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Ponderações sobre a ininteligível e intraduzível : Quão musical é a música e qual a função da música?

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Academic year: 2021

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Ponderações sobre a “ininteligível” e “intraduzível”: Quão musical é a música e

qual a função da música?

Aaron Lopes

Quão musical é a música?

“Se os sons podem aparecer numa música, isto já deve estar neles. (...) Dados todos os sons estão dadas também todas as músicas possíveis” Felipe Pires Ribeiro Uma debatida questão não apenas da etnomusicologia, mas de todas as áreas da música, é a definição de algum conceito aceitável do que ela seria. Blacking (1979, pg.1) usa uma definição de Geertz para música. Segundo ele, música é “som organizado segundo padrões sociais aceitáveis”. Esta é uma visão antropológica do conceito de música, pois com essa afirmação Blacking pressupõe que:

1. Música só seria produzida socialmente, ou seja, para fazer música, o ser humano(e somente ele) teria que ter sido “socializado”, ou no mínimo ter algum padrão de música pré definido. 2. Algum evento sonoro só seria música a partir do momento em que fosse organizado.

A isso, Nettl (2005, p.18) acrescenta termos como os de “agradabilidade, expressividade e inteligibilidade”, encontrados em alguns dicionários de música. Ou seja, não basta só ser produzido pelo homem organizadamente, mas algum evento só se tornaria música caso fosse belo, agradável e inteligível.

Essas definições foram bem aceitas durante muitos séculos na cultura ocidental, até o surgimento do fonógrafo e a abertura dos ouvidos europeus às músicas “exóticas” do resto do mundo(OLIVEIRA PINTO, 2008b). Pouco a pouco, essas novas sonoridades começaram a quebrar com os pré-conceitos do que seria música e do que não seria música segundo a visão ocidental1.

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Além do contato com as músicas “exóticas”, outro fator de quebra de pré-conceitos sobre a músicaam foi o movimento de vanguarda da música contemporânea ocidental. As ideias do movimento foram em direção às quebras de parâmetros antes tidos como essenciais como o conceito do belo e da tonalidade. Além disto, ampliou ainda mais a visão do que ela seria ao enxertar os sons naturais, artificiais e paisagens sonoras. Música então não seria um privilégio apenas dos seres humanos.

A vanguarda chegou ao extremo de expandir o conceito de música a qualquer coisa ou evento, não necessariamente sonoro. Como afirma MORAES (1983, pgs. 7, 8) “se pode perceber música não apenas naquilo que o hábito convencionou chamar de música, mas – e sobretudo – onde existe a mão do ser humano, a invenção. invenção de linguagens: formas de ver, representar, transfigurar e de transformar o mundo”.

Percebe-se, por estes exemplos, a enorme expansão que adquiriu a definição do que seria música. algumas delas, como esta de Moraes, não são bem aceitas em alguns grupos de estudiosos. O fato é que o conceito de música foi tão expandido no século XX que ainda não se conseguiu chegar a nenhum termo consensual que compreenda todas as atividades, estéticas e culturas que se relacionem com a música e a entendam de uma mesma maneira. Com relação às visões interculturais de música afirma Nettl (2005, p.17): “O ponto é que não existe uma conceitualização ou definição de música válida interculturalmente1”.

Devido a estes fatores, não se torna assim tão absurda quanto parece ser a pergunta: quão musical é a música? (um trocadilho com o título do livro de John Blacking – how musical is man?).

Na verdade ela é apenas um reflexo dessa busca por um conceito aceitável às diversas vertentes que

se propõem a definir música. Além disto, ela traz em si outras perguntas – o que seria a definição do termo “musical” e do termo “música” e o que faz com que algo seja musical e se torne música? Talvez essa incapacidade em se conceitualizar música se deva ao fato de a linguagem verbal ser insuficiente para expressá-la. Blacking (1979) diz que a música é um “modelo de sistema primário”

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de linguagem, ou seja, é um fenômeno biológico essencial para a formação do ser humano enquanto

homo sapiens. Mas, diferente da linguagem verbal, necessária para a comunicação e o entendimento

humano, a música não expressa nada além de si mesma2.Para Lévi-Strauss (1969, pg.18 apud Blacking, 1979, pg. 5) “música é o mistério supremo da ciência do homem, um mistério onde todas as várias disciplinas vão de encontro e a que alcança as chaves do seu progresso3”. e chega à conclusão de que ela é “ininteligível” e “intraduzível”4.

Esgotadas as discussões e haja vista a dificuldade em se conceitualizar e entender esse “mistério supremo” “inteligível” e “intraduzível”, Oliveira Pinto (2008a) constata uma mudança de foco dos estudiosos em etnomusicologia:

Uma pergunta que cada vez menos se pronuncia entre etnomusicólogos é 'o que é música?'. Interessa antes disso saber para que é feita ou qual a proposta da sua performance, momento em que toda música está viva e portanto 'não congelada' em partitura ou registro sonoro.

Qual a função da música?

Como discutido anteriormente, a definição do conceito de música tornou-se tão complexo que alguns estudiosos, haja vista a total incapacidade de consenso entre eles, resolveram dar uma ênfase maior ao aspecto performático5 e funcional da música. Como ela é inata ao ser humano e ao “todo complexo” (entendido como cultura) todas as sociedades possuem música, mesmo que não tenham um termo para ela (Nettl, 2005). Uma outra grande questão etnomusicológica é saber qual a sua função social, cultural e simbólica na sociedade estudada.

2 Em outro artigo, Blacking (1995, pg.35) afirma que a música “não expressa nada extramusical ao menos que a experiência à qual se refere já exista na mente do ouvinte”.

3 Music is the supreme mystery of the science of man, a mystery that all the various disciplines come up against an wich holds the key to their progress.

4 Sobre isso, MORAES (2008, pg. 14) afirma: toda língua existente ainda hoje, apesar da sua margem de especificidade, da sua maneira e 'atualizar' toda uma visão do mundo, pode ser passada para uma outra sem danos excessivos, quando cuidadosamente recriada. isso não acontece com a música. a manifestação de um povo em particular, estrato que dá a impressão de estar voltado para si mesmo, perde a maioria dos seus traços característicos e fundamentais quando 'traduzida' para a de outra comunidade. haveria algo de mais falso do que a transcriação para piano de uma canção de ninar cantada, nas florestas do Xingu, por uma mãe da tribo Javaé?”.

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Nesses termos, mesmo que não se tenha uma definição do fenômeno música, Blacking (2000, p. 32) afirma que o aspecto funcional da música pode ajudar nesta busca de uma conceitualização da mesma: “No sentido de achar o que é a música e quão musical é o homem, temos que nos perguntar quem ouve e quem toca e canta em uma dada sociedade e porquê?”

Já pensando apenas na questão da função da música, Blacking, em outro texto, (1995, p.31) arrisca: A função da música é melhorar de alguma forma a qualidade da experiência individual e das relaçoes humanas; suas estruturas são reflexos de padrões destas relações, e o valor de uma peça musical como música é inseparável do seu valor enquanto expressão da experiência humana.6

Esta é uma afirmação delicada e etnocêntrica, pois cada sociedade tem uma visão diferente do que seja a função da música que produzem. Quando se refere às questões de “qualidade da experiência individual” e coletiva, Blacking pensa nos sentidos transcendental – tanto ritual quanto social – e intelectual da música, fatores estes que preponderam em muitas das culturas humanas.

Mas Nettl (2005, p.23) vai de encontro a esta afirmação de Blacking, ao dizer que assim como o valor da música em uma sociedade pode ser algo “supremamente valoroso”, em outras pode ser um “mal necessário”. Em algumas culturas, a música tem um valor muito baixo e seus praticantes tem um status baixíssimo na escala social. Logo, nestas culturas, a música não tem a função de melhorar a experiência humana, mas pelo contrário, piora esta experiência.

Podemos trazer esta discussão para o contexto brasileiro, onde a música e seus diversificados estilos tem várias funções, e seus praticantes, valores sociais completamente diferentes. Pode-se tomar dois exemplos desta dicotomia: de um lado, o músico que se dedica ao estudo da música “erudita” no Brasil possui altíssimo status social, pertencendo ao chamado grupo dos “intelectuais”, pessoas que possuem um vasto conhecimento sobre os mais variados assuntos, e, portanto, evoluídas mental e transcendentalmente. A música é considerada de “altíssima qualidade”, sua execução é vista como difícil e à custa de muitos anos de estudo, sem os quais não se consegue executar as várias nuances e significados que ela tem.

No outro extremo, os músicos de gênero como o pagode ou o arrocha baianos sofrem um grande

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preconceito por fazerem este tipo de música. Na sociedade em geral impera o pensamento de que pessoas que produzem este tipo de música são, para usar o termo mais comum, “ignorantes” e, portanto, não deveriam fazer o que fazem por ser uma música de “baixa qualidade”. Logo, no pensamento coletivo, esta música não melhora de forma alguma a existência humana e muito menos possui qualquer tipo de valor transcendental. Ela, ao contrário, piora a existência de quem a aprecia ou pratica.

Outro gênero que é estigmatizado por essa concepção preconceituosa é o siriri mato-grossense, justamente por se tratar de uma música dita tradicional e feita por pessoas com baixo poder aquisitivo – a chamada música “folclórica”7. Durante muitos anos esse estilo foi tratado como de “baixa qualidade” pela sociedade cuiabana, vislumbrada com a riqueza financeira da cultura do sudeste brasileiro, com a qual se identifica e tenta imitar, em uma atitude claramente colonialista8. Mas o que acontece em Cuiabá nos dias atuais é uma ressignificação social do estilo do siriri. Apesar de existir esta diferença de status social dos variados estilos musicais, esta não é uma realidade irreversível: a música subjugada pode mudar de importância na sua cultura de acordo com a mudança na mentalidade da sociedade.

O que acontece com o siriri é parecido com o que aconteceu com o samba no início do século XX. Segundo Vianna (2004, p.28, 29), “Num primeiro momento, o samba teria sido reprimido e enclausurado nos morros cariocas e nas “camadas populares”. Num segundo momento, os sambistas conquistando o carnaval e as rádios, passariam a simbolizar a cultura brasileira em sua totalidade”.

O siriri é visto hoje como um símbolo da cultura mato-grossense, deixando de ser um estilo de “baixa qualidade” para se tornar um estilo de “alta qualidade”, representativo da identidade cuiabana e mato-grossense.

7 Segundo Reily (1990, p.6,7) “nesta obsessão pelo irracional para validar a razão como valor superior, estabeleceu-se uma divisão da sociedade – e mesmo da humanidade – em dois grupos: os que possuíam 'cultura' e os que estabeleceu-se possuíam 'folclore'.” a autora se refere à origem do conceito de folclore segundo a visão da Inglaterra vitoriana. esta visão prevaleceu durante muitos séculos sendo assimilada pela cultura brasileira.

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Esse julgamento de valor acerca de diferentes músicas ou estilos musicais se deve muito à sua aparente complexidade sonora. Mas é importante perceber essa mudança de perspectiva social de um estilo musical para perceber que, de fato, o que importa nesse julgamento são os padrões de aceitação cultural e não de parâmetros musicais, pois a música, a priori, permanece a mesma.

Abordando esta questão, Blacking (2000, p.34) conclui que não se pode julgar uma música como melhor ou pior do que a outra pela sua aparente complexidade. Segundo o autor: “ a questão da complexidade musical é irrelevante em qualquer consideração de competência musical.9”

Além da complexidade musical, a aparente emoção causada aos membros da cultura também são parâmetros utilizados neste julgamento. Mas Blacking (id. p.33) também contesta isso, ao afirmar que “mesmo que tenhamos nossas preferências pessoais, não podemos julgar a eficácia da música ou os sentimentos dos músicos pelo que vemos acontecer com as pessoas”10. O autor argumenta que sentimentos são muito particulares e que cada pessoa reage de forma diferente a algo ou alguma situação.

Muitas perguntas e nenhuma resposta.

Estas duas perguntas formuladas neste artigo – quão musical é a música e qual a função da música – são apenas algumas reflexões feitas pelos autores discutidos aqui. Não se tem pretensão nenhuma em respondê-las, mas sim, em levantar questionamentos necessários a um maior entendimento desta área tão árdua como é a música e, mais precisamente, a etnomusicologia.

A música hoje deixou de ser apenas relação de som com silêncio. Ela também engloba “conceitos”, “conhecimento”(Merrian, 1964, p.32,33 apud Nettl, 2005, p.24), processos e o que mais puder ser pensado musicalmente. Atualmente, devido à falta de um termo que defina toda essa dimensão atingida pela música, podem existir vários termos que convivam e tenham suas próprias respostas para ela, cada um reconhecendo as suas limitações.

9 The issue of musical complexity is irrelevant in any consideration os musical competence.

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Não se sabe também qual a sua função, ou, como sempre se pergunta em seminários de música, “para que ela serve?”11. Somente o que se sabe sobre a função da música é a sua importância para a raça humana. Ela existe em todas as culturas e mesmo que algumas não tenham um termo para ela, é como afirma Blacking (1979), biologicamente inata ao homo sapiens, tão importante quanto à linguagem.

Depois de tantos questionamentos sobre ela, só o que se sabe hoje em dia é que a música existe e pode estar presente em todos os lugares. Ela tornou-se onipresente, assim como um Deus. Assim como as nove Deusas filhas de Zeus, as musas, que inspiraram muitos estudiosos da música e muitos amores também.

Referências

BLACKING, John. 1979. “The Study of Man as Music-Maker.” In The Performing Art Music and

Dance. Editado por John Blacking and Joann W. Kealiinohomoku. New York: Mouton Publishers.

Pp. 33-45.

___________, John. 1995. “Expressing Human Experience through music.”In Music, Culture &

Experience. Editado por Reginald Byron. Chicago: University of Chicago Press. Pp. 31-53.

___________, John. 2000. “Music in society and culture.” In How musical is man? 6ª ed. Seatlte: University of Washington Press. Pp.32-53

CARVALHO, José Jorge de. 1999. Transformações da sensibilidade musical contemporânea. In:

Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 5, n.11, p.53-91.

MORAES, J. Jota. 1983. O que é música. Brasília: Ed. Brasiliense.

NETTL, Bruno. 2005. “The art of combining tones: the music concept.” In The Study of

Ethnomusicology: thirty-one issues and concepts. Urbana e Chicago: University of Illinois Press.

Pp.16-27.

REILY, Suzel Ana. 1990. Manifestações Populares: do “aproveitamento” à reapropriação. In: Do

folclore à cultura popular: encontro de pesquisadores nas Ciências Sociais. USP.

RIBEIRO, Felipe Pires. Esquizopathológica: música (parte I). S/D. Disponível em: http://www.rizoma.net/interna.php?id=242&secao=esquizofonia. Acesso em: 30/04/2009

OLIVEIRA PINTO, Tiago. Etnomusicologia: da música brasileira à música mundial. In: Revista da

USP, São Paulo, n.77, p. 6-11, março/maio 2008 a.

___________. Ruídos, timbres, escalas e ritmos: sobre o estudo da música brasileira e do som musical brasileira e do som tropical. In: Revista da USP, São Paulo, n.77, p. 6-11, março/maio 2008 b.

VIANNA, Hermano. O mistério do samba/ Hermano Vianna. Jorge Zahar editora, 5ª ed., Rio de janeiro, 2004.

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