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A era da pilhagem. Ruy Braga

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Academic year: 2021

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A era da pilhagem

Ruy Braga

Desembarquei em Curitiba na manhã seguinte à brutal repressão promovida pelo governo do tucano Beto Richa aos professores e servidores estaduais que protestavam em frente à Assembléia estadual contra a votação do projeto de lei que alterou a Paranaprevidência. Ao participar de uma assembléia de servidores da Universidade Federal do Paraná, pude ouvir os dramáticos relatos sobre a violência policial do dia anterior.

Vi de perto os hematomas deixados pelas balas de borracha e os cortes causados pelos estilhaços das bombas de fragmentação nos servidores federais que estavam no protesto. Entre perplexo e indignado, descobri que o governo estadual trouxe tropas de choque de várias regiões do Estado pra reforçar o efetivo de 1.500 policiais em frente ao parlamento. Atônito, soube que todo o estoque de gás lacrimogêneo do Paraná esgotou-se em apenas duas horas. A nuvem de gás criada pela PM obrigou a evacuação às pressas de uma creche na região.

A escala da violência política contra uma multidão formada por professores e servidores públicos, muitos deles, eleitores de Beto Richa, não deixa dúvidas a respeito da importância da votação do projeto de lei que muda o regime previdenciário dos servidores paranaenses. Trata-se basicamente da pilhagem de direitos sociais em benefício do pagamento da dívida pública estadual. Ainda estava na cidade quando o governador sancionou o projeto. Ou seja, a brutalidade policial assegurou o roubo das aposentadorias e das pensões dos servidores.

A “Batalha de Curitiba” seria um acontecimento isolado não

fosse o fato de que a espoliação dos direitos sociais e

trabalhistas a fim de pagar juros e amortizações da dívida

pública ter se transformado na principal estratégia social de

(2)

acumulação do modelo de desenvolvimento brasileiro. Guardadas as devidas diferenças e semelhanças, a mesma lógica financeirizada de acumulação por espoliação norteia os atuais ataques do Governo Federal por meio da aprovação das Medidas Provisórias (MPs) 664 e 665 contra os direitos previdenciários dos trabalhadores, como o seguro-desemprego e a pensão por morte. Às MPs, soma-se o Projeto de Lei (PL) 4330, em tramitação no senado, cujo sentido consiste em rebaixar o custo da força de trabalho brasileira por meio da degradação do acesso dos trabalhadores aos seus direitos trabalhistas. Ao fim e ao cabo, não parece haver mais dúvida sobre o que se passa no país. Transitamos de um regime de acumulação apoiado predominantemente na exploração do trabalho assalariado barato para um regime de acumulação focado na espoliação dos direitos dos trabalhadores.

Evidentemente, isto não implica que a exploração do trabalho assalariado barato tenha perdido centralidade. No entanto, t e n d o e m v i s t a o p r o l o n g a m e n t o d a c r i s e e c o n ô m i c a internacional somado à dificuldade do atual regime de acumulação em acomodar os conflitos trabalhistas decorrentes da ampliação do assalariamento formal da última década – não nos esqueçamos do atual pico histórico grevista –, o Governo Federal, respondendo às pressões da oligarquia rentista, decidiu orquestrar uma brusca mudança nos rumos da economia. A prioridade voltou-se para o reforço dos alicerces da acumulação por espoliação, ou seja, a mercantilização do dinheiro, da terra e do trabalho. Naturalmente, isto já ocorria antes. Mas, vale lembrar que alterações quantitativas provocam mudanças qualitativas. E, sem dúvidas, entramos este ano em uma quadra histórica diferente da anterior.

U m a j u s t e f i s c a l d e 7 0 b i l h õ e s d e r e a i s a t i n g i n d o

prioritariamente os investimentos em educação e saúde somado

ao plano de privatização das infraestruturas nacionais

a n u n c i a r a m e s t a n o v a e r a q u e s e r á c o r o a d a p o r u m a

transformação estrutural do mercado de trabalho brasileiro,

(3)

caso o PL 4330 seja aprovado. Finalmente, as sucessivas elevações da taxa básica de juros selaram o caixão do neodesenvolvimentismo esboçado no primeiro governo de Dilma Rousseff. Para as viúvas deste modelo que acreditaram no tom de ricos contra pobres da última campanha petista, ficará sempre a lembrança da “demissão” de Guido Mantega um mês antes do primeiro turno. Àquela altura, alguém imaginou seriamente que Dilma pretendia trocar Mantega por Belluzzo? Na verdade, a transição entre os modelos já estava selada.

Tradicionalmente, o marxismo tendeu a interpretar a passagem da acumulação primitiva escudada na violência política condensada no Estado para a forma industrial do capital apoiada na violência econômica da exploração do trabalho assalariado como uma transição sequencial. Em sua clássica interpretação do imperialismo, Rosa Luxemburgo

1

foi quem primeiro aventou a hipótese de uma reinvenção mais ou menos permanente da estratégia da acumulação por espoliação. David Harvey

2

atualizou recentemente a teoria luxemburguista a fim de descrever a estratégia predominante da acumulação durante o período da crise do neoliberalismo.

Apesar de reconhecer certos exageros na bem-sucedida análise

de Harvey, alguns deles já sublinhados por Ellen Meiksins

Wood

3

, entendo que a plasticidade das relações de exploração

capitalistas somada ao caráter cíclico da economia mercantil

tornam factível a convivência íntima e complementar das

diferentes estratégias sociais de acumulação. Tendo em vista a

multiplicidade dos ritmos, desiguais, porém combinados, que

regem a relação de forças entre as classes, além das

dificuldades derivadas do processo de recomposição permanente

da divisão internacional do trabalho, é expectável que ocorram

oscilações mais ou menos frequentes do polo da exploração para

o da espoliação, e vice-versa, no tocante à direção geral do

regime de acumulação. Em minha opinião, o atual ajuste

promovido pelo Governo Federal dialoga com esta dinâmica.

(4)

Evidentemente, nada está decidido em definitivo e a forma da transição geral rumo à centralidade da pilhagem dos direitos e da violência política sobre os trabalhadores vai depender dos desdobramentos das lutas sociais no país. Daí a importância do dia nacional de paralisação e manifestações rumo à greve geral convocado pelas centrais sindicais CSP-Conlutas, CTB, CUT, Nova Central, UGT e Intersindical, para o dia 29 de maio.

Ademais, caso a hipótese da acumulação por espoliação esteja correta, arriscaria dizer que o modo de regulação lulista está com os dias contados. Afinal, se a especificidade do atual regime hegemônico repousa na articulação entre o consentimento passivo dos subalternos e o consentimento ativo das direções dos movimentos sociais, como o modo de regulação irá se reproduzir sem a concordância “dos de baixo” seguida pela intensificação da pressão destes sobre as lideranças dos movimentos sociais? Ao que tudo indica, a era da pacificação social ficou pra traz, sepultando a hegemonia lulista.

Ainda é possível que o PT se reaproxime das expectativas populares sob ataque do Governo Federal? Hipoteticamente, sim.

No entanto, isso suporia um afastamento traumático em relação ao seu próprio governo, decretando o colapso do consentimento ativo das direções. Convenhamos, trata-se de um cenário pouquíssimo provável. Então, afinal, o que o futuro nos reserva? Em seus Cadernos do cárcere, Antonio Gramsci definiu hegemonia como “força revestida de consenso”. Durante períodos de crise orgânica, quando o consenso recua e a força avança, o conteúdo autoritário da estrutura capitalista revela-se com mais clareza. A militarização do conflito social insinua que a transição para um modelo apoiado na pilhagem dos direitos sociais e trabalhistas já começou. E o mais provável é que batalhas populares como as de Curitiba multipliquem-se pelo país afora, comprovando a chegada da era da pilhagem ao país.

* Este artigo foi originalmente publicado no blog da Boitempo,

dia 25/05/2015

(5)

NOTAS

1

Rosa Luxemburgo descreveu o processo de acumulação em países como a Índia e a China, enfatizando a mercantilização da terra e a criação das condições para o desenraizamento dos trabalhadores de suas comunidades rurais originárias, assim como sua posterior proletarização. Para tanto, Rosa destacou a centralidade da violência política e o necessário papel cumprido pelo militarismo no ciclo da acumulação capitalista.

Para mais detalhes, ver Rosa Luxemburgo. A acumulação do capital: contribuição ao estudo econômico do imperialismo. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

2

Ver David Harvey. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2009.

3

Ver Ellen Meiksins Wood. O império do capital. São Paulo:

Boitempo, 2014.

“A Greve Geral contra a PL das Terceirizações é um instrumento importante a ser construído”

Confira a segunda parte da entrevista do professor da USP e

sociólogo Ruy Braga, dada logo após à aprovação do Projeto de

Lei das Terceirizações, exclusivamente para o Blog

Convergência. A primeira parte da entrevista pode ser lida

(6)

aqui.

Aldo Sauda: Desde nossa ultima conversa, aprovou-se no congresso a PL da Terceirização, com apoio de todos os partidos da base governista, a exceção do PT e PC do B. Ao mesmo tempo, o governo, pelo Ministério da Fazenda, participou intensamente das ultimas negociações em torno da PL, preocupado com a arrecadação de impostos. Qual foi a postura do governo Dilma e o que ele mudou no projeto?

Ruy Braga: Em primeiro lugar, é preciso ter claro que a votação da PL da Terceirização ocorre em um contexto marcado por ataques e pela ofensiva patronal contra os direitos dos trabalhadores. O primeiro movimento deste ataque foi dado pelo próprio governo Dilma, quando no final do ano passado, no dia 30 de dezembro, o governo editou duas medidas provisórias, a MP 664 e MP 665, cujo sentido básico era endurecer as regras de acesso dos trabalhadores a certos direitos, especialmente o direito ao seguro-desemprego. Foi isto que sinalizou o inicio de uma nova ofensiva contra os trabalhadores. A aprovação de ontem da PL das Terceirizações, do antigo deputado Sandro Mabel, que nem mais deputado é, se soma a outros ataques contra o direito dos trabalhadores inaugurando uma nova etapa para o mundo do trabalho brasileiro.

A postura do governo, que, diga-se, iniciou estes ataques, foi

a pior possível. A rigor a única medida empreendida foi uma

tentativa de negociação com o dep. Eduardo Cunha pelo ministro

Joaquim Levi, a fim de minimizar os impactos fiscais na

arrecadação. Propunham que a arrecadação de PIS, Cofins, FGTS,

etc, ficasse com a empresa contratante, pois as empresas

terceirizadas pagam menos impostos devido ao rebaixamento

salarial e existe muita evasão fiscal neste “mundo-cão” das

empresas terceirizadas. Diga-se de passagem, nem isto o

governo conseguiu!

(7)

Evidentemente, isto mostra de que lado o governo está. No essencial, concorda com o projeto de lei. No entanto, preocupa-se com o impacto que isto terá sobre a arrecadação. A postura do governo, indiscutivelmente, foi a pior possível.

A: O que, de fato, mudou na lei?

R: Bem, em relação ao que temos hoje, os ajustes negociados no congresso são, de fato, meros detalhes. Não há nada de importante que tenha sido alterado no projeto. Projeto este que estabelece um marco político para a aplicação da flexibilidade, em outras palavras, a precarização da forca de trabalho no Brasil nas suas múltiplas dimensões. No aspecto salarial, na jornada de trabalho, e até mesmo na dimensão sócio-ocupacional. Você tem ai não apenas o estabelecimento de uma política que vai favorecer em muito as empresas, pois vai efetivamente rebaixar os salários, quando ao mesmo tempo inicia-se uma era em que muitas empresas não terão mais trabalhadores diretamente contratados, o que é uma tragédia.

O salário dos trabalhadores terceirizados, que são em media 30% menos que dos trabalhadores diretamente contratados, os acidentes e as mortes, acontecem majoritariamente nos setores terceirizados. A jornada de trabalho também estará mais

“flexível”, o que significa que serão mais longas. Você terá

uma jornada de trabalho, em média, com 3, 4 horas a mais por

semana. Uma serie de problemas relativos a construção de uma

identidade coletiva do trabalho, problemas relacionados à

organização e à auto-organização sindical, dificuldade enorme

de representação sindical efetiva entre os trabalhadores

sindicalizados, fragmentados em muitas entidades. Em suma, uma

série de problemas. Há também o tema do desemprego. Diz-se

muito que a terceirização cria empregos, mais isto não é

verdade. A duração da jornada de trabalho dos trabalhadores

terceirizados é maior. Caso a terceirização no país fosse

proibida hoje, você criaria pelo menos 1 milhão de empregos

formais devido à diminuição da jornada coletiva de trabalho. A

terceirização não é estratégia de criação de emprego, ela é

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uma estratégia de precarização da força de trabalho no Brasil.

A: como você avalia a postura do congresso? Quando conversamos há alguns dias atrás, você imaginava que a votação seria esta lavada?

R: Estávamos, como havia dito, na iminência de uma derrota histórica. Este congresso é absolutamente refratário aos interesses dos trabalhadores. Basta você ver o que está em pauta e sendo encaminhado pelo deputado Eduardo Cunha, que é um político extremamente reacionário. Evidentemente este projeto de lei que favorece os interesses empresariais será apoiado por um grande número de deputados e senadores eleitos com o dinheiro destes mesmo empresários. Não há hipótese de não aprovar isto na Camara, e acredito que ocorrerá algo semelhante no Senado, talvez com uma votação proporcionalmente não tão grande, mas este é o sentido das coisas, por mais trágico que isto seja.

Tenho afirmado que estamos na iminência de uma derrota histórica. Esta derrota esta se consubstanciando na maior derrota da classe trabalhadora desde 1964. Digo isto porque politicamente temos hoje uma ofensiva em grande escala, generalizada, das forças antagônicas ao trabalho no contexto político-nacional. Ao mesmo tempo, quando fiz esta afirmação, estava pensando na aprovação do Congresso Nacional da lei do FGTS, pela ditadura militar em 66 que acabou com a estabilidade no emprego e institucionalizou a rotatividade do trabalho, uma das marcas da ditadura civil-militar no país.

Algo semelhante está acontecendo agora, mas num governo do PT.

A: o que falta para o ataque se concretizar?

R: Falta ser votado pelo Senado e sancionado pela presidente

da Republica. Pode haver algumas pequenas modificações, nada

de substantivo, mas acredito que será aprovado porque o

governo é basicamente o governo do PMDB, que está empenhado em

aprovar o projeto. O curioso é que a Dilma terceirizou a

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presidência para o Temer um dia antes do congressou aprovar o PL das terceirizações.

A: Existe chance do projeto ser barrado pela presidente Dilma?

R: Mínima. Da maneira que está, é possível que ainda haja algum tipo de negociação por conta dos impactos fiscais, pois o governo perderá arrecadação, mas na essência, não acho que o projeto será barrado pela presidenta.

A: O que a nova lei muda em relação à organização sindical?

R: A lei é péssima para a organização dos trabalhadores. Temos de entender que muito provavelmente, no médio prazo, você vai ter 30 milhões de trabalhadores terceirizados. Haverá um aumento dos 12 milhões de hoje para 30 milhões caso a lei seja aprovada. Isto significa uma inversão daquilo que existe no mercado formal deste país. Atualmente, 50 milhões tem carteira assinada e 12 milhões são terceirizados. Isto vai se inverter, vão ser 30 milhões com terceirizados, e 20 milhões com emprego regular, concentrados no serviço publico, sobretudo, além dos setores que tem representação sindical mais forte.

Para o movimento sindical obviamente isto será devastador. O trabalhador terceirizado praticamente não tem acesso à organização sindical, afinal, quantos destes sindicatos de fato existem? Os sindicatos de terceirizados são muito frágeis, sindicatos que muitas vezes são instrumentos do p a t r ã o c o n t r a a o r g a n i z a ç ã o d e s t e s t r a b a l h a d o r e s terceirizados.

Por outro lado, você terá queda de arrecadação. A base dos sindicatos vai ser erodida progressivamente. O PL deixa o sindicalismo em uma situação absolutamente frágil.

A: A CUT organizou pequenas manifestações nacionais, uma em

B r a s í l i a n a f r e n t e d o C o n g r e s s o , c o n t r a a P L d a s

(10)

terceirizações. Anunciou-se que a direção da CUT pretende organizar uma greve geral dia 15 de Abril. A CUT tem fôlego para chamar uma greve geral no Brasil hoje?

R: É difícil dizer. Imediatamente talvez não, mas não descartaria a força que a CUT tem. Ela representa 33% dos trabalhadores sindicalizados no país. Isto não é pouca coisa.

Podemos dizer o seguinte, que a CUT não tem força o suficiente para chamar uma greve geral, mais qualquer greve geral passará pela CUT.

A: E qual sua avaliação deste chamado?

R: Avalio que qualquer iniciativa que se coloque na perspectiva de derrotar este projeto de lei é bem-vinda. A greve geral contra a PL das Terceirizações é um instrumento importante a ser construído. Neste momento não há espaço para sectarismos, temos de somar forças com as centrais, agrupamentos políticos e partidos dispostos a derrotar o projeto de lei.

Como afirmei, este projeto institucionaliza uma nova era, extremamente regressiva, nas relações trabalhistas deste país, algo inadmissível para os trabalhadores. Portanto, todos aqueles que estiverem contra o projeto de lei devem ter lugar num movimento nacional para derrotar este projeto.

“Estamos na iminência da

maior derrota da classe

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trabalhadora desde a ditadura militar”

Na véspera da votação do Projeto de Lei das Terceirizações e da PEC do Seguro-Desemprego, o professor da USP e sociólogo Ruy Braga fala do significado destes ataques a classe trabalhadora brasileira para o Portal do PSTU. A segunda parte da entrevista, dada logo após à aprovação da PL das Terceirizações, pode ser lida aqui .

PORTAL DO PSTU: Explique para nós o significado da PEC 664 e 665, de retirada de direitos do seguro-desemprego, e qual a intenção do governo por detrás dela?

RUY BRAGA: Importante destacar que o mercado de trabalho brasileiro nos últimos 12 anos tem se caracterizado pela elvação das taxas de rotatividade. Isto obviamente denota um aprofundamento da deterioração das condições de trabalho.

Quando se tem taxas de rotatividade muito elevadas combinadas com baixas taxas de desemprego, significa, em geral, que as empresas procuram alcançar ritmos mais intensos de produtividade por meio da intensificação dos ritmos e do consequente manejo degradante da força de trabalho.

As empresas contratam, intensificam o trabalho, e quando os

trabalhadores deixam de dar os resultados esperados por conta

da pressão pelos resultados, elas demitem. Isto é uma regra

hoje no mercado de trabalho brasileiro principalmente no

tocante às atividades de baixa qualificação e principalmente

no setor de serviços, que sustenta as taxas mais elevadas de

rotatividade. Como na legislação brasileira havia, pela regra

antiga, uma proteção para o trabalhador que ficou mais de 6

meses empregado com carteira de trabalho assinada – o seguro-

desemprego – a elevação da rotatividade naturalmente amplia a

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demanda pelo seguro.

Dentro do último ciclo econômico, o trabalhador tem ficado cerca de 14 meses empregado em mpedia, uma vez demitido, fica entre 2 a 3 meses vivendo do seguro desemprego e tentando recuperar a saúde pelo SUS até conseguir um novo trabalho.

Isto pressiona a previdência social, por isto, o governo decidiu endurecer as regras de acesso ao seguro-desemprego, tornando o acesso cada dia mais restrito. Isto naturalmente terá um impacto sobre uma massa de trabalhadores subempregados que normalmente são semiqualificados ou não qualificados, de maneira geral, e trabalham sobretudo no setor de serviços. O governo, com estas medidas, busca fazer uma economia de gastos com direitos sociais às custas do aumento da exploração e da degradação do trabalho assalariado.

PORTAL DO PSTU: Qual o perfil dos mais afetados pela medida?

RUY BRAGA: Nos últimos 12 anos esboçou-se nitidamente um perfil de trabalhadores que acendem ao mercado de trabalho e conquistam o emprego formal, formado por um crescente asslariamento feminino. Cerca de 63% das carteiras de trabalho assinadas nos últimos anos foram assinadas para mulheres. Há também um número crescente de trabalhadores não brancos. A maior parte do emprego formal foi ocupado por estes grupos de trabalhadores.

Percebe-se também nitidamente no padrão de assalariamento um deslocamento daquela faixa entre 25 – 30 para uma fatia mais jovem, com crescente participação de jovens no trabalho entre 18 e 24 anos. Estas características apontam para um perfil:

trabalhador no setor de serviços, mulher, não branco, mais jovem, e finalmente, um tipo de trabalho mais ‘escolarizado’.

A ampliação do acesso – e não universalização, posto que isto

nunca aconteceu – ao ensino médio, implica que uma parcela

cada vez maior de jovens terminam o ensino médio, passando a

(13)

ocupar estes postos de trabalho em condições cada vez mais precárias.

É importante destacar que o trabalho formal hoje paga muito mal. Apenas no ano passado, para citar dados do Caged, 97.5%

dos postos com carteira assinada remuneravam até 1.5 salários mínimos, com um acentuado aumento da participação da faixa que paga meio salário mínimo, subcontradado e subremunerado. Ou seja, as condições vão se deteriorando, o número de terceirizados aumenta, assim como aumenta igualmente o número de acidentes de trabalho.

PORTAL DO PSTU: Como explicar a ampliação de jovens nas universidades com um mercado de trabalho cuja expansão precarização não exigiu maior formação profissional?

RUY BRAGA: Há uma tremenda contradição no atual modelo de desenvolvimento. Os motores da acumulação dos últimos 12 anos, concentram-se em setores que não empregam trabalho especialmente qualificado, tais como o agronegócio, o setor de serviços, a indústria financeira, os call centers, isto é, o telemarketing, além da construção civil e pesada e do petróleo. Estes são geralmente setores que não exigem qualificação especial.

Os empregos melhor remunerados, por via de regra, concentram-

se ao longo de cadeias produtivas mais longas. Isto significa

que quanto maiores as cadeias, mais chance haverá de se

incorporar o emprego qualificado. O que aconteceu no Brasil

n o s ú l t i m o s 2 0 a n o s p e l o m e n o s , é q u e a s c a d e i a s

intermediárias foram sendo destruídas levando-se em conta o

processo de declínio na participação da indústria de

transformação, em especial em metal-mecânica, no PIB. Este

tipo de emprego migrou para locais como Europa, Estados

Unidos, mesmo a China, Portanto esta nova inserção do Brasil

na divisão internacional do trabalho privilegia setores

(14)

primários exportadores, em particular a mineração, agroindústria, construção civil e pesada, não privilegiando o emprego qualificado.

Ao mesmo tempo ocorreu outra tendência. A sociedade evoluiu rumo ao aumento dos investimentos em educação que foram garantidos pela Constituição de 1988, ou seja, vinculados ao orçamento público, assim como ao acesso mais amplo das famílias trabalhadoras e dos mais jovens à educação.

Consequentemente houve um aumento do tempo de permanência na escola. No final, há um conflito entre uma economia que se especializa em criar empregos que exigem pouca qualificação e, de outro, uma parcela crescente da população mais escolarizada que a geração anterior. Isto não significa mais qualificada para o trabalho por uma simples razão: a qualificação profissional tem características distintas da escolarização formal. Há uma carência notória de quadros técnicos intermediários em alguns setores e uma baixa oferta de trabalhadores em setores técnicos. O jovem que se forma em uma escola técnica, por exemplo, ganha cerca de 14% a mais que o jovem formado em uma escola colegial. Estas contradições continuam se acumulando tendo em vista a incapacidade da economia brasileira criar empregos que exigem qualificação e salario melhor.

PORTAL DO PSTU: Como compreender a PEC das empregas domesticas, recém-regulada no Congresso, e que foi apresentada e apoiada pelo governo, com os atuais ataques contidos na MP 664 e 665?

RUY BRAGA: São dois momentos diferentes de um governo que mudou acentuadamente e pra muito pior. Ou seja, há inflexões.

A PEC, apesar de discutida agora pelo Senado, foi proposta no

final do segundo ano do governo da Dilma. Aquele era um

momento em que o governo ainda flertava com uma via de

fortalecimento dos setores com carteira assinada. Havia uma

(15)

resposta à pressão de suas bases sociais, principalmente setores do PT e da CUT, em suma. Agora estamos em outro momento totalmente diferente, isto é, entramos na era da austeridade. O ônus da crise está recaindo exclusivamente nas costas dos trabalhadores pela via do desemprego e do ataque aos direitos trabalhistas. E isso é simplesmente inadmissível.

Precisamos lutar contra isso até nossas últimas forças.

Uma observação lateral, pois é importante destacar que a PEC das empregadas domésticas não cria nenhum direito novos, simplesmente equipara o maior grupo sócio-ocupacional da classe trabalhadora brasileira, com cerca de 7.2 milhões de pessoas, aos direitos já garantidos pela CLT. Não há propriamente a criação e direitos novos, mas a equiparação do que já existe. Por conta da jornada de trabalho e da formalização, seguridade social e aposentadoria é uma medida importante. Em São Paulo, no mercado mais desenvolvido do p a í s , a p e n a s 3 6 % d a s t r a b a l h a d o r a s d o m e s t i c a s s ã o formalizadas, o que é muito pouco. Se é assim em São Paulo, imagine no resto do país. Isto faz da PEC uma medida de fato excepcionalmente importante. Obviamente passou pela cabeça do governo um calculo eleitoral, afinal são 7.2 milhões de pessoas. No entanto, agora, vivemos outro momento.

Passamos de um esboço imperfeito, cheio de contradições, de um

neo-desenvolvimentismo, com alguma intervenção do Estado em

certos setores chave, principalmente de energia, com preços

regulamentados, e uma política industrial capenga,

problemática, mas com um esboço de uma política industrial,

para um rentismo, financismo, mercantilização do trabalho,

ataques a direitos trabalhistas em nome do combate a inflação

sob o argumento da retomada do crescimento econômico. Vale

destacar que não acredito que será possível retomar o

crescimento por meio destes instrumentos que fortalecem o

rentismo e aprofundam o neoliberalismo no país.

(16)

PORTAL DO PSTU: Foi publicado na imprensa que o senador do PT do Rio Grande do Sul, Paim, reuniu-se com Lula e Dilma ameaçando romper com o PT caso a PEC 664 e 665 fosse ate o final. Há alguma possibilidade do governo recuar da medida por medo de perder ainda mais sua base e a crise no partido?

RUY BRAGA: Não acredito. Acredito que o governo possa negociar. As medidas já estão implementadas, já estão valendo.

Acredito que se o governo ceder, será muito pouco e apenas para acenar para suas bases sociais com alguma medida simpática. Mas acredito que não, que o governo deverá manter na essência estas medidas como elas estão agora.

PORTAL DO PSTU: Qual o peso das MPs com o atual desgaste da presidente Dilma?

RUY BRAGA: Esta é uma pergunta difícil, mas entendo que não houve tempo suficiente para haver uma compreensão mais profunda entre os trabahadores a respeito do real significado destas medidas, principalmente as MPs 664 e 665. Mas, de fato, são projetos de lei que irão aprofundar ainda mais um descontentamento, já muito alto, que tem a ver com um cenário de contração econômica, um clima generalizado de pessimismo, medo entre trabalhadores a respeito do desemprego, alta da inflação, etc. Entendo que, no atual momento, pelo menos, isto seja mais importante que o impacto da MP 664 e 665. Agora, o impacto delas virá. Conforme as pessoas forem sendo demitidas, haverá uma inconformidade maior com a perda deste direito básico. No entanto, a impressão que tenho é que a massa da população acumula esta tensão com o governo há mais tempo.

Usei este argumento para explicar o fenômeno Marina Silva nas

eleições passadas, e do próprio Aécio Neves, que na faixa

entre 2 e 5 salários mínimos – em que se acumula praticamente

metade do precariado brasileiro – este mal estar já era

sensível. Nesta faixa salarial, Aécio cresceu e bateu Dilma no

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primeiro turno, perdendo no segundo. Desde aquele momento percebia-se nitidamente que existe um descompasso entre as promessas do governo e de fato o que estava sendo entregue.

Porque Dilma ganhou o segundo turno nesta faixa? Para a massa desta população você teve uma campanha, e foi isto que Dilma fez para ser eleita, em que a presidente sistematicamente dizia que não aumentaria tarifas, que não haveria aumento de desemprego, e que as medidas de austeridade não seriam adotadas, eram coisa de Aécio, etc. Esta massa votou na Dilma seduzida por este fio de esperança na promessa da presidente.

Imediatamente depois de ser eleita, Dlima mudou radicalmente de posição, adotando o programa do candidato derrotado. Isto é, a rigor, o que afastou totalmente o governo da massa trabalhadora com estas características que elenquei anteriormente.

PORTAL DO PSTU: Como a MP do seguro-desemprego se relaciona com os outros ataques a direitos dos trabalhadores que vem sendo articulados no Congresso, como a PL 43/30, do deputado Sandro Mabel, que elimina as barreiras da terceirização e que será votada dia 7?

RUY BRAGA: Neste contexto de ataque do governo aos direitos sociais existe a iminência de se aprovar a reforma trabalhista brasileira que FHC tentou aprovar nos anos 90. Ou seja, travestida de medida que busca modernizar ou regulamentar a terceirização, a rigor, o que se faz é eliminar qualquer tipo de entrave jurídico à terceirização. Pretende-se acabar com qualquer diferenciação entre atividades meio e atividades fim que os tribunais do trabalho seguiam como regra geral para julgamentos relacionados a este tema.

É real a possibilidade de em um congresso muito conservador,

com um governo na defensiva e setores interessados em barrar a

PL das terceirizações, como os ligados à CUT, muito

(18)

fragilizados no parlamento, aprovar na prática o fim da CLT.

Estamos na iminência de uma derrota histórica, a maior derrota da classe trabalhadora desde 1964.

A proposta cria a possibilidade de surgir o modelo da

“flexibilidade total”, ou seja, você pode ter empresas que não tem propriamente empregados. Seria permitido criarem cooperativas ou empresas de sub-contratação, quarterirização, etc., afim de precarizar o trabalho ainda mais. Em quaisquer condições, em qualquer lugar do mundo, isto é devastador para os interesses dos trabalhadores. No Brasil seria absolutamente desastroso por conta das condições do mercado de trabalho, da escassez de fiscalização. Isto tudo cria um modelo ainda mais degradante das relações de trabalho.

Temos que entender que a terceirização é sobretudo uma estratégia empresarial que avança prioritariamente sobre os direitos dos trabalhadores a fim de explora-los ainda mais. O salário médio dos trabalhadores terceirizados é cerca de 36%

menor, os acidentes de trabalho concentram-se no setor terceirizado, 64% dos acidentes de trabalho são em empresas ou atingem trabalhadores terceirizados. O baixo investimento em qualificação, tudo isto faz com que você tenha a terceirização como política empresarial prioritária. Então caso esta porta seja aberta, sem dúvida alguma que as empresas farão exatamente isto que desejam fazer, mas por barreiras legais não foram capazes de implementar, ou seja, implementar o modelo da terceirização e da flexibilidade total.

Hoje debate-se muito na Europa os tais “mini-jobs”. O

trabalhador fica em casa com o celular até receber um SMS

dizendo para ele se apresentar em 1 ou 2 horas num McDonalds

da vida para trabalhar por 4 horas e receber exclusivamente

pelas 4 horas que trabalhou. Ou seja, sem nenhum tipo de

direito. Este é o horizonte que temos pela frente. Segundo

dados do Ministério Público do Trabalho, das 36 principais

operações de libertação de trabalhadores em situação análoga à

escravidão, 35, não menos que 35, foram em empresas

(19)

terceirizadas.

A terceirização é a grande expressão da tragédia do trabalho no Brasil e estamos na iminência de vermos este modelo generalizar-se, aprofundando-se como nunca antes.

PORTAL DO PSTU: pode estar se abrindo um processo de ataques muito mais graves do que foi a reforma da previdência do início do governo Lula?

RUY BRAGA: não tenho a menor dúvida a respeito disto. Ao contrário da reforma da previdência, que foi um ataque brutal mas incidiu, no caso do governo Lula, sobre o funcionalismo público, ou ao contrário de medidas relacionadas as privatizações dos anos 90, que incidiam sobre setores monopolistas, esta estratégia da terceirização inclui todos os setores da economia. Absolutamente todos os setores, públicos e privados, todos os setores da classe trabalhadora em todas as empresas. Não há empresas que não adotem estratégias de terceirização, são dados da CNI. 77% das empresas paulistas, no ano passado, utilizaram trabalhadores terceirizados.

S e e s t a m í n i m a b a r r e i r a q u e a i n d a e x i s t e c o n t r a a terceirização, se ela ruir, você vai decretar o fim da CLT, o pior, sem dúvida nenhuma, o pior ataque aos direitos da classe trabalhadora na história do Brasil.

PORTAL DO PSTU: E é de se imaginar que o governo vai se portar de qual forma?

RUY BRAGA: o governo perdeu a mão no congresso. Ele não dirige

mais o congresso. As bases sociais do governo serão contra, e

o governo de alguma forma tentará responder a esta pressão, eu

ficaria, apesar de tudo, surpreso se o governo não tentasse

bloquear a aprovação da 43-30, eu ficaria um pouco surpreso,

(20)

por conta da composição das bases do governo.

No então, no atual quadro de austeridade, tudo está em aberto.

Se isto fosse no primeiro governo Dilma, diria que o governo iria tentar bloquear. Mas na atual conjuntura não descarto nenhuma possibilidade.

Caso a PL 43-30 do famigerado deputado Sandro Mabel, empresário da indústria dos alimentos, seja aprovada, com ou sem apoio do governo, com ou sem resistência do governo, não tenho a menor dúvida em afirmar que foi o maior ataque à classe trabalhadora brasileira desde o golpe militar. Isto em um governo do PT, com o PT como principal partido brasileiro.

Algo importante de entendermos, uma situação trágica.

* Entrevista originalmente publicada no site do PSTU dia 6 de abril de 2015

Conferência A Pulsão Plebeia:

Trabalho, Precariedade e Rebeliões Sociais, novo livro de Ruy Braga (Vídeo)

Ruy Braga

Conferência ministrada no Instituto Universitário de Lisboa

(ISCTE-IUL), em no dia 26 de fevereiro de 2015 com o

título “A pulsão plebeia: trabalho, precariedade e rebeliões

sociais”.

(21)

Hegemonia e crise: noções básicas para entender a situação brasileira

Alvaro Bianchi e Ruy Braga

A presente situação política no Brasil pode ser caracterizada como uma crise da forma restrita que a hegemonia das classes dominantes adquiriu no Brasil. Em diversos artigos, caracterizamos a forma presente da hegemonia como uma

“revolução passiva à brasileira”, ou seja, um processo de atualização gradual do capitalismo por meio de reformas promovidas diretamente pelo Estado, o qual parecia se destacar de suas bases sociais para melhor realizar sua função. Sem a participação ativa das classes subalternas essa revolução passiva representava uma hegemonia de uma fração da classe dos capitalistas sobre todas as demais frações, por intermédio do Estado.

A variante lulista dessa revolução passiva incorporou a esse

bloco hegemônico os setores da burocracia sindical que haviam

se convertido em gestores dos fundos de pensão. O arranjo se

mostrou muito mais abrangente e ao mesmo tempo resistente do

que aquele que havia sido construído sob a direção de Fernando

Henrique Cardoso. Os vínculos dessa burocracia social com os

movimentos sociais davam uma capacidade de mobilização maior

ao governo, uma oportunidade para promover reformas, como a da

previdência, que ia além das possibilidades presentes nos anos

1990. A contrapartida estava na realização de políticas

sociais compensatórias que permitiam, por um lado, atender

certas aspirações das classes subalternas e, por outro,

ampliar a base social do Estado por meio da incorporação

(22)

passiva destas ao arranjo político.

Essa forma da revolução passiva, essa hegemonia restrita, entrou em colapso a partir de meados de 2013. Este pequeno artigo tem a intenção de expor um conceito de crise de hegemonia que nos permitiria entender melhor a presente situação.

Consenso ativo e passivo

Não são poucos os comentaristas que tem destacado a dificuldade que o atual governo tem de construir um consenso e estabelecer alianças efetivas e estáveis. Apesar de ter montado uma megacoalizão e garantido formalmente a maioria dos parlamentares para sua base de apoio, as iniciativas do Executivo tem encontrado forte resistência no Congresso. A eleição de um deputado da base do governo para a presidência da Câmara de Deputados, enfrentando e derrotando outro candidato do partido da presidenta é um sintoma dessa resistência. Mas é preciso distinguir o que ocorre na esfera da representação parlamentar e os desejos, opiniões ou mesmo ações que caracterizam aqueles que deveriam ser representados.

Aqui a ênfase não estará na análise do processo de construção de uma maioria parlamentar e sim nos processos sociais subjacentes.

A construção do consenso, seja ativo ou passivo, deve ser entendida como um processo que se desenvolve através de fluxos e influxos, avanços e retrocessos marcados por transformações nas relações de forças entre as classes e entre estas e suas formas institucionalizadas.

Sem poder assimilar toda a sociedade a seu projeto, a capacidade das classes dominantes articularem o consenso e a legitimidade da ordem pode ser abalada, abrindo, então uma situação de contraste entre representados e representantes.

Nos momentos em que isso ocorre, os grupos sociais se afastam

de suas organizações tradicionais, ou seja, essas organizações

(23)

e seus líderes não são mais reconhecidos como expressão própria de sua classe ou fração, comprometendo de forma decisiva a capacidade dirigente desses grupos. Seguindo as indicações de Gramsci, esses processos serão denominados de

“crise de hegemonia, ou crise do Estado em seu conjunto”.[1]

A situação presente no Brasil é, justamente, aquela na qual os representados não se identificam mais com aqueles que dizem representá-los. Junho de 2013 deveria ter acendido o sinal de alerta. Mas em vez de operar no nível dos representados, o governo optou por voltar-se para os representantes e construir uma arco de alianças parlamentar que lhe garantisse a maioria parlamentar. Até agora isso só fez aumentar a crise e a separação entre representantes e representados.

Classes e partidos

A crise de hegemonia é uma crise do Estado e das formas de organização política, ideológica e cultural da classe dirigente. Seus aspectos mais visíveis são a dificuldade de formar uma maioria parlamentar duradoura; a perda da capacidade dirigente dos partidos tradicionais; e a consequente crise dos partidos e multiplicação destes. Em suma, trata-se de tentativas desordenadas de superação da crise.

A divisão dos partidos tradicionais – PT, PSDB, PMDB e PSD – e

as crises internas que os atravessam são, assim, manifestações

dessa crise. O mesmo ocorre em escala microscópica nos

pequenos partidos da oposição de esquerda. A dificuldade de

compor uma maioria partidária estável e os choques permanentes

entre as diferentes claques, reproduzem nos partidos os mesmos

problemas encontrados no governo e no Parlamento. Nos choques

entre as diferentes frações e partidos, a corrupção encontra

terreno fértil para se desenvolver. Cada fração considera a si

mesma a única com condições de superar a crise do partido,

assim como cada partido considera-se o único capaz de superar

a crise da nação. Os fins passam a justificar os meios.

(24)

A crise não se limita, entretanto, aos partidos e ao governo.

Ela é uma crise do Estado em seu conjunto, ou seja, processa- se, também, no nível da sociedade civil, onde as classes dirigentes tradicionais passam a manifestar sua crescente incapacidade de dirigir toda a nação. A burocracia, a alta finança, as igrejas, os grandes monopólios de comunicação e todos aqueles organismos relativamente independentes da opinião pública têm suas posições reforçadas no interior do Estado.[2] A repercussão da crise no conjunto do Estado pode provocar, dessa forma, o “deslocamento da base histórica do Estado” e a supremacia do capital financeiro.[3]

A característica fundamental da crise de hegemonia não é, então, o “vazio de poder”, que a rigor poderia ser ocupado por qualquer um, até mesmo por um aventureiro ou um grupo deles. A política, assim como a natureza também tem “horror ao vácuo”.

A crise de hegemonia se caracteriza não pela inexistência de poder, o vazio, e sim por uma multiplicidade deles. Poderes plurais e policêntricos que têm como portadores diferentes grupos sociais que lutam incessantemente pela afirmação de sua alternativa. É claro que essa situação não pode se prolongar indefinidamente. Sem nenhuma capacidade dirigente, as classes dominantes ou frações dela podem ser deslocadas do poder, deixando de ser dominantes.

Relações de forças

Quais são as razões que levam ao surgimento de uma crise dessas proporções? O que faz com que a capacidade dirigente de uma classe seja abalada de maneira tão profunda?

Se o Estado é entendido como condensação material das relações

de forças entre as classes e frações, condensação essa

historicamente definida e, portanto, particular e específica

em cada situação, então, a crise só pode ser compreendida como

o resultado do abalo das relações de forças que se

materializavam nesse Estado.[4]

(25)

A eclosão da crise é, assim, definida pelas lutas que opõem as classes umas às outras, lutas nas quais os diferentes projetos alternativos vão se desenhando e aglutinando defensores. É afirmada pela ruptura da passividade de certos grupos sociais e pela sua entrada ativa no cenário político, desequilibrando arranjos de poder que tendiam a excluir esses grupos. Na situação presente a crise foi agravada pela ativação simultânea de uma parte ainda minoritária das classes subalternas, com especial participação do precariado urbano, e das camadas médias que entraram em cena com um programa político de reestabelecimento de seus privilégios sociais.

Não há nenhuma surpresa aí. Afinal, nos últimos 12 anos, tendo em vista um modesto, porém, real processo de desconcentração de renda entre aqueles que vivem dos rendimentos do trabalho, a base da pirâmide ocupacional progrediu em um ritmo mais acelerado do que os setores médios. Ou seja, houve uma diminuição da distância entre as classes sociais cuja expressão mais visível pode ser encontrada na “invasão” dos espaços outrora exclusivos das camadas médias tradicionais por uma massa plebeia, como aeroportos e shoppings centers. Não devemos subestimar o impacto que um mercado de trabalho aquecido tem sobre a disposição social dos trabalhadores subalternos, notoriamente, as empregadas domésticas, em resistir a situações aviltantes de trabalho. O “desassossego na cozinha” é um fenômeno que inquieta os setores médios tradicionais, afetando o dia-a-dia dos privilégios de classe que marcam de maneira tão acentuada a realidade brasileira.

Além disso, na última década, a inflação dos serviços foi 35%

superior à inflação da cesta básica. Obviamente, os setores médios foram mais atingidos, pois têm acesso a mais opções e oportunidades de desfrutar de atividades de lazer, etc.

Finalmente, vale destacar que a própria perspectiva de

reprodução futura das camadas médias vê-se transtornada tanto

pelo aprofundamento do processo da crise econômica quanto pelo

aumento da concorrência por empregos que pagam mais do que

(26)

cinco salários mínimos. Afinal, com as políticas afirmativas no sistema universitário federal somadas ao aumento de matrículas no sistema privada de ensino superior proporcionado pelo FIES, os filhos da classe média tradicional tendem a encontrar mais competição no mercado de trabalho do que no passado. A situação torna-se ainda mais crítica com o aprofundamento da crise econômica. Não nos esqueçamos que em 2014, 97,5% dos empregos criados no mercado formal de trabalho pagam até 1,5 salário mínimo. Os jovens de classe média vão concorrer por 2,5% das vagas de emprego melhor remunerado com uma massa cada dia maior de jovens plebeus que entram mais qualificados no mercado.

Em suma, as camadas médias têm lá suas razões para afastar-se do governo de Dilma Rousseff. No entanto, o dado mais carente de explicação é a presença, segundo o Datafolha e pesquisas independentes, de aproximadamente 50 mil pessoas que vivem em famílias que ganham até três salários mínimos na manifestação do dia 15 de março. Trata-se da fração de classe que garantiu a vitória de Dilma no segundo turno em 2014 e que preenche a maior parte das ocupações precárias e sub-remuneradas disponíveis no mercado de trabalho paulistano. Este setor da classe trabalhadora foi mais atingido pelo ataque do governo federal ao seguro-desemprego (PL 664 e 665), além dos cortes no FIES. Ou seja, em apenas três meses, o governo aplicou medidas que atingem diretamente os interesses de classe de amplos setores de jovens trabalhadores que identificam na qualificação superior a única possibilidade de romper com o círculo vicioso da precarização do trabalho.

O parlamento, local de mediação dos conflitos no Estado

liberal mostrou-se incapaz de absorver estes novos atores. Nem

o j o v e m p r e c a r i a d o , n e m a s c a m a d a s m é d i a s s e v e e m

representadas no parlamento. Uma parcela importante dessa

insatisfação se expressou nas últimas eleições por meio da

abstenção e dos votos branco ou nulo. Outra parcela manifesta-

se abertamente em favor de uma intervenção militar.

(27)

A ascensão desses novos atores não define, entretanto, todo o conteúdo da crise. É preciso ter em mente a forma sob a qual essa ascensão ocorre. O Partido dos Trabalhadores foi sempre incapaz de transcender o nível do classismo prático e, portanto, de apresentar um projeto que permitisse reordenar toda a sociedade a sua imagem. Quando chegou ao poder aferrou- se aquilo que já existia, procurando apenas aperfeiçoar o projeto existente.

As classes subalternas ainda não possuem uma direção capaz de colocar-se à frente de seu movimento e imprimir a ele um conteúdo claramente transformador. A crise não atingiu apenas a burguesia e o parlamento. Ela é, também, uma crise de direção das classes subalternas, que não conseguem impor seu projeto hegemônico muito embora consigam desarticular a hegemonia das classes dominantes. É, para usar uma terminologia cunhada por Trotsky, mas também presente em Gramsci, uma crise de direção que atinge de maneira combinada, mas desigual, tanto a burguesia como o proletariado.

Crise orgânica

Encontrar a solução orgânica para essa crise não é simples.

Ela exige a unificação de um grande número de partidos sob a bandeira de um único partido, “que melhor representa e resume as necessidades de toda a classe”.[5] As tentativas são inúmeras. A atual crise será um processo de longo prazo no qual se desenvolverão permanentemente experiências visando sua superação. Partidos irão se alinhar e realinhar, blocos serão formados e dissolvidos. Líderes serão criados e depostos. A velocidade desses processos pode surpreender, o ritmo é rápido e fulminante se comparado com os tempos normais. A crise acelera essa dimensão, recriando a noção de tempo, redefinindo o tempo histórico.

A cada tentativa de resolução dessa crise ela cobra um novo

desenho. O fracasso dessas tentativas não conduz, entretanto

ao ponto de origem. Ganhos e perdas são contabilizados por

(28)

cada grupo ou fração. Caso contrário a catástrofe seria iminente. E sabe-se muito bem que ela necessariamente não é.

As possibilidades de articular um projeto alternativo ou de alinhar defensores atrás desses projetos, criando tentativas de resolução da crise, são, entretanto, assimétricas. As classes dominantes tradicionais, ao contrário das classes subalternas, contam com grande número de intelectuais, numeroso pessoal especializado capaz de formular projetos e organizar sua defesa. Podem mudar de pessoal dirigente, de programa e mesmo de partido, de modo a oferecer, rapidamente, uma saída para a crise. Não raro, constroem a unidade que até então parecia impossível ser alcançada, perfilando-se sob a direção do partido que melhor encarna as necessidades de todas as classes dominantes naquele momento. E as necessidades, nessas ocasiões, não são outras que a superação da própria crise.

Mesmo tendo condições mais favoráveis para decidir rapidamente o conflito a seu favor, as classes dominantes tradicionais nem sempre o conseguem. Isso ocorre quando já amadureceram contradições na estrutura que as classes sociais que atuam para conservar e defender essa estrutura não conseguem resolver, ao mesmo tempo em que as classes que lutam pela sua transformação profunda não conseguem tornar-se dirigentes.[6]

Colocado de tal maneira o problema, tem-se que a crise política não é definida automaticamente pela crise econômica.

A crise econômica, tomada em seu sentido amplo como crise de

acumulação resultante da queda tendencial da taxa de lucro,

pode ser pressuposto de um profundo abalo político. Mas ela

não conduz, por si própria, à crise de hegemonia. Para a

eclosão desta crise é preciso a coincidência dos tempos de uma

crise de acumulação com o acirramento do choques entre as

classes, e, no interior delas, entre suas frações. Haveria,

assim, uma coincidência no tempo de uma crise econômica e

outra política, ou o que Gramsci chama de uma crise orgânica,

uma crise que afeta o conjunto das relações sociais e é a

(29)

condensação das contradições inerentes à estrutura social.[7]

Esta não é ainda a realidade da atual crise brasileira. No entanto, é importante destacar que as demissões estão apenas no começo, as falências e o fechamento de empresas ainda não é a regra, o governo federal está totalmente rendido e convencido da necessidade de realizar um duríssimo ajuste fiscal antipopular, e os setores de oposição de direita tradicionais não recuam e têm apostado no aprofundamento da crise política do “Petrolão”. Em resumo, os ritmos da crise econômica e da crise política parecem convergir para um ponto de difícil retorno. O país entrou em sintonia com a crise do sul da Europa? Difícil prever. Mas, não seria nada surpreendente que, assim como ocorreu recentemente na Grécia, na Itália e na Espanha, o desafio ao sistema político tradicional – e ao bipartidarismo PT-PSDB que há mais de vinte anos tem marcado a cena política brasileira – evoluísse na direção do fortalecimento de novos atores localizados nos extremos do espectro político. A radicalização é a tendência atual. Quem viver verá.

Notas:

[1] Antonio Gramsci.Qauderni del carcere. Torino: Einaudi, 1977, p. 1603.

[2] Idem, p. 1603.

[3] Idem, p. 876.

[4] Poulantzas, Nicos. “Les transformations actuelles de l’État, la crise politique et la crise de l’État”. In:

Poulantzs, Nicos (org.). La crise de l’État. Paris, PUF, 1976, p. 22.

[5] Idem, p. 1604.

[6] “O aspecto da crise moderna que é lamentado como ‘onda de

materialismo’ está vinculado àquele que se chama ‘crise de

(30)

autoridade’. Se a classe dominante perdeu o consenso, isto é, não é mais ‘dirigente’ mas unicamente dominante, detentora da pura força coercitiva, isto significa justamente que as grandes massas se separam das ideologias tradicionais, não creem mais em tudo o que acreditavam antes, etc. A crise consiste precisamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno se verificam os fenômenos mórbidos mais variados.” (Idem, p. 311.)

[7] Poulantzas, Nicos. Op. cit., p. 10.

‘Hegemonia lulista pode estar se esfacelando’

Ruy Braga

No início de ano mais efervescente do século 21, os brasileiros continuam a buscar respostas e saídas para um ano que já está marcado pela recessão econômica e rebaixamento das condições de vida. Enquanto isso, manifestações de todos os vieses políticos sacodem o país e prometem manter-se por longo tempo. Para debater um quadro tão complexo, o Correio da Cidadania entrevistou o sociólogo Ruy Braga, reconhecido estudioso do mundo do trabalho.

“De fato, o início do ano se assemelha muito a uma tempestade, principalmente para o governo federal, mas todas essas tendências já estavam escritas no período anterior e derivam, em grande medida, do esgotamento do atual modelo de desenvolvimento, adotado pelo governo nos últimos 12 anos.

Assim, tivemos uma reversão muito radical na expectativa da

massa da população trabalhadora em relação ao futuro, no

tocante aos dois pontos mais críticos: desemprego e inflação”,

(31)

analisou.

No entanto, o também professor da USP não segue o alarmismo em torno de um possível impeachment, dado que os concorrentes ao poder, simplesmente, não possuem nenhum plano diferente da austeridade já em voga. O que pode estar em tela, neste exato momento, é o fim da hegemonia lulista, vez que se erige um quadro social que desarticula o apassivamento das classes populares, conquistado em governos petistas anteriores em face a uma conjuntura econômica favorável.

“Há uma sensação de profundo mal estar em relação às medidas d o g o v e r n o . M u i t o s d o s q u e f o r a m à s r u a s n o d i a 1 3 manifestaram que tais medidas, sob quaisquer hipóteses, são inaceitáveis e indefensáveis. Naturalmente, isso coloca um elemento complicador aos movimentos sociais ainda alinhados ou próximos ao governo. Como administrar a insatisfação da base e ao mesmo tempo seguir hipotecando solidariedade ao governo federal?”, indagou.

A entrevista completa com Ruy Braga pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Aumentos tarifários, desaceleração econômica, crise hídrica e elétrica, escândalos de corrupção.

Como vê hoje o país e o seu governo, que parece velho nem bem iniciado o segundo mandato?

Ruy Braga: De fato, o início do ano se assemelha muito a uma tempestade, principalmente para o governo federal, mas todas essas tendências já estavam escritas no período anterior e derivam, em grande medida, do esgotamento do atual modelo de desenvolvimento, adotado pelo governo nos últimos 12 anos.

Basicamente, um modelo apoiado sobre a reprodução das bases do

trabalho barato, por um lado, e, por outro, na desconcentração

de renda entre os que vivem do rendimento do trabalho, somada

à forte concentração no setor financeiro e evidentes problemas

no tocante à reprodução do mundo do trabalho, em termos de

oferta de postos com qualidade, que paguem efetivamente

(32)

melhor.

Portanto, temos um modelo de desenvolvimento que manteve certa dinâmica durante o período de expansão desse último ciclo do capitalismo internacional. Mas, quando veio a crise, a partir de 2009 (que, no caso brasileiro, até teve uma recuperação em 2010, mas, em 2011 e 2012, sofreu uma desaceleração mais acentuada), acirraram-se todas as tendências de crise acumuladas do período anterior. Isso faz com que uma quantidade muito significativa de expectativas ligadas ao futuro se reverta, diante do quadro de verdadeiro estelionato eleitoral que a então candidata Dilma apresentou. Ela está implementando tudo aquilo que prometeu não fazer.

Assim, tivemos uma reversão muito radical na expectativa da massa da população trabalhadora em relação ao futuro, no tocante aos dois pontos mais críticos: desemprego e inflação.

Isso, consequentemente, tende a tornar o início de governo muito turbulento. Porque, a rigor, temos: uma desaceleração que flerta com recessão; um aumento muito grande da inflação nesses três ou quatro meses; tarifaços, que colocam mais água no moinho da inflação; mudança de patamar do dólar frente ao real, outro elemento inflacionário; e aumento do desemprego, com demissões já acontecendo, principalmente no setor de serviços, mas se espalhando também pela indústria, como os dados mais recentes apontam.

Portanto, temos um início de governo absolutamente tempestuoso que, pelo menos até o momento, não dá sinais de que vai amainar. Em resumo, acredito ser este o pior início de governo da história republicana do país. Seguramente, o pior desde a redemocratização, mas provavelmente podendo se estender ao período pós-segunda guerra mundial. Não lembro de início de governo tão tempestuoso como esse.

Correio da Cidadania: Qual o seu olhar sobre as manifestações

do dia 15 de março?

(33)

Ruy Braga: Os dados apontam nessa direção: nitidamente, manifestou-se uma fatia muito importante da população paulista, e também de algumas outras capitais; uma população mais velha, entre 40 e 50 anos, e mais masculina; a grande maioria, cerca de 70%, ganha acima de 5 salários mínimos. A despeito da presença marcante de assalariados urbanos, pequenos proprietários, empreendedores etc., tal manifestação, em especial em São Paulo, o epicentro nacional, se inclina claramente do centro para a direita.

Assim, diria que foi uma manifestação de uma direita que não teme dizer seu próprio nome. Ou seja, a direita foi às ruas, com uma agenda basicamente de enfrentamento à corrupção, contra o governo Dilma, o PT e, também, contra aquilo que poderíamos chamar de efeitos da desconcentração de renda entre os que vivem dos rendimentos do trabalho.

Tínhamos, claramente, uma composição de pessoas críticas às políticas públicas federais do último período, uma reclamação mais ou menos generalizada em relação ao aumento de greves, em relação à questão da meritocracia, às cotas, enfim, um mal estar generalizado com todos aqueles pequenos avanços que ocorreram no último período.

Portanto, uma manifestação dos setores de direita, porém, com ruidosa participação da extrema-direita. De acordo com enquetes, em torno de 5% dos presentes nas ruas no dia 15 pediam um golpe militar, ou seja, apoiavam a ruptura da democracia.

No entanto, é importante destacar que não há segredo nisso.

Existe, de fato, uma profunda insatisfação dos setores de

classe média tradicional contra o governo federal, acumulada

no último período. Por várias razões, nenhuma misteriosa. A

desconcentração de renda entre aqueles que vivem da renda do

trabalho significa que a distância entre as classes populares

e as classes médias tradicionais foi relativamente diminuída.

(34)

Entre outras coisas, aqueles privilégios naturalizados pelos setores médios tradicionais da sociedade brasileira passam a ser, de alguma maneira, ameaçados. A empregada doméstica não aceita mais dormir no emprego, não aceita mais folgar uma vez a cada duas semanas, exige direitos trabalhistas (apesar de a PEC das Domésticas não ter sido ainda regulamentada, mas há a pressão).

Por outro lado, temos uma inflação de serviços mais elevada em relação à da cesta básica, que atinge diretamente aquela população que ainda tem acesso ao lazer. E, por fim, um aprofundamento da competição entre aqueles postos que pagam salários de classe média, acima de 5 mínimos. Haja vista que, no ano passado, por exemplo, 97,5% dos empregos criados no país pelo mercado formal pagam até 5 mínimos.

Ou seja, os empregos de classe média estão se tornando mais escassos, no mesmo momento em que aumenta a concorrência, por exemplo, na universidade, entre setores da juventude mais

“plebeia” e os setores médios tradicionais, já que também aumentou o acesso à escola particular de terceiro grau e à universidade particular. Isso além da política de cotas, que aumentou o acesso dos setores populares ao sistema público universitário, que era uma espécie de exclusividade da classe média tradicional. Tudo agregado, somando-se à reversão das expectativas econômicas, explica o descontentamento.

O que, a meu ver, merece nossa atenção são os setores que foram às ruas no dia 15 e fazem parte da massa popular. Tais setores estavam presentes, como se viu em matérias e pesquisas. Algo em torno de 20% dos que foram às ruas se localizam entre os que ganham até 2 salários mínimos e 10%, entre 2 e 5 mínimos, o que em São Paulo quer dizer cerca de 50 mil pessoas, fundamentalmente uma massa popular. É o principal elemento a refletirmos.

Correio da Cidadania: E quanto às manifestações que ocorreram

(35)

no dia 13, chamadas pela CUT, o que poderia comentar sobre elas?

Ruy Braga: Pelos dados aos quais tive acesso, existiu, de fato, uma presença maior de setores afeitos ao governo. No entanto, também houve presença de setores críticos às políticas implementadas pelo governo federal nesses três meses, em especial as de austeridade. Tanto do ponto de vista dos cortes de investimentos, como do aumento das taxas de juros, além das medidas que atingem mais diretamente os setores populares, como as MPs 664 e 665 (que mudam regras do seguro desemprego). E há, ademais, um forte descontentamento com as medidas que dificultam o acesso ao Fies (Financiamento Estudantil), outro fator a atingir a massa popular mais jovem.

Portanto, há uma sensação de profundo mal estar em relação às medidas do governo. Muitos dos que foram às ruas no dia 13 manifestaram que tais medidas, sob quaisquer hipóteses, são inaceitáveis e indefensáveis. Naturalmente, isso coloca um elemento complicador aos movimentos sociais ainda alinhados ou próximos ao governo. Como administrar a insatisfação da base e ao mesmo tempo seguir hipotecando solidariedade ao governo federal?

É um processo muito contraditório e ao mesmo tempo explosivo.

E acredito que, desse processo, de alguma maneira, devem depender os desdobramentos de uma política de esquerda num futuro próximo.

Correio da Cidadania: Acredita que se caminha para algo que se pode chamar de uma crise institucional no país, inclusive com a abertura de um processo de impeachment? O que resultaria para o país em um tal cenário?

Ruy Braga: Pessoalmente, não consigo, até o momento,

vislumbrar o impeachment como uma realidade crível. Pelo menos

naquilo que identifico como os setores que compõem o espectro

(36)

político da sociedade brasileira, com exceção dos setores de extrema-direita que se manifestaram no dia 15. Não consigo identificar nem na oposição de direita institucional e nem nos setores que seriam governistas, como o PMDB, que ora oscilam ora se colocam na oposição institucional, uma disposição clara pelo impeachment. As informações que emergiram até o momento não apoiam esta hipótese. As forças políticas não veem uma solução que passe pelo impeachment, porque não têm propriamente um plano.

Imagine, por exemplo, que o PSDB peça o impeachment da Dilma.

Vamos imaginar um contexto de ruptura institucional no qual se convoquem eleições, supondo que o presidente da Câmara não assuma. E vamos supor ainda que o PSDB ganhe tal eleição. Ele vai implementar medidas econômicas que são exatamente as mesmas que o governo está implementando. Ou seja, ele não vê no horizonte do impeachment uma solução muito crível, certo? O que me parece é que há certa automatização desse processo de pedido de impeachment, muito midiático e repercutido de maneira muita irrefletida na população, que deseja mudanças, mas não vê propriamente quais seriam os desdobramentos do impeachment.

Portanto, não me parece que a crise institucional vá evoluir em tal direção. Parece mais provável que as forças políticas de oposição ao governo federal estejam trabalhando com a hipótese de, digamos assim, “ir sangrando” a presidente da República e administrar a crise política até as eleições daqui a quatro anos. É o que me parece mais provável. Mas claro que tudo pode acontecer. Não estou descartando completamente nem o impeachment nem uma saída inconstitucional. Mas me parece que não será assim.

Na verdade, tudo isso se relaciona com o aprofundamento da

crise econômica. É evidente que a burguesia brasileira não vai

apoiar um governo que não consiga oferecer nenhuma solução

para a crise econômica, mesmo que essa solução esteja nas

medidas de austeridade do mesmo governo. Se a crise econômica

Referências

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