestuous activities against their stepdaughters and, because of this, are prisoners in a penitentiary. The data was acquired by the utilization of semi-structured interviews, the application of Rorschach test and the analysis of the previous registers of each person. According to the interviews, the subject analysis and psychoanalysis permitted to appear relative categories related to components that propitiate the comprehension of the psychodynamic aspects of the abusers such as: relation ship whit parents and women, the meaning of incest, self-image and narcissism. The Rorschach test analysis showed other aspects of personality, such as: intellectual conditions, ability to adaptation, control of impulsive reactions, self-criticism and possibility of reparation. In accordance with abusers, its concluded that: i) the women pictures are an important aspect to understand this question, because is possible to notice that they are seen as no value and disqualified people; ii) the subject meanings about the incestuous act are many, however the most important is the negation and the nonappearance of guilt; iii) it is noticed that in all cases, there are the decline of the law representation and, consequently the moral and ethics; iv) the narcissism is a fact that appears in the psycho dynamic in two of three abusers analyzed; v) the abusers can present the same structures of personality or even different structures; vi) it is possible to consider that the main character of incest is a carrier of any psychopathology or personality perturbation, but is also important to observe the other factors. Finally, it is a complex theme that should be studied deeper considering that there are many difficulties to find researches connected to the subjective understanding of the incestuous abuser, as well as his psychology and psychodynamic, mainly with the utilization of Rorschach Test.
INTRODUÇÃO
(...) “Quando eu estava de frente para meu pai, ele me arrancou a roupa e depois me
jogou na cama, pedindo para que minha irmã segurasse minhas pernas. Deu um tapa no
meu rosto, segurando logo em seguida minhas mãos para cima, sem que eu tivesse um
movimento para me defender. Ele arrancou minha virgindade com muitos tapas e
movimentos socados... Quando meu pai acabou de cometer o ato de violência comigo,
fiquei estendida na cama, com muito sangue no lençol” (...) (Andrade, 1998, p. 41).
O relato acima referido trata de um acontecimento real, no qual podemos observar
uma situação de abuso sexual intrafamiliar, pela visão da vítima. Em algumas famílias esse
fato acontece, acabando por torná-las um ambiente de violência, baseando as relações em
sentimentos contraditórios. De acordo com Faleiros (2001), há nas famílias incestuosas,
uma inversão de papéis afetivos e sociais, além de uma espécie de cumplicidade. Os
familiares compartilham de um segredo que não pode ser revelado. Existe também uma
relação dividida entre eles, pois ao mesmo tempo em que há cumplicidade com a situação,
há ainda um sentimento de pavor. Dessa forma, pode-se verificar que a família abusadora
vive uma situação de inúmeros conflitos.
Durante nossa trajetória profissional, atuando com crianças e adolescentes em
situações de risco, pudemos nos deparar “ao vivo” com casos como este. Seria impossível
não haver questionamentos frente a determinados atos que fogem de ser um acontecimento
natural, porém acontecem mais do que se imagina. Algumas perguntas destacam-se com
essa experiência e são elas que nortearam o percurso desse trabalho: Como é o
funcionamento psicodinâmico do indivíduo que comete o abuso sexual incestuoso? É
os influenciaram? Houve antecedentes incestuosos? Quais as significações do ato para
eles? O que os tornou incapazes de resistir?
O presente trabalho procurou investigar aspectos psicológicos e psicodinâmicos dos
protagonistas de abuso sexual incestuoso, de acordo com o referencial psicanalítico, bem
como oferecer uma reflexão sobre o psicodiagnóstico individual do abusador. Além disso,
procurou-se averiguar as significações subjetivas desses indivíduos a respeito do ato
incestuoso e da mulher. Para tanto, utilizou-se entrevistas semi-estruturadas, análise
documental do prontuário do indivíduo e a aplicação do Método de Rorschach. Os
participantes foram três padrastos que abusaram sexualmente de suas enteadas, e devido ao
ocorrido, encontram-se reclusos no Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília,
Distrito Federal.
O tema que se pretende abordar não é de forma alguma novo. Existem alguns
autores que investigam a questão exposta e tecem considerações sobre proteção e apoio às
famílias, tais como Azevedo & Guerra (1989, 1994, 1988, 1999), Faleiros (2001, 2003),
Cohen (1992, 1993, 2002), Furniss (2002), entre outros. Porém, houve dificuldade em
encontrar trabalhos relativos propriamente ao funcionamento psicológico e psicodinâmico
dos abusadores sexuais incestuosos, com ou sem a utilização de testes projetivos. Talvez
isso se deva ao fato de ser difícil ter a colaboração desses indivíduos para a realização da
pesquisa, além da dificuldade em encontrá-los. O caminho para a realização deste estudo
foi labiríntico e comprovou este fato. A maioria dos atendimentos e serviços prestados
relativos à violência doméstica, dirigem-se às vítimas e aos familiares, enquanto que ao
indivíduo que é o protagonista de uma situação incestuosa cabe a exclusão, a fuga ou a
prisão. Não se pretende com o estudo isentar a responsabilidade dos abusadores pela
autoria dos atos, mas promover o conhecimento sobre os fatores psicológicos que o
levaram à prática do ato e, como revela Furniss (2002), indicar um outro olhar terapêutico
pois não é rotulando, estereotipando ou excluindo, que o incesto irá desaparecer (Cohen &
Gobbetti, 2002).
Na perspectiva da psicanálise os impulsos incestuosos existem na natureza humana,
mas são sublimados e direcionados, com a passagem pelo drama edípico e pela castração,
para outros destinos não-sexuais, aceitados e valorizados socialmente. Isso propicia a
inclusão do indivíduo na civilização. O desejo, desta forma, entra na ordem do
civilizatório, impossibilitando que o indivíduo satisfaça todos os seus desejos (Speler,
2003). Para viver em sociedade há sempre uma quantidade de libido não satisfeita, visto
que existem limitações em atender e realizar os impulsos agressivos e sexuais (Freud,
1997/1930). Portanto, a proibição e o tabu do incesto tornam-se uma lei cultural e não
natural.
A proibição do incesto é um aspecto estruturante da personalidade (Cohen,1993).
Sendo assim, quando nos deparamos com um indivíduo capaz de cometer um ato
incestuoso, é possível pensar que algo em sua história o tornou incapaz de acatar e lei e a
ética social. Seu desejo foi mais forte, transbordou e tomou conta de seu ser. Eventos
traumáticos, funções parentais não bem estabelecidas ou mesmo questões culturais, podem
ter sido determinantes para a formação da personalidade desse indivíduo gerando
distúrbios de ordem moral, social e/ou psicológica (Cohen & Gobbetti, 2002).
Aos abusadores não coube a capacidade de introjetar preceitos morais e
mecanismos inibidores do desejo incestuoso, desta forma a barreira contra o incesto não foi
erguida, bem como os laços familiares não puderam garantir a escolha mais adequada do
objeto sexual.
É possível, portanto, refletir sobre a natureza das questões psicológicas e
psicopatológicas envolvendo o abusador sexual incestuoso, tal como a perversão, onde o
indivíduo encontra-se fixado num ponto da sexualidade pré-genital, conservando a
narcisismo primário (Rugde, 1999). Portanto, essa é uma das possibilidades de
compreensão do funcionamento mental do abusador, mas de acordo com Cohen (1992),
não se sabe muito a respeito das tipificações de doenças psiquiátricas entre esses
indivíduos. Talvez, devido à incompreensão dos aspectos psicológicos e psicodinâmicos,
costuma-se classificá-los como perversos ou pedófilos, sem as devidas análises e a
elaboração de um psicodiagnóstico diferencial.
Encontramos na literatura (Gijseghem, 1980; Azevedo & Guerra, 1999; Gilgun,
1995; Smith & Saunders, 1995, Marcet, 2005, entre outros) estudos que discutem a
complexidade, a diversidade e a similaridade do funcionamento psicológico dos
abusadores. O que foi possível verificar com o estudo realizado é a ausência de um
funcionamento psíquico único, que agrupe os abusadores incestuosos. Embora em todos os
casos a passagem ao ato incestuoso seja um fato, as características individuais, as histórias,
os eventos e as suas significações são diferentes. Assim sendo, é importante ressaltar a
particularidade de cada caso, mesmo quando as estruturas mentais sejam similares. Um
outro aspecto que se mostrou determinante para a formação do indivíduo e para a
ocorrência do incesto, foram os enfoques culturais e sociais.
O trabalho organiza-se em quatro capítulos. O capítulo I apresenta a fundamentação
teórica para o incesto, sua definição e suas características numa visão voltada para o social,
tendo em vista a complexidade do tema, bem como algumas explanações a respeito do tabu
do incesto e teorias que explicam sua proibição, numa visão psicanalítica. Faz também um
percurso sobre aspectos vinculados à personalidade e à psicopatologia do abusador sexual
incestuoso, apresentando a organização psíquica na perspectiva da psicanálise, podendo
esta organização conduzir a modos de funcionamentos perversos, conforme sua direção e
seus encaminhamentos. Tendo em vista a perversão como uma das estruturas mentais
desses indivíduos para a psicanálise, apresenta-se a psicodinâmica dessa patologia, na
revisão bibliográfica sobre a psicopatologia do abusador sexual, apontando os estudos
realizados sobre esse viés e apresentando definições de acordo com o D.S.M. IV (1994), a
respeito dos transtornos que esses indivíduos possam apresentar.
O capítulo II apresenta a metodologia adotada, abordando a pesquisa qualitativa e o
estudo de caso, bem como características dos participantes, instrumentos utilizados e
procedimentos para coleta e análise dos dados.
O capítulo III delineia os resultados a partir da descrição das falas dos participantes,
subdivididas em categorias, estabelecidas de acordo com os focos do estudo. Apresenta
ainda as análises de acordo com o Psicodiagnóstico de Rorschach, realizando a
interpretação e integração dos dados. Ao final de cada caso realizou-se uma discussão, que
proporcionaram a compreensão e a elaboração de um psicodiagnóstico individual e
diferencial, unindo as informações referentes à teoria, às falas das entrevistas e à análise do
Rorschach.
O capítulo IV apresenta as considerações finais sobre os aspectos psicológicos do
CAPÍTULO I
O INCESTO E A PSICOPATOLOGIA DO ABUSADOR
1.1. Incesto e tabu
1.1.1. Incesto: definições e características
O incesto pode ser caracterizado como a união sexual entre parentes, ascendentes,
descendentes e colaterais, podendo ser consangüíneos ou adotivos (Cohen, 1993). Para
Azevedo & Guerra (1989) a violência sexual relacionada à infância e à adolescência
acontece quando se exerce um ato ou jogo sexual – heterossexual / homossexual - entre um
ou mais adultos com grau de parentesco e consangüinidade, responsável legal ou apenas
responsável, ou mesmo que tenha uma relação de afinidade, versus uma criança ou
adolescente, entre zero a dezoito anos para obtenção ou estimulação de prazer. Para
Amarrazay & Koller (1998) a violência sexual na infância e adolescência acontece quando
há o envolvimento de crianças e adolescente em atividades sexuais, sem que estas tenham
compreensão e com as quais não são capazes de concordar.
Observando as definições compreende-se o incesto de um modo abrangente, pois
além dos responsáveis e descendentes, há ainda o que possui afinidade com a criança.
Outro ponto essencial seria a incapacidade de crianças ainda não compreenderem o ato
sexual, ou mesmo se já o compreendem, não estão de acordo com sua realização. Ainda, o
que há de problemático neste ato, é perceber que havia uma relação de confiança,
educativa e de cuidados entre vítima e abusador que foi prejudicada e interpelada por um
Apesar de ser o incesto proibido pela lei e pelos costumes e ser um tema gerador de
desconforto, incompreensão e, até porque não dizer, raiva, ele existe e é freqüente. Isso
pode nos fazer pensar no porquê desse tipo de violência ocorrer dentro da família, e do
porquê dela ser perpetrada pelas pessoas que deveriam cumprir e estabelecer o papel de
cuidadores e educadores. Como é possível então caracterizar essas “numerosas exceções”?
(Lévi-Strauss, 1976).
A família caracteriza-se por ser o local ideal onde a aprendizagem do amor, das leis
e das normas acontecem, ou mesmo, o principal ponto de apoio para o desenvolvimento do
ser humano (Aloísio, 2002). Porém, por vezes acaba se tornando um local de violência ou
de abuso, tornando as relações contraditórias. Há conflitos e brigas, mas há também apoio
e cooperação nas relações entre seus membros. O pai pode ser o que trás o sustento e o que
abusa sexualmente da filha. Para Faleiros (2001) a família na realidade é um palco de
dramas. Existem disputas conscientes e inconscientes de preferências e de interesses.
É possível verificar em alguns contextos familiares o domínio, o poder, o machismo
e o autoritarismo, ou seja, a assimetria nos relacionamentos que foi construída histórica e
culturalmente, permeando e deteriorando as relações sociais. Na relação entre pais e filhos,
o poder tem uma função estruturante para a criança - já que essa está inserida num
processo de desenvolvimento físico, cognitivo e psicológico – e é importante, pois está
ligada ao processo de educação. Entretanto, se esse poder é utilizado como forma de abuso
e de imposição, como no caso do incesto, perde sua função estruturante e se transforma em
violência (Garcia, 2001).
A atitude de um pai abusar um filho representa uma atuação de emoções e
sentimentos que estão deslocados para esse fim. A questão do abuso sexual intrafamiliar
rompe com a compreensão - ou o que se espera - de família instituída com as funções de
educação e proteção, desfaz as relações de confiança entre seus membros, além de impedir
salientam que o abuso sexual não vem sozinho, envolve ainda abuso físico e emocional.
Além disso, os abusos sexuais ocorrem em segredo. Imposto por violência ou por ameaças,
o segredo tem a função de manter uma integração familiar e ao mesmo tempo “proteger” a
família de julgamentos em seu meio social.
Pode haver por muitas vezes confusões nas terminologias empregadas para se
definir essa questão. De forma inadequada, termos como abuso sexual contra crianças,
pedofilia e incesto são utilizados como sinônimos. (Cohen, 1992).
A pedofilia é caracterizada como um distúrbio sexual do grupo das parafilias, onde
o pedófilo experimenta fantasias intensas e sexualmente excitantes, impulsos sexuais
cíclicos ou comportamento envolvendo atividade sexual com uma criança na
pré-puberdade (de 0 até 9 anos). A pessoa que comete o ato tem ao menos dezesseis anos de
idade e ao menos cinco anos a mais do que a criança (D.S.M. IV, 1994).O termo hebefilia
é por vezes utilizado para descrever a atração adulta por adolescentes que já atingiram a
puberdade (de 9 a 13 anos), assim como o termo efebofilia que designa a atração de
adultos por adolescentes pós-púberes (de 13 a 17 anos) (Correia, 2003). Como pode ser
observado, não há especificação que as crianças sejam da mesma família do pedófilo,
portanto não necessariamente um pedófilo abusa de filhos, netos, sobrinhos, etc. A
pedofilia e o grupo das parafilias serão abordados mais profundamente posteriormente.
Esses termos referem tendências psicológicas. Não é determinante que um
indivíduo com esse diagnóstico, abuse de crianças ou adolescentes. Muitos deles não
cometerão este ato. Podem sentirem-se atraídos, mas não se envolverem num contato
sexual real (Correia, 2003). Assim como indivíduos que possam vir a cometer o abuso
sexual infantil, podem ter um outro diagnóstico que não pedofilia. Essa tendência é
comum, pois há pouca distinção entre psicopatologia e singularidade, principalmente neste
O abuso sexual contra crianças refere-se a comportamentos e não implica um perfil
psicológico específico, ou mesmo um motivo por parte do abusador. Em determinados
casos, o abusador tem outras razões para realizar o ato e não manifesta um padrão
continuado de atração sexual por crianças. Além disso, o indivíduo que abusa pode ter a
mesma idade da vítima ou ser um pouco mais velho, como é o caso de incesto entre
irmãos.
Pode-se questionar o que faz um ato ser sexual: um gesto, um olhar ou a
penetração? Um gesto pode ser uma representação de um grande élan afetivo, como pode
também ser de intuito sexual. Nas famílias incestuosas as linhas são extremamente tênues,
a afetividade se confunde, pois os regulamentos são mal definidos. A fronteira entre
afetividade e a sexualidade não está definida. Um gesto afetivo como um abraço, por
exemplo, pode ser compreendido como um ato sexualizado. Nessas famílias os gestos não
são facilmente codificados, assim como os papéis são extremamente confusos. Não é
possível definir quem é quem, quem faz o quê e quem diz o quê (Cromberg, 2001).
Amazarray & Koller (1998) referem ser o incesto um dos abusos mais freqüentes
na cultura brasileira. Apresentam conseqüências mais danosas às vítimas, sendo o mais
comum e o mais relatado, o tipo de incesto que envolve pai ou padrasto e filha ou enteada.
No entanto, existem outros tipos de incesto: irmão-irmã, mãe-filho, pai-filho, mãe-filha.
Destes, o incesto mãe-filho é considerado o tipo mais patológico, sendo associado com
psicose e o incesto irmão-irmã, provavelmente é o que acarreta menos seqüelas (Tetelbom,
Quinalha, Defavery & Zavaschi, 1991).
Segundo Faleiros (2001), existe no incesto, uma inversão de papéis afetivos e
sociais. O protetor se faz o agressor e o sentimento de afeto dedicado ao outro de forma
respeitosa, se torna uma sedução imperativa. Existe uma espécie de cumplicidade nas
famílias incestuosas. Mãe, pai, padrasto, irmãos e enteados compartilham de um segredo
mesmo tempo em que há cumplicidade entre o abusado e o abusador, devido aos
sentimentos de proteção e de sobrevivência, há também um sentimento de pavor. Entre a
mãe e a menina existem sentimentos ambíguos de afetividade e rivalidade. Os irmãos se
vêem divididos entre o medo e o desejo de revelarem o segredo. Existe ainda uma relação
desconexa entre sedução, prazer e agressão ao abusador. Portanto pode-se verificar que na
família abusadora as relações são caóticas e a divisão de fronteiras e de papéis é nebulosa e
difusa (Amazarray & Koller, 1998).
De acordo com Amazarray & Koller (1998), a dinâmica da família onde há o abuso
sexual é bastante disfuncional, pois apresenta características e comportamentos
inadequados. São relatadas algumas características que sugerem o abuso, tais como:
violência doméstica; pai ou mãe abusados ou negligenciados em suas famílias de origem;
pai alcoolista; pai autoritário ou moralista; mãe passiva ou ausente; cônjuges com relação
sexual inadequada; presença de padrasto ou madrasta; pais que acariciam demais seus
filhos ou que exigem determinadas carícias; pais que permanecem por muito tempo
sozinhos com os filhos; filhas desempenhando papel de mães; comportamentos promíscuos
ou autodestrutivos das filhas; crianças retraídas e isoladas ou que apresentem
comportamento sexual inadequado para sua idade. Além destas características, as famílias
abusadoras, apresentam comportamentos hostis diante de pessoas desconhecidas e
dificilmente autorizam entrevistas com os filhos.
Fato é que o abuso sexual intrafamiliar existe. Crianças e adolescentes sofrem com
essa condição, porém, encontram-se impossibilitados de revelar a situação que lhes é
imposta. O abuso, por sua vez, aparece mascarado sendo custoso o seu diagnóstico, além
de se caracterizar como um crime, de acordo com o Código Penal Brasileiro (Anexo I).
Apesar da lei existente, a prisão do agressor não é vista como uma solução já que
priva a família do sustento, pois o pai/abusador culturalmente, muitas vezes representa o
determinados momentos, é vista como mais grave que o próprio abuso (Gabel, 1997).
Garcia (2001), em seus atendimentos com pais incestuosos, reflete que a prisão não é uma
solução para que a dinâmica incestuosa familiar termine. Há necessidade de avaliação da
questão psicopatológica, pois é possível considerar o autor do abuso sexual intrafamiliar
como um indivíduo portador de perturbação da saúde mental, que pode ser psicossocial ou
psicossexual (Cohen,1993). Para tal, existe a necessidade de compreender a psicodinâmica
do indivíduo que comete o incesto, bem como realizar diagnósticos diferenciais, que é a
proposta dessa dissertação.
Ao contextualizar a violência sexual intrafamiliar, algumas indagações surgem: Por
que ela ocorre dentro de um “lar”? Por que pessoas que deveriam proteger seus filhos não
o fazem? Por que os pais, padrastos, tios e avós não foram capazes de respeitar uma norma
cultural e legal? Com base nestas perguntas, existem algumas proposições que visam
explicar este fenômeno.
Muitas teorias foram colocadas para explicar a causa do abuso sexual. Foi possível
encontrar as seguintes aproximações teóricas (site: www.secasa.com.au):
Teoria psicanalítica: Considera que algumas situações vivenciadas, tal como o complexo de Édipo e a inabilidade de conseguir superar essa fase, alguns eventos
traumáticos sexuais ocorridos durante a infância, podem explicar o comportamento dos
ofensores. Para essa teoria, esse comportamento seria o resultado da ansiedade da castração
em conseqüência da falha na resolução do complexo de Édipo, gerando sentimentos de
inadequação sexual e necessidade de ser sexualmente dominante. Os abusadores são visto
como perturbados e perversos, em conseqüência do desenvolvimento psico-sexual pobre.
As limitações dessa teoria consistem na desconsideração de fatores sociais e culturais e na
valorização dos aspectos psicopatológicos.
incentiva o abuso. O abusador pode entender esses gestos e ações como sinais de
consentimento. As limitações são claras: responsabilizam somente a vítima, e igualam
vítimas e abusadores, onde não há igualdade, sendo que houve uma situação coagida.
Teoria da disfunção da família: Coloca a família como disfuncional. O incesto é
visto como um sintoma do desajustamento total e propõe que todos os membros são
responsáveis pelo acontecimento. A mãe é vista com uma importância fundamental. O não
suprir das necessidades emocionais dos filhos e o não proteger, além de comportamentos
depressivos e frigidez sexual, podem desencadear comportamentos incestuosos, onde os
filhos irão buscar o pai para substituto do amor materno, e o pai pode buscar o sexo com
uma filha, por exemplo. As limitações existem, pois este modelo explica somente o
incesto, assim como a teoria psicanalítica, além de negar o pai/abusador como um dos
maiores responsáveis pelo acontecimento do abuso sexual.
Teoria psicológica: Tem maior foco no abuso e não na vítima ou na família. Colocam dois focos principais: identificar o perfil de personalidade do ofensor sexual e
conhecer as motivações para o abuso. Algumas características são citadas, tais como:
introversão social, sentimentos de inadequação da masculinidade, necessidade de exercer
altos graus de dominação e controle nas relações familiares, além de culpar o outro pela
responsabilidade do ato. Essas características referem-se mais ao abusador incestuoso,
porém é colocado que o perfil não determina o abusador, sendo que podem existir outras
tendências, criminosas ou não, podem apresentar doenças mentais ou não, ou mesmo pode
ser de um tipo muito comum. O alcoolismo também é citado, assim como o pobre controle
interno. Nessa teoria também é possível encontrar limitações, pois algumas características
colocadas nos abusadores, implicam numa normalidade ao abuso, já que pessoas podem
apresentar essas características e não abusarem sexualmente.
na maioria dos casos, mulheres e crianças são vitimizadas. Não cita motivos psicológicos,
focalizam-se apenas nos modelos sociais.
Teoria de quatro pré-circunstâncias: Nesse caso há o desenvolvimento de um modelo hierárquico multicausal, incluindo fatores individuais de todos os envolvidos, o
abuso sexual, a família e fatores culturais e sociais. Portanto, considera motivações
psicológicas, como motivo do abuso, existência de inibições internas, e ainda motivações
sociais, como o machismo, a pornografia, a erotização de crianças, entre outros.
Na visão de Azevedo & Guerra (1989) existem ainda outras três teorias, são elas:
Teoria psicodinâmica: defende a idéia de que o comportamento agressivo ocorre
devido aos traços de personalidade do agressor. Porém, estudos atuais mostram que em
apenas 10% dos casos os agressores apresentam quadros de perturbações graves.
Teoria da aprendizagem social: a idéia fundamental é de que o comportamento violento é aprendido, socializado e repassado.
Teoria sócio-psicológica: propõe que a violência contra criança é resultado de uma
multiplicidade de fatores, tais como posição social, valores pessoais, traço de
personalidade, problemas neurológicos, stress, uso de drogas, etc...
Apesar de existirem diversas explicações para a razão do abuso sexual, elas sempre
irão esbarrar em alguns enfoques. No caso desse trabalho, visa-se conhecer a partir da fala
dos indivíduos que praticaram o incesto, seus aspectos psicológicos e psicodinâmicos,
enfocando as interpretações psicanalíticas. Vale ressaltar que em todas as teorias citadas é
possível encontrar razões justas e conexas, já que o tema é extremamente amplo onde uma
gama de fatores influencia a sua ocorrência, ou seja, fatores sociais, culturais, familiares,
1.1.2. Tabu do incesto: do natural ao cultural
Na perspectiva psicanalítica, é possível encontrar referências sobre como os desejos
incestuosos fazem parte da essência dos indivíduos. Freud compreendeu a questão do
incesto a luz do Complexo de Édipo, convertendo em elementos de fantasia a ordem sexual
da criança para com o genitor do sexo oposto ao seu. A elaboração do drama edípico irá
imprimir as proibições e a interdição da realização dos desejos infantis e impulsos
incestuosos, que levam a criança a perceber as regras e os limites, cuja função seria de
possibilitar o convívio humano numa civilização. O estabelecimento dessas regras então, é
fundamental. A proibição do incesto deve ser “ensinada” – apesar de não falada, está
implícito nas ações - e por esse motivo, que ela não é uma lei natural e sim uma lei cultural
(Cohen, 1993). O desejo aqui entra na ordem do civilizatório, a partir da instituição do
Édipo e da castração. Então, a sexualidade para o ser humano não é ordenada, e sim é
representada por uma cisão que impossibilita a satisfação de todos os desejos (Speller,
2003).
Quando o incesto se dá, há o rompimento de uma regra que deveria ser estabelecida
entre os membros de uma determinada família. Ocorre a transgressão de uma lei. A
transgressão caracteriza-se por ser o rompimento de algo que se sabe proibido, reprimido e
interdito. Acarreta a contravenção de um tabu.
Os tabus existem e foram originados como forma de uma sociedade poder evoluir e
conviver, pois eles implicam a noção de limites do que um sujeito pode fazer ou não,
quando inserido num sistema social. Para tanto, os tabus funcionam como forma de
proteger, de prevenir, de resguardar e de salvar os mais debilitados, as crianças e os
neonatos, as famílias nucleares e as sociedades, e os que detêm menos poder. O tabu seria
como o código legal não escrito, mais antigo da humanidade, para Wundt (Cohen, 1993).
proibições e as metas do tabu possibilitam a organização da vida afetiva e cognitiva, pois
permitem a interação do indivíduo com a cultura (Cohen, 1993).
O tabu do incesto representa um dos poucos tabus universais, onde há uma
verdadeira rejeição a todo ato que pode ser considerado incestuoso. A universalidade do
tabu do incesto é explicada por Lévi-Strauss (1976), onde há a sustentação da idéia dos
seres humanos como um produto da natureza e, portanto seres biológicos, e ao mesmo
tempo, serem produtos da cultura e do social. Desta forma, o ser humano é ambíguo, por
ao mesmo tempo desejar - pois é biológico – e proibir – pois é social. O tabu do incesto é a
expressão da natureza superando a si mesma (Lévi-Strauss, 1976).
O indivíduo é o fruto de desejos que precisam ser regulados por leis e regras, para
que possa conviver em comunidade com outros indivíduos. No entanto, a origem do ser
humano não é essa. Isso é fruto da evolução, da humanização, que faz o sujeito buscar
outras formas de obter prazer e de sobreviver (Goldfeder, 2000). A repugnância contra o
incesto não vem de um sentimento natural. Portanto, a ojeriza ao incesto é um
acontecimento fruto da civilização (Uchoa, 1940). A proibição do incesto demonstra a
passagem de um fator natural do parentesco, a um fator cultural da união (Cromberg,
2001). Com a proibição do incesto e a instauração do Édipo, portanto, há uma tentativa de
se regular a vida sexual dos indivíduos. É nesse momento que se dá o acesso do natural ao
cultural (Goldfeder, 2000).
Freud (1997/1930) retoma a questão da proibição do incesto, afirmando a existência
de uma pulsão de destruição em cada um de nós. Ao observar as barbaridades que
ocorreram durante a Primeira Guerra Mundial, percebeu a incontestável presença do ódio e
da hostilidade nos atos dos homens. A pulsão de morte então, levaria, quando em seu
limite, o indivíduo ao aniquilamento. Para se autopreservar, o indivíduo destruiria a vida
alheia e isso serve de base ao sadismo. Para o sujeito evoluir, precisou agrupar-se com seus
convivência grupal decorre a necessidade da presença de regras que devem ser respeitadas
e que têm como base a proibição do assassinato e a interdição do incesto. Freud afirma que
para viver em sociedade há sempre uma quantidade de libido insatisfeita, uma vez que há
limitação em satisfazer os impulsos sexuais e agressivos. Mesmo existindo outras formas
de satisfação dos impulsos, Freud pondera sobre um “mal-estar” inerente à cultura.
Aqui cabe a importância da sublimação como uma possibilidade de direcionamento
da pulsão sexual para outros destinos não-sexuais, com a finalidade de afirmar o
desenvolvimento da civilização no decorrer da história. A sublimação é um método de
dessexualização que garante a humanidade e o trabalho da civilização, pois a pulsão é
desviada para processos de cunho criativo e moral, visto que são maneiras aceitáveis e
valorizadas socialmente. Conseqüentemente a hostilidade, o ódio, a agressividade referidos
anteriormente, também estariam sujeitos a transformações para novos fins (Speller, 2003).
Ao falar sobre assuntos tais como tabu, sublimação, etc., pensa-se em como se
chegou à conclusão do incesto ser um ato irracional e prejudicial. Por que o indivíduo teve
de sublimar seus desejos incestuosos? Por que houve a concepção de uma lei, uma regra
quase universal e fundamental, como a interdição do incesto?
Segundo Ceccarelli (Cohen, 1993), existem teorias que fundamentam e explicam o
tabu do incesto e sua permanência, quais são:
Teoria Biológica: É subdividida em outras duas teorias: a teoria do instinto que
afirma que o tabu do incesto é de natureza instintiva, e a teoria da função eugênica que
expõe haver estudos demonstrando que nos descendentes de relações entre consangüíneos
próximos, há casos de doenças e de menor fertilidade;
Teoria Psicológica: É subdividida em: teoria da convivência que elucida existir um instinto natural que proíbe as relações incestuosas e é esse instinto que manifestaria uma
repulsa às relações sexuais com pessoas que convivem desde a mais tenra idade; e teoria
pré-história os homens viviam nessas hordas selvagens e eram submetidos aos desígnios de um
macho que possuía todas as fêmeas. Num determinado momento os filhos desse macho se
rebelaram, o mataram e o comeram. Após o acontecido, os filhos sentiram remorso e culpa
fazendo surgir uma nova ordem, pela qual foi instituída a exogamia, que seria a proibição
do casamento com mulheres do mesmo clã e levando ainda a renegar o fato cometido –
assassinato do pai – proibindo a morte do totem – como substituto a esse pai. Nesse
âmbito, originam-se dois pontos fundamentais: o totetismo que aparece como uma
instituição religiosa que dita as regras e proibições, punindo com rigidez as transgressões, e
o tabu que emerge como uma formação reativa ao desejo, para tentar impedi-lo de
acontecer, e que sobrevive, pois ao mesmo tempo em que ameaça o desejo e a vida,
protege o indivíduo dessas ameaças. Os filhos renunciam ao desejo de matar o pai e casar
com as mulheres do mesmo clã, através da repressão, desta forma, concebendo a
civilização (Goldfeder, 2000). Essa proposição seria um esclarecimento para a razão do
tabu do incesto que expõe as origens das organizações sociais, com suas regras de convívio
e suas crenças (Faiman, 2004). Portanto, oferece a idéia de que os impulsos psicológicos
interditados permitiram modificar as estruturas de grupos primitivos; e a teoria do incesto
como negativo da família, já que o incesto destrói a relação psicológica essencial numa
estrutura familiar.
Teoria Sociológica: Propõe-se a explicar que há um aprendizado baseado na
percepção de que o incesto traz aspectos prejudiciais para a vida do grupo (teoria da
captura da esposa); inserida nesta teoria há a teoria da constatação dos danos genéticos que
foi instituída a partir da observação que a reprodução entre consangüíneos traz danos
genéticos;
Teoria Eclética: Parte do pressuposto que o incesto ocorre por uma série de razões
que podem ser advindas da estrutura familiar. Essa estrutura ocasiona um aprendizado
onde famílias que conseguiram aplicar a proibição do incesto, obtiveram a sobrevivência.
O essencial é perceber que por mais hipóteses que existam para a explicação do tabu do
incesto, sua proibição é universal e tem o objetivo de organizar as relações intra e extra
familiares de um indivíduo (Cohen, 1993).
A teoria psicanalítica oferece uma explicação de como todos os seres humanos são
compostos de sentimentos incestuosos. Os indivíduos devem ir contra esses sentimentos e
incorporá-lo, em diferentes etapas de seu desenvolvimento social e sexual, devido à
existência desse tabu universal - o tabu do incesto - e devido às conseqüências nefastas no
desenvolvimento biopsicossocial da humanidade, das famílias e dos indivíduos, que podem
acarretar sua transgressão. No entanto, não se pode negar a essência incestuosa e a sua
repressão como um fator estruturante da personalidade dos seres humanos, que organiza o
afeto e a cognição, permitindo o estabelecimento de relacionamentos amorosos e sexuais,
fora do ambiente familiar, permitindo também o alcance da maturidade e a introdução à
cultura (Cohen, 1993).
A transgressão e a concretização do incesto ocorrem num âmbito real que se
apresenta com a realização de fantasias inconscientes em relação ao Complexo de Édipo.
Nas famílias em que ocorre uma falha na interdição do incesto, se pode pensar, numa
deficiência da possibilidade de estruturação psíquica e social. Para essas famílias, o incesto
não é proibido, ele é tolerado e conhecido pelos integrantes delas, onde todos estão imersos
na conivência, em nosso caso, com o pai abusador. O tabu, nesses casos, não se refere ao
incesto propriamente dito, mas à revelação do ato que não deve sair da família (Sabourin,
1997). A família incestuosa dá, assim, um “drible” na ordem social. Porém, a falta de
estruturação psíquica não deve ser vista de forma generalizada, já que o acontecimento do
incesto, pode ser a expressão de inúmeros conflitos, num contexto complexo que diferencia
Com as referidas explanações, é possível concluir que a existência de limites e de
regras irão diferenciar a ordem biológica da ordem da civilização. O indivíduo sendo
reprimido de seus instintos e pulsões naturais, deve procurar outros modos de canalizá-los
o que possibilita, desta forma, o estabelecimento de representações. Com isso, pode-se
averiguar que a possibilidade da elaboração do Complexo de Édipo e da evolução dos seres
humanos, determinando o destino das pulsões e instintos incestuosos e agressivos, incidem
diretamente no funcionamento psicológico dos seres humanos (Faiman, 2004).
1.2. Psicodinâmica e psicopatologia do abusador sexual
1.2.1. A organização psíquica na perspectiva da psicanálise
Freud iniciou seus atendimentos com pacientes histéricas e ficou admirado com a
freqüência dos relatos clínicos dessas pacientes que revelavam terem sido abusadas
sexualmente durante a infância, por um adulto. Com essas observações, Freud propôs a
Teoria da Sedução, entre 1895 e 1897, onde apresentava a idéia de que as neuroses eram
produtos da sedução de uma criança por um adulto e dos atos incestuosos que ocorriam.
Essa teoria foi sendo abandonada por Freud, pois por meio dos casos clínicos, passou a
duvidar que os sintomas neuróticos fossem causados pelas defesas contra recordações de
um fato sexual e sedutor de um adulto e uma criança (Cromberg, 2001). De fato, se
houvesse veracidade nos relatos, haveria tantos pais perversos quanto havia neuróticos, e
isso não era real. Apesar dessas suas constatações, o incesto acontece, e sempre aconteceu,
em números surpreendentes, o que leva a algumas contradições entre a teoria e a realidade
Cromberg (2001) descreve que com essas observações e com o Caso Emma, Freud
começa a dar pistas a respeito da sexualidade infantil onde observava uma sexualidade
ativa, devido a estimulação de zonas corporais, principalmente as zonas bucal e anal, mas
também as zonas genitais, capazes de provocar algo semelhante à excitação sexual. Chega
à conclusão que é a fantasia sexual infantil que governa os processos psicológicos e não
seriam, portanto, a sedução real de um adulto com uma criança. A sexualidade na criança é
introduzida, quando essa se relaciona com pessoas que para ela são fontes de excitação
sexual e satisfação das zonas erógenas. A mãe principalmente cuida da criança e atende
suas necessidades, com sentimentos conseqüentes de sua própria vida sexual que são
inconscientes e desconhecidos dela.
Para Freud (1997/1905), as impressões esquecidas, pela amnésia ou pelo
impedimento da consciência - recalcamento - que encobrem os primeiros anos de vida,
deixam pegadas na vida dos indivíduos e são determinantes para todo um desenvolvimento
posterior.
As crianças trazem consigo conteúdos sexuais que vão se desenvolvendo, para
posteriormente sofrerem um período de latência, que vai sendo desfeito pelo avanço do
desenvolvimento sexual (Lopez, 1964). A teoria freudiana postula uma organização genital
infantil que se desenvolve até atingir a sexualidade adulta genital (Garcia, 2001).
A sexualidade infantil, contudo, não deve ser confundida com a genitalidade.
Quando a criança nasce, sua libido está ligada à satisfação das necessidades térmicas e
nutritivas, para posteriormente ir estendendo-se em algumas fases. Na fase fálica, ocorre o
Complexo de Édipo onde a escolha do objeto sexual é definida, tanto pelo menino como
pela menina, de acordo com a maneira que irão vivenciar o complexo de castração
resultante da interdição.
O Complexo de Édipo caracteriza-se pelo conjunto de desejos amorosos e hostis
genitor do sexo oposto, e desejos de morte do genitor do mesmo sexo. A criança do sexo
masculino, por exemplo, tem seus anseios destruídos pelo complexo de castração,
resultante da interdição e da proibição do incesto por parte da figura paterna, quando
reconhece na figura do pai, um obstáculo para a realização dos seus desejos de seduzir a
mãe. Portanto, o pai é visto como um rival, numa posição ameaçadora. O menino vê-se
obrigado a abandonar o investimento libidinal em relação à mãe, que se transformará em
identificação, e juntamente com a autoridade introjetada pela lei do pai, irão constituir os
núcleos fundamentais para a formação do superego e da sexualidade (Zimerman, 2001). A
vivência do Complexo de Édipo, com as castrações impostas pela figura paterna e as
limitações que a criança experimenta, arrancam o ego de seu narcisismo, que deve
renunciar à perfeição e à completude (Faiman, 2004).
O narcisismo então, é um processo normal e necessário, que ocorre no curso do
desenvolvimento libidinal, entre o auto-erotismo e o amor objetal. As primeiras realizações
de um indivíduo são auto-eróticas, mas com o desenvolvimento do ego, o indivíduo
torna-se narcisista, torna-sendo esta fatorna-se denominada narcisismo primário. Quando a criança torna-se
percebe impossibilitada de manter-se como seu próprio objeto de amor, volta-se para o
exterior, desenvolvendo o amor objetal. Um dos fatores para que a superação do
narcisismo primário ocorra, seria a elaboração edípica com a castração (Reis, Magalhães &
Gonçalves, 1984).
A escolha objetal se dá devido a uma série de representações que se encontram sob
a forma de traços mnêmicos no inconsciente. No momento do narcisismo primário -
anterior ao Complexo de Édipo - o ego não se distingue de um ideal, é perfeito e
onipotente. Não há nessa fase, necessidade de reconhecer limites ou impossibilidades, pois
o ego infantil encontra-se imerso no seu narcisismo, em uma imagem perfeita. Esse
momento é um reflexo do narcisismo parental que os pais investem no bebê. A vivência do
de seu narcisismo. É a época crucial em que culmina a sexualidade infantil decidindo seu
futuro, uma vez que o sujeito, inconscientemente, assume uma posição subjetiva, quanto às
suas escolhas objetais (Faiman, 2004). É o momento em que o indivíduo tem que se
deparar com a incógnita de sua identidade sexual e sua origem, decidindo, desta forma, o
seu futuro sexual (Speller, 2003).
A dissolução do Complexo de Édipo e da castração que impõe o seu fim podem
gerar uma ferida no narcisismo, onde o indivíduo deve renunciar à totalidade corporal,
mental e sexual, e conseqüentemente, deixar de ser o centro de tudo e de todos, deixar de
ser completa, e adquirir o sexo predominante. Esse processo representa grande relevo no
desenvolvimento humano, pois estabelece uma nova distinção entre a libido do ego, a
libido objetal e o superego - que também é formado com a dissolução do Complexo de
Édipo (Zimerman, 2001).
Nesse sentido faz-se essencial falar sobre superego que é representado como uma
instância psíquica que surge devido à internalização das interdições. Organiza-se com o
declínio do Complexo de Édipo, onde a castração o conclui, e faz com que a criança
absorva uma consciência moral e experimente limitações que destronam o ego de seu
narcisismo primário (Faiman, 2004). Esse processo ocorre devido a introjeção que dirige
ao próprio indivíduo, as forças pulsionais das tendências agressivas e as coloca a serviço
da autopunição dos desejos primitivos incestuosos e criminosos – casar com a mãe e matar
o pai. O genitor odiado é incorporado à personalidade, devido a introjeção e se converte
em um papel censor, semelhante a um juiz (Lopez, 1964).
O superego possui funções diferenciadas. A auto-observação ocorre como uma
atividade preliminar necessária ao julgamento moral. É o superego que julga as idéias e as
atitudes, dando origem a um sentimento de culpa. Ele funciona também como um veículo
do ideal do eu, no qual o ego se compara. É o superego, então, que controla o ego, tentando
identificatório que seria um precipitado da antiga imagem dos pais, que sobrevive devido a
grande admiração que a criança sente pelos genitores, na época em que as funções eram
atribuídas a eles (Rudge, 1999). A censura que o superego investe no ego revela grande
criticidade e severidade, ao que ao ego cabe replicar com um sentimento de culpa
inconsciente, inadequação e sentimentos de inferioridade (Faiman, 2004). O ego é derivado
da ação modeladora da experiência e da educação, que cunham com os reflexos resultantes
da observação, a bipolaridade da consciência. O ego por sua vez, a serviço do superego,
controla o id. Essa instância psíquica se manifesta sob a forma de impulsos primários e
ancestrais, obedecendo a dois instintos: o de Morte, também denominados tânicos ou
destruidores, de natureza sadomasoquista, e o de Vida, ou criadores, sob o epíteto de
Libido ou Eros Platônico. As referidas forças são fundamentalmente inconscientes e
representam o fragmento mais profundo do psiquismo (Lopez, 1964).
Retomando a sexualidade infantil, tem-se que ela difere em muitos aspectos do que
é considerado como “normal” num período posterior, visto que as barreiras estabelecidas
contra as espécies, contra a repugnância, contra pessoas do mesmo sexo e contra o incesto,
não existem desde o começo. As crianças são livres dessas barreiras, que foram
estabelecidas no decorrer do desenvolvimento e da educação, e que estabelecem uma série
de mecanismos inibidores de suas tendências libidinosas. Essas barreiras criam uma série
de fatores repressivos (Lopez, 1964). A sexualidade infantil para a teoria psicanalítica,
pode ser descrita como perversa polimorfa, já que impõe outros objetos e outras
finalidades, que não o fim sexual genital para a reprodução (Speller, 2003). A criança
manifesta sua sexualidade emanando de zonas erógenas distintas, as pulsões parciais que
buscam a obtenção de prazer através de objetos parciais (Garcia, 2001).
Quando o cuidado dos pais com os filhos ocorre de maneira saudável, e a pulsão é
impedida de ser despertada anteriormente à puberdade, esse cuidado, essa ternura, como
criança seria mais fácil escolher como objetos sexuais, as pessoas que ama desde a
infância, mas com a prorrogação da maturação sexual é possível também,
concomitantemente, erguer a barreira do incesto. Assim, há a integração da idéia e dos
preceitos morais, como uma exigência cultural, que excluem a escolha objetal com as
pessoas amadas desde a infância e com parentes consangüíneos. É por isso que os laços
familiares, que eram decisivos na infância, vão sendo afrouxados com a origem da
adolescência, para que haja uma integração com outros indivíduos que não pertençam ao
mesmo ambiente (Lopez, 1964).
Outro ponto relativo a este assunto seria a importância dos fatores sexuais na
motivação de algumas perturbações psíquicas. Freud fez inúmeras observações sobre como
esse fato estaria vinculado a um grupo de atividades, representações e sintomas e não
somente ao genital (Speller, 2003). Portanto a sexualidade para Freud, não está resumida
apenas à finalidade de reprodução. A libido pode adotar qualquer objeto como objeto de
desejo e nesse sentido, a idéia de reprodução é colocada de escanteio, pois a pulsão sexual
busca a satisfação e não a reprodução.
Freud (1997/1905) introduz os termos objeto sexual que refere à pessoa de quem
provém a atração sexual, e alvo sexual ligado à ação para a qual a pulsão impulsiona, mas
observa que, cientificamente, um grande número de desvios podem ser notados em relação
a essas definições. Há pessoas cujos objetos sexuais não pertencem a escolhas apropriadas,
como nos casos dos sujeitos protagonistas de incesto. Quando uma pessoa imatura passa a
exercer o papel de objeto sexual, o indivíduo a utiliza como substituto, ou enquanto a
pulsão urgente não pode, no momento, apropriar-se de um outro objeto que seja mais
acertado. É esclarecido ainda, que a pulsão sexual assume, em sua natureza, uma variação
extensa em relação ao objeto sexual. A pulsão sexual se refere aos instintos responsáveis
pela libido e por tudo que pode ser entendido como um ato de amor, que mais tarde cedeu
Deve-se considerar, portanto, esses aspectos como importantes precursores da
organização sexual, onde a escolha objetal é orientada pelos indicativos infantis, renovados
na fase da puberdade, da inclinação sexual da criança pelos pais ou por pessoas próximas a
ela, desviados pela barreira do incesto para outras pessoas.
Em alguns casos, não é possível ao indivíduo sair da sexualidade infantil
perverso-polimorfa, havendo uma fixação nessa etapa. Nesses casos, houve fatores sexuais que
motivaram a existência de uma perturbação psíquica. A divisão que o ego deve fazer, uma
funcionando para se ajustar ao desejo e a outra se ajustando à realidade, não foi
processada. (Ferraz, 2001).
No caso do indivíduo que comete um ato incestuoso contra crianças e adolescentes,
a barreira do incesto não foi erguida, os preceitos morais e os mecanismos inibidores não
foram introjetados, os laços familiares não puderam garantir a escolha objetal adequada ao
esforço civilizatório. As diferenças, os limites, as normas desaparecem, tendo em vista a
interdição ter se tornado fraca, deixando os impulsos incestuosos sem definição clara e
permitindo que o narcisismo primário continuasse instalado (Ferraz, 2001). Esse indivíduo
não pode modificar seu objeto sexual e utilizar-se dos mecanismos de defesa contra a
angústia de castração, dando origem a uma incapacidade de sublimar o desejo incestuoso, e
de perceber o outro como um ser além dele e além de um objeto de satisfação, que sente e
sofre, procedendo desta forma, num modo de funcionamento perverso.
1.2.2. A psicodinâmica da perversão
O incesto se assinala como uma forma de sujeição do outro, para uma posição de
onipotência ser colocada na relação. Apresenta-se, desta forma, a perversão que acontece
quando a satisfação sexual é obtida por outros objetos sexuais, como no caso do abuso
2001). O termo perversão é utilizado como forma de indicar sua maneira de acontecer, uma
forma completamente generalizada da sexualidade (Rudge, 1999).
A perversão relaciona-se com a formulação do Complexo de Édipo, que marca a
possibilidade da instauração da sexualidade genital como eixo central na vida adulta,
resultando ainda nas identificações sexuais, na eleição do objeto sexual, no contato com a
angústia da castração, na possibilidade de renúncia pulsional ao objeto incestuoso, na
posição do sujeito frente às leis, etc. O Complexo de Castração também está intimamente
articulado com a perversão, pois a criança deve renunciar à posição incestuosa com a mãe,
por temor ao rival paterno (Araújo, 2005). Os mecanismos inconscientes implicadores da
perversão, são o da recusa, ou a negação, devido à dificuldade em aceitar a ameaça da
castração. A recusa representa uma deficiência no trabalho do recalque que seria um modo
de funcionar perante a trama edípica, que beneficia a confusão de papéis e contornos
sexuais. A forma encontrada na estrutura perversa é um meio de contornar a realidade da
castração (Ferraz, 2001).
A perversão é o resultado de uma dinâmica familiar específica que através do
medo, induziu a criança a evitar enfrentar o conflito edípico, mas que já estava instalado. O
desfecho da situação edípica não seria o recalcamento, mas a sua evitação. Esse processo
adiantaria o final da situação edípica, mantendo-a em eterna suspensão (Stoller, 1975).
Essa dinâmica familiar tem uma configuração diferenciada de uma mãe imersa numa
lógica fálica, que não reconhece a própria castração, colocando o filho numa posição
ímpar, proporcionando a ele uma gratificação narcísica de grande intensidade. Esse
processo, aliado a impossibilidade do pai em ocupar o lugar de interditor, não havendo
uma identificação da criança com esse pai, trará dificuldades no reconhecimento da
diferença eu-outro resignificada na diferença sexual (Ferraz, 2001).
Na perversão ocorre um desvio com relação ao objeto sexual, ou até mesmo com
podem ser obtidas através da satisfação das pulsões, que nos adultos são identificadas
como atos preparatórios para outro fim sexual. O prazer preliminar é muito intenso e a
capacidade para lidar com essa pressão é pouca, então o ato preparatório substitui o ato
sexual. Esses desvios acontecem, devido à tendências regressivas do ego para formas
pré-genitais de satisfação. Em alguns casos, funcionam como uma defesa contra a ansiedade e
a angústia que a sexualidade genital pode causar (Cohen, 1993).
O objeto sexual pode mudar no decorrer da existência, com muitas variações como
os que substituem o ato sexual por outras partes do corpo, ou quando há substituições
simbólicas da função sexual para outras partes do corpo. No caso do incesto há um desejo
por uma pessoa na qual o relacionamento filial está inserido, que não é almejado de uma
maneira convencional, ou seja, não há consentimento de uma das partes.
Nesse âmbito, o perverso não se representa nas emoções do outro e brinca com o
sexo do seu filho, no caso do incesto, como se nada fosse (Cromberg, 2001). Ele expressa
diretamente seus desejos e pulsões, por meio da sua conduta sexual. Idealiza a sexualidade
pré-genital, as zonas erógenas e os objetos parciais e impõe suas divagações aos outros, a
todo custo (Zimerman, 2001).
A perversão decorreria de um trauma sexual no período da infância, ocorrendo um
colapso narcísico, onde a representação de uma cena sexual seria uma forma de refletir a
respeito da situação sexual vivida, visando à recusa da castração e à manutenção da
identidade sexual que foi ameaçada. O conceito de trauma está vinculado a acontecimentos
reais externos, que derrotam a capacidade do ego em lidar com a angústia e a dor psíquica
que os citados acontecimentos acarretaram. A frustração que foi causada ao ego faz com
que ele sofra uma afronta psíquica, não conseguindo processá-la e caindo num estado de
desamparo e atordoamento, permanecendo ao indivíduo impressões de vazios e de feridas
A perversão é tomada como uma espécie de infantilismo sexual, que é resultado de
uma fixação num ponto da sexualidade pré-genital, que representa a conservação da
sexualidade em moldes infantis (Rudge, 1999). O trauma é sexual, vivenciado como uma
ameaça à identidade sexual de gênero, e a angústia e a ansiedade oriunda desse trauma, é o
que move a perversão. A cena perversa seria a reprodução da situação traumática ocorrida
na infância, seria a revivescência do trauma, quer seja ocorrido sobre a área sexual ou
sobre a identidade de gênero. O passado é chamado inconscientemente e o trauma é
transformado em prazer, vitória e orgasmo. (Stoller, 1975).
Há na situação, um misto de hostilidade e desejo em relação ao objeto sexual, que
assume uma espécie de vingança ao que acarretou o trauma. Essa vingança que se efetua
sobre a criança vitimizada, representa a modificação da passividade vivenciada no período
do trauma. Para Stoller (1975), a presença de hostilidade em relação ao objeto é o que
caracteriza o ato perverso. Porém, coloca como distintas a hostilidade e a agressividade,
visto que a primeira representa um desejo de ferir e causar dano a alguém, enquanto que a
segunda implicaria apenas na presença de força ou potência, necessitando serem
descarregadas. A hostilidade representa uma fantasia de vingança pelo trauma infantil
causado. A satisfação sexual viria da transformação do trauma infantil em triunfo do
adulto, já que a cena funcionaria como uma repetição, mas com desfecho favorável, a
medida em que coloca o outro como passivo e submisso (Faiman, 2004). Além do
interjogo entre hostilidade e desejo, outro ponto referido por Stoller (1975) seria a sensação
de que o perverso experimenta e é acometido, por uma infindável sensação de que é sujo,
pecaminoso e anormal.
De acordo com Stoller (1975), ainda, para incrementar a montagem da cena sexual
é preciso que essa apresente certo risco, para que a satisfação seja aumentada. Esse fator de
risco é introduzido com o propósito do indivíduo lutar contra sua falta de interesse sexual,
baixo e estar sob controle, pois o importante para o perverso é imaginar que está correndo
certo perigo.
A perversão seria uma forma de manter na vida adulta a sexualidade
perverso-polimorfa da criança. O perverso põe em prática as fantasias que possui, não as utilizando
somente como um suplemento para chegar à excitação. Essas fantasias são o centro da sua
vida sexual, mas são tiranas e detém o poder sobre o indivíduo (Ferraz, 2001).
A perversão seria uma aberração, pois o ódio estaria presente como um elemento
primordial. Essa aberração seria um modo erótico do ódio, visto que há o desejo de
danificar ou ferir o outro. Uma importante conclusão refere-se à desumanização do objeto
sexual por parte do perverso, que não pode ser encarado como pessoa ou como alteridade.
O perverso imagina como objeto sexual, um ser sem humanidade ou personalidade
(Stoller, 1975).
De acordo com Stoller (1975), o prazer sexual se consuma por causa da fantasia de
que o trauma pode ser abolido. Quando reconstrói a cena traumática modificada, no ato
sexual, os pensamentos têm como objetivo contribuir para o prazer e corrigir o passado que
é remodelado inconscientemente. Esses pensamentos ou devaneios são conduzidos e
formados pelo perigo do trauma não poder repetir-se, pelos fatores de risco aumentarem a
excitação, pela instauração e garantia de um “final feliz”, fazendo com que o sujeito
consiga provar que pode afugentar o trauma de quem originariamente o traumatizou, e
finalmente pela instauração da repetição do ato indefinidamente, visto que os devaneios
puderam estabelecer uma ligação com a excitação sexual e o orgasmo.
Na perversão, o máximo do prazer acontece no mesmo momento em que a parte
central do trauma é encenada no ato sexual. Nesse momento ocorre um imenso suspense,
pois é quando o risco parece estar eminente. Esse risco antecede o triunfo que está por vir.
Porém, o perverso compreende que esse triunfo acontece na fantasia, então, o trauma não é