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D Quem disse povo europeu?

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Academic year: 2021

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Durante os últimos meses tenho vivido intermitentemente em Itália.

Quando cheguei, Romano Prodi ainda mandava num Governo instável e imprevisível como tem sido sempre a esquerda italiana. Até que um conflito interno com um dos ministros, o ruidoso Mantella, desuniu fatalmente o Governo, o Senado votou depois a demissão e o Parlamento acabou dissolvido. Berlusconi, como se sabe, ganhou com calma as eleições seguintes, para espanto de todos os que pela Europa fora acham justamente o conhecido empresário e homem dos media uma caricatura. Aos italianos não interessa muito que Berlusconi ataque a esquerda com tiradas de gosto duvidoso ou demonstre escassa compreensão pela diferença entre o interesse público e o interesse privado. O que essencialmente os preocupa é a restituição da autoridade do Estado e da estabilidade política e o líder da nova esquerda, Walter Veltroni, não lhes garantia isso. Na verdade, a Itália atravessa uma crise de confiança com muitos pontos de contacto com a realidade portuguesa. Os políticos não são melhor vistos aqui do que em Portugal.

Um tema essencial para se perceber as últimas eleições e toda a contestação ao Governo Prodi: a imigração. Recordo uma entrevista que o ex-primeiro-ministro deu, antes da demissão, ao Financial Times sobre as mudanças legislativas em Itália no domínio da imigração. Prodi disse, por exemplo, que os três milhões de imigran- tes que entraram em Itália nos últimos anos causaram um «impacto psicológico e social incrível». Confessava que viu o primeiro estrangeiro quando tinha 6 anos (e quantos portugueses não diriam o mesmo?). A Itália não é a mesma. Mas também disse o seguinte: queixando-se do movimento maciço – «que ninguém espe- rava» – de romenos que chegou a Itália desde que a Roménia aderiu à União Euro- peia, sugeriu que se repensassem as regras que regulam a livre circulação de cidadãos comunitários para facilitar as repatriações e o controlo dos fluxos. Não vieram por acaso estas declarações: a animosidade em Itália contra os imigrantes romenos aumentou no último ano por causa da par- ticipação de alguns nacionais daquele país em crimes violentos. «In Italia si con- somme, si paga», ouvi eu aqui há uns

C A R T A d E I T á L I A

Quem disse povo europeu?

Pedro Lomba

relações internacionais junho : 2008 18 [ pp. 129-131 ] 129

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relações internacionais junho : 2008 18 130 meses num café de Florença no meio de

acesa discussão entre um romeno e o dono de um café.

A Europa tem acreditado que o projecto de alargamento das suas fronteiras resolve naturalmente problemas difíceis de imi- gração dentro do espaço europeu. Num certo sentido, um dos motivos para o sucesso da integração europeia, além da criação do mercado único, esteve sempre na adesão pragmática, por vezes determi- nista, que a ideia sempre recebeu dos paí- ses mais pobres, interessados em subir os seus padrões de vida e, como nós nos habi- tuámos a dizer, em viver «à europeu».

A Europa tem assentado num compro- misso entre a lógica económica do mer- cado comum e a aposta desenvolvimentista na coesão dos novos estados-membros.

Quanto mais coesos e próximos do nível médio dos europeus fossem esses novos países, mais as suas populações se fixa- riam nos respectivos países, contribuindo para um certo equilíbrio social dentro da União. Foi assim quando a Europa come- çou por se expandir para os países pobres do Sul da Europa, entre eles Portugal. Com o fim do Bloco de Leste, a integração dos antigos países comunistas também se tor- nou inevitável e, como Joschka Fischer disse uma vez, uma questão de justiça his- tórica.

No caso português, mesmo que a percep- ção de viver «à europeu» esteja em crise por causa da nossa proverbial estagnação económica, a verdade é que entre as várias virtudes da nossa entrada na Europa houve uma óbvia: deixámos de ser um país de emigração, um país de fuga e exportação de mão-de-obra pouco qualificada. Passou

a ser possível viver em Portugal, usar as oportunidades do país e sentir que, ano após ano, a vida melhorava e íamos con- vergindo com a Europa. Em teoria dispú- nhamos de liberdade de circulação dentro da União, mas uma vez que as pessoas não circulam, por razões óbvias, como as mer- cadorias, o que tínhamos a ganhar em estar na Europa consistia precisamente em não ser imperativo circular. A Europa per- mitia-nos permanecer, com vantagem, em Portugal. Curiosamente, neste sentido a europeização de Portugal fez de nós mais

«portugueses».

Neste momento, o cenário de dificuldades que a Itália tem tido com os seus imigran- tes romenos fornece-nos o exemplo oposto. Os romenos não se deixaram ficar pela Roménia. Milhares continuam a entrar em Itália fugindo à pobreza e ao desemprego. Como cidadãos comunitários usam legitimamente a liberdade de cir- culação. E, no entanto, a circunstância de um grupo evidentemente restrito de cida- dãos romenos ter mostrado problemas de integração no país acolhedor, levantou a dúvida nos italianos sobre por que motivos hão-de estes imigrantes comunitários gozar do direito de livre circulação. Res- trições e desvios à livre circulação come- çaram a ser equacionadas. As recentes investidas do Governo de Berlusconi têm tudo a ver com isso.

Este é mais um teste à capacidade de a União Europeia estabelecer compromissos.

Em abstracto, não é, de facto, aceitável a conversão da liberdade de circulação numa liberdade menor para alguns europeus.

Não foi para isso que se criaram as famo- sas liberdades comunitárias. A prazo,

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Quem disse povo europeu? Pedro Lomba 131 a criação de classes de cidadania europeia

poderá pôr em causa a própria ideia de cidadania europeia. Mas há duas lições de tudo isto que convém tirar para quem acre- dita que a política deve ser, acima de tudo, a arte da prudência. Em primeiro lugar, os futuros alargamentos da Europa precisam de ser decididos com máximo cuidado no sentido de oferecer às populações dos esta- dos que entram expectativas legítimas e

realistas de desenvolvimento interno.

Segundo, os estados-membros europeus precisam de cooperar activamente entre si na questão da imigração interna, regulando os fluxos migratórios em conjunto e con- certando posições. A Europa precisa de mais imigração e circulação. Mas o equilí- brio realista de todos os estados neste tema é a única forma de evitar derivas anti-imi- gração em cada um deles.

Referências

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