Sidney da Silva Lobato
Educação na fronteira da modernização:
a política
educacional no Amapá (1944-1956)
Mestrado em História
São Paulo
Sidney da Silva Lobato
Educação na fronteira da modernização:
a política
educacional no Amapá (1944-1956)
Mestrado em História
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em História, sob a orientação da Prof. Doutora Márcia Mansor D’Aléssio.
São Paulo
Banca Examinadora:
________________________________________
________________________________________
Cada um de nós é um singular ponto de confluência de representações e experiências
dos grupos ao lado dos quais nos colocamos ou, simplesmente, com os quais temos contato.
A complexidade do específico está no fato de que ele contém, concomitantemente, a
singularidade e a generalidade. Portanto, o estudo que apresentamos a seguir é uma síntese
resultante de elaborações individuais e coletivas ou a materialização de uma história pessoal
cheia de encontros e experiências compartilhadas. Disto deriva o dever de agradecer.
Agradeço, primeiramente, à minha família (pais, irmãs e sobrinhos) pelo apoio,
compreensão e calor humano — combustíveis indispensáveis num labor cheio de renúncias,
sacrifícios e desafios. Agradeço especialmente a minha mãe, cujos valores me inspiraram o
respeito pela experiência dos mais velhos e a paixão de perscrutar o desconhecido. Agradeço
aos meus amigos amazônidas pelo incentivo e pelo companheirismo nas horas de alegria e de
adversidade. Sou grato aos amigos que têm visitado minha casa e aqueles que me acolheram
no seu lar. Agradeço, pelo apoio, aos novos e tão queridos amigos de Sampa. Um
agradecimento especial à minha doce amiga Fabiana e à dileta Miti Shitara (que, com
solicitude, me deu generosa atenção e apoio em São Paulo).
Meu “muito obrigado” àquelas pessoas que me ajudaram por acreditarem na força dos meus ideais e no vigor de meu esforço perseverante: Kátia Regina Balieiro de Souza e Alcilene
Barbosa. Muito obrigado ao apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) — instituição que me concedeu bolsa integral durante o mestrado.
Obrigado ao apoio material e intelectual dado em São Paulo pelas amigas Maura Leal e Eliane
Vasquez. Obrigado também a todos os depoentes que, gentilmente, me cederam o direito de
utilizar seus relatos neste estudo, e a Elpídio Martel, que me auxiliou na realização de várias
entrevistas. Agradeço igualmente ao amigo Mário Médice pelo estímulo e pelo
companheirismo (presencial ou através dos e-mails).
Agradeço aos Professores Doutores Jonas Marçal de Queiroz e Mauro Cézar Coelho,
que me introduziram no aprendizado dos fundamentos da pesquisa histórica. Agradeço à Professora Doutora Márcia Mansor D’Aléssio, que me orientou na realização deste trabalho de pesquisa — a quem dedico uma grande admiração pela pessoa e profissional que é.
Agradeço os comentários e as sugestões (que muito ajudaram a aprimorar este estudo)
apresentados pelo Professor Doutor Jorge Ferreira e pela Professora Doutora Maria Odila
alunos dos ensinos fundamental, médio e superior. Por fim, agradeço a todos aqueles que não
foram mencionados, mas que estão inscritos na alma deste pesquisador. Aqueles cuja presença
O primeiro governo do Território Federal do Amapá iniciou em 1944 e terminou no
início de 1956. Neste período, o governador Janary Gentil Nunes e seus assessores —
inspirados no ideal estadonovista de criação de uma nação moderna — realizaram uma série
de ações e obras cujo objetivo era a modernização da sociedade territorial. A educação era
vista por estes administradores públicos como um poderoso meio de se alterar os hábitos e
valores dos populares amapaenses. Este otimismo em relação ao poder da educação tinha
como corolário a visão depreciativa do modo de vida local. As incongruências existentes entre
este modo de vida e a lógica organizacional do regime escolar geraram altos índices de evasão
e reprovação. Os ambiciosos planos governamentais de modernização da vida local não
obtiveram, assim, pleno êxito.
The first Federal Territory Amapá’s government started on 1944 and finished on
beginning 1956. In this period, the governor Janary Gentil Nunes and his assessors — filled
with estadonovista ideal of creating a modern nation — they made a lot of buildings and actions to get modern Amapá’s society. Education was seen as a powerful means to change amapaense’s popular behaviors and values by government. This optimism resulted in a depreciative vision of the local life. Incongruity behind local culture and school’s regime made
high rates evasion and reproving. So, the ambitious government’s plans in making modern
local life didn’t achieve its goal.
Tabela 1: Número de matrículas nas escolas de ensino médio do Amapá (1947-1952) ...106
Tabela 2: Índices da educação de adultos no Brasil (1944-1947) ...108
Tabela 3: Números da Campanha de Educação de Adultos no Amapá (1947-1951) ...116
Não há ignorante que não saiba uma infinidade de
coisas, e é sobre este saber, sobre esta capacidade em ato
que todo ensino deve se fundar. Instruir pode, portanto,
significar duas coisas absolutamente opostas: confirmar
uma incapacidade pelo próprio ato que pretende reduzi-la
ou, inversamente, forçar uma capacidade que se ignora
ou se denega a se reconhecer e a desenvolver todas as
conseqüências desse reconhecimento. O primeiro ato
chama-se embrutecimento e o segundo, emancipação.
AGRADECIMENTOS ...04
RESUMO/ ABSTRACT ...06
LISTA DE TABELAS ...08
INTRODUÇÃO ...11
CAPÍTULO 1: O que se deve ensinar: a formação do homem novo ...29
CAPÍTULO 2: Mãos à obra: a expansão da oferta do ensino primário (1944-1946) ...63
CAPÍTULO 3: Educação e divisão social do trabalho (1947-1953) ...88
CAPÍTULO 4: Adeus, senhor governador (1954-1956) ...119
PALAVRAS FINAIS ...130
FONTES ...141
BIBLIOGRAFIA CITADA ...145
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ...04
RESUMO/ ABSTRACT ...06
LISTA DE TABELAS ...08
INTRODUÇÃO ...11
CAPÍTULO 1: O que se deve ensinar: a formação do homem novo ...29
CAPÍTULO 2: Mãos à obra: a expansão da oferta do ensino primário (1944-1946) ...63
CAPÍTULO 3: Educação e divisão social do trabalho (1947-1953) ...88
CAPÍTULO 4: Adeus, senhor governador (1954-1956) ...119
PALAVRAS FINAIS ...130
FONTES ...141
BIBLIOGRAFIA CITADA ...145
INTRODUÇÃO
O Território Federal do Amapá foi criado no final do Estado Novo (1943), quando o
próprio Vargas iniciava um processo de abertura democrática, através da constituição de
novos canais de diálogo com a classe trabalhadora. Janary Gentil Nunes, capitão do Exército
brasileiro, por sua experiência e reconhecida atuação nas terras amapaenses, foi escolhido pelo
presidente para governar este novo território. De 1944 (ano de sua posse) até 1956 (fim de seu
governo), Janary Nunes se manteve a frente do governo territorial graças a uma série de
estratégias que envolviam articulações junto à classe dirigente nacional. Estas articulações
ocorriam através de um permanente contato com os centros de poder. Além disso, o primeiro
governador do Território do Amapá tentou permanentemente obter a máxima adesão dos
grupos sociais amapaenses aos ideais do seu governo.
Este estudo tem como objeto a política educacional do governo de Janary Nunes. Este
governo ocorreu num período muito conturbado da história do Brasil. Nosso objetivo nestas
linhas introdutórias é cotejar as teses que se tornaram referência na análise deste período. É
importante destacar que os autores, ao adotarem diferentes abordagens, criaram tipos diversos
de periodização. Conforme exporemos abaixo, a historiografia que estuda o pós-30,
inicialmente, se caracterizava por uma abordagem estrutural e trabalhava com uma longa
periodização: de 1930 até 1964. Pesquisas posteriores questionaram as conclusões destes
primeiros estudos, através da análise de períodos menores. Esta mudança é um índice do
movimento historiográfico de valorização das especificidades e das críticas cada vez mais
numerosas ao estruturalismo.
Primeiramente, apresentamos os estudos que adotaram o modelo teórico do populismo
como eixo de suas análises. Damos destaque à tese de Francisco Weffort — cientista político
considerado o principal representante dos teóricos do populismo. Em seguida, procuramos
apresentar a produção historiográfica que critica os postulados de Weffort e propõe
alternativas explicativas à abordagem estrutural. Considerando a relação entre texto e
contexto, buscamos também evidenciar os vínculos dos diversos discursos historiográficos
com o ambiente social em que foram produzidos. Por fim, situamos o lugar do nosso estudo
dentro do debate historiográfico exposto, procurando evidenciar sua contribuição.
Muitos trabalhos produzidos por historiadores, sociólogos e cientistas políticos acerca
processo de formação do Estado nacional no Brasil.1 Segundo estes estudos, o aparecimento de um Estado forte, que se impunha às oligarquias estaduais e locais, teria sido possível devido
à ocorrência de uma crise de hegemonia: a ausência de uma classe forte o bastante para
projetar seus interesses particulares acima dos demais. As oligarquias rurais dissidentes, setores
do Exército e da classe média teriam assumido o poder federal numa situação de falta de
legitimidade. De acordo com esta interpretação, para legitimar sua posição privilegiada, a elite
política, a partir de 1930, se valeu de uma aliança policlassista e da ideologia autoritária
elaborada pelos críticos da República Velha. Segundo esta ideologia, o Estado seria o tutor não
só do movimento econômico, mas também dos grupos sociais que compunham a nação.2
A imagem do Estado como tutor da nação se desdobrou no postulado de que o
populismo se constituiu no Brasil e na América Latina como um fenômeno político de Estado de
compromisso: ―o chefe do Estado passará a atuar como árbitro dentro de uma situação de compromisso que,
inicialmente formada pelos interesses dominantes, deverá contar agora com um novo parceiro
— as massas populares urbanas — e a representação das massas nesse jogo estará controlada pelo próprio chefe do Estado‖.3 Para Francisco Weffort, a classe trabalhadora — imatura e ainda não
politizada — só poderia figurar no cenário político como coletividade heterônoma (sob a
tutela do chefe do Estado). Esses limites da atuação das classes populares — e,
particularmente, da classe operária — são explicados neste momento por meio de uma noção
de mal de origem: a classe trabalhadora urbana era oriunda do meio rural e foi inserida numa
sociedade em que a industrialização ainda era incipiente.4 Esta explicação pressupõe que as relações de produção nos domínios rurais brasileiros eram baseadas em valores e práticas
pré-capitalistas. A idéia de um mal de origem nos remete às abordagens sobre o início de nossa
formação social — nos remete às raízes do Brasil. Para Sérgio Buarque de Holanda, o domínio
rural constituiu, desde o período colonial, uma moralidade própria, não afetada pelo Estado,
com suas leis e instituições.5 A inacessibilidade do poder estatal ao ambiente rural e patriarcal
1 Maria do Carmo Campelo de Souza afirma que o sistema político que emergiu após a Revolução de 1930
transferiu o foco de poder dos Estados para a União (SOUZA, Maria do Carmo Campelo de. O processo político partidário na Primeira República. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Brasil em perspectiva. 21 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 218-219). Ver também: WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980; e FAUSTO, Boris. A revolução de 1930 —historiografia e história. 16 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
2 REIS, Elisa P. O Estado Nacional como ideologia: o caso brasileiro. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 1 a 2,
1998, p.194-195.
3 WEFFORT, Francisco. Op. cit. P. 69-70. Grifos do autor.
4 LOPES, Juarez Brandão. Sociedade industrial no Brasil. São Paulo: Difel, 1964.
era também a falta de acesso deste ambiente às formas da razão política moderna.6 Saídos deste universo sócio-cultural, os novos trabalhadores urbanos não teriam desenvolvido o
idioma ideológico. Para os teóricos do populismo, os trabalhadores originários do campo e das
pequenas comunidades do interior, quando instalados nas cidades, não se identificaram
completamente como operários industriais, tendendo a se comportar de acordo com seus
―interesses pessoais‖.7
Os analistas do populismo buscaram entender o longo período que vai de 1930 até 1964.
Neste período, eles identificaram um certo sentido histórico: a idéia de uma sociedade de
transição (consolidação da industrialização e da urbanização). No contexto da transição de
uma economia tradicional, de participação política restrita, para uma economia de mercado, de
participação política ampliada, a teoria da modernização elegeu o camponês como
protagonista do surgimento do populismo na América Latina.8 Segundo Octavio Ianni, essa política de massas é compreensível na medida em que se leva em conta:
a composição rural-urbana do proletariado industrial. Com as migrações internas, em direção às cidades e aos centros industriais — particularmente intensos, a contar de 1945 — aumenta bastante e rapidamente o contingente relativo dos trabalhadores sem qualquer tradição política. Seu horizonte cultural está profundamente marcado pelos valores e padrões do mundo rural. Neste predominam formas patrimoniais ou comunitárias de organização do
6 Robert Wegner, se referindo à questão dos domínios rurais na argumentação de Raízes do Brasil, afirma que,
segundo este ensaio: ―nada limita a autoridade do pai, nenhuma força externa ao domínio rural o detém, fazendo com que o
núcleo familiar seja absorvente da vida dos homens, cuja educação ganha absoluta preponderância dos laços de sangue‖. O corolário deste modo de vida é o nascimento do homem cordial, ―que, tornando-se incapaz de compreender regras abstratas e seguir um
ordenamento impessoal, segue os impulsos e sentimentos que, bondosos ou não, nascem do coração‖ (WEGNER, Robert. A conquista do oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: UFMG, 2000, p. 32-33).
7 FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. In: FERREIRA, Jorge (org). O
populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 69-71.
8 Em fins da década de 1950 e na década de 1960, ocorreu entre os marxistas (principalmente ingleses) um forte
debate acerca da natureza da transição do feudalismo para o capitalismo na Europa. A teoria até então aceita para explicar a origem do capitalismo foi duramente criticada por historiadores como John Merrington, que afirmou:
―a cidade é o princípio dinâmico do progresso, o campo é inerte e passivo, exigindo um estímulo externo, o ―puxão do mercado‖
exercido pelas cidades como núcleos concentrados de transações de trocas e de riqueza em capital, que por sua vez constitui o poderoso fundamento para a ideologia da burguesia ascendente: a vitória do capitalismo é a vitória da civilização urbana e dos princípios da
poder, de liderança e submissão etc. Em particular, o universo social e cultural do trabalhador agrícola [...] está delimitado pelo misticismo, a violência e o conformismo como soluções tradicionais. Esse horizonte cultural modifica-se na cidade, na indústria, mas de modo parcial e contraditório.9
A herança cultural rural que o camponês emigrado e transformado em operário
carregava consigo era apontada por Ianni como um obstáculo para a constituição de uma
genuína consciência de classe. Conforme afirma Jorge Ferreira, os teóricos do populismo
argumentavam que ―os líderes populistas se projetam em sociedades que não consolidaram instituições e ideologias autônomas, mas necessariamente seriam substituídos por outras lideranças portadoras de idéias
classistas quando o capitalismo alcançasse maturidade na região‖.10 Escritas no final dos anos 60 e
durante a década de 1970, as teses baseadas no conceito de populismo tentavam explicar o
Golpe de 1964. Este Golpe, de acordo com estas teses, teria ocorrido devido à exaustão das
condições históricas que permitiram o funcionamento da manipulação populista: esgotamento
do modelo econômico de substituição de importação e a autonomia das massas,
transformando-se finalmente em sujeitos políticos.11 A perspectiva de uma sociedade brasileira
em transição gerou ―grandes sínteses‖ que tornaram opaca nossa percepção das especificidades históricas presentes no longo período de 1930 até 1964. Vários fenômenos políticos (como o
regime de governo do Estado Novo) foram eclipsados pela prioridade dada à análise das
macroestruturas econômicas.
Maria Helena Capelato retoma e amplia argumentação de René Gertz12 de que houve
uma fase de esquecimento do Estado Novo na historiografia. Capelato apresenta duas ordens
de fatores deste esquecimento. O primeiro fator seria o predomínio na historiografia brasileira
— e mesmo ocidental — de uma abordagem centrada nas estruturas sócio-econômicas, que
encara o acontecimento político como epifenômeno. O segundo diz respeito à concepção
existente entre os historiadores de que ―o distanciamento no tempo era imprescindível à boa
reconstituição histórica‖.13 Atestando a insurgência de um recente interesse pelo período de
1937-1945, Capelato argumenta que tal fato se deve ao ―retorno‖ à história política, ao crescente
9 IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1971, p. 57. 10 FERREIRA, Jorge. Op. cit. P. 65.
11 GOMES, Angela de Castro. O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um
conceito. In: FERREIRA, Jorge (org). O populismo e sua história: debate e crítica. Op. Cit. P. 36-37.
12 GERTZ, René E. Estado Novo: um inventário historiográfico. In: SILVA, José Luiz Werneck da (org.). O feixe
e o prisma. Uma revisão do Estado Novo. Rio de Janeiro: Zahar, 1991, p. 111.
13 CAPELATO, Maria Helena Rolim. Estado Novo: novas histórias. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Op. Cit.
prestígio da história do ―tempo presente‖ e às inquietações geradas pelos resquícios de autoritarismo na sociedade brasileira.14
Nos anos 80 e no início dos anos 90, apareceram diversas pesquisas interessadas em
analisar diferentes aspectos do Estado Novo. Contudo, parte dos autores destas análises optou
por um outro tipo de abordagem generalizante: a inclusão da ditadura varguista num campo
mais amplo de estudos, ou seja, o do totalitarismo. Um historiador que lida com o conceito de
totalitarismo é Alcir Lenharo. Em A sacralização da política15, Lenharo analisa como políticos, esportistas, médicos e eugenistas ligados ao Estado construíram, a partir da retórica católica,
um discurso que representava a sociedade brasileira como um corpo funcionando de forma
harmônica. Seguindo os passos de Foucault e Guatari, este historiador abandona a visão
juridicista e burocrática de Estado e analisa como o discurso de conciliação entre as classes era
difundido no cotidiano dos trabalhadores, a fim de fortalecer o conformismo e a obediência
ao governo.16 Devemos compreender que a ênfase dada por Lenharo aos aspectos fascistas do
Estado Novo é fruto de uma preocupação comum dos anos 80: tentar entender as
ambigüidades da democracia que se estava construindo, e que era ainda permeada por práticas
autoritárias.17
Lenharo discorda de Weffort quando este afirma que, no Brasil da primeira metade do
século XX, o atraso econômico (capitalismo tardio) coincidia com a incipiência da classe
trabalhadora e empresarial. Para Lenharo, o esquema explicativo do ―Estado de compromisso‖ aproxima-se do discurso estadonovista do ―entrosamento eficaz‖, que apresentava o Estado como
tutor da classe operária diante da burguesia industrial.18 Ademais, Lenharo observa que esta
tese está embasada em fontes como projetos, leis, decretos, enfim, textos produzidos pelo
Estado, à luz dos quais as classes ―alcançam existência, isto é, estatuto político‖.19 O autor de A
sacralização da política argumenta que o Estado Novo levava a sério o potencial de mobilização e
14Ibidem, p. 190.
15 LENHARO, Alcir. Sacralização da política. Campinas: Ed. UNICAMP/ Papirus, 1986.
16 Lenharo era um historiador que tinha sólida base teórica e filosófica. Para ele, o Estado Novo projetava uma
visão orgânica da sociedade. O desejo seria a energia vital fundamental no dinamismo do corpo social. A dominação, portanto, pressupunha a orientação dos desejos (não para a luta de classes, mas para a luta pela produção e pela ordem). A cabeça pensante e direcionadora seria o chefe político do regime de governo centralizado. Vargas teria usado técnicas e tecnologias (imprensa e rádio, por exemplo) para o controle da classe trabalhadora (isso nos remete não apenas a Foucault, mas também a alguns estudos da Escola de Frankfurt). Para Lenharo, a sacralização e a conseqüente sublimação ocorreram quando, pelo discurso, este corpo social foi transformado em corpo místico e o chefe político foi transformado em santo (homem com virtudes e capacidades superiores). Esta transformação teria sido operada por um forte apelo emocional: o culto à pátria, à ordem e ao presidente.
17 ROVAI, Martha Gouveia de Oliveira. A manipulação dos desejos pela construção de imagens. Projeto história.
N. 14, fev. 1997, p. 273.
desestabilização social da classe trabalhadora. Do contrário, não teria feito tamanho esforço
para controlar os trabalhadores e reestruturar suas organizações de classe segundo sua
orientação.
Assim como Lenharo, Maria Luiza Tucci Carneiro, no livro O anti-semitismo na Era
Vargas, enfatiza os aspectos que aproximam o Estado Novo (assim como todo o primeiro
governo de Vargas) da experiência nazi-fascista européia. Por meio do estudo de circulares
secretas de representantes do governo, Tucci Carneiro infere que por baixo da máscara
(discurso falacioso ou ideológico) que era o nacionalismo, o governo Vargas praticava uma
política xenófoba e anti-semita — por exemplo, restringindo ao máximo a entrada de judeus
no Brasil.20 Enquanto isso, por meio da reprodução da imagem estereotipada dos judeus nos
meios de comunicação, se fortalecia na sociedade brasileira uma mentalidade anti-semita que
remontava ao período colonial. Porém, ainda segundo Tucci Carneiro, na Era Vargas
(diferentemente da fase colonial), ―o judeu passou a ser discriminado e odiado não mais pela sua religião
e sim como povo, como grupo étnico‖, ou seja, o judeu ―passou a ser visto como um ‗estrangeiro‘ inassimilável, irredutível, sem condições de contribuir para a composição étnica dos povos‖.21 Tucci Carneiro
afirma que o Estado Novo foi o momento de clímax do fortalecimento de uma mentalidade
anti-semita. Mentalidade que teria serpenteado de forma camuflada no espaço político.22 Estudos posteriores puseram em evidência o radicalismo desta tese.23
20 Segundo Tucci Carneiro: ―por trás da máscara do nacionalismo, identificamos política de caráter racista, e por conseqüência
elitista, antidemocrática e repressiva, sugerindo rumos bem próximos aos seguidos pelo fascismo e pelo nazismo, triunfantes na
Europa‖ (CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração (1930-1945). 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 102).
21Ibidem, p. 26. 22Ibidem, p. 186.
23 Para Giralda Seyferth, o nacionalismo não era uma máscara, mas um projeto governamental que tinha como
O mundo da violência, tese da historiadora Elizabeth Cancelli, avança na caracterização
do Estado Novo como uma experiência política totalitária no Brasil.24 Cancelli não somente
identifica na Era Vargas um governo que se estrutura a partir da difusão do terror (nos termos
de Thomas Hobbes), mas também uma sociedade fragmentada pela modernidade capitalista.
Juntas, estas duas esferas (sociedade fragmentada e governo tirano e perseguidor) explicariam
o fenômeno totalitário no Brasil de Getúlio (1930-45). Cancelli argumenta que neste contexto
a polícia (como agente do terror) se tornou um componente fundamental da expansão do
poder estatal. Fragmentada e aterrorizada, a população tornava-se vítima passiva das ações
truculentas da polícia, dentro e fora das prisões.
Segundo Cancelli, o objetivo do Estado Novo era ―modificar o lugar do indivíduo e das classes no espaço público, negando as diferenças, a pluralidade e qualquer forma de organização e manifestação
que pusessem em xeque a concepção orgânica da sociedade‖.25 Aqueles indivíduos que divergissem deste objetivo eram transformados em inimigos do Estado e objetos da truculência policial.26 Esta
interpretação é endossada pelo estudo de Maria das Graças Andrade Ataíde de Almeida sobre
a política educacional estadonovista em Pernambuco.27 Segundo esta autora, ―as mentes [dos
alunos] seriam forjadas no novo paradigma pedagógico, edificado nos conceitos de ‗ordem‘, ‗autoridade‘,
‗tradição‘ e ‗nacionalismo‘‖, e prossegue: ―neste ideário, o Estado afirma-se como totalitário e dedicado à
coletividade e o indivíduo era apresentado como parte integrante do todo‖. Essa caracterização radical do Estado Novo como a versão brasileira do totalitarismo também foi objeto de diversas
ponderações e críticas.28
Os estudos fundamentados na noção de totalitarismo têm pontos de aproximação e de
distanciamento em relação à teoria do Estado populista. O mais notório ponto de aproximação
é, não há dúvida, a ênfase que ambos dão à eficácia dos processos de dominação e
manipulação. Contudo, enquanto os teóricos do populismo destacam a imaturidade política das
Silvério. Os judeus do Bom Retiro: histórias de vida durante a Era Vargas. In: Anais da X International Oral History Conference. Rio de Janeiro: CPDOC/ FGV; e FIOCRUZ, 1998, p. 1.635).
24 CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia da Era Vargas. 2 ed. Brasília: Editora da UNB, 1994, p.
20.
25Ibidem, p. 80. 26Ibidem, p. 121-138.
27 Maria das Graças Andrade Ataíde de Almeida afirma que ―a sustentação de um clima de insegurança, terror e violência
assegurava a implantação de uma situação de fato: exonerações e aposentadorias forçadas transformaram-se em instrumentos de
punição e armas de combate contra aqueles que eram apontados como representantes da pedagogia da desordem‖ (ALMEIDA, Maria das Graças Andrade Ataíde. Estado Novo: projeto político pedagógico e a construção do saber. Revista brasileira de história. V. 18, n. 36, 1998).
28 Por exemplo, Helena M. B. Bomeny afirma que, durante o Estado Novo, Vargas procurou manter uma
classes populares, que se puseram sob a tutela do líder político nacional, as teses que
identificam características fascistas no primeiro governo de Vargas argumentam que a
obediência e a ordem social derivaram, neste período, da ação de uma ampla rede de
estratégias governamentais que banalizaram o terror, a perplexidade e a resignação. O foco de
ambas abordagens é a ação estatal e as fontes consultadas são, via de regra, os diversos tipos
de registros oficiais. As classes populares aparecem nestes estudos como coadjuvantes ou
vítimas da ação estatal.
Estudos recentes sobre o Estado Novo e a fase da redemocratização dão ênfase às
especificidades históricas, contrapondo-se às generalizações acima apresentadas. Atentos às
particularidades nacionais, os historiadores têm se negado a equiparar a experiência brasileira à
italiana, à alemã e mesmo à portuguesa. Trabalham com recortes mais específicos e dão ênfase
às questões políticas e culturais desta fase. Ângela de Castro Gomes, contrariando a tese de
Weffort da incapacidade política dos trabalhadores em 1930, afirma que, durante toda a
Primeira República, a classe trabalhadora lutou arduamente pela regulamentação do mercado
de trabalho no Brasil. Porém, apenas no pós-30 — quando o poder decisório se deslocou do
legislativo para o executivo — um surto de regulamentação alcançou efetividade.29 Houve um
reconhecimento e enfrentamento da questão social.30
Segundo Gomes, a partir de 1942 — ano em que Alexandre Marcondes Filho assumiu
o Ministério do Trabalho — ocorreu a invenção do trabalhismo como ideologia de outorga:
Vargas e Marcondes Filho apresentavam a legislação trabalhista como dádiva, inserindo, deste
modo, sua relação com a classe trabalhadora na lógica simbólica da reciprocidade — ―o povo
tinha o direito de receber, e portanto o dever de retribuir‖.31 Afastando-se dos estudos (como o de Lenharo) que apresentam a propaganda política como principal estratégia de legitimação do
getulismo, Ângela de Castro Gomes argumenta que, graças ao sucesso da política trabalhista
(na qual os trabalhadores eram levados a reconhecer ganhos efetivos), pôde ocorrer uma
assimetria nos acontecimentos de 1945: ―caía o Estado Novo, mas crescia o prestígio de Vargas‖.32
O historiador Jorge Ferreira afirma que em meados dos anos 80 do século XX muitos
historiadores brasileiros adotaram a literatura de autores identificados com a História Cultural.
Autores como Carlo Ginzburg que, através do conceito de circularidade cultural, sugere ―que as
idéias não são produzidas apenas pelas classes dominantes e impostas, sem mediações, de cima para baixo‖; como Roger Chartier, para quem ―as camadas populares se apropriam das mensagens dominantes,
29 GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 3 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005, p. 179. 30Ibidem, p. 197.
dando-lhes novos e diferentes significados‖; e outros que deram destaque à noção de resistência cultural (P. Burke, R. Darnton, G. Levi e N. Davis).33 Segundo Jorge Ferreira, no Brasil,
muitos historiadores passaram, recentemente, a utilizar o conceito de cultura para dar
visibilidade às ações das ―pessoas comuns‖ no passado colonial, na sociedade escravista e na Primeira República. Todavia, também de acordo com Ferreira,
ainda são poucos aqueles que incorporaram o enfoque cultural nas suas reflexões sobre a história política brasileira após 1930 [...]. No Brasil, Thompson, ao lado dos historiadores da cultura, em poucas ocasiões ultrapassa a data tabu: 1930. Novamente não estamos diante de uma casualidade. Lembremos que a concepção que o historiador inglês tem de classe social é
incompatível com a noção de populismo e de suas inevitáveis conseqüências, como manipulação
das massas, mistificação ideológica e consciência desviada dos seus interesses ‗reais‘.34
Há, portanto, um limite temporal a ser ultrapassado nos estudos culturais no Brasil.
Neste sentido, os trabalhos de Angela de Castro Gomes (juntamente com os de outros poucos
pesquisadores) são pioneiros. Aprofundando a análise de alguns aspectos abordados por
Gomes, Jorge Ferreira, na coletânea de textos Trabalhadores do Brasil, evidencia como os
trabalhadores se apropriaram do discurso paternalista do Estado, entre 1930 e 1945. A partir
daí, argumenta que o reconhecimento de valores — ganhos materiais e simbólicos — e a
identificação de interesses são fatores que explicam melhor a relação entre Estado e classe
trabalhadora no pós-30. Ferreira critica, portanto, as abordagens (como a de Cancelli) que
vitimizam e transformam os trabalhadores em categoria facilmente manipulável pelos grupos
dirigentes.35
No livro O imaginário trabalhista, Ferreira estuda o período de 1945 até 1964, através de
momentos de grande mobilização popular.36 Este historiador afirma que, no período que sucedeu a queda do Estado Novo, houve uma intensa atuação política dos trabalhadores. De
um movimento em prol da permanência de Getúlio como presidente, o queremismo avançou
para a defesa de uma constituinte que garantisse a permanência da legislação trabalhista.37 Mais
do que isto, o trabalhismo, origem e motivação do queremismo e do PTB, ―traduziu uma
consciência de classe, legítima como qualquer outra, porque histórica‖.38 Assim, para Ferreira, o pós-45
33 FERREIRA, Jorge. Op. Cit. P. 97-98. 34Ibidem, p. 99-101.
35 FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil: o imaginário do povo. Rio de Janeiro: FGV, 1997, p. 127.
36 FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e a cultura política popular (1945-1964). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
foi marcado pela mobilização dos trabalhadores em torno da garantia de direitos e da
ampliação de sua participação política.
Lucília de Almeida Neves argumenta que nos anos 40 e, principalmente, nos anos 50,
―havia um forte sentido de esperança, caracterizado por uma marcante consciência da capacidade de intervenção
humana sobre a dinâmica da História, buscando-se implementar um projeto de nação comprometido
principalmente com o desenvolvimento social‖.39 Este ―tempo histórico‖ teria sido marcado pela mobilização de expressivo segmento da população brasileira em torno de um projeto de
desenvolvimento nacional dirigido pelo Estado. Contudo, como afirma Ferreira:
os trabalhadores do campo não receberam os benefícios da legislação social e trabalhista, voltados para a população urbana, sobretudo a sindicalizada. Por estarem excluídos do pacto estabelecido entre Estado e classe trabalhadora, a repercussão do governo Vargas não surtiu entre os camponeses os mesmos efeitos que teve entre os trabalhadores urbanos.40
Assim, a forma como as pessoas experimentavam o ―tempo histórico‖ que se estendeu no Brasil de 1945 a 1964, dependia do espaço social que ocupavam. Em 1953, o então ministro
do Trabalho do segundo governo Vargas — João Goulart — ouviu, na cidade de Manaus, do
presidente do Sindicato dos Gráficos e da Casa dos Trabalhadores da Amazônia (entidade que
possuía mais de 15 mil associados) — Jamaci Sena Bentes — a reclamação de que os
sindicatos da região estavam funcionando sem qualquer apoio político. Segundo Jamaci, os
seringueiros eram os mais prejudicados, ―são os párias da Amazônia‖.41 Estar na Amazônia,
mesmo sendo sindicalizado, significava estar também à margem de muitos dos benefícios da
política varguista — mas, não de todos.
As teses até aqui apresentadas privilegiam as transformações e conflitos que se
desenvolviam no espaço urbano. Podemos, neste momento, identificar um outro tabu ou
silêncio historiográfico: pouco se investiu na análise das mudanças ocorridas nos espaços
distanciados dos centros urbanos mais populosos. Este silêncio tem contribuído para a
perpetuação de uma imagem do meio rural como ambiente estagnado e indiferente à
modernização da sociedade brasileira. Um dos estudos clássicos da história das políticas
educacionais no Brasil corrobora esta imagem. Estamos nos referindo à História da educação no
Brasil, de Otaíza de Oliveira Romanelli.42 Esta autora analisa a evolução do ensino no Brasil entre 1930 e 1973 e argumenta que a modernização da economia e da sociedade
39 NEVES, Lucília de Almeida. Trabalhismo, nacionalismo e desenvolvimentismo: um projeto para o Brasil
(1945-1964). In: FERREIRA, Jorge (org). O populismo e sua história: debate e crítica. Op. Cit. P. 171.
40 FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil: o imaginário do povo. Op. Cit. P. 58. 41 FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista. Op. cit. P. 133-134.
(industrialização e urbanização) — que ocorria, sobretudo, no Sudeste — não foi
acompanhada por um similar movimento de expansão e modernização do ensino: a expansão
escolar ocorrida a partir de 1930 já não correspondia à nova demanda e as reformas
educacionais realizadas possuíam um caráter conservador.43 Segundo Romanelli, esta defasagem entre educação e desenvolvimento social era gerada por um esforço das elites
(setores antidemocráticos da burguesia e latifundiários) no sentido de manter a escola como
privilégio de classe — principalmente os níveis secundário e superior.
Romanelli aponta a permanência do predomínio de latifúndios, das relações
semifeudais e dos processos arcaicos de produção como características fundamentais da
sociedade agrária no Brasil do pós-30.44 Para esta autora, o Estado foi um ente passivo (ou
meramente reativo) na dinâmica da expansão do ensino.45 Ele apenas teria respondido à
pressão de uma demanda por mais escolas, gerada pela modernização da sociedade. Logo, se o
meio rural permanecera estagnado ou indiferente à modernização, não poderia apresentar uma
pressão por maior oferta de ensino. Deste modelo explicativo só poderia derivar uma imagem
lamentável da situação do ensino na zona rural. Para ilustrar suas idéias, Romanelli transcreve
trechos de uma conferência de Jayme Abreu (que se referiam a fatos mencionados em um
simpósio sobre educação nos territórios federais, realizado em 1966): ―a Diretora da Divisão de
Educação do Amapá referia que ‗os professores primários moram na escola, pescam o seu sustento após o
período de aulas e normalmente são transferidos de local, no fim do ano, porque não têm como pagar seus
débitos‘‖; e ainda, ―a Diretora de educação do Amapá narrou sua visita a uma das escolas da margem do
Rio Oiapoque, onde ‗foi informada de que os alunos não haviam realizado as provas por falta de papel e lápis,
e que ali estavam recorrendo à escrita em folhas secas com tinta extraída de sementes‘‖. Utilizando estes e outros relatos fornecidos por Jayme Abreu, Romanelli infere que havia um grande contraste
entre os sistemas escolares dos grandes centros urbanos e o das áreas mais pobres do Brasil (a
zona rural).46
O estudo que apresentamos a seguir sobre a política educacional no Amapá, entre
1944 e 1956, nos possibilita fazer algumas ponderações acerca da tese de Romanelli.
Primeiramente, ressaltamos o papel ativo do Estado no tocante à política de expansão
educacional do pós-30. Além disto, argumentamos que o Estado procurou utilizar a educação
como um instrumento de modernização das regiões brasileiras identificadas como as mais
43Ibidem, p. 29.
44Ibidem, p. 84.
45 Romanelli afirma que, quanto à expansão escolar, ―o Estado teve uma participação meramente passiva, tentando, quando muito, soluções de emergência diante das crises provocadas pela pressão social [...]‖, e argumenta em seguida que ―a demanda social de educação se transformou em fator-chave da expansão do ensino no Brasil‖ (Ibidem, p. 70).
atrasadas. A diretriz estatal da realização de uma modernização draconiana não se restringia ao
fomento e regulação da industrialização, ou à regulamentação das relações entre empresários e
trabalhadores urbanos, mas pressupunha o desenvolvimento de uma rede integrada de
produção que articularia os setores primário e industrial, bem como pressupunha a formação
de um amplo mercado interno. Em discurso aos trabalhadores urbanos, no dia 1º de maio de
1941, Getúlio Vargas proferiu as seguintes palavras:
os benefícios que conquistastes devem ser ampliados aos operários rurais, aos que insulados nos sertões, vivem distantes das vantagens da civilização. Mesmo porque, se não o fizermos, corremos o risco de assistir o êxodo dos campos e superpovoamento das cidades — desequilíbrio de conseqüências imprevisíveis [...]. Não é possível mantermos a anomalia tão perigosa como a de existirem camponeses sem gleba própria, num país onde os vales férteis como a Amazônia, permanecem incultos e despovoados de rebanhos, extensas pastagens como as de Goiaz e Mato Grosso. É necessário à riqueza pública que o nível de prosperidade da população rural aumente para absorver a crescente produção industrial; é imprescindível elevar a capacidade aquisitiva de todos os brasileiros — o que só pode ser feito aumentando-se o rendimento do trabalho agrícola.47
O Brasil evoluiria da condição de país essencialmente agrícola para uma economia de
base mista (agro-industrial) sob a coordenação do poder estatal. Os conflitos entre os
apoiadores de Vargas e os grupos coligados à UDN — ocorridos entre 1945 e 1954 — eram a
manifestação do choque de dois projetos políticos para o desenvolvimento nacional: um
autoritário e nacionalista e outro liberal e simpático à maior abertura do Brasil ao capital
internacional. O pensamento autoritário enfatizava a necessidade de um Estado forte e com
um projeto de desenvolvimento social que disciplinasse as energias sociais, culturais e
econômicas presentes na nação. Uma das preocupações centrais deste pensamento era a
existência de grandes diferenças de ocupação humana e de geração de riqueza nas diversas
regiões do Brasil. Essa preocupação aparece, por exemplo, nos estudos sobre a história da
Amazônia, realizados por Arthur Cézar Ferreira Reis (historiador amazonense antiliberal), nas
décadas de 1930, 40 e 50. Nestes estudos, Reis argumentava que da valorização econômica da
região amazônica dependia a consolidação da soberania brasileira sobre o Norte, diante da
cobiça internacional.48
47 VARGAS, Getúlio. O trabalhador brasileiro no Estado Novo (1º de maio de 1941). In: A nova política do Brasil.
Rio de Janeiro: José Olímpio, Vol. VIII, 1941, p. 261. Grifo nosso.
48 Em A política de Portugal no vale amazônico (livro lançado em 1939), o autor destacava a importância da
Nas décadas de 1940 e 1950, a Amazônia se destacava no quadro heterogêneo da
sociedade brasileira: região percebida como espaço economicamente atrasado49 e marcada pelo
vazio populacional. Na perspectiva do governo federal, urgia ocupar a região e valorizá-la
economicamente para que ela, definitivamente, se integrasse ao restante do país, sobremodo
aos centros de poder. Ou seja, da integração sócio-econômica dependeria também a
solidificação da vinculação política (fortalecimento da soberania nacional sobre as áreas de
fronteira). Por isso, em 1940, discursando aos comerciantes de Belém, Getúlio Vargas
afirmava que:
o Pará, toda a Amazônia, não conseguiu adaptar os métodos de trabalho a essa renovação dos processos de aproveitamento dos recursos naturais. Não é momento de indagar as causas dêsse retardamento. Talvez a imprevidência, que La Fontaine simbolizou na fábula da cigarra e da formiga, tenha impedido que se aplicasse em obras duradouras, de técnica agrária e industrial, boa parte do abundante ouro extraído da floresta generosa.50
Foi a partir da idéia de atraso regional que, no pós-30, formulou-se para a Amazônia
uma diretriz política de valorização econômica e de nacionalização do seu espaço. Este atraso,
segundo Vargas, pode ter sido resultado do predomínio de uma cultura baseada no gozo
despreocupado e imprevidente do tempo e no uso oportunista dos recursos da floresta (aos
moldes da cigarra descrita pela fábula referida)51. Vargas percebe na Amazônia a ausência de
uma sociedade regida pela ética do trabalho (para a qual o trabalho tem valor central na forma
das pessoas buscarem a felicidade). Vargas percebe também nesta região a ausência da
moderna técnica agrícola e industrial. Na sua visão, uma economia baseada na exploração
predatória da floresta levava ao esgotamento dos recursos naturais e ao nomadismo. O êxodo
rural agravaria cada vez mais o problema do desemprego e da miséria nas cidades. A fixação
do homem no campo e a ocupação definitiva do interior do país implicavam na melhoria das
49 No século XIX e início do XX, eram utilizados os termos: áreas ―civilizadas‖ e áreas ―incivilizadas‖. Mais ou
menos entre 1930 e 1960, tornou-se mais comum utilizar as palavras ―atrasadas‖ e ―adiantadas‖. A partir dos anos 60, tornou-se mais usual a tipologia: ―desenvolvidas‖ e ―subdesenvolvidas‖. De todo modo, estas classificações trazem consigo um pressuposto evolucionista: a existência de um destino (ou sentido histórico) comum a todos os povos. Este destino se apresenta como um pretenso consenso (o melhor para todos), pondo a salvo este discurso de críticas e pondo as atualmente chamadas populações tradicionais num campo semântico de inferiorização. Disto desponta o sentido profundamente político deste discurso: a legitimação do direito de uns poucos homens ―esclarecidos‖ (re)ordenarem o mundo social.
50 VARGAS, Getúlio. Os problemas da Planície Amazônica e o futuro do Pará. In: A nova política do Brasil. Op.
Cit. P. 55-56.
51 Na fábula de La Fontaine, citada por Vargas, a cigarra vive a tocar e cantar durante o verão, mas irá passar
condições de vida e trabalho do agricultor.52 O problema do campo começou a ser enfrentado pelo governo federal por meio da criação de um sistema de créditos para os agricultores, de
estudos sobre uma lei de sindicalização rural, de concessões de terras nas fronteiras (Decretos
n. 1.968, de 17 de janeiro de 1940, e n. 1.610, de 20 de setembro de 1940) e de um projeto de
criação de colônias agrícolas na Amazônia (Decreto 3.059, de 14 de fevereiro de 1941).
O governo federal promoveu uma grande onda migratória de nordestinos para a
Amazônia.53 O ideal de uma civilização agrícola amazônica, contudo, se viu obrigado a conviver com a ―batalha da borracha‖: a criação, durante a Segunda Guerra Mundial, de uma ampla frente de produção de borracha na Amazônia, formada por trabalhadores transferidos
do Nordeste com recursos do Lloyd brasileiro, para se atender a alta demanda dos aliados por
esta matéria prima.54 Entre 1942 e 1945, cerca de 60 mil pessoas foram enviadas para os
seringais amazônicos.55 Para o governo federal, além de aliviar o Nordeste das pressões sociais, era imprescindível dar valor econômico ao espaço amazônico. Este seria o grande
produtor de gêneros agrícolas e de matérias primas.
Novos territórios federais foram criados em 1943, dentro da perspectiva de ocupação
e valorizações das áreas pouco povoadas. Arthur Cézar Ferreira Reis, no livro Território do
Amapá: perfil histórico (lançado em 1949), argumenta que a criação destes territórios muito
contribuiria para a consolidação da unidade nacional, através da empresa de integração
nacional e da valorização econômica do espaço amazônico, especialmente do Amapá, que
deveria ter sua ―barbaria regional‖ combatida, a fim de que ele fosse integrado ao ―organismo
brasileiro‖.56Dirigindo nossa atenção para o espaço amazônico, e mais especificamente para o
amapaense, objetivamos evidenciar a diversidade de experiências na efetivação do processo de
modernização draconiana do pós-30. A existência de especificidades naturais e sociais na
Amazônia reclamava posicionamentos e respostas diferentes do centro decisório brasileiro.
Aspectos políticos (a necessidade de consolidar os marcos fronteiriços e eliminar os
localismos) e sócio-econômicos (predomínio de atividades extrativistas e da pequena
52 GOMES, Angela de Castro. A construção do homem novo: o trabalhador brasileiro. In: OLIVEIRA, Lúcia
Lippi; VELLOSO, Mônica Pimenta; e GOMES, Angela de Castro (orgs). Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 163.
53 LENHARO, Alcir. Colonização e trabalho no Brasil: Amazônia, Nordeste e Centro-Oeste. 2 ed. Campinas: Editora
da UNICAMP, 1986, 59-99.
54 O Japão, que entrou na Segunda Guerra Mundial ao lado dos países do Eixo e que controlava 97% das regiões
produtoras de borracha do Pacífico, bloqueou o fornecimento desta matéria prima aos países aliados.
55 Alcir Lenharo afirma que nem tudo foi seguido à risca no projeto de colonização do vale amazônico, pois ―a
ocupação da Amazônia acabou por ter sua ênfase na batalha da borracha, um plano oportunista e imediatista de deslocamento
maciço de nordestinos para a Amazônia que nada fez para deter a exploração dos seringalistas sobre os seringueiros [...]‖ (LENHARO, Alcir. Colonização e trabalho no Brasil. Op. Cit. P. 46).
56 REIS, Arthur Cézar Ferreira. Território do Amapá: perfil histórico. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa
agricultura) tornavam imperativo, na perspectiva do governo federal, educar homens e
mulheres para formar uma sociedade de cidadãos trabalhadores.
Neste estudo analisaremos a relação entre a política educacional do governo de Janary
Nunes (1944 até 1956) e a sociedade amapaense (concebida como um conjunto social e
culturalmente heterogêneo). Para tanto, tentamos responder as seguintes questões: quais eram
os objetivos da política educacional do governo de Janary Nunes, no Amapá, entre 1944 e
1956? Qual era a relação desta política educacional com o projeto janarista e com as mudanças
no quadro político nacional e internacional? Que pessoas, representações, estratégias e práticas
ajudaram a efetivar esta política educacional? Para responder estas indagações foi necessário
constituir um amplo e heterogêneo corpus documental, percorrendo lugares como: o Centro de
Documentação de História Contemporânea (Cpdoc), no Rio de Janeiro; o Arquivo do
Departamento de Imprensa Oficial do Estado do Amapá; e a Biblioteca Municipal de Macapá.
Nestes arquivos coletamos artigos de jornal, relatórios de governo, fotografias e balanços
estatísticos. Além destas instituições, visitamos algumas pessoas que testemunharam as
transformações ocorridas no Amapá a partir de meados da década de 40 e que nos falaram,
em entrevista, sobre suas impressões acerca deste período: Amaury Guimarães Farias57,
Arlindo Oliveira, Eulice de Souza Smith, Josefa Lina da Silva, Benedita Guilherma Ramos,
Joaquim Ramos da Silva, Raimundo Lino Ramos, Renato Felgueiras Vianna, José Sebastião
Mont'Alverne e Joaquim Theófilo de Souza. Cada uma das categorias de fonte foi analisada à
luz dos objetivos desta pesquisa e de considerações sobre sua natureza própria, conforme
passamos a descrever.
Os jornais noticiosos nos permitem, conforme afirma Miriam Lifchitz M. Leite, ―uma
verificação do papel da imprensa como informadora da população, formadora da opinião, manipuladora de
situações e alimentadora de fantasias e mitos‖.58 Esta função manipuladora do discurso jornalístico indica que não podemos endossar o que é dito nele em nossas análises ou tomá-lo,
apressadamente, como elemento para a confirmação da hipótese, como fazem muitos
historiadores.59 Ao nos dispormos a analisar os artigos do jornal
Amapá, procuramos
identificar os seus códigos e suas mudanças, conforme a indicação metodológica de Leite: ―as palavras escolhidas, as expressões recorrentes, quem escrevia e por que, e o que escrevia e para quem, onde se
escrevia e até onde se alcançava o objetivo imediato do jornal e o objetivo atingido, a função desempenhada
57 Faleceu em julho de 2007.
58 LEITE, Mirian Lifchitz M. O periódico. Variedade e transformação. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo,
tomo XXVIII, 1977/1978.
59 Sobre este tipo de análise de jornais consultamos também: CAMARGO, Ana Maria de Almeida. A imprensa
voluntária e aquela que cumpriu sem chegar a saber ou, ainda, como formas literárias exprimiram situações
políticas em que os homens se tinham atribuído missões educativas‖.60Estas indicações permitiram uma
abordagem diferente daquela que infere a partir de afirmações do jornal. A análise dos artigos
do jornal Amapá61 nos facultou identificar as práticas e representações do governo relativas à política educacional.
Por meio do levantamento do material contido nos relatórios governamentais,
pudemos identificar quais eram os objetivos educacionais do primeiro governo do Território
Federal do Amapá. Os relatórios procuravam evidenciar o impacto e o alcance das políticas
implementadas. Do ponto de vista da retórica, os relatórios apresentam uma pretensa
neutralidade política e são abundantemente enxertados de informações técnicas. Aliás, é
próprio do discurso político-administrativo não explicitar o lugar de onde fala. Isto constitui
uma estratégia de legitimação (identificação com o ―bem comum‖ e não com particularismos). Procuramos avaliar, também, a concepção personalista de administração territorial presente
nos relatórios — a partir da qual as ações governamentais eram atribuídas à decisão particular
(e pretensamente técnica) do governador Janary Nunes.
As fotografias nos ajudaram na compreensão do panorama cultural da época que
estudamos e nos possibilitaram descortinar, neste panorama, diferentes visões de mundo. Ciro
Flamarion Cardoso e Ana Maria Mauad definem a fotografia como ―artefato produzido pelo
homem e que possui uma existência autônoma como relíquia‖ e ―mensagem que transmite significados relativos à própria composição‖.62 Como documento, a fotografia ―revela aspectos da vida material de um
determinado tempo do passado de que a mais detalhada descrição verbal não daria conta‖.63 Enquanto
monumento, ―ela é agente do processo de criação de uma memória que deve promover tanto a legitimação de
uma determinada escolha quanto, por outro lado, o esquecimento de todas as outras‖.64 O uso da análise de
fotografias em nossa pesquisa se direcionou, principalmente, ao registro fotográfico oficial das
construções e ações escolares. Por meio deste tipo de registro pudemos identificar como o
governo de Janary difundiu uma representação específica da sociedade amapaense e edificou
em torno disto uma memória. O conceito de imagem oficial65, que Boris Kossoy utiliza para
60 LEITE, Mirian Lifchitz M. Op. Cit. P. 149.
61 Jornal semanal mantido e gerenciado pelo governo do Território desde 19 de março de 1945. As ações deste
governo constituem o principal objeto de seus artigos.
62 CARDOSO, Ciro Flamarion e MAUAD, Ana Maria. História e imagem: os exemplos da fotografia e do
cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997,p. 408.
63Ibidem, p. 406. 64Ibidem, p. 407.
65 A imagem que determinado grupo produz e apresenta como sendo a representação verdadeira e legítima de um
analisar os cartões postais, também é perfeitamente aplicável à nossa análise das fotografias
presentes no jornal Amapá e nos relatórios de governo, pois nos chama a atenção para o fato
de que a opção do fotógrafo por certas imagens, enquadramentos e planos, objetiva perenizar
uma determinada forma de percepção da paisagem, dos sujeitos históricos e dos
acontecimentos, em detrimento de outras possíveis.
A produção de estatísticas relativas à escolarização se proliferou notavelmente a partir
de 1930.66 Neste momento, surgiu uma crença alargada nos números como orientadores da administração social, especialmente na área educacional.67 Por isto herdamos uma gama
considerável de levantamentos estatísticos relativos à educação. O trabalho com análises
quantitativas pode envolver dois processos diferentes de coleta dos dados: a) coleta direta,
quando a informação estatística é elaborada a partir de quantidades extraídas diretamente da
fonte; b) coleta indireta, quando a informação é inferida a partir dos elementos conseguidos
pela coleta realizada por outrem (é feita, portanto, por deduções e conjecturas).68 Em nossa
pesquisa, trabalhamos com a coleta indireta. Utilizamos os dados estatísticos produzidos pelo
IBGE e pela Divisão de Estatística do governo territorial do Amapá para analisar os diversos
aspectos da expansão educacional no Território e as mudanças no perfil sócio-econômico da
população amapaense nas décadas de 1940 e 1950.
As entrevistas foram confrontadas com os discursos das demais fontes de nossa
pesquisa.69 Desta forma, identificamos diferentes narrativas que procuraram e procuram
formular sentidos específicos para as experiências históricas. Seguindo as orientações
metodológicas de Verena Alberti, dividimos o trabalho de produção dos depoimentos em três
66 Cynthia Pereira de Souza afirma que a partir dos anos 30, quando Getúlio Vargas subiu ao poder, foram
firmados convênios entre o governo federal e os Estados para a organização dos serviços estatísticos (SOUZA, Cynthia Pereira. A criança-aluno transformada em números (1890-1960). In: STEPHANOU, Maria e BASTOS, Maria Helena Câmara (orgs.). Histórias e memórias da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 199).
67Ibidem, p. 201-203.
68 Ver: BUESCU, Mircea. Métodos quantitativos em história. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1983; e
BARNETTA, Pedro Alberto. Estatística aplicada as Ciências Sociais. 4 ed. Florianópolis: UFSC, 2001.
69 A história oral é a metodologia de coleta/produção de uma fonte — que chamamos de depoimento — onde o
momentos: preparação das entrevistas; sua realização; e tratamento do material produzido.70 A preparação das entrevistas implicou no estudo prévio do seu tema, seleção das pessoas (a
serem entrevistadas), montagem de um roteiro de questões (abertas) e verificação do ambiente
e equipamento de gravação. Na realização das entrevistas, procuramos nos adequar ao ritmo
do entrevistado e sermos sensíveis aos fatores que interferiram no andamento da entrevista,
para considerá-los durante a análise. Na interpretação e análise das entrevistas, procuramos
atentar para as intenções dos entrevistados (e do próprio entrevistador). Foi preciso também
analisar as entrevistas como um todo, no qual as partes (conceitos, formas de se referir a fatos,
lembranças cristalizadas, cacoetes de linguagem, etc.) se articulavam, constituindo significados.
A análise de artigos de jornal, relatórios, fotografias, dados estatísticos e entrevistas nos
possibilitou esquadrinhar as diretrizes da política educacional do governo de Janary Nunes no
Amapá. Assim como toda a historiografia apresentada acima, este estudo trata da relação entre
Estado e sociedade. No entanto, conforme ressaltamos, estamos pondo em foco a fronteira da
modernização — onde os poderes constituídos não identificam dentro da sociedade a
existência das condições necessárias a um impulso modernizador. A racionalização da
produção (orientação técnica) e das relações sociais em geral (regulação do tempo e do espaço)
torna-se então a meta da ação estatal. Destarte, em meados do século XX, a pequena camada
letrada que compunha o governo janarista contemplava a sociedade amapaense com um olhar
que reconhecia, sobremodo, a falta de algo — nos aproximamos aqui da noção de nadificação
de Sartre.71 Fazer esta sociedade suprir esta carência significava realizar uma obra modernizadora. Neste sentido, era preciso mudar o homem. Contra todo determinismo racial
e ambiental, a classe dirigente reconhecia na educação a principal força capaz de criar um
homem novo. Porém, a modernidade, ao mesmo tempo em que nos acrescenta, nos subtrai
(exige sacrifícios antes dos prêmios). A realidade não se amoldou às exigências do projeto
modernizador: imensos obstáculos sócio-econômicos e hábitos seculares lhe impuseram
resistência. No que tinha de mais ambicioso este projeto fracassou. Mas, legou o bastante para
retinir dentro e fora dos círculos acadêmicos: na história e na memória.
70 ALBERTI, Verena. Fontes orais. Histórias dentro da História. In: PINSKI, Carla Bassanezi (org). Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 155-202.
71 Para Sartre, o mundo não existe fora das significações que a consciência lhe empresta. Este é o fundamento
CAPÍTULO 1
O que se deve ensinar: a formação do homem novo
No dia 21 de novembro de 1946, ao encerrar a modesta cerimônia de inauguração da
nova escola isolada e mista de Santana (na época vilarejo próximo da capital territorial,
Macapá), o jovem governador do Território Federal do Amapá, Janary Gentil Nunes,
dirigindo-se aos presentes (membros de sua equipe de governo, professores, alunos, escoteiros
e moradores desta vila), contou uma lenda sobre um rei persa:
Esse soberano convidava homens de todos os recantos do mundo a visitar seu famoso palácio, onde poderiam percorrer todas as suas salas, exceto uma, onde só êle entrava e cujo segredo guardava religiosamente. Muitos supunham que ali existissem abundantes riquezas que pudessem causar deslumbramento em quantos tivessem a ventura de contemplá-las. Quando o rei faleceu, os seus áulicos, seguidos por uma densa multidão, viram então apenas uma sala completamente vasia [sic] e uma janela aberta. Era em meio ao silêncio do compartimento indevassável que o velho monarca pensava em construir a felicidade de seus súditos...72
Após terminar de contar esta lenda, Janary arrematou: ―assim também, cada brasileiro deveria ter no seu íntimo sagrado onde não medrassem outros sentimentos senão o de criar uma Pátria melhor‖.
Este fato nos ajuda a entender o significado da política e o desafio que ele guarda em si. O
desejo íntimo do rei persa de interferir no destino de centenas ou milhares de homens
representa a megalomania própria da política. Segundo Peter Sloterdijk, ―a política é a arte de
organizar os laços ou forças de ligação e para além disso numa esfera de elementos comuns‖.73 Quando
entendemos que Janary pretendia enlaçar todos no mesmo sentimento, e perguntamos o que
seria naquele momento ―uma Pátria melhor‖, também percebemos que ele estava falando, antes de tudo, de seu próprio sonho. Sloterdijk afirma que, ao se organizar em grandes
conglomerados (como a nação), ―o homem se torna então o animal para abrigos mais abstratos‖ cuja expressão mais visível é o Estado e aqueles que ocupam postos de comando da coletividade: o
homo politicus ou o ―decatleta a serviço do Estado‖.74 Absorvido na entrega ascética às coisas da
política, o homo politicus pensa o mundo à luz de doutrinas que propõem a ordenação do todo.
Janary dedicou a maior parte da sua vida à política. E dedicou-se com paixão — fonte
de amizades e inimizades. Ele era um sacerdote do Estado e, como tal, pensava, sobretudo, a
partir de grandes generalizações (ele diria: grandes ideais). Há, no entanto, uma
72 Mais uma escola de alfabetização do Território. Amapá. Nº 89, de 30/11/1946, p. 4.