Sonhos de Angústia
Maria Lucía Silveyra Tradução: Paloma Vidal
Introdução
Hoje, a cem anos do Projeto Freudiano, é um fato que as coordenadas simbólicas nas quais se inscreve a psicanálise têm variado.
O discurso analítico se difunde nos diferentes âmbitos da cultura. Conseqüen-temente, esta situação tem propiciado distorções que, em algumas circunstâncias, o distanciam do que fora o projeto do criador da Psicanálise. Distorções que acentuam mais a adaptação do que o conflito.
O inconsciente também se modificou no que diz respeito às suas formas de apresentação. Em certos casos o discurso de nossos analisandos dista bastante do daquelas primeiras histéricas que Freud nos apresentava em seus "Estudos sobre a histeria".
Recordamos que, já no início, Freud se depara com a necessidade de intro-duzir certas variações na técnica analítica como maneira de responder aos obstá-culos da sua prática: desde a arte da interpretação até as resistências e a repetição. Poderíamos dizer que na atualidade os obstáculos que encontramos são ou-tros, mas, de uma forma ou de outra, eles são necessariamente parte do trabalho analítico e do desafio que ele mesmo impõe.
Por sua vez, continuamos sendo convocados num mesmo ponto: o do sofri-mento subjetivo.
O fato de termos crianças como analisandos não nos isenta de ter que enfrentar as mesmas dificuldades: o fechamento do inconsciente. No entanto, certas respos-tas próprias das crianças à intervenção analítica não deixam de surpreender por seu caráter direto ou por sua rapidez.
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Vale a pena recordar as vacilações que oportunamente manifestara Freud a respeito disso:
...a análise de uma perturbação na infância parecerá mais digna de confiança, mas seu conteúdo não pode ser muito rico já que será preciso emprestar à criança muitas palavras e pensamentos e ainda assim os estratos impenetráveis, profundos serão inacessíveis para a consciência.
Logo acrescentará:
de qualquer maneira é lícito afirmar que as análises das neuroses da infância podem oferecer um interesse particularmente grande. O serviço que prestam na compreensão da neurose dos adultos eqüivale mais ou menos ao que os sonhos das crianças brindam a respeito dos sonhos dos adultos [...] O que ocorre é que neles vem à tona de maneira inequívoca o essencial da neurose porque estão ausentes as estratificações que se depositaram depois.2
Em se tratando da psicanálise e da ética do desejo é no caso por caso que tentaremos dar respostas a estes interrogantes.
Os sonhos: sintoma e fantasma
Tomei dois sonhos da análise de uma criança que caracterizo como sonhos de angústia.
Sonhos que constituem um momento privilegiado da cura. Por um lado, como via de acesso à própria interrogação sobre o sintoma manifesto de sua neurose infantil: uma neurose secundária. Por outro, o esboço de certos pontos de fixação fantasmática, cujo destino na constituição subjetiva terá ficado por ora suspenso. A respeito dos sonhos, Freud nos ensina que, se bem é função dos mesmos atuar como guardiões do sono, há sonhos — como neste caso os sonhos de angústia — que contrariando o princípio do prazer fracassam na tentativa de elaboração do desejo inconsciente, interrompem o sono e provocam o despertar. Despertar para o encontro traumático com a sexualidade, sexualidade marcada por uma falta.
Cada sujeito tentará de uma maneira peculiar velar dito trauma, o real da castração. Sintoma, angústia, vicissitudes do fantasma, são montagens que o dispositivo analítico permitiu levar a cabo, desdobramento em transferência, dos momentos peculiares de uma análise.
Para orientar a exposição do caso recordarei as palavras de Freud ao referir-se aos sonhos de angústia:
Numa ocasião o analisando sonhou que se afundava em areias "molhadiças". Num cartaz lia-se a palavra "Perigo". Comentou que havia tido a sensação de não poder se mexer e disse "se estas areias chupam você, você desaparece". Quando acordou assustado, havia feito xixi na cama. Durante o relato corrige e diz: "movediças, não molhadiças."
Em outro sonho havia um vampiro dentro da cama. E também uma torta. O vampiro queria chupar-lhe todo o sangue e ele gritou.
Em ambos sonhos destaca-se um significante: "ser chupado", forma própria da gramática pulsional. Este significante que estabelece a equivalência entre as areias e o vampiro — ambos o chupam — remete na cadeia associativa a outro significante: "desaparecer". Chupar e desaparecer abrem o caminho para sintoma e para fantasma.
A condensação que se produz no lapso molhadiça por movediça toma, no equívoco, valor de interpretação e o leva em suas associações a fazer xixi na cama. Manifestam-se, então, através desta produção, por um lado os sonhos e o lapso — pontuações próprias do inconsciente e que veiculam um desejo — epor outro, o fantasma, que em sua versão imaginária, remete ao objeto em jogo. Há um fracasso na dimensão da representação que aproxima ao objeto, objeto causa do desejo que o coloca em questão. São sonhos que, como no "Homem dos Lobos", ativam um fantasma — em nosso caso: "ser chupado" — e provocam angústia.
Sabemos do valor fundante da angústia na constituição do desejo, desejo de ser desejado pelo Outro. Necessariamente lugar de desamparo, onde indefeso diz do sonho: "não podia me mexer".
O desejo toma, neste caso, a forma regressiva da oralidade veste a fantasia de vampiro ou areia chupadora.
Precisamente destaca-se em ambos os sonhos o fato de que tanto seu corpo como seus conteúdos, no sangue, por exemplo, valem enquanto objetos a serem chupados. O sangue eqüivale, em suas associações, ao xixi.
O vampiro havia sido até esse movimento da análise um personagem habitual em seus jogos, em seus desenhos. Mas até a aparição dos sonhos ele não fazia comentários a respeito.
Voltemos à angústia. Lacan se refere ao vampirismo para situar o ponto de angústia entre a mãe e a criança, ponto que está a nível do corpo da mãe. A angústia da criança ante a falta da mãe situa-se no esgotamento do peito. Na clínica encontramos que, correlativamente a este fantasma, a posição vampiresca da criança é uma resposta possível: "chupar-ser chupado".
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fusão ou de substração primária na fonte mesma da vida, onde o sujeito agressor pode encontrar a fonte de seu gozo"4.
O descobrimento da sexualidade entre os pais é um dos nomes da castração. No caso clínico do "Homem dos Lobos", da história de uma neurose infantil, Freud se refere à cena primordial e diz que a criança interrompeu o estar junto de seus pais mediante uma evacuação que lhe deu motivo para berrar.
Freud diz ainda, e isso nos interessa especialmente em relação a nosso ana-lisando, que, em ocasiões de índole parecida, a observação do comércio sexual entre os pais acabou em uma micção. Acrescenta que ambos fatos, a evacuação e a micção, podem ser tomados como signos da primeira excitação sexual. À excitação sexual e satisfação pulsional do sintoma, a criança responde com enu-rese, "fazendo xixi na cama".
Já numa carta a Fliess, Freud assinala que "uma criança que molhe a cama regularmente até os sete anos (...) deve ter vivenciado excitação sexual na infân-cia".
Nos 'Três ensaios", referindo-se ao diagnóstico diferencial, considera que a enurese noturna quando não responde a um ataque epiléptico, corresponde a uma pulsão.
Lacan se detém em seus desenvolvimentos sobre a angústia nessa cena pri-mordial do caso clínico mencionando:
os pontos de fixação da libido se encontram sempre ao redor de alguns desses momentos que a natureza oferece a essa estrutura eventual de cessão subjetiva .
Neste caso, os sonhos advertem de um perigo, perigo ligado ao desejo que o coloca em questão como sujeito.
Este perigo — precisa Lacan — é, de acordo com a indicação freudiana mais precisamente articulado, o que está ligado ao caráter de cessão do momento constitutivo do objeto a6.
Enquanto que a função da angústia é anterior à cessão do objeto, o perigo está ligado ao caráter de cessão do objeto parcial, do objeto a e de sua posição desejante.
Quanto à causa de seu desejo, o ser humano está ante tudo submetido a tê-lo produzido num perigo que ele ignora .
Poderíamos dizer que os sonhos na cura possibilitam, ao ativar o fantasma, voltar a passar por esse momento de constituição subjetiva.
Frente à castração cede fazendo xixi na cama. O que nomeia como objeto a, o xixi, é o gozo, o gozo autoerótico.
"Fazer xixi na cama" é o sintoma, "chupar" o verbo ao redor do qual se ordena o sintoma e o fantasma e que abre à dimensão pulsional da oralidade, colocando em jogo um objeto: o peito. Há articulação entre o sintoma e o fantasma. Estabe-lece-se a equivalência no inconsciente entre o peito e o pênis, entre o chupar e o fazer xixi na cama.
São as teorias sexuais infantis que no dizer de Freud
resultam indispensáveis para a concepção das mesmas neuroses, nas quais estas teorias conservam vigências e cobram um influxo que chega a comandar a configuração dos sintomas .
E acrescenta:
o que há nessas teorias de correto é explicado por sua proveniência dos com-ponentes da pulsão sexual, já em movimento dentro do organismo infantil.
Alguns dados da história
A mãe o apresenta como uma criança superdotada, tanto por seu desenvolvi-mento físico como por sua capacidade intelectual. O ingresso na escola não confirma esta fantasia. Passa a ser apenas um a mais no grupo das crianças. É o momento de queda do imaginário, do ser diferente, que ambos compartilhavam. Nascem irmãos gêmeos, ambos meninos: acidente, não sem conseqüências, na história. Há o encontro com a castração do Outro materno que o desaloja do lugar ideal de falo, desde o qual completava imaginariamente a mãe.
Frente a imagem da completude reage com agressividade: chiliques diante da cena dos irmãos mamando, chupando dirá ele, e que freqüentemente derivam na masturbação ou no xixi na cama. Com as primeiras excitações sexuais começa a enurese. Da equação corpo-falo ao descobrimento do pênis real que irrompe como traumático é um gozo fálico de difícil assimilação simbólica.
Nas seções se interessa pelas comparações: presente-ausente, grande-peque-no, vivo-morto, entre outras. Constrói aviões de papel. Apincípio são tão grandes que não pode fazê-los voar. Vai reduzindo-os de tamanho e consegue que se mantenham no ar.
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Com respeito à relação entre a criança e a angústia, Freud refere-se às histerias de angústia como as que aparecem mais cedo na vida: "são diretamente as neuroses da época infantil". Apesar de alguns medos, que foram cedendo no curso da análise, no caso desta criança, não se constitui uma fobia.
O desejo do analista operou e tornou possível a constituição de um saber, de uma ficção fantasmática, esboço de resposta ao impossível do real.
Até aqui chegou a análise: fica como questão a verificar o destino do objeto que virá ao mesmo tempo a velar e a assinalar a falta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. FREUD, S., "Da história de uma neurose infantil. O.C v.XVII, Buenos Aires, Amorrortu Ed.
2. Ibidem
3. FREUD, S., A Interpretação dos Sonhos. O.C, V, op.cit 4. LACAN, J., O Seminário, livro 10, A angústia. Inédito. 5. Ibidem.
6. Ibidem. 7. Ibidem.