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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP ELTON DOMINGUES RIVAS Dispositivos tecnológicos de mediação, hibridização cultural e processos

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

ELTON DOMINGUES RIVAS

Dispositivos tecnológicos de mediação, hibridização cultural e processos comunicativos na Reserva Indígena de Dourados e entre os Ayoreo do

Paraguai

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

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2 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

ELTON DOMINGUES RIVAS

Dispositivos tecnológicos de mediação, hibridização cultural e processos comunicativos na Reserva Indígena de Dourados e entre os Ayoreo do

Paraguai

Tese apresentada à Banca examinadora como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PEPGCOS/PUC-SP), na linha de pesquisa Cultura e Ambientes Midiáticos, sob a orientação da Profª. Drª. Lucrécia D’Aléssio Ferrara.

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Banca de doutorado

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4 A Silvia e Dirceu, pela liberdade e apoio nos caminhos percorridos.

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Agradecimentos

A realização desse trabalho não seria possível sem o apoio do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), do qual fui bolsista, e também da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que me contemplou com uma bolsa PDSE (Doutorado Sanduíche no Exterior).

Agradeço à minha orientadora, Drª. Lucrécia D´Aléssio Ferrara, que aceitou me acompanhar nos caminhos desorientadores dessa pesquisa, por sua generosidade, confiança e condução a voos mais altos do que eu supunha alcançar.

Aos amigos de terras paraguaias, com quem estabeleci vínculos comunicativos e afetivos; Miguel Angel Alarcón, Sonia Castillo, Liz Piris, Jieun Kang e Benno Glauser, sou grato por sua confiança e solidariedade. A Maria de Lourdes Beldi Alcântara que me permitiu dividir sua experiência com a AJI (Ação de Jovens Indígenas de Dourados).

Aos companheiros de viagens de monitoreo Aquino Picanerai e Mateo Chiquenoi, por compartilharem conhecimentos, traduzirem universos e cruzar fronteiras ao meu lado. Aos companheiros de oficinas na AJI e no Paraguai com quem muito aprendi: Natalia Cimó, Emerson Cabrera, Davi Paiva e Luis Taylor.

Aos professores Norval Baitello Junior, Raúl Fuentes Navarro, Diana Sagástegui Rodrigues. Aos colegas da vida acadêmica em São Paulo e em Guadalajara; Cida Bueno, Maria Del Mar Reyes, Eduardo Bonini, Radamanto Portilla, Rocío Cantú Dávila, Fernando Cornejo, Dorismilda Flores-Márquez, Marcela De Niz, Jorge Rocha Quintero, Radamanto Portilla, Tania Suro, Chris Estrada, Digna Zamora Gradilla, Mildred Arce, Edgar Kuerepu Alejandre, Naine Terena, Gustavo Cavalheiro, Carolina Libério, Izabelle Prado, Camila Garcia, Luis Fernando dos Reis Pereira, Alexandre Frigeri e a todos que participaram do grupo de pesquisas do Barroco e do Mestiço, coordenado pelo professor Amalio Pinheiro, a quem também agradeço.

Aos amigos e leitores generosos; Diogo Borhausen, Renata Gauche, Stela Guimarães e Daniela Jakubatzko. A Elaine Resende Sklorz, companheira de escrita, incertezas e descobertas, desde a docência em Mato Grosso até as longas tardes na biblioteca da PUC e a Anderson Zotesso que me apresentou o Playstation, mas apesar disso foi revisor, criador, comparsa de leituras, longas caminhadas e apontamentos mestiços.

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Resumo

RIVAS, Elton Domingues. Dispositivos tecnológicos de mediação, hibridização cultural e processos comunicativos na Reserva Indígena de Dourados e entre os Ayoreo do Paraguai.

O presente estudo tem como objetivo o estudo da apropriação de dispositivos tecnológicos de mediação pelos índios Guarani e Terena da Reserva Indígena de Dourados (Mato Grosso do Sul) e de experiências semelhantes entre o povo Ayoreo, habitante do Chaco paraguaio. A questão que motiva a tese é saber se é possível apreender as ocasiões e os modos como podem ocorrer o trânsito cultural entre tradições/fragmentos culturais indígenas e os novos elementos provenientes do contato com o mundo contemporâneo-pós-industrial-informacional. Utilizando bases metodológicas de documentação do uso daqueles dispositivos e, sobretudo, comparando aproximações e diferenças em situações de observação do cotidiano dos sujeitos pesquisados, a análise daquele trânsito se apoia nas seguintes hipóteses:1) os meios tecnológicos têm seus papeis dinamizados pela geração de conteúdos de dimensões híbridas e são instrumentos privilegiados da mediação, apropriação e ressignificação, além de ajustes para a incorporação e produção de sentido sobre repertórios distintos e alheios; 2) a identidade cultural é transformada pelos resultados de polifonias e polissemias que fazem parte dos vários pertencimentos a que os sujeitos são submetidos, constituindo-se de assimilações, influências, contágios e contaminações em constante construção. A base teórica parte do conceito de semiosfera formulado por Iuri Lotman, que contempla a ideia de fronteira entre espaços semióticos, conceito fundamental para compreender a produção de ambientes comunicativos; a natureza da imagem como signo comunicativo e a construção de visibilidades a partir do domínio técnico, conceitos total ou parcialmente propostos por Norval Baitello Junior e Lucrécia Ferrara, além dos conceitos de hibridismo de Nestor Canclini e mediação de Jesús Martín-Barbero.

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Abstract

Mediation technological devices, cultural hybridization and communicative processes at Indian Reservation Dourados and among the Ayoreo from Paraguay

This paper aims the studying of the ownership of mediation technological devices by the Guarani Indians and of the Terena at Dourados Indigenous Reservation ( Mato Grosso do Sul – BR) and similar experiences among the Ayoreo people, inhabitant of the Paraguayan Chaco. The question that motivates the thesis is whether it is possible to seize the occasions and how the culture transits between cultural traditions/original fragments and the new elements from indigenous contact with the contemporary world-post-industrial-informational. Using as methodological base the documentation of those devices , especially comparing approaches and differences during daily situations observed in the surveyed subjects, the analysis of transit is based in the following cases: 1) the technological means have streamlined their roles by the generation of contents of hybrid dimension and are privileged instruments of mediation, appropriation and re-evaluation of signs, in addition to adjustments for the incorporation and production of meaning on different and unrelated repertoires; 2) cultural identity is transformed by the results of polyphonies and polysemies that are part of various connections that the subjects are subjected to, composed by assimilations, influences, contagion and contaminations under constant construction. The theoretical basis of semiosphere concept formulated by Yury Lótman, which contemplates the idea of frontieres between semiotic spaces, fundamental concept to the understanding the production of communicative environments; the nature of the image as communicative sign and the construction of visibilities from the technical sector, total or partially, concepts proposed by Norval Baitello Junior and Lucretia Ferrara, in addition to the concepts of hybridism of Nestor g. Canclini and mediation of Jesús Martín-Barbero.

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Sumário

INTRODUÇÃO ...09

CAPÍTULO PRIMEIRO – OS SUJEITOS ...20

1.1 – Trânsitos e incorporações ...33

1.2 – Os índios genéricos ...46

1.3 – A Reserva Indígena de Dourados ...59

1.4 – Os Ayoreo no Paraguai: De caçadores a caçados ...70

CAPÍTULO SEGUNDO OS DISPOSITIVOS ...82

2.1 – Violência e pertencimento ...89

2.2 – A ação de Jovens Indígenas de Dourados ...101

2.3 – A floresta Ayoreo: Sinais, rádios e imagens ...107

2.4 – Espaços qualificados ...121

CAPÍTULO TERCEIRO – A CONSTRUÇÃO DAS VISIBILIDADES ...125

3.1 – Na terra dos homens vermelhos ... 127

3.2 – De mão em mão ... 136

3.3 – Rutas que se cruzam ... 154

3.4 – Oficina de fotografia Ayoreo ... 162

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 192

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Introdução

Ando pelo labirinto das frases curtas, das interjeições e das reticências, atado a nós. Será que a solução é deixar que o tempo se encarregue dos nós e de nós?

Luiz Gustavo Lima1

Descrever minha pesquisa é sempre discorrer um pouco sobre

minha trajetória e sobre o desejo de compartilhar a experiência adquirida. O

biográfico constitui um relevante alicerce na eleição de objetos de estudo,

como diz José Basini (2009): “um desejo que como um vírus se instala e

interpela a vontade de conhecer e de conhecer para viver”. E aqui reside um

dos grandes desafios teórico-metodológicos enfrentados ao longo dessa

pesquisa: verticalizar um texto essencialmente descritivo e problematizá-lo,

dialetizá-lo ou, aludindo a Didi-Huberman (1998), vê-lo e deixá-lo me olhar de

volta.

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Meu contato com populações indígenas se deu de forma

permanente a partir de 1999, quando conheci o trabalho da Operação

Amazônia Nativa2 (OPAN). Após dois meses de curso de formação indigenista

na sede da entidade em Cuiabá, Mato Grosso, parti para a cidade de Eirunepé,

na região do Médio Juruá, no estado do Amazonas, onde me integrei a uma

equipe de trabalho que atuava com os povos Kanamari, Kulina e Katukina. E foi

logo depois disso, entre os Kanamari3, que eu, Elton Rivas, descendente de

espanhóis, paulistano, branco, corintiano apostólico romano, portador da

identidade 29.455.696-5, “virei um macaco”. Mais precisamente, um uacari branco da cara vermelha, que os Kanamari chamam de Amuná.

Mais do que minha alegada semelhança física com esse animal,

meu comportamento também passou a ser explicado a partir dessa minha

descendência do Cacajao calvus calvus. Assim, o fato de minha atuação se

estender por quatro Terras Indígenas4, numa extensão territorial de 26.278,57

km² (um território quase do tamanho da Bélgica5), era compreendido não só

como uma necessidade advinda das características do trabalho desenvolvido,

mas também de minha natureza animal, de macaco da cara vermelha, dos

2

OPAN (Operação Amazônia Nativa), organização não governamental fundada em 1969, sediada em Cuiabá, Mato grosso. Atualmente desenvolve projetos de apoio aos povos indígenas nos estados de Mato Grosso e Amazonas.

3 Ao longo do trabalho, optamos por utilizar os nomes indígenas, usados como adjetivos ou substantivos

sem flexão de gênero e de número, bem como os nomes das populações serão grafados com iniciais maiúsculas, sendo facultativo o uso delas quando tomados como adjetivos. Adotamos a redação proposta pela Convenção para a Grafia dos Nomes Tribais, documento da 1ª Reunião Brasileira de Antropologia –

ABA, de 1953, por ser essa a forma mais comumente encontrada nos livros antropológicos e documentos indigenistas. Documento disponível em: http://www.juliomelatti.pro.br/notas/n-cgnt.htm. Acessado em 23 jan. 2011.

4 Minha atuação indigenista se estendia pelas Terras Indígenas Kanamari do Médio Juruá (596.433

hectares), Kulina do Médio Juruá (730.142 hectares), Mawetek (115.492 hectares) e Terra Indígena do Rio Biá (1.185.790 hectares).

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pelos brancos, que carrega entre suas características a constante mobilidade e

a extensa territorialidade.

Muito de brincadeira existia entre os Kanamari ao me nominarem

assim. Mas, na realidade, existiram no passado vários grupos regionais

autônomos, com nomes de animais (há registro de mais de vinte nomes), de

tendência endogâmica, denominados djapá. Não sei precisar se houve algum

Amuná Djapá, apesar dos Kanamari sempre afirmarem que pode ter havido ou

que pode ainda existir em alguma parte. Pertencer a um Djapá significa

pertencer à “Gente” de um determinado animal e, como tal, identifica e localiza

o indivíduo e os grupos locais cosmológica, territorial e espacialmente.

É comum entre os povos ameríndios o estabelecimento de

relações de reciprocidade e respeito com elementos como a água, animais de

caça e plantas cultivadas. A cultura converte-se numa constante, enquanto que

o corpo é diverso. É possível aos homens, através de processos rituais,

transformarem-se em animais. Animais também teriam sido pessoas e

igualmente podem se transformar em gente. Esse fato, inclusive, determina

algumas restrições alimentares dos Kanamari: padja/tatu-bandeira e

matsera/tatu-canastra, que “ninguém come não, porque faz mal”. “Primeiro eles

eram gente, eram Tâkâna, por isso Tâkâna não come não” (LABIAK, 1997, p.

78).

De fato, além do apelido, recebi um nome próprio: Kaewari. Em

uma aldeia em particular convivia com uma família na qual era tratado como

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Kariwa, palavra que designa os não indígenas, e tampouco precisei comer

carne de nenhuma espécie de macaco, meus parentes, muito apreciada no

cardápio Kanamari.

Na perspectiva Kanamari, o mundo era um constante estado de

transformação, as formas não eram fixas e a ambivalência reinava. Um tempo

em que “os bichos eram gente, a onça, o boto, o tamanduá. Tudo era gente; a

lua, o sol, todos os bichos também eram gente”6. Era o domínio do tempo

sincrônico, simultâneo, contínuo. Foi então que Tamakori, o criador dos

Kanamari, gerou, a partir dessa variabilidade, formas estáveis como os djapas

(endogâmicos, territoriais) e esse tempo durou até a chegada dos homens

brancos, quando a tensão entre estabilidade e fluxo volta a se intensificar.

Assim, seria eu, homem macaco, branco indígena, gente animal,

também um híbrido, um mestiço? Viveria também a experiência do devir, do

fluxo contínuo no qual a identidade deixa de ser um traço fixo, não mais

afirmação de uma essência e sim constituída a partir de tradições

fragmentadas e, sobretudo, a partir da assimilação de influências, de contágios

e contaminações transculturais, num processo sempre em construção,

permeável a novos contextos e realidades?

Em 2001 deixei o Amazonas e passei a exercer a função de

Coordenador Técnico da OPAN, na cidade de Cuiabá7. Parte de minhas

atribuições consistia no contato com profissionais da imprensa. Durante esses

anos coletei matérias jornalísticas que eu julgava colaboradoras de uma

6

Extrato de gravação de entrevista com o índio Kanamari Da´ora, da aldeia Flexeira da Terra Indígena Kanamari do Médio Juruá. Arquivos da Opan, nov. 1999. Projeto Kanamari.

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construção equivocada sobre os povos indígenas brasileiros. A partir desse

material iniciei minha pesquisa de mestrado em Estudos Culturais na

Universidade Federal de Mato Grosso, concluída em 2006, com o título Entre

Peris e Aimorés: Os bons e maus selvagens da imprensa.

No ano posterior, dirigi um vídeo documentário intitulado Em

Trânsito, que abordava os trânsitos físicos e culturais do povo indígena Irantxe,

autodenominado Manoki, que foi forçado a sair de seu território tradicional no

fim dos anos 1950 e que busca, desde então, retornar para “casa”, num

processo que culminou com o quase extermínio da sua população, em

casamentos com mulheres de outros povos e praticamente com o

desaparecimento da língua materna. A realização desse documentário,

somada à produção da minha dissertação de mestrado, possibilitou

sistematizar o tratamento midiático dispensado aos povos indígenas, reforçou a

percepção de que, em geral, essas populações se manifestam na cena pública

através de porta-vozes e o resultado desse processo era uma tradução nem

sempre fiel aos anseios dos povos retratados.

Em cada uma dessas comunidades processos distintos orientam

as relações com o mundo não indígena, porém os índios permanecem

ocupando, para os “brancos”, um papel exótico (vivendo de acordo com a

expectativa que projetamos – aldeia e tradição) e perturbador (quando se

insere em nosso mundo, protagonista de nossa agenda econômica, infiltrado

no mundo dos brancos). O indígena ideal é o resultado do olhar exotizante do

Ocidente (RIVAS, 2006). O que chamamos de índios abarca heterogeneidades

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sociedade nacional. Ao falarmos de índios, não ignoramos essas dimensões

todas. Falar dessas populações é sempre uma tentativa de abarcar e

uniformizar esses universos.

A partir dessa inquietação, surgiu o interesse de investigar

trabalhos audiovisuais realizados por indígenas e a forma como lidam com

essas questões identitárias, como traduzem os diferentes códigos culturais com

que se relacionam em seu cotidiano. Nesse movimento, nos deparamos com

diferentes contextos de utilização de aparatos tecnológicos de mediação por

populações indígenas. E, mais do que isso, a incorporação de diferentes

suportes voltados para a comunicação no interior das comunidades, na sua

relação com o entorno não indígena e com outras etnias.

O corpus dessa investigação foi construído pela relação que

definiremos como o encontro entre determinadas populações indígenas com

sociedades distintas das suas. Encontros mediados por dispositivos

tecnológicos de comunicação, geradores de conteúdos híbridos que operam no

caleidoscópio das representações identitárias.

De caráter empírico, a pesquisa partiu da sistematização de

algumas dessas experiências, em especial duas delas: na Reserva Indígena de

Dourados (Mato Grosso do Sul) entre os Guarani Ñandeva, Guarani Kaiowá e

os Terena. A segunda com os Ayoreo, habitantes do norte do Chaco, no

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da percepção ambiental (FERRARA, 1993) dos investigados.

Os povos indígenas estudados são meus sujeitos de pesquisa. A

investigação não trata deles em si, mas de como seu acesso e domínio dos

dispositivos tecnológicos de comunicação e mediação lhes dão condições de

diálogo e intervenção nas relações que se estabelecem com o entorno, além

da investigação dos processos de mediação e ressignificação de linguagens

técnicas de comunicação. Buscamos o sentido da produção midiática

produzida pelos indígenas e seus impactos na vida cotidiana das comunidades

envolvidas no processo. Esse é nosso objeto epistemológico e empírico.

A presente pesquisa procura compreender a eleição de signos e

significados envoltos na representação da imagem dos índios8 e dialoga com a

linha de pesquisa Cultura e Ambientes Midiáticos. No âmbito da epistemologia

da comunicação, nos filiamos ao paradigma interpretativo cultural que, embora

se inicie na investigação antropológica, volta-se para os estudos da

comunicação. Seguiremos na esteira de autores latino-americanos como

Garcia Canclini, Martín-Barbero, Octavio Ianni, Lucrecia Ferrara, entre outros.

As contribuições para o estudo da imagem técnica serão tomadas

principalmente de Flusser, Virilio e Baitello Junior. Nosso desafio no campo

antropológico orienta-se pelas análises de Viveiros de Castro e pela proposta

de James Clifford, pela redação de etnografias polifônicas, que contemplem

vozes e perspectivas diversas e permitam que o autor se dilua no texto, dando

espaço aos outros agentes que antes só apareciam através dele, em uma nova

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abordagem na relação sujeito-objeto para a pesquisa de campo, permitindo um

discurso acadêmico que contemple outras vozes e textos, anteriores e

subjacentes ao do investigador.

Acabei tomando parte das experiências que estudava e, em 2009,

como contrapartida da minha presença na Reserva Indígena de Dourados, os

membros da Ação de Jovens Indígenas – AJI solicitaram que eu realizasse

com eles uma oficina de produção e roteiro audiovisual. A Ação é uma

organização não governamental financiada com capital privado, criada em

2003 na cidade de Dourados, e seu público alvo são os jovens das três etnias

que compõem a Reserva Indígena de Dourados, tida como a mais populosa do

país.

A experiência em Mato Grosso do Sul permitiu o acesso a uma

rede de realizadores indígenas, bem como a organizações de apoio a esses

trabalhos. Em agosto de 2009, recebi o convite da Organização Não

Governamental paraguaia, Iniciativa Amotocodie9, para acompanhar os índios

Ayoreo do norte do Chaco em viagens pelo território tradicional a fim de

registrar os sinais de presença de grupos dessa etnia ainda isolados na

floresta.

Essas experiências ampliaram o escopo do trabalho, que passou

a considerar também como se estabelecem as fronteiras entre culturas

diferenciadas, a interculturalidade e, até mesmo, a transculturalidade através

das produções midiáticas e a presença de hibridismos e mestiçagens no

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resultado da interação entre os dispositivos e os sujeitos estudados pela

pesquisa.

No segundo semestre de 2011, fui contemplado com a

possibilidade de vivenciar um semestre na Universidade Jesuíta de

Guadalajara (ITESO), no Departamento de Estudios Socioculturales, sob a

orientação do professor Raul Fuentes Navarro, experiência que contribuiu para

o exercício de pensar a comunicação, sua epistemologia e o instrumental

necessário para traduzir nossas experiências cotidianas na produção social do

sentido decorrente dos estudos no campo da comunicação.

Nesse processo, de desplazarme ao México, de ser um

estrangeiro numa terra que não é minha (guardadas todas as proporções,

principalmente no que toca à violência, seja física ou simbólica que os povos

que pesquiso enfrentam em seus cotidianos), pude experienciar a vivência do

trânsito, de me comunicar em uma língua que não me era de origem, de ser um

outro, não aquele radical distante e incompreensível, mas talvez um outro

próximo, como supõe Baudrillard (2002), esse que não sou eu, que é diferente

de mim, mas que posso compreender, ver e assimilar.

Essa experiência ecoou um episódio vivido em julho de 2010,

durante uma viagem ao Chaco paraguaio, acompanhando um grupo Ayoreo

em uma viagem pelo antigo território ancestral. Ao chegarmos a uma localidade

conhecida como Palmar de las Islas, um conjunto de lagoas ao norte do

Paraguai, na fronteira com a Bolívia, buscamos acampamento numa fazenda

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os Ayoreo. Nessa viagem nos acompanhavam anciãos que estiveram nesse

local pela última vez há mais de 50 anos.

Fomos recebidos pelo proprietário da fazenda que nos permitiu o

acampamento embaixo de um de seus galpões, protegidos por um teto de

zinco e com uma fonte de água à nossa disposição, um privilégio para a

realidade chaquenha e um luxo em nossa viagem.

Como contrapartida, os indígenas convidaram o fazendeiro para

jantar conosco. O cardápio: jabutis caçados naquela tarde. Quando nosso

convidado chegou, fomos apresentados e, ao saber de minha nacionalidade,

disparou uma série de impressões, interjeições e pouquíssimas reticências em

relação aos “brasileiros”: ladrões, preguiçosos, desonestos, inescrupulosos e

assassinos. Os Ayoreo tentaram contemporizar, dizendo que eu era diferente

dos trabalhadores brasileiros que por ali haviam passado (tratoristas, peões de

gado, aventureiros) e outros personagens de minha nacionalidade que circulam

por essa região e pelo imaginário de seus habitantes. O homem seguiu com

suas conjecturas, falando como se eu não estivesse presente, tendo apenas os

índios como interlocutores.

Uma situação constrangedora, no mínimo, mas muito impactante,

porque ao longo dos anos acompanhando indígenas, várias vezes, no contato

com não indígenas em fazendas ou vilas ribeirinhas na Amazônia (seringais),

era comum presenciar discursos muito semelhantes àquele do senhor

paraguaio, mas a respeito dos índios que me acompanhavam. Naquela noite,

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indígenas eram o outro próximo, com quem se é capaz de lidar.

Essa inversão na representação afetou a forma como eu próprio

compreendia a alteridade; pois me vi diante da possibilidade de que o outro,

esse ser exterior a nós, também pode ser pensado em termos de uma

interioridade, como sugere Skliar, “há também a mesma dualidade (outro

próximo – outro radical) em termos de interioridade, quer dizer, que esses

outros também podem ser eu, sermos nós”. Essa constatação mudou

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capítulo primeiro

os sujeitos

A rigor tudo se move, desloca, flutua ou migra, tanto quanto retorna, reaparece, regressa. Essa é uma travessia na qual todos estão; coisas, gentes e ideias, modos de ser, agir, sentir, pensar e imaginar. E tudo é, simultaneamente, reiteração e modificação.

Octavio Ianni10

No trabalho com as comunidades foram compartilhadas

experiências com dispositivos tecnológicos de comunicação, sobretudo com

suporte audiovisual. Ferrara assinala a importância de delimitar os meios como

“ações que se desenvolvem motivadas pelas tecnologias dos suportes”.

Aquelas ações se ampliam e se expandem pelo processo interativo que faz implodir repertórios, valores culturais, tensões sociais e políticas que, sediadas nos contextos exclusivos de

realidades particulares de recepc ão, assumem caracter sticas

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distintas, mas sempre desconcertantes e imprevis veis. Desse

modo, se de um lado, é imprescind vel a discriminac ão evolutiva das caracter sticas tecnológicas dos suportes, de outro lado, é necessário e urgente estudar o modo como aquelas caracter sticas são recebidas e, sobretudo, como interferem e são interferidas pelos processos culturais e pol ticos conte tualizados em distintos territórios ou grupos sociais. (FERRARA, 2009, p. 8)

Nosso objetivo foi investigar como a aquisição desses

instrumentais transforma aquilo que é próprio do objeto; como a imagem se

transforma em visualidade comunicativa até gerar um conhecimento, uma

visibilidade, contaminada pelo modo como a imagem se constrói. Através

desse procedimento podemos abarcar a pluralidade das formas de ver,

compreender e sentir nos novos espaços cada vez mais atravessados pelo

domínio técnico e pela proliferação de imagens.

Para as populações não indígenas – não só brasileiras, mas de

todo o processo de colonização das Américas – o elemento índio representou a

alteridade absoluta, a diferença que deveria ser eliminada para a afirmação de

uma nova construção de identidade. Nessa nova configuração, os indígenas,

em alguns casos, são parte constituinte dessas novas identidades, presentes

nos mitos de fundação das nacionalidades ou amalgamados nas constituições

mestiças das identidades americanas.

No Brasil, em fins da década de 1980, a temática indígena passa

a frequentar mais uma vez a agenda política, embalada pela redemocratização,

pela luta por direitos humanos e a elaboração da Constituinte de 1988. Nesse

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audiovisual, mediados pela intervenção de organizações não governamentais,

igrejas, pesquisadores, universidades e também por iniciativa das próprias

comunidades.

Essas experiências não são exclusividade dos indígenas

brasileiros. Em vários países, comunidades tradicionais utilizam suportes

tecnológicos, de acordo com seus projetos políticos e culturais, como o registro

de festas, cantos, material didático em escolas indígenas, como ferramenta na

luta por direitos frente ao Estado. Sua utilização ainda é frequente para

intensificar o contato entre aldeias de um mesma etnia ou entre distintos povos,

como é o caso da utilização de aparelhos de rádio HF11.

A introdução desses meios de comunicação em comunidades

indígenas, assim como a introdução de machados de ferro ou armas de fogo,

passando por vestuário, medicamentos e meios de transporte, suscita debates

sobre sua funcionalidade e sobre os impactos que podem causar em

sociedades tradicionais. De forma heterogênea, os avanços tecnológicos

penetram em todas as esferas da atividade humana, sendo responsáveis por

uma reorganização social e revisão dos estilos de produção, comunicação e

gerenciamento da vida.

O uso das tecnologias audiovisuais por populações tradicionais,

recursos que aparentemente parecem alheios às suas formas habituais de

representação, constituem ameaça à integridade cultural ou criar novas formas

11

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de fortalecimento para esses povos, frente aos códigos do mundo envolvente?

Uma possibilidade de compreender esse questionamento pode ser encontrada

através da análise de como os grupos se apropriam e ressignificam esses

dispositivos, inserindo-os em seu repertório cultural, sendo absorvidos pelas

estruturas sociais e gerando novas práticas comunicacionais.

Catherine Howard, ao comentar as estratégias dos índios Waiwai,

habitantes da fronteira entre Brasil e Guiana, em suas relações com as

sociedades ocidentais, classifica como "domesticação das mercadorias" a

incorporação de bens que "longe de ser apenas uma troca de objetos utilitários,

gera a circulação de novos significados e poderes cristalizados em forma

material" (2002, p. 25). Os bens externos, bem como determinados

procedimentos culturais, são assimilados de acordo com um projeto próprio,

carregado de valores simbólicos. Apropriar-se das tecnologias, da língua e da

escrita pode ser encarado como uma forma de “devorar” o outro, deter os

conhecimentos e “poderes” da cultura estrangeira com a qual nos

relacionamos.

A literatura ocidental faz referência à pacificação de diversas

etnias pelos colonizadores, por agentes do Estado, missionários religiosos e

outros agentes (seringueiros, empreiteiros, garimpeiros, etc.), mas são pouco

conhecidos os relatos sobre como os grupos indígenas “pacificaram os

brancos”, reclamando para si a posição de sujeitos ativos no contato, e não de

vítimas.

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populações tradicionais uma série de mediações resultantes da tentativa de

limitar os impactos das novas práticas sociais sobre suas sociedades, que

acaba por limitar um controle hegemônico total dos novos significados e

práticas.

A relação com a parafernália dos invasores, ainda que inevitavelmente guiada por fins culturais autóctones, não se deixa ler sempre em termos de um instrumentalismo autoesclarecido [...] a cultura estrangeira foi muitas vezes visada em seu todo como um valor a ser apropriado e domesticado, como um signo a ser assumido e praticado enquanto tal. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 223)

Quando nos referimos aos meios tecnológicos cada vez mais

presentes no universo de algumas populações indígenas, em diversas escalas,

materializados desde os rádios HF e aparelhos televisores até os

computadores conectados à internet, confrontamo-nos com um mosaico de

práticas e ressignificações, modos de utilizar que vão do simples consumo

passivo à produção de conteúdo a serviço da reprodução social e cultural das

comunidades.

Para o controle e acesso às tecnologias, os indígenas

supostamente criam estratégias que os submetam a complexas

transformações, como assinala Howard (2002, p. 7), “entrar em novas relações

com eles e reproduzir-se como sociedade, dessa vez não contra, e sim através

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A técnica é geradora de uma nova forma de produção de sentidos

e consequentemente de novos meios comunicativos e ambientes culturais.

Para Martín-Barbero (2004, p. 86), a exposição de temas controversos à

deliberação pública permite visibilidade, pois aumenta a quantidade e a

qualidade das formas de acesso ao debate social. A visibilidade tem de ser

gerada de forma dialética. Quanto menos dialéticas forem as imagens, mais

suscetíveis elas são às manipulações e ao poder (dominação), pois oferecem

menos possibilidades de tradução. O modo como se produz o discurso, a

eleição e organização de seus elementos integra as imagens a regimes de

visibilidade:

Depois de metamorfosear e domesticar devidamente os bens de troca, os povos indígenas redirecionam-nos e captam suas propriedades para satisfazer a seus próprios fins, numa tentativa de apropriação e pacificação dos poderes do branco. (Howard, 2002, p. 29)

Revisitando processos históricos, percebemos que essa prática

não ocorreu apenas com as "coisas dos brancos". A circulação e intercâmbio

de bens simbólicos e materiais é comum entre as diversas culturas indígenas,

ocorrendo de forma pacífica, como também na guerra, incluindo práticas como

roubo de mulheres, captura de inimigos, que se convertiam em escravos, e

antropofagia. No caso dos índios Tupinambá12, o canibalismo "coincidia com o

corpo social inteiro: homens, mulheres, crianças, todos deviam comer do

12

(26)

26

contrário. De fato, ele [o canibalismo] era o que constituía este corpo em sua

máxima densidade e extensão, no momento dos festins canibais" (VIVEIROS

DE CASTRO, 2002, p. 262).

Esse desejo, esse devorar, absorver o outro e alterar a si mesmo

no processo, ocorre não apenas no plano canibal, mas é operado na

cotidianidade do uso e controle de objetos e mercadorias, com suas potências

geradoras de novos sentidos, traduzidas e canalizadas a serviço da reprodução

social e cultural daqueles que as utilizam. É a troca, a afinidade relacional, e

não a identidade enquanto substância, o valor a ser reforçado.

Uma cultura não é um sistema de crenças, mas antes – já que

deve ser algo – um conjunto de estruturações potenciais da

experiência, capaz de suportar conteúdos tradicionais e variados e de absorver novos: ela é um dispositivo culturante ou constituinte de processamento de crenças. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 209)

A ausência de bens ou práticas ocidentais é comumente (e

equivocadamente) compreendida como indicadora do grau de integridade e

autenticidade dos grupos indígenas. Este repertório convive com outra

compreensão diametralmente oposta, em que a apropriação de tecnologias

comunicacionais representa estratégia de autodeterminação, resistência e

reafirmação étnica.

(27)

27

os indígenas a uma lógica binária, que ordena o mundo em identidades puras e

oposições simples: a primeira os vê como objeto puro, raiz que deve ser

conservada como símbolo da identidade, único traço que nos resta duma

suposta autenticidade, enquanto a outra os coloca numa situação de

exterioridade ao desenvolvimento capitalista, obstáculos aos modelos

desenvolvimentistas da sociedade. Por mais que pareçam opostas, essas duas

vertentes indicam que restariam somente uma opção às populações indígenas:

possuidoras de qualidades negativas ou positivas estão sempre situadas em

um espaço diferente e exterior a nós, os "civilizados".

As populações indígenas de todo o mundo possuem variados

graus de integração às sociedades do entorno onde vivem, sobretudo naquelas

que convencionamos nominar como “sociedade ocidental” ou “sociedade

nacional”. Existem grupos indígenas vivendo em zonas urbanas, outros que

dependem fortemente da economia de mercado e da assistência do Estado, e

populações em situação intermediária, vivendo em áreas demarcadas,

manejando recursos para desenvolver sua vida tradicional, ao mesmo tempo

em que convivem com o fluxo constante de bens materiais e simbólicos das

sociedades industriais.

Contamos ainda, em pleno século XXI, com populações em

isolamento, sem contato com a sociedade ocidental. Os isolados tendem a ser

vistos pela opinião pública como selvagens atrasados que precisam ser

contatados, trazidos à civilização. A percepção vigente está longe de

considerar os grupos isolados como um outro diverso. Irremediavelmente são

(28)

28

convívio é visto como o cumprimento de uma “missão civilizatória” inevitável e

irremediável.

É inegável que os povos indígenas enfrentam um desequilíbrio de

poder como minorias étnicas numa sociedade envolvente, que resulta em

processos de totalização de sua diversidade, principalmente no contexto de

suas relações com as sociedades de mercado, propositoras de uma lógica

diversa que os afeta diretamente. O mundo moderno e contemporâneo, como

afirma Octavio Ianni, é um mundo que tem o capitalismo não só como modo de

produção preponderante, mas também como processo civilizatório. (IANNI,

2000, p. 97)

Destacamos a contraposição de um modelo de subsistência, de

utilização dos recursos naturais de forma a não comprometer os princípios de

funcionamento e nem as condições de reprodução desse meio, frente ao modo

de produção capitalista, baseado no acúmulo, na produção em larga escala e

na utilização dos recursos naturais de forma insustentável, na qual a natureza é

vista única e exclusivamente como reservatório de recursos produtivos,

conjunto de valores econômicos definidos pelo mercado.

Nesse contexto desigual, os grupos minoritários se apropriam de

recursos tecnológicos na luta por maior inserção social e para a defesa de uma

identidade especifica no cenário nacional ou internacional (RUSSO, 2007, p. 2),

dialogam e geram processos de mestiçagem cultural e de transformações das

(29)

29

dominação.

Nas narrativas de como teriam "pacificado os brancos", os

indígenas assumem o papel de protagonistas no encontro com os não índios.

Encontramos esse tipo de relato13 entre o grupo Jiahui14, da região do rio

Madeira, no estado do Amazonas. Durante a construção da rodovia

Transamazônica (BR 230), o movimento de máquinas e a utilização de

explosivos para a derrubada das monumentais árvores amazônicas atraiu a

curiosidade dos indígenas. A aproximação ao acampamento dos trabalhadores

não ocorreu de forma pacifica. Os índios eram recebidos a tiros de espingarda

e perseguidos pela mata. Essa reação criou nos Jiahui a percepção de que os

não índios eram extremamente "bravos", daí sua estratégia de aproximar-se a

fim de amansá-los.

"Amansar" os brancos e os seus objetos é uma forma de

circunscrevê-los à lógica indígena, compreendê-los e assim poder entrar em

"novas relações com eles e reproduzir-se como sociedade, dessa vez não

contra, e sim através deles, recrutá-los para sua própria continuidade"

(ALBERT; RAMOS, 2002. p. 7).

A literatura antropológica demonstra essa percepção entre vários

povos em todo mundo. Catherine Howard, referindo-se aos Waiwai, afirma que,

apesar de sua crescente dependência material, essa etnia concebeu

estratégias para adquirir mercadorias e pô-las em circulação, canalizando sua

potência a serviço da reprodução social e cultural do grupo indígena.

13 Relatos coletados durante visitas às aldeias Jiahui, da região de Lábrea, no Amazonas. 14

(30)

30 Os objetos podem ser desvinculados de quem os produziu, circular independentemente destes, inserir-se em novos contextos e ser submetidos a complexas transformações de significado e valor. Depois de metamorfosear e domesticar devidamente os bens de troca, os povos indígenas redirecionam-nos e captam suas propriedades para satisfazer a seus próprios fins, numa tentativa de apropriação e pacificação dos poderes do branco. (HOWARD, 2002, p. 29)

Muitas vezes a adesão ao mundo dos não índios mantém ou

potencializa dinâmicas internas dessas sociedades, dentro de sua própria

lógica, apesar das rápidas e profundas transformações a que são submetidos.

Os objetos possuem um valor que, independentemente de sua origem, é

gerado a partir do significado que recebem dos atores sociais, num ato de

socialização, uma "metamorfose que transforma coisas estranhas, soltas e sem

sentido em artefatos culturais, domesticados e significativos, que replicam e

simbolizam a densa rede de relações sociais pela qual circulam". (HOWARD,

2002, p. 35)

Um exemplo é o caso dos Guaikurú ou Kadiwéu15, conhecidos

como "índios cavaleiros", por sua destreza na montaria e criação de cavalos.

Tradicionalmente guerreiros, lutaram pelo Brasil na Guerra do Paraguai e em

contrapartida afirmam ter recebido o reconhecimento, pelo imperador D. Pedro

II, da posse sobre o território que ocupavam tradicionalmente. De acordo com

Manuela Carneiro da Cunha:

15

(31)

31 Quanto aos Kadiwéu ou Guaicurus, foram, em 1830, armados pelos habitantes e auxiliados pela tropa para roubarem no Paraguai. Algumas décadas mais tarde, sua participação inicial em apoio aos brasileiros na Guerra do Paraguai valeu-lhes a demarcação de terras por ordem de D. Pedro II. (CARNEIRO DA CUNHA, 1992, p. 29)

A aliança com o Império possibilitou a esse grupo fazer frente e

obter vantagens nas batalhas travadas com seus inimigos tradicionais. São

vários os relatos que sublinham seu aspecto guerreiro que, com a

domesticação dos cavalos e o uso de armas obtidas junto aos não indígenas,

"tornou-os uma nação temível para os outros 'selvagens' e para os paulistas,

que receavam sair ao sertão e encontrá-los em campo limpo, pelo modo como

eram atacados". (PRADO, 1908, p. 22)

Os encontros culturais não são novidade do nosso tempo. Eles

compõem a base formadora de toda cultura, mesmo que, em geral, sejam

tratados como resultado de conflitos, com a invariável divisão entre vencedores

e vencidos. Mas essa dicotomia atribui a eles uma conotação negativa e

mascara o caráter renovador desses processos.

Para escapar dessa cilada teórica, precisamos pensar a cultura

como um processo relacional e não quantitativo. Para Lotman (1999), ela pode

ser compreendida como um conjunto complexo que se desenvolve em diversas

velocidades, em movimentos heterogêneos e em contínua interação. Os

(32)

32

força de uma determinada sociedade.

Esses encontros fronteiriços e as consequências que advém

deles são um dos pontos chave de nossa investigação. Para isso, pensar a

partir do conceito de semiosfera, definido por Iuri Lotman, é fundamental para

nossa análise, que enfoca os encontros entre diferentes códigos culturais, as

relações entre os sistemas de signos e seus desdobramentos.

No existen por si solos en forma aislada sistemas precisos y funcionalmente unívocos que funcionan realmente. La separación de éstos está condicionada únicamente por una necesidad heurística. Tomado por separado, ninguno de ellos tiene, en realidad, capacidad de trabajar. Sólo funcionan

estando sumergidos en un continuum semiótico,

completamente ocupado por formaciones semióticas de diversos tipos y que se hallan en diversos niveles de

organización. A ese continuum, por analogía con el concepto

de biosfera introducido por V. I. Vernadski, lo llamamos semiosfera. (LOTMAN, 1996, p. 22)

O conceito de semiosfera trata de sistemas que não podem existir

separadamente, atomizados. Em sua perspectiva, estes só funcionam em um

contínuo/continuum semiótico, de formações e níveis diversos de organização.

Fora da semiosfera, espaço aglutinador de linguagens em que se processam

as semioses, não há significação possível. As fronteiras seriam espaços

tradutórios entre códigos distintos, "mecanismos bilíngues" que traduzem as

mensagens externas para a linguagem interna da semiosfera e vice-versa, o

que está no centro move-se em direção à periferia e os conteúdos da periferia

(33)

33

fuentes de los procesos dinámicos de la semiosfera" (LOTMAN, 1996, p.

29-30).

Nos espaços de fronteira entre um sistema cultural e outro ocorre

a conversão em informação dos elementos externos, sua semiotização. Esse

processo ocorre em meio a tensões, choques e cruzamentos que

potencialmente podem causar a geração de novos processos de significação,

que necessitam ser compreendidos para além dos campos em que se situavam

originalmente.

A partir do momento em que determinadas populações ou grupos

sociais adquirem conhecimentos para utilizar os suportes tecnológicos,

potencialmente podem experimentar maior liberdade na construção de suas

referências teóricas e práticas, desenvolvendo uma capacidade crítica em

relação à sua situação e àquilo que ocorre em seu entorno.

1.1 - TRÂNSITOS E INCORPORAÇÕES

As identidades indígenas são mais disseminadas que exclusivas,

constituídas a partir de tradições fragmentadas e, sobretudo, a partir da

assimilação de influências, de contágios e contaminações transculturais, num

processo sempre em construção, permeável a novos textos, contextos e

(34)

34

de substância e de eternamente igual a si mesmo, ou como fruto de uma

essência naturalmente dada. Não tratam de algo do sujeito como uma

substância fixa em determinada posição na linguagem, mas como uma

mobilidade constituída a partir da diferença, que permite perceber como

identidade e diferença são produtos conceituais da cultura.

A identidade e a diferença são frutos do mundo cultural e social,

resultados de um processo de formação simbólica, discursiva, imersas em um

campo de disputa, de relações de poder. Na contenda pela identidade está

envolvida uma disputa mais ampla por outros recursos simbólicos e materiais

das sociedades. Se pensarmos a luta por territórios em que os grupos

indígenas sujeitos dessa investigação (Ayoreo, Guarani e Terena) estão

envolvidos, percebemos claramente como se acentuam polarizações em torno

de ideias de desenvolvimento econômico que passam pela articulação de

discursos que criam comunidades como a “nação”, a “pátria”, os “habitantes

originais” e outros agrupamentos com pretensão de identidade.

A afirmação das identidades e a enunciação das diferenças

traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados,

de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. "O poder de definir a

identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações mais

amplas de poder. A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes"

(SILVA, 2000, p. 81). Daí a existência de segmentos que não reconhecem e,

mais que isso, combatem a mestiçagem, a transculturalidade, o hibridismo, os

(35)

35

recusa origina-se em narcisismo etnocêntrica, ameaçada pelas múltiplas

combinações e pelo caráter fluido que assumem as supostas identidades.

A utilização de conceitos como sincretismo, mestiçagem,

crioulização ou transculturação formam uma rede de conceitos em que se inclui

a hibridação, que buscam “liberar a análise cultural de seus tropismos

fundamentalistas identitários” (CANCLINI, 2003, p. XXIV). Para Canclini, a

hibridação diz respeito aos “processos socioculturais, nos quais estruturas ou

práticas discretas que existiam de forma separada, se combinam para gerar

novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2003, pág. XIX).

Nesse mosaico mestiço (PINHEIRO, 2006), em que a absorção

contínua do outro passa a ser característica imperativa, são gerados novos

textos culturais híbridos, que já não podem mais ser lidos separadamente.

Como assinala Barbero, "a cultura é menos a paisagem que vemos do que o

olhar com que a vemos" (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 47).

A vivência dos intercâmbios, da comparação e do confronto,

permite às comunidades indígenas um novo olhar sobre suas próprias

especificidades culturais, e representa para elas a oportunidade de reivindicar

um espaço próprio e garantias para um futuro mais digno.

A aquisição de um novo instrumental técnico desenvolve nas

comunidades uma capacidade crítica, além de impactos sociais, políticos,

cognitivos e, sobretudo, comunicativos da organização da vida cotidiana. As

(36)

36

reivindicam novos espaços, alterando até mesmo a sociabilidade nessas

sociedades. Mas elas podem ser incorporadas e se tornarem parte do

repertório corriqueiro das comunidades. Entre os Guarani e Terena, já é

comum que cada família tenha seu próprio televisor, podendo até existir mais

de um aparelho por família. Entre os Tenharim do Amazonas16, na aldeia do

Igarapé Preto, por exemplo, o aparelho televisor é de uso comunitário e fica

instalado em um espaço central da aldeia, no mesmo local onde ocorrem as

reuniões de liderança ou outros encontros políticos. O aparelho é ligado em

horários específicos e sintoniza especialmente o Jornal Nacional, a “novela das

oito” e jogos de futebol.

A manutenção de particularidades étnicas não depende do

isolamento. A cultura – que não é feita apenas de tradições – só existe como

movimento, em um contínuo semiótico, de formações múltiplas e possuidoras

de diversos níveis de organização, e os processos culturais se transformam

também no interior de suas práticas, no que Ianni chama de “comple o de

enigmas e contrapontos que desenvolve as identidades e alteridades, tanto

quanto as diversidades e desigualdades que configuram a pluralidade dos

mundos” (IANNI, 2000, p. 105).

O acesso aos meios tecnológicos constitui uma inovação que

interfere decisivamente na produção da cultura, justamente porque incentiva

sua permanente reelaboração, coloca o conhecimento em permanente

tradução. Para Peruzzo:

16

(37)

37 A participação das pessoas na produção e transmissão das mensagens, nos mecanismos de planejamento e na gestão do veículo de comunicação comunitária contribui para que elas se tornem sujeitos, se sintam capazes de fazer aquilo que estão acostumadas a receber pronto, se tornam protagonistas da comunicação e não somente receptores. (PERUZZO, 2002, p. 46)

Podemos exemplificar essa afirmação na análise da produção do

projeto Vídeo nas Aldeias17, precursor na área de produção audiovisual

indígena no Brasil. O acesso aos recursos audiovisuais ampliou as

possibilidades de comunicação, internas e externas, entre grupos indígenas

parceiros do projeto. O catálogo das produções somava 74 vídeos em outubro

de 2010, produzidos por 34 indígenas de 11 etnias. Na análise de Vincent

Carelli, fundador e coordenador do projeto:

Os registros em vídeo são principalmente utilizados em duas direções complementares: para preservar manifestações culturais próprias a cada etnia, selecionando-se aquelas que desejam transmitir às futuras gerações e difundir entre aldeias e povos diferentes; para testemunhar e divulgar ações empreendidas por cada comunidade para recuperar seus direitos territoriais e impor suas reivindicações. (GALLOIS; CARELLI, 1995b, p. 62)

17 O projeto Vídeo nas Aldeias nasceu em 1987, no Centro de Trabalho Indigenista (CTI), uma

(38)

38

Silvia Novaes comenta dois desses vídeos: Tem que ser Curioso

(16'. CTI. 1996) de Caimi Waiassé e Hepari Idub'rada - Obrigado Irmão (17'.

CTI. 1998), de Divino Tserewahu, ambos índios Xavante. Nas duas obras, a

trama gira em torno do interesse desses realizadores pelo registro em vídeo,

do significado da imagem audiovisual tanto para os velhos como para as

crianças de suas comunidades, "num tempo em que a memória é muito curta.

A imagem é aqui vista como depositária da memória, num tempo de rápidas e

intensas mudanças por que passam estas sociedades" (NOVAES, 2000, p. 3).

As produções audiovisuais indígenas podem introduzir novas

formas de produção e transmissão de conhecimentos, decorrentes de saberes

ancorados na memória, articulados com interesses do presente. Como afirma

Lotman "a memória não armazena os textos, ela os produz" (LOTMAN, 1996,

p. 158).

Podemos então pensar os aparatos técnicos como extensões da

memória, recursos para o registro e armazenamento de conhecimento,

capazes de propiciar a partilha de uma experiência vivida. Acompanhando um

grupo de índios Kanamari18 numa viagem a Manaus, percebi que um deles

fotografava muito durante toda a viagem. Pessoas, lugares, objetos.

Questionado se o fazia por estar impactado pela cidade, se lhe parecia tudo tão

diferente assim, respondeu-me que "era para não esquecer". Fotografava

porque tinha medo de não lembrar o que estava vendo, para depois mostrar à

família que havia ficado na aldeia. Também ficou famoso o gravador do

18 Os Kanamari são habitantes da região do Médio Juruá, no estado do Amazonas. Atuei na condição de

(39)

39

cacique da etnia Xavante, Mario Juruna, que exercendo mandato de deputado

federal (1983-1987) gravava os discursos de outras autoridades para, segundo

ele19, registrar tudo o que o branco diz e também para comprovar na terra

indígena sua atividade parlamentar na luta pelos interesses de seu povo e

também para confrontar os políticos com suas falas, para que eles

mantivessem seus compromissos.

No Paraguai, fui surpreendido por Mateo Sobode Chiquenoi, um

ancião, liderança do povo Ayoreo, que me propôs que registrasse em vídeo a

seguinte experiência: ele e um grupo de pessoas de sua família desejavam

passar uma semana embrenhados na selva chaquenha, vivendo como os

"antigos viviam", sem qualquer artefato industrial, caçando e coletando

alimentos na mata. Seu objetivo era realizar um documentário que pudesse

reproduzir a vida anterior ao contato, um modo que pra ele seria mais próximo

da "verdadeira" maneira de ser Ayoreo, distinta da vida a que quase a

totalidade de seu povo está submetida vivendo fora da floresta, sem terras

suficientes e tentando se inserir no mundo "branco".

Mateo pretendia reproduzir o documentário nas comunidades,

divulgando um modelo de vida que para ele seria o mais apropriado ao seu

povo. Apesar de minha adesão (mesmo que relutante), não foi possível criar as

condições para que esse projeto de documentário fosse levado adiante, o que

reforça a impossibilidade desse retorno ao “natural”, uma vez que para realizá

-lo necessitaríamos de recursos externos e apoio -logístico.

19 Depoimento prestado ao vídeo-documentário Juruna, O Espírito da Floresta, de Armando Lacerda,

(40)

40

Esse movimento nos leva a afirmar que, para esse Ayoreo, o

resgate de tradições seria a chave tradutória entre sua cultura e a dos não

indígenas. A busca de Mateo é por significações equivalentes, permitindo o

confronto e o hibridismo entre sistemas de sentidos diferentes nos quais está

inserido, bem como seu povo. Seu plano expressa a necessidade de se

reafirmar enquanto uma identidade coletiva diferenciada em relação aos não

indígenas (e também outros indígenas), buscando, no passado, a referência

para o modo de ser atual. Essas reafirmações identitárias, para Ianni, são

“ressurgências manifestas em conjunturas cr ticas, quando se abalam os

quadros sociais e mentais de referência, quando se criam novos impasses ou

multiplicam-se os novos horizontes” (2000, p. 105).

A identidade, como sublinha Guattari (1996, p. 68), é "um conceito

de referenciação, de circunscrição da realidade a quadros de referência,

quadros esses que podem ser imaginários". Trabalhamos com a perspectiva de

que as identidades são móveis, intercambiantes, inscrevem-se em zonas de

fronteira, nas quais os encontros com a diferença constituem novas

combinações que se articulam processualmente, como afirma Derrida no

conceito de différance20. Ao pensar acerca deste movimento de troca/tradução,

Derrida (1986) desenvolve o conceito de différance – um jogo com a palavra

francesa difference.

20

(41)

41

Différance remete ao mesmo tempo para o diferir como temporalização e para diferir como espaçamento [...] A

différance seria, pois, o movimento do jogo que produz as

diferenças, os efeitos de diferença. A différance não é mais

simplesmente um conceito, mas possibilidade de

conceitualidade, do processo e do sistema conceitual em geral. (OTTONI, 2005, p. 127)

Ao propor este conceito, Derrida sugere que toda cultura está em

processo de diferença/différance, sempre se transformando, sem se perder.

Neste movimento, em que o “eu” entra em contato com o “outro, o primeiro já

não é o mesmo e nem mais o segundo, pois neste percurso de contaminação

mútua, eles estão em cont nua transformação”. Para o autor:

Ater-se a pensar o seu outro: o seu próprio outro, o próprio do

seu outro, um outro próprio? Ao pensá-lo como tal, ao

reconhecê-lo, perdemo-lo. Reapropriamo-lo, dispomos dele, perdemo-lo ou, mais ainda, perdemo-nos (de) o perder, o que, quanto ao outro, vem dar sempre o mesmo. Entre o próprio do outro e o outro do próprio. (DERRIDA, 1986, p. 12)

Mas também sabemos que a primazia de determinadas

"identidades" é parte importante na estratégia de grupos minoritários para

organizarem-se e reclamarem para si direitos e protagonismo em suas relações

com outros grupos e, principalmente, junto ao Estado. Neste sentido, o que

interessa é saber como essas identidades são construídas e entendidas, bem

como o efeito que produzem sobre nós, sobre nossas vidas, sobre como

(42)

42

fossem um conjunto de traços fixos, nem afirmá-las como essência de uma

etnia ou de uma nação, por mais que, como afirme Viveiros de Castro (2002),

prevaleça um entendimento equivocado sobre o tema.

Entendemos que toda sociedade tende a perseverar no seu próprio ser, e que a cultura é a forma reflexiva deste ser; pensamos que é necessária uma pressão violenta, maciça, para que ela se deforme e transforme. Mas, sobretudo, cremos que o ser de uma sociedade é seu perseverar: a memória e a tradição são o mármore identitário de que é feita a cultura. Estimamos, por fim, que uma vez convertidas em outras que si mesmas, as sociedades que perderam sua tradição não têm volta. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 195)

Os exemplos citados revelam que o registro em vídeo é percebido

como importante recurso para a ideia de manutenção da tradição. Trata-se,

assim, de uma atividade absolutamente contemporânea, mas os fatores de

legitimação são os tradicionais. O vídeo21 utiliza em sua composição vários

códigos que os povos indígenas dominam (oralidade, gestualidade,

espacialidade), fazendo com que ele se assemelhe às suas tradições orais.

Para Gallois e Carelli:

Representa um curto circuito direto da cultura oral para os meios audiovisuais, sem passar pela escrita. E justamente por não passar por esta via individualizada de apropriação e transmissão de conhecimentos, potencializa processos tradicionais, como o debate coletivo da informação, no

21

(43)

43 momento da apropriação de novas informações. (GALLOIS; CARELLI, 1998, p. 4)

Podemos afirmar, de acordo com a definição de Pross (1997), que

os sujeitos dessa pesquisa, antes do contato privilegiavam a comunicação por

duas mídias: a mídia primária, que envolve os sentidos, a comunicação face a

face que não necessita de aparatos que não o próprio corpo e suas linguagens.

A outra seria a mídia secundária, que engloba máscaras, pinturas e adereços

corporais, que indicam que o corpo está utilizando ferramentas, no sentido de

aparatos ou suportes, para amplificar a força de suas mensagens no tempo e

no espaço.

No caso dessa pesquisa, investiguei populações que passaram a

lidar também com as mídias terciárias (os eletrônicos), em que todos os corpos

envolvidos no processo comunicativo precisam de ferramentas e, a partir delas,

transformam ambientes culturais tradicionais em ambientes novos, qualificados

a partir do domínio técnico. A linguagem audiovisual é um recurso de diálogo e

elaboração da própria percepção do mundo em que se vive.

Como afirma Machado (2007), para esses povos sem cultura

escrita, o vídeo atua como uma espécie de escritura que lhes permite

comunicar-se rapidamente com outras aldeias, com diferentes povos, registrar

a ação dos emissários junto às instituições de poder dos brancos (como forma

de prestar contas à tribo posteriormente) e angariar a adesão ou a

(44)

44

Muniz Sodré (2002) defende a proposta de que vivemos em um

biosmidiático, no qual a mídia é caracterizada como um dispositivo gerador de

realidade com poder simultâneo, instantâneo e global, que transforma as

vivências e os modos de acolher os fatos do mundo. Esse novo bios é a

sociedade midiatizada enquanto esfera existencial capaz de afetar as

percepções e as representações correntes da vida social, inclusive de

neutralizar as tensões do vínculo comunitário. Dessa forma, os vínculos

comunicativos se referem às relações ambientais mediadas por recursos

tecnológicos ou não e veículos eletrônicos e digitais que, na distância física real

ou virtual, geram ambientes bios midiáticos. O modelo socializante (família,

escola, igreja, etc., e, em nosso caso, as categorias sociais indígenas, os ritos

e tradições) entra em crise, em virtude das transformações da vida social e da

inserção do bios midiático.

A comunicação atua não somente como transmissora de

informação, mas também como um novo espaço e maneira de vida coletiva dos

indivíduos, permitindo outros parâmetros para a construção das identidades

pessoais. Para Flusser:

O caráter artificial da comunicação humana (o fato de que o homem se comunica com outros homens por meio de artifícios) nem sempre é totalmente consciente. Após aprendermos um código, tendemos a esquecer a sua artificialidade: depois que se aprende o código dos gestos, podemos esquecer que o

anuir com a cabeça significa apenas aquele “sim” que se serve

(45)

45 mundo da “primeira natureza”. (FLUSSER, 2007, p. 90)

Dessa forma, os vínculos comunicativos se referem às relações

mediadas por recursos tecnológicos ou não e veículos eletrônicos e digitais

que, na distância física real ou virtual, geram novas percepções ambientais,

novas informações. Para Ferrara:

Espaço de informação é aquele ambiente físico, social, econômico e cultural que agasalha um tipo de comportamento decorrente de um modo de vida, um modo de produção. Esses comportamentos revelam-se através de uma linguagem que tem como signos, usos e hábitos. (FERRARA, 1993, p.151)

Por meio de suas produções midiáticas, os indígenas realizam o

papel de mediadores entre os dois mundos por onde transitam, e o local de

pertencimento entre sua cultura e a cultura do outro está em permanente

Imagem

Foto 1 35                                                                          Foto 2

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