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JIHGFEDCBA
M ER LEA U -PO N TY E O PR IM A D O D A PER C EPÇ A O :
D iálogos com a P sicanálise
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Nelson Ernesto Coelho junior"
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E ste texto pr ocur a a pr esenta r a s r ela ções e o possível diá logo entr e a s concepções do filósofo fr a ncês
VUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
P l s u n c e Mer lea u~ P onty sobr e a per cepçã o e o pensa mento psica na lítico. Atr a vés de um per cur so pela obr a de
e .ea u~ P onty é entiuized» a impor tâ ncia que o a to per ceptivo possui na estr utur a çã o de sua filosofia . A seguir ,
e s a a-se a pr esença da teor ia psica na lítica nos últimos textos do filósofO .
P a la vr a s cha ve: P er cepçã o, tenomenologie, Mer lea u~ P onty, psica ná lise .
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-PO N TY A N D rl'llE PR IM A C Y O F PER C EPnO N : dialogs w ith psychoanalysis
- STRAC T
This pa per tr ies to pr esent the dia logue between Mer lea u~ P ontys conception a bout per ception a nd tbe
- ~ '1 a na /ytic thought. Thr oughout Mer lea u~ P ontys wor k, the impor tence ofthe per ceptua l a ct to the building
_.' s philosopby is emphezised. As a second step, the pr esence ofthe psychoa na /ytica l theor y in the la st pa per s
.: r ; e philosopber is investiga ted
Key wor ds: P e r c e p t i o n , phenomenology, Mer lea u~ P onty, psychoa na /ysis.
essor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Revista de Psicologia, fortaleza, V.150/2) V.160J2) p.ll - p.25 jan/dez 1997/98 Ano de Publicação 2000
I n tr o d u ç ã o
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As relações entre a filosofia de Merleau-Ponty e
a psicanálise são múltiplas, como atestam as
inumerá-veis referências à psicanálise presentes nas obras do
filósofo e o bom número de artigos escritos pelos
prin-cipais psicanalistas franceses sobre a sua filosofia
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I .Neste texto o objetivo é apresentar aspectos desta
re-lação a partir de uma análise da concepção
merleau-pontiana da percepção.
Como se sabe, principalmente a partir da
publi-cação de sua tese
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F enomenologia da P er cepçã o, em1945, Merleau-Ponty passa a ser reconhecido como
um pensador que, na tradição inaugurada pela
fenomenologia de Husserl. coloca a percepção como
tema central de suas investigações filosóficas.
Merleau-Ponty inicia seu trabalho com uma
rigo-rosa crítica ao estudo da percepção realizado pelas
correntes empiristas e racionalistas na filosofia e na
psicologia. Em resumo, ele critica a concepção empirista
por considerar que nela a percepção é apenas um
re-gistro das informações sensoriais recebidas do mundo
exterior. Já a concepção racionalista, é criticada por
considerar o julgamento ou o pensamento como as
únicas funções capazes de dar sentido às impressões
sensoriais, que por si só nada significariam.
Criticando os preconceitos clássicos presentes nas
teorias da percepção predominantes na filosofia e na
psicologia, Merleau-Ponty afirma:
A per cepçã o a ssim empobr ecida tor na -se uma pur a oper a çã o de conhecimento, um r egistr o pr ogr essivo da s quelidedes e de seu desenr ola r ma is costumeir o, e o sujeito que per cebe está dia nte do mundo como ocientista dia nte de sua s exper iência s. Ao contr á r io, se a dmitimos que toda s essa s "pr ojeções': toda s essa s "a ssocia -ções'; toda s essa s "ir enster énciss" estã o funda -da s em a lgum ca r á ter intr ínseco do objeto, o
"mundo huma no" deixa de ser uma metá for a pa r a volta r a ser equilo que com eteito ele
ti
o meio e como que a pá tr ia de nossos pensa men-tos. O sujeito que per cebe deixa de ser um su-jeito p en sen te "a cósmico'~ " (1945, p.32)Merleau-Ponty apóia suas críticas na teoria
fenomenológica formulada por Edmund Husserl. Mas
de Husser! ele herda uma concepçâ específica da
consciência e em suas obras iniciais vm ula a
percep-ção à nopercep-ção de consciência intencional. ropondo o
conceito de consciência per ceptiva . Apesar de se
afas-tar da noção clássica de consciência, Merleau-Ponty
não abandona de vez a filosofia da consciência
pre-sente em Husserl. Será só em seu último livro, O
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V Isí-vel e o Invisível, que Merleau-Ponty realizará a crítica
a estas concepções de seus primeiros textos.
As proposições iniciais do autor em sua tese
F enomenologia da P er cepçã o (1945) traduzem com
clareza suas primeiras posições, onde a crítica ao
mo-delo representacional da percepção e da consciência
já pode ser notada: "Sistema de potências motoras ou.
de potências perceptivas, nosso corpo não é objeto para
um "eu penso": ele é um conjunto de significações
vi-vidas."(1945, p179) E mais a frente:
U ma pr imeir a per cepçã o sem nenhum fundo é inconcebível Toda per cepçã o supõe um cer to pa ssa do do sujeito que per cebe, e a tu n çso a bs-tr a ta de per cepçã o, enqua nto encontr o de obje-tos, implica um a to m a i s secr eto pelo qua l ela -bor a mos nosso a mbiente. (1945, p.326)
Além da influência das teses da Psicologia da
Gestalt. das quais Merleau-Ponty é herdeiro confesso
no início de seu trabalho, podemos reconhecer nestas
frases temas próximos aos da investigação psicanalítica
levada a cabo por Freud em sua segunda tópica/ .Mas
a possibilidade de diálogo entre as pesquisas de
Merleau-Ponty e Freud sobre a percepção ficará ainda
maior nos últimos escritos do filósofo francês,
basica-mente em seu livro inacabado O Visível e o Invisível,
publicado postumamente, em 1964. Aprofundando sua
concepção do corpo, Merleau-Ponty propõe a noção
de carne (cha ir ):
A noçã o essencia l pa r a ta l filosofia éa de ca r ne, que nã o é ocor po objetivo, que nã o éta mpouco o cor po pensa do pela a lma (D esca r tes) como seu, que é osensível no duplo sentido da quilo que sentimos e da quilo que sente. ( . .) P or ta nto, a filosofia de F r eud nã o é a filosofia do cor po ma s da ca r ne. -
O
id . oinconsciente, - e o ego(cor r eletivos) pa r a ser em compr eendidos a pa r
-tir da ca r ne.(1964a , pp.3l3;324)
ICf. FRAIZE- PEREIRA, J.A (1996) e COELHO JUNIOR. N. (1991) para referências específicas sobre este tema.
2Cf. COELHO JUNIOR, N. E. (1998) para uma análise destes aspectos na obra de Freud.
Nesta última fase de seu trabalho, Merleau-Ponty
é claro quanto às possibilidades de convergência entre
fenornenologia e psicanálise. No prefácio que escreve
ao livro do psicanalista francês A. Hesnard.
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A O br a deF r eud( I 960b), o filósofo comenta: "Esta fenomenologia
que desce a seu próprio subsolo está mais do que
nun-a em convergêncinun-a com a investigação freudiana."
•960b, p. 10)
Merleau-Ponty referia-se aqui às propostas
j:"enomenológicas das últimas obras de Husserl. Esta
fenomenologia. mais próxima das relações primeiras
~ corpo com o mundo será a base dos trabalhos
fi-nais de Merleau-Ponty que, não por acaso, toma
tarn-ém a psicanálise freudiana como referência
eterrninante. No último item deste texto
apresenta-rei de forma detida esta relação entre Merleau-Ponty
e a psicanálise, muito presente nos últimos textos do
filósofo.
Para Merleau-Ponty, afirmar a objetividade da
ercepção ou a subjetividade da percepção é estar cego
ara a permanente ambigüidade do ato perceptivo;
erceber é, ao mesmo tempo, abertura para o externo,
ara o diverso, para o que se objetiva e "projeção" do
róprio, do interno, daquilo que se constrói como
sub-euvo. Para ser exato, é a própria oposição sujeito-
ob-iero que é abandonada nesta perspectiva. Ou como
ele escreve em seu último livro:
Nosso objetivo nã o é opor a os fa tos coor dena -dos pela ciência objetiva outr o gr upo de fa
tos-seja m eles cha ma dos
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" p s i q u i s m o " ou Ta tos ob-jetivos '; ou Ta tos inter ior es ': ' que "lhe esca pa m ';ma s mostr a r que o ser - objeto e ta mbém oser -sujeito, este concebido em oposiçã o à quele e r ela tiva mente a ele, nã o constituem uma a lter -na tiva , que omundo per cebido está a quém ou a lém da entinor r ue, que ofi-a ca sso da psicologia
"objetiva " deve ser compr eendido J unta mente com ofi-a ca sso da física "objetiviste "- nã o como uma vitór ia do "inter ior " sobr e o "exter ior '; do
"menta l" sobr e o "ma ter ia l, ma s como a pelo à r evisã o de nossa a ntologia . a o r eexa me da s no-ções de "sujeito" e de " o b j e t o " . As mesma s r a -zões que impedem de tr a ta r a per cepçã o como
um objeto, ta mbém impedem de tr a tá -Ia como oper a ções de um 'sujeito '; seja qua l for o senti-do em que possa ser toma da . (1964a, p. 41)
Perceber a realidade ésimultaneamente ser
toca-do pelo que nos circunda e construir este mesmo
en-rno. Há, assim, uma mútua constituição entre o que
denominamos sujeito e objeto e entre percepção e
re-alidade. A percepção é assim ação constante psíquica!
fisiológica, transformação, construção e constituição;
e o ato perceptivo é, simultaneamente, apreensão e
construção da realidade.
Desta forma, mais do que qualquer outro
aspec-to de nossa relação com o mundo, é a percepção que
coloca em xeque as noções de sujeito e objeto, e exige
um questionamento sobre a noção cristalizada de
rea-lidade que costumamos possuir. Rojcewicz e Lutgens
(1996) apontam, com razão, o enquadre geral em que
Merleau-Ponty inicialmente concebe sua compreensão
do ato perceptivo: a percepção emerge a partir de e é
alimentada por uma relação já estabelecida entre a
pessoa e o mundo.
A percepção pode ser entendida como nossa
re-lação originária com o mundo; contato sensível que
nos apresenta a realidade, ao mesmo tempo em que a
constrói.
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É assim que, mesmo em seu último livro(pu-blicado postumamente), insistia: " ... é a partir da
per-cepção e de suas variantes, descritas tal como se
apre-sentam, que tentaremos compreender como se pôde
construir o universo do saber." (1964, p.208)
E ainda apresentando, com muita clareza, o que
entendia por sua polêmica concepção de fé p e r c e p t i v s
(noção central em seu último livro):
A filosofia é a fé per ceptiva inter r oga ndo-se so-br e si mesma . P ode-se dizer dela , como de toda fé, que é fé por que é possibilidede de dúvida e esse infa tigá vel per cur so da s coisa s, que é nossa vida , ta mbém é uma inter r oga çã o contínua . Nã o é só a filosofia , no início é o olha r que inter r oga a s coisa s. (1964a, pp.139- 140)
Embora, com suas concepções sobre a
percep-ção, Merleau-Ponty não visasse, necessariamente, as
situações descritas pela psicanálise, podemos
pensá-Ias como uma reflexão muito útil para uma
investiga-ção dos diferentes aspectos desta teoria e da prática
vinculada a ela. Na prática clínica em particular,
en-contramos uma situação que exige um questionamento
constante dos processos perceptivos, assim como da
realidade. Não são poucos os momentos em que nos
deparamos com uma "reconstrução" da realidade,
res-tabelecendo a sensação de uma experiência originária
com as COisas, com o outro, conosco mesmos, como
acredito que demonstram bastante bem as descrições
clínicas de Freud.
Para Merleau-Ponty, a percepção tem um papel
fundamental com relação ao conhecimento: " ...
traímos à percepção a sua função essencial. que é a
de fundar ou de inaugurar o conhecimento ...
xwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
r r (1945,p.24) Mas, por outro lado, "a percepção não é uma
ciência do mundo, não é nem. mesmo um ato, uma
tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o
qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta
por eles." (1945, prefácio, p.V) Assim, é possível
di-zer, com Merleau-Ponty, que não há como prescindir
da percepção em qualquer processo que vise ou
bus-que o conhecimento mas que, ao mesmo tempo, não
devemos tomá- Ia ingenuamente como uma ciência
do mundo.
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É importante, ainda, enfatizar a relação que
Merleau-Ponty estabelece entre percepção e sentido:
O r a , a qui os da dos do pr oblema nã o sã o snter
i-or es à sua soluçã o, e a per cepçã o é justa mente
este a to que cr ia de um só golpe, com a conste-la çã o dos da dos, o sentido que os une - que
nã o a pena s descobr e o sentido que eles têm,
ma s a inda fà z com que tenha m um sentido.
(1945, p.46)
o
sentido não é propriedade nem dos objetosnem da consciência soberana de um sujeito. O sentido
emerge de um ato perceptivo.
Ao descrever a complexidade vivida, a
psicaná-lise sempre mostrou aspectos que dificilmente podem
ser explica dos por construções teóricas, que partem
de um conhecimento estabelecido
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a pr ior i. Há, nasarticulações pré- reflexivas. o estabelecimento de uma
situação que não é da ordem do entendimento
racio-nal. das construções acabadas de uma teoria. Mas,
nem por isso, precisam tornar-se propriedade de um
irracionalismo. Não se trata, é evidente, da
irnpossi-bilidade da construção de um conhecimento, ou do
reconhecimento de um saber que se estabelece a partir
de uma prática vivida, mas sim, de tornar evidente
que a intervenção de um pensamento que se dê de
fora da própria situação vivida (como se isso fosse
possível), correrá sempre o risco de constituir-se a
partir de si mesmo, ou seja, de encontrar no mundo
aquilo que nele já havia colocado. Seria necessário
descrever uma vivência que se dá, enquanto contato
primordial. no plano do pré- reflexivo. portanto,
ante-racional, e não anti-racional, É neste plano que a
fi-losofia final de Merleau.-Ponty procura se mover. É
também neste plano que a psicanálise precisaria se
mover mais constantemente, tanto no que diz
respei-to às suas descrições clínicas, quanto às suas
teonzações.
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o
C o m p r o m is s o c o m a H e r a n aF e n o m e n o ló g ic a :
A C o n s c iê n c ia Perceptiva
Ser uma consciência , ou, a ntes. ser uma exper
i-ência , é comunica r inter ior mente com o
mun-do, com o cor po e com os outr os, ser com eles em luga r de esta r a o la do deles. O cupa r -se da
psicologia . é necessa r ia mente encontr a r ; a ba ixo
do pensa mento objetivo que se move entr e a s.
coisa s inteir a mente pr onta s, uma pr imeir a a ber -tur a à s coisa s sem a qua l nã o ha ver ia
conheci-mento objetivo. O psicólogo nã o podia deixa r
de r edescobr ir - se enqua nto exper iência , quer
dizer ; enqua nto pr esença sem distâ ncia a o
mun-do, a o cor po e a o outr o, no momento mesmo
em que ele quer ia per ceber -se como objeto
en-tr e os objetos. (1945- p. 113)
De início, é preciso explicitar que na concepção
fenomenológica que Merleau-Ponty procura seguir, a
noção de consciência possui um significado distinto
daquele que normalmente encontramos nos textos de
psicologia e psicanálise. A consciência é abertura ao
mundo, já que é consciência intencional. Esta
heran-ça husserliana devidamente absorvida e
transforma-da terá grandes implicações na construção de uma'
teoria da percepção.
Considerando-se mais próximo dos textos finais
de Husserl. ao contrário de seu amigo Sartre que
ba-seou seus primeiros trabalhos filosóficos nas obras
ini-ciais do criador da fenomenologia, Merleau-Pomy
pro-cura fundamentar a relação original do corpo com o
mundo através da percepção. Em 1933, ele realiza o
primeiro esboço de um projeto sobre a natureza da
percepção; logo no início do texto lemos:
F s r e c e - m e que, dia nte do esta do pr esente da
neur ologia , da psicologia exper imenta l (per
ti-cula r mente da psicopetologie] e da filosofia ,
ser ia útil r etoma r o pr oblema da per cepçã o
e pa r ticula r mente da per cepçã o do cor po
pr ópr io. (1996.- p. I I)
Já no ano seguinte, em um novo esboço daquele
que viria a ser um grande projeto sobre a percepção,
ele escreve:
U m novo estudo da per cepçã o pa r eceu
justifi.-ca do pelo desenvolvimento contempor â neo da s
pesquisa s filosófica s e exper imenta is:
~ pela a pa r içã o, na Alema nha , n o tsd smen te, de nova s filosofia s que coloca m em questã o a s Idéia s dir etr izes do cr iticismo, a té entã o domina ntes na psicologia . como na filosofia da per cepçã o,' ~ pelo desenvolvimento da fisiologia do sistema
ner voso,'
~ pelo desenvolvimento da pa tologia menta l e da psicologia da cn sn çe:
~ enfim, pelo pr ogr esso de uma nova psicologia
da per cepçã o na Alema nha
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
(Gestalt Psychologie, 1996- p.17)Embora na década de 50 Merleau-Ponty tenha
passado a ser um interessado leitor dos textos
psicana-líticos e um forte interlocutor de psicanalistas
france-ses, entre eles Lacan, neste momento de seu trabalho
a psicanálise aparecia fundamentalmente vinculada a
teorias filosóficas e psicológicas que eram foco de sua
crítica. Referindo-se às contribuições que a
Fenomenologia de Husserl pode trazer à psicologia da
percepção, Merleau-Ponty deixa claro o seu projeto,
que desde o início não se caracteriza por oposições
radicais ou maniqueismos ingênuos:
Ma s devemos insistir sobr e esse r a to que ela s [ a s a ná lises pr opr ia mente Iênomenológica s} nã o vi-sa m substituir a psicologia . A r enova çã o da qua l se tr a ta nã o é uma inva sã o. Tr a ta -se de r enova r
a psicologia sobr e seu pr ópr io ter r eno, de ver ifi-ca r seus métodos pr ópr ios etr e vés de a ná lises que fixem osen tid o sempr e incer to de essência s funda menta is como a quela s de "r epr esenta çã o ';
"lembr a nça ': etc. (1996 pp.22-23).
o
estudo da percepção, no entanto, não se fazsem uma recolocação do problema da consciência e
de sua relação com o mundo. De início, é preciso
lem-brar que, a partir da noção husserliana de
intenciona-Idade, a noção de consciência na fenomenologia
con-igura-se de forma diferente daquela presente na
radiçâo filosófica e na psicologia clássica. Cabe aqui
retomar uma passagem que explicita a formulação de
Husserl de uma consciência intencional:
Nã o se pode fica r na gener a lida de
WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
v a z / a da ex-pr essã o consciência , ou na s pa la vr a s va zia s:ex-per iência ,
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i u i z o e outr a s deste gêner o, e a ba n-dona r r igor osa mente o r esto, como se nã oCf Merleau-Ponty, M. La Str uctur e du C ompor tment, p .183
dissesse r espeito a filosofia , a psicologia - à quela psicologia que pa r tilha da cegueir a per a nte a intenciona l Ida de enqua nto ca r á ter essencia lmen-te pr ópr io da vida da consciência ou, em todo ca so, pela intenciona lida de enqua nto funçã o teleo lá g ice, isto é, efectua çã o constir utiva . A consciência deixa -se desvenda r metodica
men-te, de ma neir a que se pode 'ver ' dir eta mente na sua etividede doa dor a de sentido e cr ia ndo sen-tido com modelidedes de se!'. (Husserl. apud
Kelkel e Schérer, 1982, p.93).
A consciência intencional não é concebida como
um em si. É sempre consciência de, consciência
aber-ta ao mundo, sempre consciência de a lgo. Dentro
des-ta concepção o objeto já não pode ser considerado da
mesma forma que antes:
C onsider a do em si mesmo - e enqua nto objeto ele exige que o consider emos a ssim -: o objeto na da tem de envolto, ele está exposto por intei-r o, sua s pa intei-r tes coexistem enqua nto nosso olha r a s per cor r e eltemed smen te. seu pr esente nã o a pa ga seu pa ssa do, seu futur o nã o a pa ga r á seu pr esente. P or ta nto, a posiçã o do objeto nos fa z ultr a pa ssa r os limites de nossa exper iência efeti-va , que se a niquila em um ser estr a nho, de for -ma que pa r a ter mina r cr ê extr a ir dele tudo a
qui-lo que ela nos ensina .
É
esse êxta se daexper iência que fa z com que toda per cepçã o seja per cepçã o de a lgo. (1945, pp.84-85)
Na obra de Merleau-Ponty essa concepção vai
sendo aprofundada, desde seu primeiro livro
publi-cado, A E str utur a do C ompor ta mento, em 19423. Para
ele a consciência aberta ao mundo, a consciência
in-tencional de Husserl. passa a ser consciência
per ceptiva . Com isso, para Merleau-Ponty, a
consci-ência não é mais entendida como soberana ou
cons-tituinte, aquela que, instalada no plano das
represen-tações, legisla sobre o mundo e a experiência sem
mais levá-los em conta.
A crítica a este modelo teórico de compreensão
do que é a consciência é bem evidente:
C r emos sa ber muito bem o que é 'ver : 'ouvir : sentir : por que desde há muito tempo a per cep-çã o já nos deu objetos color idos ou sonor os.
Q ua ndo quer emos a na lisa r a per cepçã o, tr ens-por ta mos esses objetos à consciência . C omete-mos o que os psicólogos cha ma m a 'exper ience
er r or ', ou seja , supomos, de um
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
só golpe, em nossa consciência da s coisa s, o que sa bemosesta r na s coisa s. F a zemos per cepçã o com o per -cebido. E como o pr ópr io per cebido só é evi-dentemente a cessível str e vés da per cepçã o, aca-ba mos por nã o compr eender , fina lmente, nem um nem outr o. E sta mos pr esos a o mundo e nã o conseguimos nos desta ca r dele pa r a pa ssa r à consciência do mundo. Se o fizéssemos, ver ia -mos que a qua lida de nã o é nunca sentida imedi-a timedi-a mente e que toda consciência é consciência de a lguma coisa
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( 1 9 4 5 , p . I I ) .Mas não basta insistir na concepção de uma
consciência intencional. E aqui a percepção e o
cor-po têm papel fundamental na construção do projeto
filosófico de Merleau~Ponty. Na Fenomenologia da
Percepção ele procura situar a consciência no corpo
e o corpo no mundo. Para Merleau~Ponty já não
bas-ta falar em consciência intencional. Essa consciência
ainda corre o risco de querer inaugurar o mundo e
torná- 10um simples correlato do pensamento. A
cons-ciência deve ser compreendida sempre como
consci-ência perceptiva, consciência que mantém, em sua
ligação incondicional com o corpo, um permanente
diálogo com o mundo, e é desse diálogo que
erner-gem os sentidos:
No que concer ne à consciência , temos que
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c o n c e b é - I e nã o ma is como uma consciência constituinte e como um pur o ser -pa r e-si. ma s como uma consciência per ceptive, como sujeito de um compor ta mento, como ser -no-mundo ou existência ... ( 1 9 4 5 p . 4 0 4 )
Consciência como consciência perceptiva, como
ser-no-mundo, como existência. Podemos assim
apre-ender o difícil movimento de Merleau~Ponty, da
tradi-ção filosófica em que foi formado, onde a consciência,
o pensamento, o cogito cartesiano são fundamentos
quase intocáveis, em direção inicialmente a uma
filo-sofia fenomenológica existencial e posteriormente,
abrindo campo a uma ontologia do sensível que terá
com a psicanálise uma interlocução central.
Confrontando-se com questões muito próximas
das de Freud no P r ojeto e na C a r ta 52, Merleau~Ponty
investiga, na F enomenologia da P er cepçã o, as relações
entre a memória e a percepção:
I 6
Se enfim se a dmite que a s r ecor da ções nã o se pr ojeta m por si mesma na s sensa ções, e que a consciência a s confr onta com o da do pr esente pa r a r eter a pena s a quela s que se ha r moniza m com ele, entã o r econhece-se um texto ongine-r io que tr a z em si seu sentido e o opõe à quele da s r ecor da ções: este texto é a pr ópr ia per cep-çã o. ( 1 9 4 5 p . 2 9 )
E logo a seguir:
Agor a se ma nifesta o ver da deir o pr oblema da memór ia na per cepçã o, liga do a o pr oblema g e -r a l da consciência per ceptive. Tr em-se de com-pr eender como, por sua pr ópr ia vida e sem tr e-zer em um inconsciente mítico ma ter isis
complementa r es, a consciência pode, com o tem-po, a lter a r a estr utur a de sua s pa isa gens ~ como, em ca da insta nte, sua exper iência a ntiga lhe está pr esente sob a I o r m e de um hor izonte que ela pode r ea br ir , se otoma como tema de conheci-mento, em um a to de r e m e m o r a ç é o . ma s que ta mbém pode deixa r '8 ma r gem ': e que a gor a for nece imedia ta mente a o per cebido uma er mos-fer a e uma significa çã o pr esentes. U m ca mpo' sempr e à disposiçã o da consciência e que, por essa r a zã o, cir cunda e envolve toda s a s sua s per cepções, uma a tmosfer a , um hor izonte ou, se se quiser , "monta gens" da da s que a tr ibuem uma situa çã o tempor a l ta l é a pr esença do pes-sede que tor na possíveis o sa tos distintos da per -cepçã o e da r ememor eçéo. ( 1 9 4 5 , p . 3 0 )
As diferenças com Freud são muitas, mas nota-se
aqui um esforço claro em ampliar ao máximo o
hori-zonte da experiência de uma consciência perceptiva.
Não é de se estranhar que na década seguinte
Merleau-Ponty viesse a construir uma concepção própria do
in-consciente, em grande medida apoiado nas
transfor-mações que ele aqui realiza em sua teoria da percepção.
Em um capítulo posterior da F enomenologia
de-P er cepçã o em que procura investigar a vivência
perceptiva através da percepção erótica, Merleau-Ponty
se aproxima dos relatos psicanalíticos, mas aqui, muito
mais para criticá-los do que para dialogar com eles:
Adivinhe-se a qui um modo de per cepçã o disa n-to da per cepçã o objetiva , um gêner o de signifi~ ca çã o distinto da significa çã o intelectua l uma intenciona l ida de que nã o é a pur a 'consciência de a lguma coisa ~ A per cepçã o er ótica nã o é um
cogita tio, um a to de pensa ,", que visa um
cogitetum, um objetivo a ser pensa do,' a tr a vés de um cor po, a per cepçã o er ótica visa um outr o cor po, ela se for ma num mundo e nã o numa consciência . H á . uma compr eensã o er ótica que
nã o é da or dem do entendimento, pois
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
oenten-dimento compr eende per cebendo uma exper
i-ência sob uma Idéia , a o pa sso que o desejo com/
pr eende cega mente, liga ndo um cor po a um
cor po. (1945, p. 183)
Percebe-se, nesse momento, como
Merleau-Ponty tenta se afastar de uma filosofia da consciência.
É
no corpo que deve ser procurada uma ordemperceptiva, uma forma de compreensão que
prescin-da do modelo consciência- objeto de consciência. O
ue ele parece visar aqui é um gênero de significação
istinro da significação estabelecida pela consciência
e, através da percepção erótica, ilustrar com um
exern-10
extremo, uma forma de relação corpo- mundocue ele acredita prevalecer, ou pelo menos ser
inau-~ural no âmbito da experiência humana. Uma
passa-cem como esta, embora pudesse tomar o modelo de
compreensão psicanalítica da experiência sexual como
m modelo a ser criticado, como um modelo que
bus-casse explicações na ordem do entendimento,
"per-ebendo uma experiência sob uma idéia", revela
tarn-ém uma grande abertura para a compreensão
stcanalítica do desejo, que seria aquele que
"com-reende cegamente, ligando um corpo a um corpo."
qui não estamos muito distantes das descrições
clí-nicas dos chamados "analistas marginais".
Através de análises como esta, Merleau-Ponty
enta mostrar que a relação inaugural do homem com
mundo parte sempre da percepção, através de uma
relação direta corpo- mundo. Para ele, claramente, o
ato perceptivo não é primeiro um ato de
pensarnen-. ; ao contrário, é sempre a relação direta, inaugural
entre corpo e mundo. Não toco uma mão- idéia, uma
edra- idéia, um mundo- idéia, toco com meu corpo
mundo.
Este é o caminho que levará Merleau-Ponty a
deslocar definitivamente da consciência para o corpo
ivido o ato de .conhecer. Para ele não é mais à
cons-iência que se pode atribuir o conhecimento, mas sim
a um "corpo- conhecedor". Assim, Merleau-Ponty
pro-cura ir além da própria noção de consciência
perceptiva, que apesar de conter a noção de
consci-ência, buscava romper o dualismo percepção-
pensa-mento, tentando romper também o dualismo
consci-ência- mundo. O pensamento, como ato de
consciência, não é mais situado como centro
sobera-no do processo de conhecimento, e a percepção não
é mais o plano das distorções. das ilusões, a sede do
engano. A percepção situa-se, deste modo, como o
fundo, a experiência primeira e imediata, sobre a qual
se destacam os atos reflexivos e que deve ser,
portan-to, pressuposta por eles. Percepção e plano pré-
refle-xivo aparecem neste contexto como duas formas de
nomear o plano de referência para a gênese dos
sen-tidos. A experiência perceptiva é uma experiência
pré-reflexiva.
WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
É uma experiência inaugural. De que modoesta experiência inaugural poderia se assemelhar às
descrições psicanalíticas de um inconsciente como'
sucessão de inscrições, segundo um dos modelos
freudianos de constituição do aparelho psíquico?
Criticando a noção de uma consciência que
pu-desse prescindir da percepção, do corpo e do mundo,
sendo assim auto- evidente a si mesma, Merleau-Ponty
faz crítica semelhante a noção de in co n scien te':
A idéia de uma consciência que ser ia tr a nspa -r ente po-r si mesma , e cuja existência se to-r na -r ia , entã o, a consciência que ela tem de existir nã o é tã o difer ente da noçã o de inconsciente: é, de
a mbos os la dos, a mesma ilusã o r etr ospectiva ; intr oduz/se em mim, a titulo de objeto explícito,
tudo o que eu poder á a seguir ; a pr ender de
mim mesmo ( 1 9 4 5 , p . 4 3 6 ) .
Nesta passagem fica claro que Merleau-Ponty
pressupõe um inconsciente que é concebido a partir
do modelo da consciência, pensado como mais um
campo de representações (que ele sempre criticou em
bloco, não parecendo se interessar pela distinção
freudiana entre representação-coisa, propriamente
in-consciente e representação-palavra). Esse
inconscien-te traria em si os mesmos problemas da noção clássica
de consciência: se destaca da experiência,
fundamen-talmente da relação sensível que se dá através do
cor-• Em outro texto, (Coelho Junior, 1991), desenvolvi com maior profundidade este tema que, no entanto, recebe aqui uma nova análise no que diz respeito às críticas de Merleau.Ponty à concepção freudiana do inconsciente. Cf também a interessante análise de Petra Herkert (1987) em seu livroD a s C hiesme, onde ele discute a crítica de Merleau.Ponty ao inconsciente freudiano.
po. e refugia-se no plano das representações.
É
oin-consciente tributário da consciência, talvez muito
mar-cado por uma leitura exclusiva do inconsciente como
resultado da repressão de conteúdos originalmente
conscientes. Não creio que a preocupação central de
Merleau-Ponty, neste momento de sua obra, seja
ana-lisar ou discutir a formulação freudiana do
inconscien-te, mas sim caracterizar, com um exemplo a mais, a
concepção de psiquismo e existência que ele critica
desde seus primeiros textos. Trata-se de opor ao
mo-delo representacional uma concepção que privilegie o
acesso ou contato direto entre corpo e mundo, entre
um corpo e outro.
Mas, se as aproximações, mesmo críticas, entre
as concepções freudianas e a fenomenologia de fato
existem, as comparações e "diálogos" entre
Merleau-Ponty e Freud quanto ao tema da percepção precisam
ser conduzidos com cautela e rigor.
Na obra de Merleau-Ponty, como venho
procu-rando demonstrar neste texto, a percepção ocupa
lu-gar central no questionamento da oposição clássica
sujeito - objeto, constituindo-se em conceito chave na
descrição das relações intersubjetivas, e na construção
de uma nova proposta ontológica. a
xwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
a ntologia do serbr uto. Em seu último livro, Merleau-Ponty fala em fé
per ceptiva para denominar a relação mais direta entre
corpo e mundo, fundamento de toda possibilidade de
conhecimento, a marca clara do conhecimento
pré-reAexivo. Na obra de Freud, por outro lado, a
oposi-ção externo - interno é mantida, sendo que o foco da
investigação freudiana é predominantemente a
dimen-são intrapsíquica. A noção de percepção endopsíquica
é analisada em seus efeitos na dinâmica do aparelho
psíquico, seja na primeira tópica, seja na segunda. As
relações entre psiquismo e mundo externo têm sua
ênfase colocada no psiquismo e não na relação. Esta é
uma das distinções que faz com que todo esforço de
comparação entre as duas obras, no que concerne ao
estudo da percepção, precise ser feito levando em conta
diferenças de ordem epistemológica e também as
evi-dentes diferenças da função do conceito na
constru-ção da teoria.
Os Diálogos Futuros com a Psicanálise
P a r a nós, a 'fé
VUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
p e r c e p t i v s " envolve tudo o quese ofer ece ao homem na tur a l no or igina l de uma exper iência - ma tr iz, com o vigor da quilo que é ina ugur a ./e pr esente pessoa lmente, segundo uma
visã o que pa r a ele é última e nã o poder ia ser
r r u u s e r f e u e ou pr óxima , quer
se [ r a le de ISã S er cebides no sentido or diná
-r io da pa ./a v-r a u de sua indica çã o no pa ssa do,
no imeg mér i. , n e lm ua gem, na ver da de
pr edica r iva da én Ia . na s obr a s de a r te, nos
outr os, na histá r ie. I ã pr ejulga mos r ela ções que'
possa m existir entr e a s diter entes camadas, nem
a inda que seja m ca ma da s, e uma pa r te de nossa ter ete é esta belecê-Ia s segundo o que a inter r
o-ga çã o de nossa exper iência br uta ou selva gem
nos Tiver ensina do. A per cepçã o como enconr r o
da s coisa s na tur a is esr á no pnmeir o pla no de
nossa pesquisa , nã o como funçã o sensor ia l sim-ples que explica r ia a s outr a s, ma s como a r
quéti-po do encontr o or iginá r io, imita do e r enova do
no encontr o do pa ssa do, do ima giná r io, da idéia .
( 1 9 6 4 a , pp. 2 0 9 - 2 1 0 )
Impossível não ver nestas frases uma forte
res-sonância com aquilo que a psicanálise busca
enten-der da experiência de cada ser humano com sua
his-tória, em seus primeiros contatos com o outro e com.
o mundo e na renovação destas experiências a cada
nova situação de vida. Mas não precisamos chegar
ao final da obra de Merleau-Ponty para encontrar
descrições que possam dialogar de perto com a
ex-periência e mesmo com a teorização psicanalítica.
Já em F enomenologia da P er cepçã o Merleau-Ponty
escrevia:
H á por ta nto uma cer ta consisr ência de nosso
"mundo ': r ela tiva mente independente dos
es-tímulos, que p r o i b e tr a ta r o ser no mundo como
uma soma de r eflexos- uma cer ta ener gia da
pulsa çã o de existência ( é n e r g i e de Iapulsetion
d"existence), r ela tiva mente independente de
nossos pensa mentos voluntá r ios, que pr oíbe
tr etá -Io como um a to de consciência . Épor ser
uma visã o p r é - objetiva que o ser no mundo'
pode distinguir -se de todo pr ocesso em ter
cei-r a pessoa , de toda moda lida de de r es extensa ,
a ssim como de toda cogita r ia , de todo
conheci-mento em pr imeir a pessoa - e que ele poder á
r ea liza r a junçã o do "psíquico" e do
'fisio-lógico".
WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
( 1 9 4 5 , p . 9 5 )Merleau-Ponty parece se referir aqui a algo não
muito distante da concepção psicanalítica de pulsão.
Contrariando uma impressão inicial de que a teorizaçâo
fenomenológica de Merleau-Ponty se caracterize por
poder prescindir, em sua descrição da experiência
mana, de qualquer noção de força, aparece aqui esta
eressante concepção de uma "energia de pulsação
:::. existência".
JIHGFEDCBA
U m pouco mais à frente, no mesmo. uma outra passagem chama a atenção de um
lei-~ Interessado pela psicanálise. Referindo-se ao
fenô-eno do membro fantasma em indivíduos que tiveram
membro amputado e relacionando- o com a
des-• - o psicanalítica do
WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
r e c a l q u e , ele escreve:xwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
P er cepções nova s substituem a s per cepções
a ntiga s, e mesmo emoções nova s substituem a s
de outr or a , ma s essa r enova çã o só diz r espeito
a o conteúdo de nossa exper iência e nã o
VUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
à suaestr utur a ,' o tempo impessoa l continua a se es-coa r , ma s o tempo pessoa l está pr eso. E
vidente-mente, essa fixa çã o nã o se confunde com uma
r ecor da çã o, ela a té mesmo exclui a r ecor da çã o
enqua nto expõe uma exper iência a ntiga como
um qua dr o dia nte de nós e enqua nto, a o
con-tr á r io, este pa ssa do que per ma nece nosso ver
-da deir o pr esente nã o se dista ncia de nós e
es-conde-se sempr e a tr á s de nosso olha r em luga r
de dispor -se dia nte dele. (1945, p.98)
Tenho como hipótese que para Merleau- Ponty,
a psicanálise, a leitura e re-Ieitura dos textos
freudia-s, além do convívio próximo com vários amigos
psi-canalistas (como Lacan e Pontalis)" , tiveram
participa-çâo fundamental nas transformações ocorridas no
ornento final de sua obra. André Green (1964)
tam-ém aponta para esta relação:
Ma s Mer lea u-P onty esta beleceu um julga
men-to ma is n u en çed o sobr e a psica ná lise 1 7 0fim de
sua vida ,' nã o é ta nto por ele ter r econhecido
de fa to sua ver da de, é, sobr etudo por que ele
pensa v a que sua filosofia dever ia ser r evista e
que a psica ná lise poder ia contr ibuir pa r a esta
r evisã o. (p. 1027)
Também Marc Richir (1989) em um texto sobre
as relações entre Merleau-Ponty e a psicanálise
reto-ma algureto-mas notas de trabalho de O Visível e o
Invist-el. que anunciam a influência da psicanálise nos ú
l-- mos questionamentos e elaborações do filósofo. No
entanto, mais do que a influência da psicanálise nos
rlurnos escritos de Merleau-Ponty, o que pretendo
neste item é enfatizar as possibilidades de diálogo entre
'C f C O E L H O J U N I O R , N . (1991) pp.125.129.
8CH-PERIO
DICOS
as idéias presentes na última obra do filósofo e a
psi-canálise contemporânea.
A Green (1964) também reconhece a
possibilida-de possibilida-deste diálogo, embora aponte para as dificuldades
encontradas por um analista para escrever sobre o
últi-mo livro de Merleau-Ponty ( O Visível e o Invisível):
Inicia lmente por que Mer lea u-P onty tr a ta a qui de' um ca mpo que ja ma is foi tã o pr óximo da quele dos a na lista s, em segundo luga r por que o espa -ço temá tico em via s de ela bor a çã o poder ia ser situa do em uma sér ie vizinha dos fenômenos a os queis os a na lista s pr esta m uma pa r ticula r a
ten-çã o: o sonho, a fa nta sia , o a to fa lho. ( p . I O17)
U m dos focos centrais para este diálogo é a
rela-ção entre perceprela-ção e intersubjetividade. E m um texto
( " O Filósofo e sua Sombra") fundamental para se
com-preender a passagem entre as concepções do livro
F enomenologia da P er cepçã o e de O Visível e o
Invisí-vel, publicado em Signes (1960). Merleau-Ponty trata
da percepção no contexto da intersubjetividade, da
relação com o outro:
Se o outr o deve existir pa r a mim, é pr eciso que
seja pr imeir o a ba ixo da or dem do pensa mento. Nessa r egiã o o outr o é possível por que a a ber
-tur a per ceptive nã o pr etende o monopólio do
Ser e nã o institui a luta mor ta l da s consciência s.
Meu mundo per cebido, a s coisa s entr ea ber ta s
dia nte de mim, em sua espessur a , com que pr o-ver ma is de um sujeito sensível com "esta dos de consciência '; têm dir eito a ma is testemunha s
a lém de mim. ()
O
homem pode fa zer o elter-e g o , cuja teitur s. é impossível pa r a o pensa
men-to, por que está for a -de-si 1 7 0 mundo e por que
um ek- stese é co-possivel com os outr os. E esta
possibilida de se cumpr e na per cepçã o como
vinculum do ser br uto e de um cor po. Todo
enig-ma da E infühlung está em sua fa se i n i c i e ]
"estesiolá gice '; e se r esolve a í mesmo por que é'
uma per cepçã o. Aquele que "põe" o outr o
ho-mem é sujeito per cepiente, o cor po do outr o é
coisa per cebida , o pr ópr io outr o é "posto" como "per ceptente". Tr a ta -se sempr e de co- per
cep-çã o. \kjo que a quele homem vê, como toco
minha mã o esquer da que está toca ndo minha
mã o dir eita . (1960 a, pp.2l4-2l5)
Acho que é possível afirmar que em passagens
como esta fica evidente a grande superfície de diálogo
que se abre entre Merleau-Ponty e as investigações
psicanalíticas que procuram dar conta do processo de
comunicação e de percepção presentes na relação
transferencial- contratransferencial.
Também as notas de trabalho publicadas em
ane-xo ao livro O
xwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Visível e o Invisível atestam com clarezaa proximidade e ao mesmo tempo os instigantes
questionamentos propostos por Merleau-Ponty aos
fe-nômenos descritos pela psicanálise. Não só com
rela-ção ao inconsciente, que não é mais definido como o
inverso da consciência; o corpo em sua dialética
visí-vel- vidente, a "carne" como sendo o entrelaçamento,
o quiasma, que traz em si o duplo movimento sensível,
daquilo que sentimos e daquilo que sente, parecem
sugerir muitos outros pontos de diálogo entre o
pensa-mento de Merleau-Ponty e a psicanálise.
O questionamento sobre o ato perceptivo
acom-panha estas transformações:
WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Omundo é o que per cebo, ma s sua pr oximida
-de a bsoluta , -des-de que exa mina da e expr essa tor na -se ta mbém, inexplice velmente, distâ ncia ir r emediá vel
O
homem "na tur a l"segur a a s dua s ponta s da cor r ente, pensa a o mesmo tempo que sua per cepçã o penetr a na s coisa s e que se fa z a quémVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
[ e n deçá } de seu cor po. Se, no enta nto,na r otina da vida , a s dua s convicções coexistem sem esfor ço, a ssim que r eduzida s a teses e enun-cia dos destr oem- se mutua mente, deixa ndo-nos
na confusã o (l964a, pp. 23-24).
Ao retomar questões iniciais formuladas por
Husserl na constituição de sua fenomenologia,
Merleau-Ponty avança na tentativa de compreender os
sinuosos destinos de cada experiência perceptiva.
In-terrogando a relação intersubjetiva ele prossegue nesta
Investigação:
E ntã o é mesmo ver da de que os "mundos pr iva -dos" comunica m-se, que ca da um deles se dá a o seu titula r como va r ia nte de um mundo co-mum. A comunica çã o tr a nsfor ma -nos em
teste-munha s de um mundo único, como a siner gie
de nossos olhos os detém numa única coisa . Ma s ta nto num ca so como no outr o, a cer teza , a inda que ir r esistivel, per ma nece a bsoluta mente' obscur a ; podemos vivêIa ,nã o podemos nem pensá -Ia , nem for mulá --Ia nem er igi-Ie em tese. Toda tenta tiva de elucida çã o r einvis-nos a os dilema s.
.ficá vel de um mundo
5nós é. em nós, o ponto'
e ( 964a .. p.27)
Para Merleau-Pon . "mundos privados"
comu-nicam-se porque há uma situação compartilhada,
perceptiva e pré- reflexiva. de um tempo e de um
es-paço vividos. Mas há também encontro e desencontro
neste plano pré- reflexivo compartilhado. Há união e
desunião, convergência e divergência. É um campo
ambíguo. mas nem por isso arnbivalente. Deslizamos
constantemente do mundo comum para o particular e
do particular para o comum. Há porosidade e
imbricamento no plano pré- reflexivo e não
polarida-des irreconciliáveis. Trata-se de uma vivência que se
dá em um nível anterior àquele que é estabelecido
ca-tegoricamente pela distinção entre sujeito e objeto, entre
o que seria interior e o que seria exterior. Merleau-.
Ponty define a relação sujeito- objeto e a tentativa de
seu ultrapassamento, a partir das noções de "carne" e
de reversibilidade na relação do corpo vivido com o
mundo e com os outros. Em uma nota de trabalho de
O Visível e o Invisível, escreve Merleau-Ponty:
F a la -se sempr e do pr oblema do "outr o ': de
"lnter subietividede ': etc ...
Na r ea lida de, o que se deve compr eender é,
a lém da s "pessoa s': os existencia is segundo os
qusis nós a s compr eendemos e que sã o o
sen-tido sedimentedo de toda s a s nossa s e x p e r i é n
-cies voluntá r ia s e involuntá r ia s. E ste
inconsci-ente a ser pr ocur a do, nã o no tu n d o de nós
mesmos, a tr á s da s costa s de nossa "consciên-cia ': ma s dia nte de nós como a r ticula ções de nosso ca mpo ... E stá entr e eles (objetos) como' o inter va lo da s á r vor es entr e a s á r vor es, ou
como seu nível comum. É a U r gemeinscha ftung
[ for ma çã o de uma comunida de or iginá r ia } de
nossa vida intenciona l, o Ineinender [ um no
outr o} dos outr os em nós e de nós neles .. "
(1964a pp.233-34)
Mais uma nota riquíssima, onde muitos aspectos
mereceriam destaque e discussão pormenorizada.
Res-saltarei apenas, no entanto, o que vem de encontro com
as concepções que, acredito, tornam possível o diálogo
com a psicanálise. Merleau-Ponty se refere a
"articula-ções de nosso campo", "nível comum" e "formação de
uma comunidade originária de nossa vida intencional,
e um -no- outro dos outros em nós e de nós neles".
Descreve com estes termos o que considera o plano de.
_ e onde se dá a relação intencional eu- outro. Um
el de experiência pré- reflexivo que Merleau-Ponty
este momento de sua obra chega a denominar de
in-c nsin-ciente, onde ocorrem" nossas experiências
volun-. as e involuntárias"volun-. Fica claro que o "nível comum",
:: ual fala Merleau-Ponty, não anula as diferenças,
:. anula os limites que separam objetos entre si, ou
esmo eu do outro; remete-nos a sua porosidade
origi-ana, a sua condição de reversibilidade. Este nível
co-m caracteriza a experiência sensível. experiência
e a percepção ocupa o lugar central.
WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
É tentador, neste momento, fazer aproximações
::001 o trabalho de psicanalistas que buscaram analisar
relações iniciais do ser humano com seu mundo e
encontraram um plano de relações em grande
con-nância com este descrito por Merleau-Ponty. Em um
balho anterior (Coelho .Iunior. 1995), propus
apro-mações entre a noção de
xwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Rea lida de C línica , quees-"- eleci a partir de uma clara influência das descrições
e reorizações de Merleau -Ponty sobre o pré- reflexivo
corno espaço perceptivo fundante das relações
.ersubjetivas e a noção winnicottiana do E spa ço P
o-tenciel. Buscava caracterizar um campo em que as
fron-e ras fron-entrfron-e realidade externa e realidade psíquica se
_ uíam embora mantivessem a polaridade e a tensão
entre polaridades, constitutiva das diferenças. Pontalis
977), em uma nota de rodapé comentando o texto
citado de A Green (1964), sugere que o ponto de
:: ntato entre as idéias de Merleau-Ponty e a
psicanáli-se contemporânea não deveria ser buscado em Melanie
em, como sugere Green, mas em Winnicott, cujos
rrabalhos, no entanto, não chegaram a ser conhecidos
r Merleau-Ponty. Pontalis afirma: "Em Winnicott a
oção do inconsciente como um domínio separado não
está presente; o que lhe interessa, antes de tudo, é o
espaço transicional.. .. espaço virtual (esta noção
en-entra- se em Merleau-Ponty), aquém das categorias
o verdadeiro verificado e do falso ... "(nota 5, p.77)
Com certeza, esta é uma aproximação que poderia
garantir um diálogo muito produtivo, mas que vai além
os objetivos deste trabalho.
Até agora, procurei aqui investigar e descrever
a percepção na construção filosófica de Merleau-Ponty
e sua relação com alguns aspectos do pensamento
srcanalítico. A seguir, pretendo analisar mais
detida-mente a trama cerrada que subjaz às possíveis
rela-ções entre a filosofia de Merleau-Ponty e a
psicanáli-e. Procuro trabalhar no entrelaçamento da visibilidade
e da invisibilidade, aspecto central do último período
ce trabalho do filósofo e também de grande
impor-; cia na clínica psicanalítica contemporânea, que se
interroga sobre os limites da apreensão dos sentidos
no contexto do trabalho terapêutico.
É hábito, na literatura psicanalítica, falar-se em
expressões ou conteúdos manifestos, que ocorreriam
em uma cena , e em conteúdos latentes que
permane-ceriam em outra cena . Ou então, em elementos
cons-cientes, que formariam um contexto, uma cena , e em
elementos inconscientes, que pertenceriam a outro
contexto, a outra cena . Pontalis (1968) em seu já
clás-sico artigo, conclui da seguinte forma suas
considera-ções sobre a questão do inconsciente em
Merleau-Ponty, referindo-se de certa maneira a esse tema e
mostrando as diferentes posições da psicanálise e da
filosofia de Merleau-Ponty:
P ois se pa r a ele [ Mer lea uP onr y} nã o há univer -so simbólico distinto e se nã o há luga r pa r a
cons-tituir o inconsciente como depósito de
significa ntes, nã o é por que ele pense que de
sig-nifica çã o em configur a çã o possa mos esper a r
discemir pr ogr essiva mente osentido - de fà r o,
a í nã o encontr a mos o que os constitui - ma s,
sem dúvida , por que essa potência simbólica que F r eud loca lizou, com o nome de inconsciente, em um domínio sepa r a do (da mesma for ma que
o consider a va cor ta do da consciência de seus
pa cientes), ele o vê em a tivida de como o outr o
la do (H usser l) e nã o a outr a cena (F r eud) de
nossa existência (1968, p. 97.)
O incômodo com o "lugar" ocupado pelo
incons-ciente permanece nesta análise realizada por Pontalis.
Fica claro na obra de Merleau-Ponty sua concepção
da existência e da experiência humanas como
ocor-rendo em um só contexto, em uma só cena, ainda que
essa cena possua dois "lados". No entanto, diante de
sua última obra, O Visível e o Invisível, cabe a
pergun-ta: será que a concepção rnerleau-pontiana de visível e
invisível mantém esta configuração? Será que a noção
de visível e invisível não pressupõe duas cenas
distin-tas, dois contextos separados, assumindo, dessa
for-ma, uma semelhança com as concepções
psicanalíti-cas de consciência e inconsciente?
Pontalis (1972), em outro texto escrito sobre a
obra de Merleau-Ponty, mas agora já levando em
con-ta as transformações ocorridas em O Visível e o Invisi-'
velsuger e algumas novas possibilidades de análise desta
questão, partindo da percepção:
A per cepçã o é desde já imper cepçã o: há somen-te um somen-ter r itór io e nã o se tr a ta ja ma is, em Mer lea
P onty; de dois sistema s sepa r a dos, como na tó-pica fr eudia na . E ma is a inda , a a ná lise do cor po
vidente visível dever á conduzir a ultr a pa ssa r a a lter na tiva do inconsciente e do consciente, ela
mesma tr ibutá r ia , a pesa r de tudo - F r eud já
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
oha via nota do - de uma filosofia da consciência .
(1 972,pp. 72-73)
As colocações de Pontalis são bastante
esclare-cederas. e permitem afirmar que, possivelmente, uma
das grandes contribuições do pensamento de
Merleau-Ponty para a compreensão da situação clínica situa-se
no fato de podermos apreender essa situação como
ocorrendo em um só território, em uma só "cena".
"Cena" com dois, ou mais lados, com infinitas
possi-bilidades de movimentos e tensões; no entanto,
sem-pre uma só "cena", um só território. Ou seja, a
dualidade, ou mesmo a pluralidade de instâncias,
for-ças e níveis se mantém, só que em um e mesmo
con-texto. Somos tentados, constantemente, a conceber a
existência humana e a relação homem- mundo
atra-vés de noções estanques, de oposições nunca
interpenetráveis, sempre empurrados a recortar as
si-tuações vividas em compartimentos isolados. O que
o pensamento de Merleau-Ponty nos apresenta é a
possibilidade de trabalharmos a partir da
compreen-são de que a experiência perceptiva se dá em um só
contexto onde quem percebe e o que é percebido
compartilham de um mesmo campo, que é o da
reversibilidade; e mais, que o que se mostra e o que
se oculta pertencem ao mesmo contexto, são dois
la-dos de um mesmo campo, sempre reversível.
WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
É preciso que se entenda, portanto, as noções de
visível e invisível como não podendo sofrer uma
equi-paração que as fizesse equivaler, respectivamente, às
noções de consciência e inconsciente tal qual
formula-das por Freud. Aliás, Pontalis( 1972) já apontava para
essa questão quando escrevia que não devemos fugir
da estranheza que nos causa a obra O Visível e o
Invi-sível de Merleau-Ponty, buscando
por exemplo, nos setistezer com homologia s entr e de uma pa r te, inconsciente (pa r a doxa lmen-te a gor a , uma pa la vr a que nos tr snqtiilizs] , invi-sível e la tente, e de outr a pa r te, visível, per cebi-do e ma nifesto.
Afirmando ainda:
H a ver ia a i nã o a pena s homologia s super fici-a is, mfici-a s ver da deir os contr a -sensos em r ela çã o
omo a o pensa mento de
72. . 72).
É preciso oe ar
JIHGFEDCBA
la r ue não há homologiaen-tre a noção de IIlVlS' el em erleau-Ponry e a noção
de inconsciente da psicanálise. Isso não significa, no
entanto, que Merleau-Ponry descarte a noção de in-.
consciente. Até pelo c o n t r á r i o . é em suas últimas obras
que ela aparece com mais força, como já tive ocasião
de expor Apenas que o inconsciente é retirado do
pia-no da dualidade íntra-psíquica e é situado na
existên-cia. Nas palavras de Merleau-Ponty: " ... inconsciente
a ser procurado não no fundo de nós mesmos, atrás
das costas de nossa consciência, mas diante de nós
como articulações de nosso campo" (1964 a, p. 234).
Se na F enomenologia da P er cepçã o ainda não
poderíamos ter uma certeza definitiva de que
Merleau-Ponty buscava na experiência sensível do corpo vivido
a base para sua compreensão da relação homem-
mun-do, homem- outros, em O Visível e o Invisívelseu
pro-jeto fica evidente. O que encontramos nesse último
texto é um aprofundamento em direção a uma
interro-gação mais radical da origem da relação perceptiva e
portanto, da gênese do conhecimento que emerge do'
contato do corpo com o mundo, com as coisas e com
o corpo de outros. É o projeto de uma ontologia que
parte do sensível. que toma o plano do sensível como
um solo primeiro, "já que o sentir não é a possessão
intelectual 'daquilo' que é sentido, mas sim despossessão
de nós mesmos em seu proveito, abertura àquilo que
em nós não temos necessidade de pensar para
com-preender" (Merleau-Ponry, 1968, p. 179).
A investigação que partiu de uma fenomenologia
da percepção, que buscava na experiência
pré-reflexi-va seu plano originário, prossegue seu curso, tomando
inicialmente, uma das possibilidades da abertura
perceptiva, o olhar, como paradigma do ser sensível
do corpo vivido. Uma primeira sistematização já
apa-rece no último texto publicado em vida por
Merleau-Ponry, o ensaio O O lho e o E spír ito:
O
enigma r eside no fà to de que meu cor po é a o mesmo tempo a quele que vê e que évisto. E le que olha toda s a s coisa s, ta mbém pode olha r a si e r econhecer no que está vendoen-tã o, o "outr o la do
VUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
N de sua potência de ver '(1964 b.. p. 18.)
Apresentar o corpo vivido, a partir de sua
potên-cia de ver, como experiência reversível - de quase
si-multaneidade de ser sujeito e objeto de um ato sensível
- este é um dos projetos dos últimos textos de
Merleau-Ponry. Referi- me a quase simultaneidade, porque como
bem escreve o filósofo:
VUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
É
xwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
tempo de sublinha r que se tr a ta de uma r ever sibilidede sempr e iminente e nunca r eeli- ..za da de fa to. Minha mã o esquer da está
sem-pr e em via s de toca r a dir eita no a to de toca r
a s coisa s, ma s nunca chego à coincidência ; ..
na da disso é fr a ca sso, pois se ta is exper iência s
nunca se r ecobr em exa ta mente, se esca pa m
no momento em que se encontr a m, se há
en-tr e ela s "a lgo que se mexeu': uma "distâ ncia ':
é pr ecisa mente por que minha s dua s mã os fa
-zem pa r te do mesmo cor po, por que este se
move no mundo .. Sinto qua nta s vezes quiser ,
a tr a nsiçã o e meta mor fose de uma da s exper
i-ência s na outr a , tudo se pa ssa como se a dobr a diça entr e ela s, sólida e ina ba lá vel per ma
-necesse ir r emedia velmente oculta pa r a mim.
(I 964a, pp. 194-195.)
Surge assim um dos aspectos mais característicos
das últimas proposições filosóficas de Merleau-Ponty:
a descrição e investigação de um campo que é qua se o
da indiferenciação, como se no plano do sensível, da
mais radical relação perceptiva, as particularidades que
geram as diferenças qua se fossem abolidas e nós
tivés-semos então que reconhecer que no princípio só há a
unidade. Mas Merleau-Ponty afirma: se não há
coinci-dência absoluta, se não há simultaneidade total ou
reversibilidade "instantânea" isso não deve ser
enten-dido como um fracasso. A distância e, portanto, o nível
das particularidades é próprio do corpo vivido em sua
relação com o mundo. Deve- se, no entanto,
reconhe-cer as "dobradiças" que fazem desse plano de base,
ue é o da relação perceptiva, um campo que se
cons-titui em um só contexto, em uma só "cena", que tem
lados e dobras, mas que não é mais, definitivamente, a
siruaçào dividida, separada em duas "cenas" da
dicoromia sujeito- objeto, da oposição irreconciliável
onsciência- mundo.
Para Merleau-Ponty há sempre polaridades, há
tensão entre lados. Não há uma unidade absoluta
an-terior nem uma unidade absoluta posterior. Esta é sua
oncepção de uma dia lética sem síntese. Há
perma-nente movimento entre polaridades que, no entanto,
não criam dois contextos isolados, duas cena s
separa-das. Há constante interpenetração, há um lado e outro
lado e uma "dobradiça" entre eles. Ou como escreve
Merleau-Ponry sobre a dualidade corpo- espírito:
D efinir o espír ito como outr o la do do cor po -. Nã o temos idéia de um espír ito que nã o
estives-se de pa r ("doublé') com um cor po, que nã o se
esta belecesse sobr e esse solo. ( ..) H á um cor po do espír ito e um espír ito do cor po e um quia sma
entr e os dois (/964a , pp. 3 1 2 - 3 1 3 ) .
Aqui estão duas noções- chave para a melhor
compreensão do pensamento de Merleau-Ponty:
do-bradiça e quiasma. E também noções- chave para que
nos aproximemos um pouco mais de uma
compreen-são possível da situação clínica que os psicanalistas,
desde Freud, procuram descrever, a partir de sua
prá-tica. A situação clínica desenvolve-se em um só
con-texto, em uma só cena ; mas essa unidade não é a da
indiferenciação absoluta.
É
sempre cena com um eoutro lado: visível e invisível, um corpo e outro corpo,
etc. Um lado e outro lado, mas não como lados inde-'
pendentes e irreconciliáveis. Um lado e outro lado e
um quiasma, uma dobradiça entre os dois.
Mas cabe prosseguir investigando a relação
perceptiva. A noção "carne" [ cha ú] , uma das noções
privilegiadas por Merleau-Ponty em seu último livro,
WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
OVisível e o Invisível, será de grande utilidade neste
momento do percurso de investigação:
... de sor te que o que vê e o que é visto se per
-muta m r ecipr oca mente ('se r ecipr oquem"}, e
nã o ma is se seibe quem vê e quem é visto. É a
essa VislbJ lida de, a essa gener a lida de do Sensí-vel em si, a esse a nonima to ina to do E u- mesmo
que há pouco cha má va mos 'ca r ne': e sa bemos
nã o há nome na filosofia tr a diciona l pa r a designá -Ia . ( ..) A 'ca r ne" nã o é ma tér ia , nã o é esp in to , . nã o é substâ ncia . Ser ia pr eciso, pa r a designá -Ia ,
o velho ter mo "elemento': no sentido em que
er a empr ega do pa r a fa la r -se da á gua , do a r , da ter r a e do fogo, isto é, no sentido de uma coisa
ger a l a meio ca minho entr e o indivíduo
espéciotempor a l e a Idéia , espécie de pr incípio enca r
-na do que impor ta um estilo de ser em todos os
luga r es onde se encontr a uma pa r cela sua .
(I 964a, pp. 183-184.)
No que essa noção rnerleau-pontyana "carne"
pode ser útil para a teorização psicanalítica, e para a
compreensão do ato perceptivo? Que "elemento" é
esse, que sendo 'coisa g e r e ] , a meio caminho entre o
indivíduo espácio- temporal e a idéia" pode vir a
con-tribuir para a compreensão da situação clínica descrita
pela psicanálise?
A noção "carne", me parece, é a base comum, é
o "estofo" comum, para que seja possível falar em
interpenetrabilidade de "lados", de polaridades, de um
e outro.
WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
É o que pode fazer com que não seja precisotrabalhar em duas
xwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
cena s, isoladas, que não seintercomunicariam a não ser que se postulasse uma
ponte imaginária, auto, constituída; a noção" carne" é
o que faz, ao contrário, que seja possível partir de uma
"cena" só, de um só contexto de base, onde "lados" se
interpenetrariam. Entretanto, não me parece que se
possa postular a "carne" como uma nova "síntese", só
que anterior, unidade originária e indiferenciada que
extinguiria o incômodo pulsar de polaridades. A noção
"carne", melhor que qualquer outra por sua
radicalidade, traz em si esse espetáculo maravilhoso,
que é o da mútua constituição das polaridades em um
campo comum, que é o da permanente reversibilidade
possível entre corpo como o que vê e o que é visto,
entre corpo que toca o mundo e é pelo mundo tocado.
Aparece aqui um aspecto central do diálogo possível
entre a filosofia de Merleau,Ponty e o trabalho de
psi-canalistas contemporâneos.
Do ponto de vista epistemológico, a proposição
de um "elemento" ("carne") que estaria presente em
tudo, mas sem, todavia, ser origem desse tudo, não
postula a eliminação das diferenças que abriria espaço
para uma concepção monista. Ao contrário, legitima
as diferenças, na medida em que recupera um estilo
comum presente no entrejogo das polaridades,
carac-terizando, simultaneamente, a presença da igualdade
e a presença da diferença. Este aspecto é central na
discussão do pensamento pós' moderno em que a de,
fesa incondicional das diferenças trouxe consigo, na
maior parte das vezes, a perda da tensão gerada entre
igualdade e diferença. O pensamento de Merleau,Ponty
define-se, como ele mesmo apresenta em O Visível eo
Invisível. como um pensamento construído a partir de uma dia lética sem síntese, onde a tensão dialética é
mantida como aspecto central. mas recusa-se à busca
de sínteses reasseguradoras.
Com isso, é preciso que fique claro que Merleau,
Ponty não supõe um mundo onde distâncias não
exis-tem. Não há a defesa de uma "geléia geral", pura
indiferenciação que nos remeteria à concepção da
grande unidade originária, na forma do uno primor,
dial, de onde tudo nasce e para onde tudo volta. Se
ver é tocar à distância, se busco com meu corpo tocar
e ser tocado é porque a distância existe, a diferença é
um fato. No entanto, o que pode tornar o ver e o
tocar significativos e carregados de sentidos é a si,
multaneidade de diferenciação e indiferenciaçâo, esta
como presença do mesmo "elemento" ("carne") no
corpo e no mundo. Escreve Merleau,Ponty:
E m vez de r iva liza r com a espessur a do mundo, a de meu cor po é, a o contr á r io, o único meio que possuo pa r a chega r a o â ma go da s coisa s, teeendo-me mundo e te zendo-ss "ca r ne
( 1 9 6 4 a , p . 1 7 8 )
Ou ainda:
O visível pode a ssim pr eencher -me e ocupa r '. me só por que, eu que o vejo nã o o vejo do tun-do tun-do na da , ma s tun-do meio dele mesmo, eu, a quele que vê, ta mbém sou visível' o que fa z opeso, a espessur a , a 'ca r ne" de ca da cor , ca da som, de ca da textur a tá til. do pr esente e do mundo, é que a quele que os a pr eende sente-se emer gir
deles por uma espécie de enr o/a menr o ou
r edobr smento. pr ofunda menr e homogêneo em r ela çã o a eles, que é opr ópr io sensível vindo a si e, em compensa çã o, o sensível está per a nte seus olhos como seu duplo ou extensã o de sua
'ca r ne"(l964a , pp. 1 5 2 , 1 5 3 )
O que Merleau,Ponty afirma é que há
reversibilidade, que diferenciação e indiferenciação
estão presentes simultâneamente. Há visível e
invisí-vel. A compreensão de uma situação vivida, passa, a'
partir dessas colocações de Merleau,Ponty, pela capa'
cidade de habitar o quiasrna, a dobradiça (ainda que
ela seja invisível ou oculta) do plano das relações
inau-gurais entre corpo e mundo. Nem na absoluta
diferen-ciação, que implica em polaridades irremediavelmente
separadas, nem na completa indiferenciação, que
pres-supõe a eliminação dos "lados", a eliminação de um e
outro. Assim, o "enigma" presente na situação clínica
encontra-se. em parte, nessa ambigüidade constante
que nos faz deslizar de um "lado" para o "outro lado",
e depois deste para aquele. Em alguns momentos é
possível situar-se no entr e, no quiasma; algo torna-se
apreensível. mas não enquanto emergindo de uma pie,
na visibilidade, e sim justamente, enquanto emergindo
do entrelaçamento de visível e invisível. Não há
visibi-lidade pura. em tarnpouco, pura invisibilidade. Nada
está absolutarnen e o c u l t e nada se mostra em sua'
totalidade. c m uma visibilidade absoluta. O visível
fvel. O invisível não é ausência
m escreve Merleau,Ponty:
e
VUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
f ã : a r do ser e do na da , convir ia .f à ,mvisível, r epetindo que eles