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uma crítica cultural dos filmes de Beto Brant

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Academic year: 2021

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FERNANDA SALVO

A QUESTÃO DO SUJEITO CONTEMPORÂNEO NO CINEMA BRASILEIRO:

uma crítica cultural dos filmes de Beto Brant

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Comunicação Social.

Área de Concentração: Comunicação e Sociabilidade Contemporânea

Linha de Pesquisa: Processos Comunicativos e Práticas Sociais

Orientadora: Profª Dra. Simone Maria Rocha

Belo Horizonte

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG

2009

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Agradecimentos:

À Simone Rocha, porque sua orientação foi decisiva para a plena realização desta dissertação e para o cumprimento dos prazos...mas tem um tanto mais, verdade seja dita: a Simone chegou quando tudo era ainda desordem, generosamente topou um desafio enorme num curto espaço de tempo, assumiu o trabalho com a graça e a seriedade que lhe são peculiares, acreditou no projeto, se encantou pelos filmes, ajudou a tecer um problema de pesquisa contundente, vibrou a cada etapa superada, torceu para ver esse trabalho pronto, me ensinou tanto...e com toda a sua competência, se revelou a completa simplicidade. Mais do que uma orientadora, tornou-se uma amiga. Nosso encontro foi uma das maiores alegrias que tive na UFMG. Obrigada por tudo.

Ao meu pai, Fernando Martins de Salvo, que precisou partir no início deste percurso, mas muito antes havia se encarregado de imprimir em mim o amor pelas imagens e cores, ele que tão talentosamente soube ser na vida um desses artistas da

“pincelada única”.

À minha mãe, por seus exemplos de persistência e coragem e por ter me acolhido sempre com sua amizade incondicional.

À minha querida filha Mariana, por ter a capacidade única de me desvendar e me acompanhar, tornando a minha vida mais bonita... “ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas...”.

À Zoraia e ao Genderson, porque sempre foram uma referência de caminho a seguir e pelo apoio e amizade constantes.

Aos meus sobrinhos Rafael e Naiara, porque seu sorriso enche meu coração de alegria.

Ao Tito, por ter sido o amigo fiel de todas as horas, e, em muitas dessas horas, ainda ter me ensinado tanto sobre cinema brasileiro.

Aos professores Ana Lúcia Modesto e César Guimarães, pelo acolhimento

generoso a esse trabalho por ocasião do processo de qualificação e pela contribuição

inestimável que me prestaram, com sugestões valiosas e fundamentais para enriquecer

as reflexões contidas nesta pesquisa. Espero ter conseguido incorporar, ao menos em

parte, a excelência da contribuição recebida.

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Às colegas do grupo de pesquisas Carol, Dani, Vanessa e Vivian, por terem sido interlocutoras importantes neste processo, pelo carinho e a paciência que tiveram ao discutir meu trabalho, e porque junto a elas no Comcult sinto que a jornada está só começando...

A todos os professores do mestrado pelos ensinamentos e reflexões suscitadas, mas em especial ao Bruno Leal e à Vera França, pela compreensão que tiveram em alguns momentos delicados dessa caminhada.

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O buraco do espelho

O buraco do espelho está fechado agora eu tenho que ficar aqui com um olho aberto, outro acordado no lado de lá onde eu caí

pro lado de cá não tem acesso mesmo que me chamem pelo nome mesmo que admitam meu regresso toda vez que eu vou a porta some a janela some na parede a palavra de água se dissolve na palavra sede, a boca cede antes de falar, e não se ouve já tentei dormir a noite inteira quatro, cinco, seis da madrugada vou ficar ali nessa cadeira uma orelha alerta, outra ligada o buraco do espelho está fechado agora eu tenho que ficar agora fui pelo abandono abandonado aqui dentro do lado de fora

Arnaldo Antunes

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Resumo

Nesta pesquisa pretendemos realizar uma crítica diagnóstica da cultura contemporânea, partindo da análise dos filmes O Invasor (2001) e Crime Delicado (2005), do cineasta paulista Beto Brant. A idéia que nos norteia é a de que o cinema deste diretor, ao evidenciar particular interesse pela exploração das relações entre os personagens e pelas trocas intersubjetivas efetivadas na diegese, possa ser encarado como lócus privilegiado de análise sobre como a questão do sujeito contemporâneo vem sendo midiaticamente representada.

Nesse sentido, é que tentaremos evidenciar a fina articulação existente entre os textos culturais midiáticas e o contexto social de sua produção, tendo em vista que a questão das subjetividades no mundo atual (bem como sua conhecida crise) tem sido objeto de investigação em diversas áreas da teoria social na atualidade. Isso porque as transformações presenciadas na cultura nas últimas décadas apontam cada vez mais para as profundas modificações na sensibilidade, que coincidem com o nascimento de um sujeito fragmentado, desconexo e descentrado – constituído num cenário e numa cultura pós-modernas.

Por isso mesmo, para comprovarmos a pertinência de considerar os textos da mídia como reveladores de aspectos importantes presentes na cultura e, desse modo, utilizarmos o cinema de Beto Brant como ponto de partida para a realização de uma crítica cultural, nos valeremos da contribuição dos Estudos Culturais, que consideram como melhor forma de escrutinar as produções culturais, analisá-las em contexto e relação, interpretando-as em termos de lutas reais travadas dentro da própria cultura, em meio aos debates e conflitos da sociedade contemporânea.

Palavras-chave : crítica cultural, análise narratológica, sujeito contemporâneo, cinema

brasileiro, Beto Brant.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 8

CAPÍTULO 1: A EMERGÊNCIA DE UM CENÁRIO E DE UM SUJEITO CONTEMPORÂNEO... 13

1.1. HORIZONTE SOCIAL AMPLO SOBRE A CULTURA CONTEMPORÂNEA ...13

1.1.1. MUDANÇAS NA VIDA SOCIAL E A CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE PÓS- MODERNA ...13

1.1.2. O ACHATAMENTO DA EXPERIÊNCIA E O PRESENTE PERPÉTUO NA CRÍTICA DE JAMESON ...21

1.1.3. “COMPRESSÃO DO TEMPO-ESPAÇO”: O REORDENAMENTO DA PERCEPÇÃO E OS NOVOS MODOS DE EXPERIÊNCIA E SUBJETIVIDADE ...28

1.1.4. A “CORROSÃO DO CARÁTER” NO CAPITALISMO TARDIO ...31

1.1.5. O PAPEL DA “CULTURA DA IMAGEM” NA MODULAÇÃO DAS SUBJETIVIDADES E IDENTIDADES PÓS-MODERNAS...35

1.1.6. A FRAGMENTAÇÃO DO SUJEITO E AS IDENTIDADES TEMPORÁRIAS NA PÓS- MODERNIDADE ...39

1.2. O HORIZONTE SOCIAL DOS FILMES DE BETO BRANT: CENÁRIO GLOBAL E NACIONAL...43

CAPÍTULO 2: UMA TRAJETÓRIA DO CINEMA NACIONAL E O “LUGAR” DE BETO BRANT... 50

2.1. CINEMA BRASILEIRO DOS ANOS 1990...50

2.1.1. FIGURAS DO RESSENTIMENTO E O LADO SÓRDIDO DA EXPERIÊNCIA NO CINEMA NACIONAL CONTEMPORÂNEO ...60

2.2. NOVAS PERPLEXIDADES NO CINEMA NACIONAL...63

2.3. BETO BRANT, O CINEASTA NO LIMITE...66

2.3.1. CINEMA DAS RELAÇÕES HUMANAS ...67

2.3.2. CINEMA LITERÁRIO...68

2.3.3. CINEMA QUE PENSA O REAL...69

CAPÍTULO 3: PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO PARA UMA ANÁLISE CULTURAL CRÍTICA DOS FILMES DE BETO BRANT ... 71

3.1. POR UMA CRÍTICA SOCIAL À LUZ DOS ESTUDOS CULTURAIS...71

3.2. DOIS MOVIMENTOS ANALÍTICOS PARA UMA CRÍTICA DA CULTURA EM BETO BRANT ...78

3.2.1. A EXPLORAÇÃO DE ELEMENTOS CONTEXTUAIS E FÍLMICOS PARA A REALIZAÇÃO DE UMA CRÍTICA SOBRE A QUESTÃO DO SUJEITO CONTEMPORÂNEO NO CINEMA DE BETO BRANT...78

3.2.2. DOS PERSONAGENS À QUESTÃO DO SUJEITO CONTEMPORÂNEO NOS FILMES DE BETO BRANT ...82

CAPÍTULO 4: DOS PERSONAGENS À QUESTÃO DO SUJEITO

CONTEMPORÂNEO NOS FILMES DE BETO BRANT... 83

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4.1. OS CAMPOS DISCURSIVOS DOS FILMES DE BETO BRANT...83

4.1.1. O INVASOR (2001)...83

4.1.1.1. PRIMEIRA IMAGEM: ZONA SUL SE APROXIMA DA PERIFERIA ...83

4.1.1.2. O REGISTRO DA CIDADE...84

4.1.1.3. CARACTERIZAÇÕES DE GIBA E IVAN E A MORTE DE ESTEVÃO...86

4.1.1.4. A INVASÃO...91

4.1.1.5. A QUEDA...95

4.1.2. CRIME DELICADO (2005) ...99

4.1.2.1. O PASSO EM FALSO...99

4.1.2.2. O CRÍTICO...101

4.1.2.3. CORPOS DIVERGENTES...102

4.1.2.4. O CRÍTICO VIRA ATOR NA VIDA...104

4.1.2.5. PONTES ENTRE A ARTE E A VIDA ...106

4.1.2.6. O CRIME DELICADO...107

4.1.2.7. O PROCESSO...109

4.2. SEGUNDO MOVIMENTO ANALÍTICO: DA RELAÇÃO ENTRE OS PERSONAGENS À QUESTÃO DO SUJEITO CONTEMPORÂNEO ...112

APONTAMENTOS FINAIS ... 118

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 122

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Introdução - Subjetividade e perspectiva crítica da cultura

Nesta pesquisa empreenderemos uma leitura crítica da cultura contemporânea, buscando evidenciar a fina articulação entre textos culturais midiáticos e contexto social em que surgem. Para tanto, nos valeremos da contribuição dos Estudos Culturais, que propõem uma interrogação detida ao modo como a cultura contemporânea da mídia cria produtos específicos que reproduzem os discursos sociais encravados nos conflitos e nas lutas fundamentais da sua época. Desse modo, com o objetivo de escrutinar as produções culturais, os teóricos ligados a esse campo de estudos defendem a realização de uma crítica diagnóstica da cultura, que utiliza a história para ler os textos da mídia, e os textos da mídia para ler a história, caracterizando um movimento bastante específico que é o de “ir do produto ao social”, na busca de compreender a intersecção entre cultura, sociedade e política, como mediadoras das produções culturais (KELLNER 2001).

Partindo dessas premissas importantes, é que pretendemos observar como a questão do sujeito contemporâneo (aqui entendida como a potência que coloca em crise a subjetividade no mundo atual) vem sendo midiaticamente representada no cinema brasileiro recente. Por isso mesmo, elegemos como objeto empírico os filmes O Invasor (2001) e Crime Delicado (2005), do diretor paulista Beto Brant, com o intuito de investigar como esta problemática tem sido atualizada pelo cinema nacional.

É preciso esclarecer que a escolha dos filmes de Beto Brant não se deu ao acaso.

Ela parte da observação à produção do cineasta que, desde o seu primeiro longa-

metragem, demonstrou forte interesse pelas relações humanas, imprimindo em seus

filmes um olhar investigativo sobre a crise das subjetividades e dando a ver no campo

diégetico das narrativas personagens que invariavelmente sucumbem ao acidente e à

queda após efetivarem associações ou alianças malfadadas, sugerindo o retrato distópico

de um mundo em que os laços intersubjetivos parecem oferecer-se como absolutamente

deteriorados. É como se, de fato, o cinema de Beto Brant estivesse se ocupando em

refletir sobre as novas formas de sensibilidade percebidas no mundo contemporâneo,

sintomaticamente dadas a ver em seus filmes na maneira como os personagens entram

em contato, no modo como eles buscam estabelecer vínculos, criar laços, inserir-se nas

comunidades. Não por acaso, no cinema de Beto Brant os personagens sempre se

encontram à beira de um precipício, num beco sem saída, realizando trocas

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intersubjetivas violentas, devido a esse enfrentamento muito duro de um cotidiano esvaziado de sentido, tornado opressor justamente porque é difícil vislumbrar um porvir que possa reorganizá-lo. É neste presente avassalador que ganha forma o conflito das relações tensionadas, sendo os personagens constantemente instados a se debater com inquietações marcantes da experiência humana, como as questões da ética, da amizade, da vingança, do amor e da traição.

Sem dúvida, esses são os sintomas de um cinema que busca investigar os extremos, operar nas fronteiras, sejam elas simbólicas ou reais - como no universo sem lei dos assassinos de aluguel na fronteira do Brasil com o Paraguai, em Os Matadores (1997); seja na busca incessante pelo inimigo do passado, em Ação entre Amigos (1998); seja no choque entre ricos e pobres de O Invasor (2001); seja na derrocada do crítico de arte que se apaixona pela jovem modelo que não possui uma perna em Crime Delicado (2005); ou, ainda, na afetividade trôpega do tradutor de línguas que se depara com a possibilidade do amor em Cão sem Dono (2007).

Levando em conta a demarcação desses terrenos fronteiriços, que funcionam, sobretudo, como elementos simbólicos no cinema de Brant, é que ganha relevo outra característica marcante do trabalho deste diretor: a realização de um cinema eminentemente urbano, que traz à cena a cidade, os bares, as danceterias, os prostíbulos e a boemia; sendo os personagens que perambulam por esses espaços quase sempre pouco confiáveis, já que no cinema de Beto Brant ninguém é o que aparenta. Vale lembrar que a geografia privilegiada nos filmes do cineasta, aliada à desordem do mundo inserida em suas representações, torna possível aproximar seu trabalho de um outro cinema também nascido em São Paulo, que guardou forte ligação com o espaço geográfico de sua produção: o Cinema Marginal, realizado na Boca do Lixo paulista e que primou por uma estética do desarmônico, do sujo e do abjeto, na busca de atingir o limite da representação.

A partir dessa rápida síntese das questões que julgamos estar no cerne do cinema de Beto Brant é que chegamos às perguntas centrais que norteiam esta pesquisa, ou seja, como os filmes do cineasta Beto Brant dão a ver a questão do sujeito contemporâneo?

Quais os tipos de relação são possíveis de serem forjadas pelos personagens nesse universo distópico dos filmes?

Partindo desses questionamentos é que arriscamos também uma hipótese: talvez

os filmes de Beto Brant produzidos dos anos 1990 até agora possam ser lidos como

sintoma de seu tempo, e, por isso mesmo, venham apresentado em suas narrativas um

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movimento recorrente de investigar a crise das subjetividades, os modos dos sujeitos estabelecerem laços de pertença e de estar no mundo.

É flagrante que a questão do sujeito contemporâneo tem sido objeto de análise detida de diversos teóricos sociais na atualidade. Grande parte dos autores (JAMESON, 2006; HALL, 1999; KELLNER, 2001; HARVEY, 2008; SARLO, 1996) afirma que a complexidade que assolou as sociedades, principalmente a partir da segunda metade do século XX - com a investida do capitalismo em setores antes isentos como a cultura, bem como a rapidez dos processos de globalização e o fluxo sem precedentes de imagens e informações que passou a fazer parte do cotidiano das pessoas –, foi responsável pelo aparecimento de novas formas de subjetividade, dando lugar ao nascimento de um sujeito fragmentado, desconexo e descentrado, constituído num cenário e numa cultura pós-moderna.

Levando em conta essas questões prementes do mundo social, e considerando os media como instância por excelência dos processos comunicativos através dos quais os conhecimentos, valores e moralidades são forjados socialmente, caracterizando uma dada cultura, é que elegemos o cinema do diretor Beto Brant como lócus privilegiado para embasar uma crítica da cultura com vistas à questão do sujeito contemporâneo.

Essa escolha se deve também ao fato de Beto Brant ser um cineasta em produção: seu trabalho nasceu no final dos anos 1990 e mantém uma regularidade de lançamentos ao longo de 10 anos, tendo sido seu último filme realizado em 2007. Nesse sentido, é importante notar dois movimentos importantes: o primeiro é que esse período presenciou o recrudescimento absoluto de diversas das características que estiveram na base das modificações observadas no mundo a partir da segunda metade do século XX, e que apresentaram efeito direto sobre as subjetividades e modos de sensibilidade, refletindo-se de maneira indelével sobre a representação nas artes. O segundo é que a produção de Brant é realizada sob o signo da perplexidade da mudança de século, momento em que naturalmente aumentam os temores e as ansiedades em relação ao futuro. Não por acaso, esse é o período de maior florescimento das perguntas em tono do estatuto do sujeito, após a sua anunciada “morte” pelas correntes teóricas destotalizantes.

Após realizarmos esses deslindamentos preliminares, falta, ainda, justificarmos a

escolha dos filmes O Invasor e Crime Delicado, dentre os cinco longas-metragens

produzidos por Beto Brant, para embasar nossa pesquisa. A razão desta escolha deriva do

fato de considerarmos as duas narrativas bastante diferenciadas em sua forma e, por isso

mesmo, constituírem-se como bons exemplares de contraposições encontradas no cinema

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do diretor. Se o filme O Invasor tendeu a se filiar ao gênero policial, com foco na realidade social e na violência das grandes cidades - resultando numa narrativa ágil, de montagem acelerada; Crime Delicado, mais intimista, debruçou-se sobre as relações afetivas, incorporando um modo de narrar mais estático, lacônico. No Capítulo 4 desta dissertação, quando realizarmos as análises dos campos discursivos dos filmes, mostraremos como essas variações na forma das narrativas incorporaram as questões conceituais que o cineasta pretendeu tratar.

Feitos esses apontamentos, passamos agora a apresentar o desenho geral desta dissertação: no Capítulo 1 traçaremos um panorama amplo sobre a cultura contemporânea, no qual buscaremos desenvolver dois movimentos concomitantes: reunir a contribuição oferecida pelos diversos autores, construindo o aporte teórico deste trabalho, e, ao mesmo tempo, rastrear a questão do sujeito contemporâneo a partir dessas teorias. Isso porque a maioria dos estudiosos que se ocupa em investigar a questão do sujeito contemporâneo oferece muito menos uma definição pontual sobre aquilo que poderia constituir essa problemática, e muito mais análises sobre as profundas modificações presenciadas na cultura que apontam na direção da configuração da questão do sujeito no mundo atual. Portanto, nosso capítulo teórico é, em grande medida, analítico, pois tivemos que ir perseguindo, na esteira dos autores, a emergência do cenário sócio-histórico que propiciou o aparecimento da crise do sujeito na atualidade.

É necessário deixar claro que ao realizar esse percurso, nossa pesquisa avançou no desenho teórico-metodológico sugerido por Douglas Kellner (2001). Isso porque o autor define que para a realização de uma crítica diagnóstica da cultura, com vistas ao escrutínio dos textos da mídia, é preciso situar as variáveis que contextualizem o cenário, o local e a época da produção. Em nosso caso, esse movimento foi realizado, de fato, na segunda seção do Capítulo 1, intitulada “O horizonte social dos filmes de Beto Brant: cenário global e nacional”. Por isso mesmo, é relevante ressaltar que a primeira seção contida no Capítulo 1, que abriga o panorama amplo sobre a cultura contemporânea, constituiu-se muito mais no esforço de contextualizar o cenário sócio- histórico que presenciou as profundas modificações na cultura, responsáveis pelo aparecimento de novas formas de sensibilidade e subjetividade no mundo, auxiliando no entendimento da problemática que buscamos tangenciar.

Já no Capítulo 2 desta dissertação, situaremos o cinema realizado no Brasil a

partir dos anos 1990 – pontuando o cenário em que surgiram as produções de Beto

Brant e as características mais marcantes de seu trabalho. Além disso, realizaremos uma

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revisão dos principais autores que discutiram questões importantes sobre o cinema brasileiro do período.

No Capítulo 3, apresentaremos nosso percurso teórico-metodológico, explicitando aquilo que pretendemos executar para a realização de uma crítica da cultura com ênfase na questão do sujeito, a partir dos filmes de Beto Brant. Assim, ao apresentarmos nossos operadores analíticos (horizonte social e campo discursivo), ficará claro ao leitor que o Capítulo 1 desta dissertação, ao ser composto pelo operador horizonte social, tornou-se predominantemente analítico – o mesmo tendo ocorrido no Capítulo 4, que acabou por assumir a mesma feição, ao ser composto pelo operador campo discursivo.

Portanto, no Capítulo 4, apresentaremos as análises dos campos discursivos dos

filmes O Invasor e Crime Delicado, bem como a categoria final de análise “Da relação

entre os personagens à questão do sujeito contemporâneo”, em que serão privilegiadas

ambas as narrativas. Logo após, apresentaremos os apontamentos finais deste trabalho,

que visam englobar o ponto em que chegamos a partir do problema proposto,

juntamente com um breve retrospecto do percurso por nós realizado.

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Capítulo 1: A emergência de um cenário e de um sujeito contemporâneo

1.1. Horizonte social amplo sobre a cultura contemporânea

1.1.1. Mudanças na vida social e a construção da subjetividade pós-moderna Os importantes teóricos sociais da atualidade que discutem a condição dos sujeitos na contemporaneidade se referem, de forma geral, ao fim de um ciclo, a uma ruptura histórica que inevitavelmente desembocou numa nova mentalidade que abarcaria novas formas de subjetividade sem precedentes no mundo social anterior. Por diferentes vieses, a análise desses autores sobre as modificações vivenciadas pelos sujeitos apresenta como ponto comum a relevância fundamental que tiveram as transformações sociais, econômicas e culturais ocorridas no mundo, principalmente a partir da segunda metade do século XX.

Nesse período, os anos 1950 e 1960 foram marcadamente importantes, pois durante essas décadas o mundo presenciou uma grande disseminação dos meios de comunicação de massa; intensificaram-se os sintomas da chamada “compressão do espaço-tempo” (HARVEY, 2008; GIDDENS,1991); novos padrões regulares de consumo foram firmados e uma miríade de imagens invadiu o cotidiano das pessoas.

Tais mudanças na vida social tiveram efeito direto sobre as formas de representação nas artes, afetando também de maneira indelével as formações de sensibilidade e de subjetividade.

Os novos fenômenos sócio-culturais foram recebidos por diversos teóricos e críticos como fundadores de uma nova sociedade, que recebeu ampla gama de denominações, como sociedade pós-industrial, sociedade pós-moderna, sociedade de consumo, sociedade da mídia e do espetáculo, sociedade do conhecimento e da informação ou, ainda, capitalismo multinacional ou tardio.

No domínio econômico, acontecimentos como a recessão de 1973, exacerbada

pelo choque do petróleo, causaram modificações irreversíveis no modo de acumulação

capitalista; em conseqüência, as décadas que se seguiram foram marcadas por

conturbada reestruturação econômica e de reajustamento social e político. Essas

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reestruturações são apontadas como responsáveis pela emergência de um regime de acumulação totalmente novo – o regime de acumulação flexível - que desbancou as práticas até então vigentes do modelo fordista. Como esclarece Harvey (2008: 140):

A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo.

Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (...) ela também envolve um novo movimento que chamarei de “compressão do espaço-tempo” no mundo capitalista – os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitaram enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado.

Essa quebra radical ou ruptura presenciada na segunda metade do século XX é freqüentemente associada à extinção ou atenuamento da modernidade. Mas foi nos anos 1970, sobretudo, que começaram a surgir com maior vigor os argumentos de que a sociedade moderna estava acabada e o mundo entrava numa era pós-moderna, o que gerou intenso debate, com opiniões muitas vezes divergentes por parte dos críticos sociais, sobre as manifestações do pós-modernismo nos anos 1970 e 1980. Tais posições discordantes gravitavam em torno de se definir se as mudanças na vida social justificariam mesmo a proclamação de uma chamada cultura pós-moderna; e, se essa de fato passou a existir, indagava-se sobre quais seriam os seus preceitos e sua relação com a era moderna anterior.

No que diz respeito às origens do termo pós-modernismo, Andreas Huyssen (1992) afirma que na crítica literária o uso da expressão remonta ao fim dos anos 1950, quando Irving Howe e Harry Levin a utilizaram para lamentar a queda do nível do movimento modernista. Já nos anos 1960, embora o termo tenha sido enfaticamente utilizado por críticos literários como Leslie Fiedler e Ibah Hassan - que sustentavam visões bastante divergentes sobre literatura pós-moderna - foi somente em meados da década de 1970 que a utilização da expressão ganhou um curso mais geral, aplicando-se primeiramente à arquitetura e depois à dança, ao teatro, à pintura, ao cinema e à música, tendo migrado dos Estados Unidos para a Europa via Paris e Frankfurt.

Como afirma David Harvey (2008), nas décadas de 1970 e 1980 o conceito de

“pós-modernismo” tornou-se um campo de opiniões e forças políticas tão conflitantes,

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que simplesmente não se pôde mais ignorá-lo, até porque seu uso assinalava uma profunda mudança na cultura da sociedade capitalista avançada, no que dizia respeito à estrutura e à sensibilidade. Em seu livro Condição pós-moderna (1989), Harvey defendeu a tese de que havia “algum tipo de relação necessária entre a ascensão de formas culturais pós-modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de compreensão espaço-tempo na organização do capitalismo” (HARVEY, 2008: 7). Nesse sentido, Harvey foi um dos diversos teóricos (JAMESON, 1991, 2006; HUYSSEN, 1992; LYOTARD, 1993; SARLO, 1996) a investigar o pós-modernismo não como um conjunto de idéias ou como um estilo, mas como uma condição histórica que requeria elucidação.

Na mesma linha de pensamento, Andreas Huyssen (1992) defendeu que somente encarando o pós-modernismo como uma condição histórica é que se poderia averiguar se suas manifestações seriam realmente capazes de gerar novas formas estéticas nas várias artes ou se elas apenas se dariam ao trabalho de reciclar as formas modernas, como, em seu entendimento, boa parte dos críticos rapidamente se ocupou em postular.

De acordo Huyssen, somente com vistas ao pós-modernismo como um fenômeno histórico é que se poderia igualmente avaliar o potencial crítico de suas obras, sem o perigo de se cair na armadilha fácil de acusar as manifestações pós-modernas do esvaziamento da crítica encontrada na arte modernista – o que se caracterizaria como um movimento precipitado de relegar as manifestações correntes do pós-modernismo como uma fraude perpetrada contra o público.

Ao mesmo tempo, em sua crítica, Huyssen não deixa dúvidas de que o motor a impulsionar os primeiros debates em torno do pós-modernismo foram as transformações culturais e na sensibilidade que passaram a emergir nas sociedades ocidentais naquele período, embora o autor acentue que não se podia declarar ainda uma modificação total no paradigma das ordens cultural, social e econômica. “Registra-se, contudo, em importante setor de nossa cultura, uma notável mudança nas formações de sensibilidade, das práticas e de discurso que torna um conjunto pós-moderno de posições, experiências e propostas distinguível do que marcava o período precedente” (HUYSSEN, 1992: 20).

No mesmo sentido, um dos mais importantes teóricos a desenvolver extensa

análise sobre a emergência do pós-modernismo e seus desdobramentos, Fredric

Jameson (1991, 2006a, 2006b), declarou ser o pós-moderno não um estilo, mas uma

dominante cultural. Porém, Jameson não enxergou nas manifestações pós-modernas o

mesmo potencial crítico encontrado nas obras do alto modernismo – e aqui ele se separa

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de Huyssen. Jameson refletiu sobre o pós-modernismo a partir de uma idéia de periodização, pois seu intuito era o de correlacionar os novos aspectos formais da cultura com o surgimento de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica. Para ele, o termo pós-modernismo passou a designar “um modo de produção”, no qual a produção cultural tem um lugar funcional específico, cuja sintomatologia é diagnosticada na cultura. Por isso mesmo, com vistas a compreender os novos fenômenos da sociedade, Jameson empreendeu uma acurada análise sobre as produções na arquitetura, no cinema, nas artes plásticas, na fotografia e na música, defendendo que a arte seria um locus privilegiado a fornecer importantes informações sociais, ao evidenciar especificidades do pensamento ou da vida cotidiana.

Uma referência fundamental para Jameson tecer sua crítica foi o livro Capitalismo tardio, de Ernest Mandel. Primeira teoria do capital a surgir desde a Guerra, realizada numa perspectiva marxista, a obra apresenta o capitalismo como detentor de três estágios ou rupturas essenciais, sendo essas sempre associadas a evoluções tecnológicas e atuando em relação dialética ao estágio anterior. Ao identificar o momento que ora se iniciava como terceiro estágio do capitalismo, Jameson declarou que seus pensamentos sobre o pós-modernismo deveriam ser entendidos como uma tentativa de teorizar sobre a lógica específica da produção cultural nesse terceiro estágio (capitalismo tardio), e não como uma crítica diagnóstica do “espírito do tempo”, já que o momento abrigava a mais pura expressão do capital, que passou a atingir áreas que até então haviam se mantido intactas, fora do mercado. É nesse sentido que Jameson afirma que a cultura se tornou uma verdadeira “segunda natureza”, pois na era pós-moderna a cultura teria sofrido uma dilatação imensa de sua esfera, sendo invadida pela dimensão da mercadoria:

Assim, na cultura pós-moderna, a própria cultura se tornou um produto, o mercado tornou-se seu próprio substituto, um produto exatamente igual a qualquer um dos itens que o constituem: o modernismo era, ainda que minimamente e de forma tendencial, uma crítica à mercadoria e um esforço de forçá-la a se autotranscender. O pós-modernismo é o consumo da própria produção de mercadorias como processo (...) (JAMESON, 2006b:14).

É dessa maneira que Jameson encara o pós-modernismo como um reflexo e

aspecto concomitante de mais uma modificação sistêmica do capitalismo. Para ele, esse

fator imponderável da predominância do mercado como orientador da cultura

contemporânea levou tudo a um esvaziamento e a uma superficialidade que romperam

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com dimensões importantes como a história, o afeto, a narrativa. Segundo o autor, seria impossível uma perspectiva crítica frente a esse estado de coisas, pois o capitalismo, no seu afã de alcançar novos mercados e expandir a produção - que invade por dentro a dimensão cultural - esvazia suas produções e as transforma em mercadoria vendável e rapidamente descartável.

Historicamente, Jameson (2006a) demarca o surgimento do pós-modernismo ainda nos anos 1960, quando a estética dominante do alto modernismo foi instituída na academia. O autor explica que nesse momento percebeu-se nas produções culturais emergentes uma forte reação contra as obras do alto modernismo, ou seja, as novas expressões passaram a negar as formas da modernidade à medida em que as mesmas tornaram-se canônicas, sendo amplamente aceitas nos museus, universidades e galerias - e, por isso mesmo, esvaziadas do potencial polêmico e subversivo que havia escandalizado gerações anteriores. Jameson advoga que para a geração dos anos 1960 em diante, essas obras “asfixiadas” figuraram como monumentos que deveriam ser destruídos para que qualquer coisa nova fosse feita.

Andreas Huyssen (1992) também afirma que as primeiras manifestações do pós- modernismo nas artes tiveram início nos anos 1960. Porém, o autor enfatiza que há uma distinção histórica entre as manifestações do movimento nas décadas de 1960, 1970 e início da década de 1980; sendo que a primeira delas (os anos 1960) merece destaque por abrigar uma forma bastante peculiar de arte pós-moderna norte-americana:

Contra o codificado alto modernismo das décadas precedentes, o pós- modernismo dos anos 60 tentou revitalizar a herança da vanguarda européia e dar-lhe uma forma norte-americana ao longo do que pode ser resumidamente chamado de eixo Duchamp-Cage-Warhol. Na década de 70, esse pós- modernismo vanguardista dos anos 60 havia esgotado seu potencial, embora algumas de suas manifestações tenham sobrevivido na nova década. O que havia de novo nos anos 70 era, de um lado, a emergência de uma cultura do ecletismo, um pós-modernismo amplamente afirmativo que abandonara qualquer reivindicação crítica, transgressão ou negação; e, por outro, um pós- modernismo alternativo em que resistência, crítica e negação do status quo foram redefinidas em termos não-vanguardistas e não modernistas, que se adequavam mais efetivamente aos avanços políticos da cultura contemporânea do que as antigas teorias do modernismo (Huyssen, 1992:

31).

Com essa definição, Huyssen pretende pontuar que a revolta dos anos 1960 –

aqui corporificada pela rebelião de uma nova geração de artistas como Rauschenberg e

Jasper Johns, Kerouac, Ginsberg e os beats, Burroughs e Barthelme contra o

predomínio do expressionismo abstrato, da música serial e do modernismo literário

(18)

clássico - nunca foi um revolta contra o modernismo, de fato; mas uma revolta contra a versão do modernismo nos anos 1950, que os artistas já não percebiam mais como uma cultura de oposição, mas como um modernismo clássico, atrelado a ideais liberal- conservadores que reforçavam a propaganda do arsenal cultural e político da Guerra Fria anticomunista. “Em outras palavras, a revolta surgiu a partir do sucesso do modernismo, do fato de nos Estados Unidos, como na Alemanha Ocidental e na França, o modernismo ter sido pervertido, convertendo-se em forma de cultura afirmativa”

(Huyssen, 1992: 34).

Ao colocar tal questão, Huyssen pretende sublinhar que as visões globais que incluem os anos 1960 como parte de um movimento moderno se equivocam ao não levar em conta o caráter especificamente norte-americano do pós-modernismo naquela década. Isso porque, em seu entendimento, o contexto histórico norte-americano favoreceu, nos anos 1960, uma revolta dos artistas e justificou sua tentativa de ruptura com certa versão do movimento moderno; porém, o mesmo não pôde ser observado em países da Europa, onde uma conjuntura política e social específicas ainda não abria precedentes para que o termo pós-moderno tivesse sido sequer criado:

O termo acumulou suas enfáticas conotações nos Estados Unidos e não na Europa. Sustento mesmo que ele não poderia ter sido inventado na Europa naquela época. Por várias razões, ele não teria feito qualquer sentido lá. A Alemanha Ocidental estava ainda ocupada com a redescoberta de seus próprios modernos que haviam sido queimados e banidos durante o Terceiro Reich. Mais do que qualquer outra coisa, os anos 60 na Alemanha Ocidental produziram uma grande reorientação em termos de valorização e de interesse, que tenderam a passar de um grupo de modernos para outro: de Benn, Kafka e Thomas Mann para Brecht, para os expressionistas de esquerda e para os escritores políticos dos anos 20, de Heidegger e Jaspers para Adorno e Benjamin, de Schönbereg e Webern para Eisler, de Kirchner e Beckmann para Grosz e Heartfield (...) Nesse contexto, nem as variações sobre o modernismo nos anos 50 nem a luta dos anos 60 por tradições culturais alternativas democráticas e socialistas poderiam ter sido construídas como pós-modernas (Ibidem, 1992: 34).

O autor enfatiza essa questão para argumentar que o pós-modernismo como um

todo não representou uma ruptura completa com a tradição internacional do moderno,

evidenciando que o pós-modernismo norte-americano, ao promover tal ruptura, teve

motivos muito particulares. Huyssen ressalta, inclusive, que o pós-modernismo norte-

americano carregou os mesmos traços de um genuíno movimento de vanguarda,

principalmente em seu impulso de reflexão sobre o estatuto ontológico da arte. Para

desenvolver seu argumento de que nos anos 1960 houve um movimento pós-modernista

(19)

nos Estados Unidos que se diferenciou grandemente das expressões artísticas que se firmavam na Europa, Huyssen apresenta quatro grandes características da fase inicial do pós-moderno norte-americano. A primeira delas enfatiza a afirmação de que as manifestações do pós-modernismo nos anos 1960 estavam muito ligadas à influência dos movimentos de vanguarda europeus do alto modernismo, como o Dadá e o Surrealismo, abrigando noções de ruptura e descontinuidade, bem como um forte sentido de futuro e novas fronteiras, de crise e conflito de gerações - alicerces que sustentaram a mentalidade desses movimentos vanguardistas na Europa.

A segunda característica do movimento nos Estados Unidos, segundo Huyssen, ligou-se ao ataque iconoclástico desferido pelos pós-modernistas à “arte institucional”.

Inspirado nas análises de Peter Bürger sobre modernismo e vanguarda contidas no livro Theory of the avantgarde, Huyssen sugere que coube às vanguardas históricas européias questionar a noção, então prevalecente, de separação entre a grande arte e a vida cotidiana, num movimento que buscava reintegrar arte e vida, gesto que se configurou como a maior ruptura com a tradição esteticista do final do século XIX. Para o autor, é nesse sentido que os vanguardistas europeus se separaram dos representantes do modernismo, que invariavelmente mantiveram ou restauraram versões de arte autônoma ou de cultura superior. Para Huyssen, portanto, o movimento dos pós-modernistas norte-americanos contra a grande arte como discurso hegemônico teve como base de inspiração a atitude das vanguardas européias. Ele comenta que no contexto norte- americano daquele momento, a grande arte havia se institucionalizado na cultura burguesa e o próprio modernismo deveu em grande parte sua visibilidade à reprodução em massa da indústria cultural.

Como terceiro aspecto marcante do pós-modernismo na década de 1960, Huyssen aponta o entusiasmo dos defensores desse movimento com as novas tecnologias da sociedade pós-industrial; tais pessoas viram na televisão, no vídeo e no computador meios para se desenhar uma nova estética. Para o autor, as novidades tecnológicas representaram para os pós-modernistas norte-americanos o mesmo que nos anos 1920 “a fotografia e o cinema tinham sido para Vertov e Tretiakov, Brecht, Heartfield e Benjamin” (HUYSSEN, 1992: 39).

A quarta característica importante dos primórdios do pós-modernismo, para

Huyssen, foi justamente a fusão entre a grande arte e algumas formas de cultura de

massas. Ele afirma que, entusiasmados pelos novos meios de comunicação, os pós-

modernistas dos anos 1960 - a seu ver de forma acrítica - engajaram-se em valorizar a

(20)

cultura popular como um desafio aos cânones da grande arte, sendo que sua celebração de expressões como o rock´n roll, a música folk e imagens da vida cotidiana, entre outros, levou, em contrapartida, ao esvaziamento da postura crítica norte-americana mantida anteriormente em relação à moderna cultura de massas.

Após esse deslinde do que Huyssen denomina pré-história do pós-modernismo, o autor atesta que houve uma grande mudança no cenário cultural já no início da década de 1970, sendo notório que a retórica do vanguardismo extinguiu-se rapidamente e cedeu lugar ao que se pôde denominar de cultura genuinamente pós-moderna ou pós- vanguardista. Isso porque na década de 1970 já não se presenciava o anterior otimismo diante das novas tecnologias, os gestos vanguardistas dos iconoclastas pareciam ter caído no lugar comum, após sua crescente reprodução pelos media; e os movimentos da contracultura, da Nova Esquerda e dos pacifistas eram vistos agora com descrédito.

Todos esses fatores denunciavam o fim dos anos 1960, ao mesmo tempo em que se presenciava uma crescente dificuldade de se delinear com clareza o novo cenário cultural, porque a dispersão tornou-se maior, já não havia estilos tão marcados quanto antes, o que fez as distinções ficarem menos claras (1992: 43-44):

A situação nos anos 70 parece caracterizar-se por uma dispersão e disseminação cada vez mais amplas das práticas artísticas, todas operando a partir das ruínas do edifício modernista, investindo contra ele na busca de idéias, saqueando seu vocabulário e suplementando-o com imagens e temas escolhidos aleatoriamente nas culturas pré-modernas e não-modernas bem como na cultura de massas contemporânea. Os estilos modernistas não foram abolidos, mas, como observou recentemente um crítico, continuam

“desfrutando uma espécie de semivida na cultura de massas”: por exemplo, na publicidade, na programação visual de capas de discos, nos acessórios e produtos domésticos, na ilustração de ficção científica, nas vitrines etc.

Sobre essa profusão de referências nas artes, que passaram a se configurar como

uma das mais fortes características do pós-modernismo, Jameson faz uníssono a

Huyssen, embora não encontremos em Jameson o mesmo otimismo em relação ao

potencial crítico das manifestações pós-modernas - nem mesmo em sua primeira fase,

nos anos 1960. Mas é certo afirmar que, para Jameson, um dos traços mais evidentes da

emergência do pós-modernismo é o apagamento da antiga fronteira moderna entre a alta

cultura e a cultura denominada de massas ou comercial. Nesse aspecto, Jameson é

enfático ao afirmar que os artistas pós-modernos passaram a privilegiar novos textos

impregnados de formas, categorias e conteúdos da indústria cultural, num verdadeiro

culto ao kitsch e ao brega, às paisagens degradadas - inspiradas nos anúncios de motéis

(21)

de Las Vegas - no conteúdo do cinema B de Hollywood, na ficção científica e no romance fantástico ou nos best-sellers de aeroporto. “Eles não mais citam tais textos como teriam feito um Joyce ou um Mahler, eles os incorporam, a ponto de parecer cada vez mais difícil traçar a linha que separa a alta arte das formas comerciais” (JAMESON, 2006a:19).

David Harvey afirma que o aspecto mais peculiar ao pós-modernismo talvez tenha sido “sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico”; para ele, entre a miríade de posições teóricas conflitantes sobre o que significava o pós-modernismo, o único ponto comum à analise dos diversos críticos esbarrava no fato de o pós-modernismo representar uma espécie de reação ao modernismo ou mesmo o afastamento de suas bases. Como resumiu o crítico literário Terry Eagleton (apud HARVEY, 2008: 19):

Talvez haja consenso quanto a dizer que o artefato pós-moderno típico é travesso, auto-ironizador e até esquizóide; e que ele reage à austera autonomia do alto modernismo ao abraçar imprudentemente a linguagem do comércio e da mercadoria. Sua relação com a tradição cultural é de pastiche irreverente, e sua falta de profundidade intencional solapa todas as solenidades metafísicas, por vezes através de uma brutal estética da sordidez e do choque.

Na busca de compreender como as manifestações pós-modernas se situam na contemporaneidade e que relação elas guardam com o período moderno precedente, talvez seja significativo nos atentarmos à crítica realizada por Jameson sobre as artes, as subjetividades e a cultura pós-modernas, pois o autor estabelece um amplo panorama de tais expressões a partir dos anos 1960, bem como apresenta um contraponto das mesmas com àquelas evidenciadas no alto modernismo.

1.1.2. O achatamento da experiência e o presente perpétuo na crítica de Jameson

Um dos primeiros exemplos da crítica de Jameson parte das artes visuais,

quando o crítico compara uma das obras canônicas do alto modernismo, o quadro Um

par de botas, de Van Gogh, aos sapatos encontrados no quadro Diamond dust shoes, de

Andy Warhol. Para Jameson, há diferenças significativas entre o momento do alto

modernismo e do pós-modernismo que ficam evidentes nessas obras. De acordo com

ele, as botas de camponês de Van Gogh são uma resposta a certo tipo de “matéria-prima

inicial”, oferecendo pistas do mundo ausente que antes era seu contexto original, ao

(22)

acionar a “miséria agrícola”, a “labuta rural” e opressiva, num estado mais “primitivo e marginal”. Em contrapartida, os sapatos de Warhol não deixariam nenhum espaço para que o observador pudesse captar essas informações de fundo; mas, de maneira antagônica, figurariam como “uma coleção aleatória de objetos sem vida, pendurados na tela como se fossem nabos, tão desprovidos de sinais de vida anterior como uma pilha de sapatos que ficaram em Auschwitz, ou restos de um incêndio inexplicável em um salão de baile lotado” (JAMESON, 2006b:35).

É dessa maneira que Jameson enfatiza a mercantilização e o fetichismo das mercadorias a que estão submetidas as produções pós-modernas - fatores que desembocam num “novo tipo de achatamento, superficialidade, falta de profundidade e esmaecimento do afeto” - celebrando o fim do gesto utópico encontrado, por exemplo, na pintura de Van Gogh, em que um mundo ferido podia ser transformado.

Esse processo de esmaecimento do afeto, para Jameson, estende-se também às figuras humanas de Warhol (como Marilyn Monroe e Edie Sedgewick) que, reificadas, transformam-se em sua própria imagem. Ao emitir tal juízo, Jameson lança mão da crítica realizada por Guy Debord em A sociedade do espetáculo, texto seminal no qual é anunciado que “a imagem é a forma final da reificação da mercadoria” (JAMESON, 2006a, 181). Por isso, Jameson continua (2006a: 216):

Em uma era anterior, a arte era uma esfera além da mercantilização, na qual uma certa liberdade ainda era possível; no modernismo tardio, no ensaio de Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural, ainda havia zonas de arte isentas da mercantilização e da cultura comercial (para eles, essencialmente Hollywood). Por certo, o que caracteriza a pós-modernidade na área cultural é a supressão de tudo o que havia de exterior à cultura comercial, a sua absorção de todas as formas de arte, altas e baixas, junto com a própria produção de imagens. A imagem é a mercadoria hoje e é por isso que se tornou vão esperar dela uma negação da lógica da produção de mercadorias, e é por isso, enfim, que toda a beleza hoje é prostituída e o apelo a ela pelo pseudoesteticismo contemporâneo é uma manobra ideológica e não um recurso criativo.

É também nas artes visuais que Jameson se concentra para exemplificar o que

ele denomina de “esmaecimento do afeto” percebido nas manifestações artísticas da

pós-modernidade, repetindo o movimento comparativo ao período moderno realizado

anteriormente. Ao descrever o quadro O grito, de Edvard Munch, como “uma expressão

canônica da alienação, solidão, isolamento e anomia” – esses que se configuraram nos

grandes temas da modernidade - Jameson propõe que a pintura de Munch possa ser lida

como uma materialização desse tipo de afeto. Subjacente a essa proposição, está o fato

(23)

de que tal pintura expresse a idéia de um eu coerente, centrado e não fragmentado, do qual seria possível se alienar. Em contrapartida, em razão da fragmentação do sujeito na pós-modernidade, Jameson sugere que conceitos como ansiedade e alienação já não são mais assimiláveis. Ele convoca as experiências com drogas do final dos anos 1960 e a esquizofrenia como as novas possibilidades de patologias culturais contemporâneas.

“Essa mudança na dinâmica da patologia cultural pode ser caracterizada como aquela em que a alienação do sujeito é deslocada pela sua fragmentação” (JAMESON, 2006b:

42). Em conseqüência disso depreende-se que, na falta de um vocabulário de profundidade e complexidade subjetivas, os sujeitos teriam suas vidas emocionais reduzidas a explosões incoerentes e humores sem forma (2006b: 43):

No que diz respeito a expressão e sentimentos ou emoções, a liberação, na sociedade contemporânea da antiga anomie do sujeito centrado pode também implicar não apenas a liberação da ansiedade, mas também a liberação de qualquer outro tipo de sentimento, uma vez que não há mais a presença de um ego para encarregar-se de sentir. Isso não é a mesma coisa que dizer que os produtos culturais da era pós-moderna são completamente destituídos de sentimentos, mas sim que tais sentimentos – a que pode ser melhor e mais correto chamar, seguindo Lyotard, de “intensidades” – são agora auto- sustentados e impessoais e costumam ser dominados por um tipo peculiar de euforia (...).

Sobre esse aspecto é importante ainda compreender que, no entendimento de Jameson, o fim do ego burguês acarretou o fim das psicopatologias desse ego (alienação, ansiedade); mas, em contrapartida, gerou igualmente outros processos que sinalizam o “esmaecimento do afeto”, dentre eles, aqueles que o autor nomeia como

“fim do estilo”, fim da “pincelada individual” e até mesmo “esmaecimento da grande temática do modernismo de tempo e temporalidade” (2006b).

No que diz respeito ao “fim do estilo”, o teórico advoga que, com o

desaparecimento do sujeito individual da modernidade, sucumbiram também as marcas

estilísticas particulares e inconfundíveis, só restando, na pós-modernidade, a

possibilidade de repetição do passado, por meio da realização do pastiche, que é a

imitação de um estilo único. Porém, o pastiche seria “uma paródia branca, uma estátua

sem olhos” incapaz de conter sequer o “riso próprio à paródia” (2006b). Para Jameson,

com o colapso da ideologia do estilo modernista, os artistas contemporâneos só podem

recorrer ao passado e imitar estilos mortos. Ele identifica essa recorrência ao passado,

por exemplo, nas produções do cinema - através da proliferação dos “filmes de

nostalgia” - e na arquitetura, que “canibaliza todos os estilos arquitetônicos do passado e

(24)

os combina em ensembles exageradamente estimulantes” (2006b). Com vistas a tais fenômenos é que Jameson denuncia o “esmaecimento da historicidade” nas realizações pós-modernas, pois, em seu entendimento, tanto o passado é esvaziado de seu sentido, a exemplo do romance histórico que passa a abrigar uma coleção de imagens à guisa de simulacro, como os sujeitos ficam impossibilitados de produzir representações da sua experiência corrente:

Desse modo, a produção cultural é relegada a um espaço mental que não é mais o do velho sujeito monádico, mas o de um “espírito objetivo” coletivo e degradado: ela não pode mais contemplar um mundo real putativo, ou uma reconstrução de uma história passada que antes era um presente; em vez disso, como na caverna de Platão, tem que traçar nossas imagens mentais do passado nas paredes que as confinam. Se sobrou algum tipo de realismo aqui, é o realismo derivado do choque da percepção desse confinamento e da consciência gradual de que estamos condenados a buscar a História através das nossas próprias imagens pop e dos simulacros daquela história que continua para sempre fora de nosso alcance (Ibidem2006b: 52).

Segundo Jameson, essa crise da historicidade traz em seu bojo importantes questões relativas à organização da temporalidade, pois se o sujeito perde a capacidade de organizar seu passado e seu futuro como uma experiência corrente, é difícil supor como os objetos produzidos por tal sujeito possam resultar em algo coerente, coeso e não fragmentário. Por isso mesmo, a forma pós-moderna de retratar o mundo por meio de fragmentos em perpétua mudança e a conseqüente quebra da linearidade dos discursos causa efeitos sobre a personalidade e a psique dos sujeitos que, na pós- modernidade, acabam por desenvolver uma forma esquizofrênica de interpretação da sua história pessoal. Porém, como explica Harvey, a esquizofrenia aqui não deve ser compreendida em seu sentido clínico estrito, mas como metáfora a dizer da desordem de noção temporal à qual os sujeitos estão submetidos:

Jameson (1984b) explora esse tema com um efeito bem revelador. Ele usa a descrição de Lacan da esquizofrenia como desordem lingüística, como uma ruptura na cadeia significativa que cria uma frase simples. Quando essa cadeia se rompe, “temos esquizofrenia na forma de um agregado de significantes distintos e não relacionados entre si”. Se a identidade pessoal é forjada por meio de uma “certa unificação temporal do passado e do futuro que tenho diante de mim”, e se as frases seguem a mesma trajetória, a incapacidade de unificar o passado, o presente e o futuro na frase assinala uma incapacidade semelhante de “unificar o passado, o presente e o futuro da nossa própria experiência biográfica ou psíquica”. Isso de fato se enquadra na preocupação pós-moderna com o significante, e não com o significado, com a participação, com a performance e o happening, em vez de com um objeto de arte acabado e autoritário, antes com as aparências superficiais do que com as raízes (Harvey, 2008: 56).

(25)

A partir desta noção de esquizofrenia, Jameson sugere que a ruptura da temporalidade ou a redução da experiência a presentes perpétuos torna essa mesma experiência poderosa, portadora de “uma vivacidade indescritível” e uma “materialidade da percepção verdadeiramente esmagadora”. Porém, ele ressalta que essa “disjunção esquizofrênica” ou écriture, quando adquire status de estilo cultural se desvincula das conotações negativas, cedendo lugar a interpretações mais “alegres”, nos termos da euforia:

Esse presente do mundo, ou significante material, apresenta-se diante do sujeito com maior intensidade, traz uma misteriosa carga de afeto, aqui descrita nos termos negativos da ansiedade e da perda da realidade, mas que seria possível imaginar nos termos positivos da euforia, do “barato”, de uma intensidade alucinógena ou intoxicante (Jameson, 2006b: 54).

Para Jameson, essa forma de percepção dos sujeitos na contemporaneidade tem também como causa a extrema fragmentação adquirida pela imagem. A rapidez da edição das seqüências e tomadas televisivas propicia, por exemplo, que anúncios que duram apenas meio minuto carreguem um número significativo de imagens distintas, não causando, no entanto, “a estranheza ou a perplexidade da obra de um grande cineasta independente modernista como Stan Brakhage” (JAMESON, 2006a: 238).

Nesse sentido, o fragmento de narrativa, que no modernismo seria incompreensível sem o todo, no pós-modernismo tornou-se autônomo, com capacidade de absorver o conteúdo, projetando-o em um tipo de reflexo instantâneo. “A situação de contingência ou de falta de significado, de alienação, foi superada por essa renarrativização cultural dos pedaços quebrados do mundo” (JAMESON, 2006a: 253).

Com o intuito de deslindar um pouco mais sobre as manifestações de intensidade e euforia pós-modernas, levando em conta as categorias do tempo e do espaço, Jameson se voltou para a arquitetura - terreno identificado por ele como detentor de vários aspectos reveladores da “falta de profundidade” típica das produções contemporâneas.

“A arquitetura continua sendo, então, a linguagem estética privilegiada; e os reflexos distorcidos e fragmentados de uma superfície de vidro a outra podem ser considerados paradigmáticos do papel central do processo e da reprodução na cultura pós-moderna”

(JAMESON, 2006b: 63).

Para embasar essa afirmação, Jameson analisou a maneira como foi projetado o

Hotel Bonaventure, considerado por ele um edifício totalmente pós-moderno. O

Bonaventure se situa no novo centro de Los Angeles e seus ambientes propõem uma

(26)

nova relação espacial, causando uma espécie de “desorientação” nos visitantes que transitam em seu interior. As inferências de Jameson a partir da observação ao edifício, são de que houve uma mutação avassaladora no espaço construído; ou seja, teria havido uma mudança profunda no objeto, ao mesmo tempo em que o aparelho perceptivo dos sujeitos não acompanhou tal mutação. Para o autor, é como se a arquitetura pós- moderna exigisse dos sujeitos o “desenvolvimento de novos órgãos”, a expansão de seu

“equipamento sensorial” para que a interação com a obra fosse favorecida. É nesse sentido que, segundo ele, a arquitetura “finalmente conseguiu ultrapassar a capacidade do corpo humano de se localizar, de organizar perceptivamente o espaço circundante e mapear cognitivamente sua posição em um mundo exterior mapeável” (JAMESON, 2006b: 70).

Desse modo, é rica a descrição de Jameson sobre a disposição espacial no Bonaventure (2006b: 65):

O Bonaventure tem três entradas, uma pela Figueroa e as outras duas por jardins elevados do outro lado do hotel, construídos no que restou do que ainda era Bunker Hill. Nenhuma das três é parecida, nem de longe, com as marquises dos velhos hotéis, ou com os monumentais porte cochere com que os suntuosos edifícios de antigamente marcavam nossa passagem da rua para seu interior. As entradas para o Bonaventure são, digamos assim, parecidas com entradas laterais ou de fundos: os jardins de trás nos levam ao sexto andar e, uma vez lá, temos que descer a pé um andar até achar um elevador que nos leve até o saguão. Por sua vez, a entrada que ainda somos tentados a considerar como principal, em Figueroa, nos leva, com bagagem e tudo, ao segundo andar do shopping, de onde é preciso pegar uma escada rolante até a portaria principal. O que primeiro quero sugerir a respeito desses caminhos curiosamente demarcados é que eles parecem ter sido impostos por uma espécie de nova categoria de fechamento que governa o espaço interno do próprio hotel (...) o Bonaventure aspira a ser um espaço total, um mundo completo, uma espécie de cidade em miniatura; ao mesmo tempo, a esse novo espaço total corresponde uma nova prática coletiva, uma nova modalidade segundo a qual os indivíduos se movem e se congregam, algo como a prática de uma nova e historicamente original hipermultidão.

Ao formular tais considerações, Jameson contrapõe essa modalidade de

construção pós-moderna ao projeto da arquitetura modernista, no qual a cisão com o

espaço urbano tinha um significado simbólico real, como nos grandes pilotis de Le

Corbusier, que tendiam a separar de forma incisiva o novo espaço utópico moderno do

espaço degradado da cidade, pois, em linhas gerais, o ideal dos arquitetos modernistas

era o de transformar o ambiente urbano por meio de suas inovações artísticas. No

entendimento de Jameson, edifícios como o Bonaventure, ao contrário, não pretendem

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modificar absolutamente nada, não ansiando por “transformação utópica protopolítica”

alguma.

Avançando um pouco na descrição dos aspectos que seriam responsáveis pela

“desorientação” dos sujeitos no Hotel Bonaventure, Jameson destaca o papel das escadas rolantes e dos elevadores, que ultrapassam sua destinação meramente funcional, confirmando uma tendência da nova arquitetura (que busca inspiração nas histórias e narrativas virtuais, as quais os sujeitos são convocados a completar com o seu próprio corpo e movimento). Logo, o autor conclui que os elevadores e escadas do Bonaventure parecem substituir o próprio movimento, descartando de vez o velho “passeio a pé”.

Outro aspecto revelador apontado por Jameson é a disposição da grande coluna central, que fica cercada por quatro torres residenciais com elevadores e sacadas em relevo, dificultando completamente a apreensão de volumes ou perspectivas, perturbando também a percepção das formas e do vazio. É neste sentido que Jameson denuncia a planificação ou a “falta de profundidade” na arquitetura pós-moderna (2006b: 69):

Estamos metidos nesse hiperespaço com nossos olhos e nossos corpos; e se antes parecia que a supressão da profundidade, a que me referi ao tratar da pintura e da literatura pós-moderna, seria difícil de conseguir na arquitetura, talvez a imersão nesse espaço desconcertante possa agora servir como o seu equivalente formal no novo medium.

Como se pode observar, os aspectos centrais da crítica de Jameson pontuados até aqui, referem-se, em maior ou menor grau, a transformações nas noções de tempo e espaço que na pós-modernidade promoveram modificações flagrantes sobre a sensibilidade e a subjetividade dos indivíduos. Nesse sentido é que buscaremos compreender agora como as categorias de tempo e espaço sofreram, elas próprias, mutações na pós-modernidade, tendo sido submetidas à intensificação daquilo que David Harvey denomina “compressão do tempo-espaço”

1

, fenômeno que já havia apresentado sintomas bastante expressivos durante a modernidade, e, exatamente por isso, merecem ser explorados por nós.

1 Com a utilização do conceito “compressão do tempo-espaço” David Harvey pretende indicar os processos que revolucionam as qualidades objetivas do espaço e do tempo a ponto de nos forçarem a alterar, às vezes radicalmente, o modo como representamos o mundo para nós mesmos. Harvey indica que seu uso da palavra “compressão” deve-se ao fato de haver fortes indícios de que o capitalismo tem se caracterizado pela aceleração do ritmo da vida, ao mesmo tempo em que venceu barreiras espaciais em tal grau que por vezes o mundo parece encolher sobre nós. “À medida que o espaço parece encolher numa

“aldeia global” de telecomunicações e numa “espaçonave terra” de interdependências ecológicas e econômicas – para usar apenas duas imagens conhecidas e corriqueiras -, e que os horizontes temporais se reduzem a um ponto em que só existe o presente (o mundo do esquizofrênico), temos de aprender a lidar com um avassalador sentido de compressão dos nossos mundos espacial e temporal” (HARVEY, 2008:

219).

(28)

1.1.3. “Compressão do tempo-espaço”: o reordenamento da percepção e os novos modos de experiência e subjetividade

De acordo com Harvey (2008), já na modernidade se havia presenciado um reajuste radical do sentido de tempo e espaço na vida econômica, política e cultural, fato que gerou uma significativa crise de representação nas artes. Tais redimensionamentos nos diversos âmbitos do cotidiano foram tributários da primeira grande crise de superacumulação do capitalismo, cujo sintoma mais evidente foi a grande depressão que assolou a Inglaterra nos anos de 1846-1847. Para Harvey, se até 1848 certos setores progressistas da burguesia ainda podiam defender as noções iluministas de tempo e espaço homogêneos e absolutos, com seus mapas “matematicamente rigorosos” e

“totalizantes” e suas perspectivas “newtonianas” e “mecânicas” do universo, após aquele ano essa visada não encontrava mais eco nos acontecimentos sociais. Como situa o autor (2008: 238):

Os acontecimentos provaram que a Europa tinha alcançado um nível de integração espacial em sua vida econômica e financeira que tornaria todo o continente vulnerável à formação simultânea de crises. As revoluções políticas que tinham irrompido ao mesmo tempo em todo o continente acentuaram as dimensões sincrônicas e diacrônicas do desenvolvimento capitalista. A certeza do lugar e do espaço absolutos foi substituída pelas inseguranças de um espaço relativo em mudança, em que os eventos de um lugar podiam ter efeitos imediatos e ramificados sobre vários outros.

Ainda de acordo com Harvey, é importante notar que se a crise de 1848 teve conseqüências fundamentais sobre o espaço e o tempo, as soluções políticas e econômicas buscadas para superá-la depois de 1850 acabaram por fomentar ainda mais a exploração do deslocamento temporal e espacial, pois com a implantação de novos sistemas de crédito e de formas coorporativas, presenciou-se a aceleração da circulação em massa do capital. Além disso, fatores como a expansão da rede de estradas, o advento do telégrafo, o desenvolvimento da navegação a vapor e os primórdios da comunicação pelo rádio foram definitivos nesse processo.

Como já foi dito anteriormente, todos esses fatores geraram uma grande crise de

representação, afetando a maneira como as artes e a literatura passaram a refletir sobre o

mundo. Não por acaso, os romances de Flaubert celebraram a simultaneidade e a

sincronia, as pinceladas de Manet modificaram a relação espacial da pintura, alterando

os enquadramentos e investindo na fragmentação da luz e da cor, a poesia de Baudelaire

tornou-se mais atemporal e desligada de localizações. Essas transformações também

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