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Temos medo de quê?.

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Confe rê nc i a

Ex-psiquiatra de hospitais. Professor da Universidade Paris VII – Denis Diderot.

Tradução: Pedro Henrique Bernardes Rondon

TEMOS MEDO DE QUÊ?

1

Ala in Va n ie r

1 Publicado originalm ente em Dillens, Anne-Marie ( dir.) La peur: émotion,

passion, raison. Bruxelas: Facultés Universitaires Saint-Louis, 2006, p.15-30. Por ser fruto de um a conferência, este ensaio não apresenta referên-cias bibliográficas com pletas das citações literais; o autor se responsabi-liza pelas m esm as.

RESUMO:O enfraquecim ento contem porâneo das figuras tutelares

tem com o correlato certa escalada do m edo. Contudo, a psicanálise apostará em outra via que não a da restauração do pai do patriarca-do. A fim de pensar tal via, articula-se, aqui, as diferentes categorias do m edo, considerando-se as form as tom adas por este term o no curso da História, bem com o suas inflexões contem porâneas na relação com o laço social.

Palavras - chave : Medo, angústia, pai, gozo, ciência.

ABSTRACT: What do we fear? The contem porary weakning of the

tutelaring figures holds a corrilation to a fear scale. However, the psychoanalysis w ill bet on other m eans that not the one of the restau ration of th e patriarch ate fath er. In order to th in k su ch a m ean, it is here argued the different categories of fear, considering the form s taken by this term in the course of History, as well as its contem porary inflections in the relation w ith social bonds. Ke y w o rds : Fear, anguish, father, joy, science.

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não estão distantes de nosso tem a, porquanto a identificação — com o m odali-dade de relação com o sem elhante — articula-se com a questão do m edo, do qual é um a das saídas.

Que é que um psicanalista pode dizer a propósito do m edo? Não considero que seja fortuito o aparecim ento de um tem a com o este hoje em dia. De fato, um a questão com o “tem os m edo de quê?” se divide entre a intem poralidade do m edo com o afeto fundam ental, e a atualidade dessa questão.

Alarm e, acovardam ento, angústia, ansiedade, apavoram ento, apreensão, as-so m b ro, aversão, cagaço, azar n o jo go, covard ia, d esasas-so ssego, d esb r io, enlouquecim ento, fobia, ódio, raiva, horror, inquietação, inquietude, m edo, pâ-nico, paúra, pavor, pusilanim idade, receio, repulsa, sobressalto, susto, tem or, ter-ror, trem or, etc. O vocabulário do m edo é im enso, e o cam po sem ântico que constitui é m uito rico e, curiosam ente, discrim ina m uito pouco. O term o cen-tral que Freud prom ove é o de angústia (Angst) — do qual Kierkegaard fizera um conceito alguns decênios antes — e sem dúvida não é indiferente observar o reaparecim ento desse term o, caído em desuso no século XVIII, nesse m om en-to particular da História do Ocidente ( REY, 1992) . Propõe-se para nós, então, a questão da articulação possível entre as diversas categorias do m edo, assim com o suas form as no curso da História e as inflexões contem porâneas desse m esm o term o na sua relação com o laço social. Aristóteles e a tragédia, Agosti-nho e a Revelação, Hobbes, Kierkegaard, Heidegger, depois Hannah Arendt e o terror totalitário, Hans Jonas, tantas figuras que m arcam várias etapas da pro-blem ática, articulando a singularidade do m edo e sua universalidade, sua parti-cularidade e o tratam ento que dá e recebe da coletividade.

O que é a angústia para a psicanálise? Freud foi o prim eiro a fazer a angústia entrar para o vocabulário da psicopatologia. Os alienistas do século XIX não desconheciam o m edo com o signo, m as o incluíam em quadros diversos. Freud deu à angústia um estatuto novo, ao descrever em 1895 a neurose de angústia ( FREUD, 1895) . Ele desenvolve sucessivam ente pelo m enos duas teorias da an-gústia, assim com o um recorte desse abundante vocabulário do m edo.

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Talvez daí provenha a escolha feita pelos tradutores franceses de Freud, de tra-duzir Angst por angoisse [ angústia] , um a vez que em alem ão aquele term o recobre tam bém o m edo: para dizer que alguém tem m edo, utiliza-se Angst.

Desde os anos 1890, a angústia para Freud corresponde a um a tensão física que não pode ser elaborada psiquicam ente, e essa tensão é sexual. Depois de ter sido referida a causas a propósito das dificuldades atuais da vida genital, em seguida é articulada à teoria do recalcam ento. Este separa representação e afeto: a representação é recalcada no inconsciente, e o afeto é deslocado, destacado dessa representação à qual estava ligado. O afeto então não pode ser reconheci-do e se transform a em angústia que parece não ter objeto.

Freud vai propor um a divisão de m edos e angústias, à qual será levado pelos efeitos clínicos da Prim eira Guerra Mundial ( FREUD, 1916-1917; 1920) . Ele distingue três categorias em função de “sua relação com o perigo”. Em prim ei-ro lugar, a angústia — Angst — que se refere a um estado e “abstrai do objeto”. O perigo pode ser desconhecido e provoca um estado de espera e de prepara-ção. Em seguida, o m edo (Furcht) exige um objeto determ inado e dirige sua atenção para este. Por fim , o terceiro term o, Schreck, para o qual [ em francês] a tradução por effroi [ pavor] é preferível a frayeur [ susto] , porque frayeur deve sua form a e seu sentido atual a um a aproxim ação com effrayer [ assustar] , de onde vem effroi [ pavor] , nesse caso a etim ologia é distinta. O pavor é efeito de um perigo que não é preparado por algum a form a de alerta, não é preparado pela angústia, é m arcado pela surpresa. Isso faz Freud dizer que o ser hum ano se protege do pavor por m eio da angústia. As neuroses traum áticas — neuroses de guerra — fornecem o m odo explícito de um a m anifestação de pavor, e a articu-lação da angústia e do m edo é particularm ente nítida na fobia.

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quando sobrevém um a exigência pulsional. A angústia é um sinal no eu, ela adverte o sujeito de um perigo que é o de um desejo enigm ático que envolve seu ser com o perdido e passível de anulação, seu ser com o objeto que pode ser, sem saber qual, para o desejo do Outro. Só então o recalcam ento intervém .

Toda a teoria do infantil tinha sido desenvolvida por Freud a partir dos tratam entos de adultos. Para responder aos seus detratores, Freud estim ulou pessoas que andavam à sua volta a observarem crianças, a fim de verificar suas hipóteses. Dessas observações, nada chegou até nós, a não ser o início do artigo sobre o pequeno Hans, publicado em 1909 ( FREUD, 1909; ver tam bém com en-tário de Lacan em LACAN, 1956-1957/ 1994) . Porém , quando tinha 4 anos e m eio, o Hans dispara um a fobia que vai ser tratada por um a psicanálise condu-zida por seu pai. Paradoxalm ente, Freud vai declarar que o tratam ento de Hans não lhe ensinou nada que ele já não soubesse.

Muito cedo, Hans surge preocupado com seu pênis, que ele cham a de seu

W iwimacher — seu faz- pipi. Ele atribui um faz-pipi daqueles tam bém aos anim ais

que existem à sua volta, m as não a todos, e se pergunta se sua m ãe tam bém teria um . Diante disso, ela responde que tem , e acrescenta: “Então você não sabia?” Essa ênfase no saber não é à toa, um a vez que a fobia tem isso de particular: ela m anifesta, ao m esm o tem po, um saber que o sujeito possui sem poder fazer saber que possui, sem poder fazer com que seja reconhecido, e, além disso, um a zona de não-saber fundam ental. Hans responde: “Não, eu achava que com o você é tão grande, devia ter um faz-pipi com o o de um cavalo.” Esta é um a das prim eiras ocorrências do cavalo, que será o objeto fóbico por onde Hans faz saber aquilo que sabe. Nessa época, as ruas viviam cheias de cavalos, o que perm itia a observação de sua vida íntim a, tão im portante para as crianças. Hans não pode se apropriar desse saber, porque não pode fazê-lo reconhecer pelo Outro. Ele tam bém adquiriu o hábito de se m asturbar, o que lhe valeu um a am eaça de castração proferida pela m ãe.

Lacan vai insistir na im portância da descoberta do real do órgão nessa ida-d e. A m icção ida-d eixa ida-d e aco n tecer co m ereção, e as ereçõ es se p ro ida-d u zem intem pestivam ente, dando sensações de tensão desconhecidas, incontroláveis e quase dolorosas. As crianças dessa idade m uitas vezes fazem perguntas indiretas sobre essas sensações, que são solicitações de palavras para saber aquilo que irrom pe violentam ente em seu corpo. Porque a sexualidade irrom pe violenta-m ente e, adeviolenta-m ais, é iviolenta-m possível doviolenta-m iná-la: isso já iviolenta-m punha a dúvida aos gregos, um a vez que a sexualidade é o lugar por excelência do fracasso do ideal de dom ínio de si m esm o.

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ção, isto é, ao saber — outra fórm ula de Freud, que m ais tarde constata que não há representante da diferença dos sexos no inconsciente, e de que nesse nível há um a falta de saber.

O nascim ento de um a irm ãzinha alim enta o questionam ento de Hans sobre esse órgão, assim com o sobre a diferença dos órgãos genitais entre m eninas e m eninos. Ele tem um sonho no qual sua m ãe o abandona, e desenvolve pouco depois um a fobia a cavalos, lugar da transposição da angústia. Hans era um m enininho particularm ente am ado pela m ãe que o levava para toda parte: para sua cam a, apesar dos tím idos protestos do pai; para seu banheiro, etc. O tem or de ser devorado pela m ãe que seu sintom a m anifesta ( m edo de que um cavalo o m orda) de fato é o tem or de não saber o que a m ãe quer dele nesse am or que tem por ele. O interesse pela irm ãzinha que acabou de nascer torna m ais aguda a questão. Trata-se de saber por que ele é am ado, um a vez que seu órgão não parece estar à altura daquilo que a m ãe poderia esperar. Então, o risco é de que seja ele inteiro o objeto do desejo da m ãe. Hans é confrontado com aquilo que encontrou com o falta no Outro, isto é, com o desejo. Se não falta nada à m ãe, ela não deseja. Sócrates já fazia Diotim a dizer que o am or é filho do Expediente e da Pobreza, é pobre porque é falta e vive de expedientes.

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absoluta ao desejo do Outro, que sem pre lhe parece enigm ático: “O que ele quer? O que ele quer de m im ?” Essa pergunta não pára de ressurgir ao longo da vida inteira, ela colore, dá sabor às aflições da vida am orosa de todo m undo: o que é que eu sou para o Outro? Que é que ele am a em m im , se m e am a? E isso a cada vez que esse outro m e parece realm ente outro. Assim , a angústia é, para o sujeito, um a espécie de m arcador do aparecim ento de um a relação com o Outro, em sua dim ensão real, e destaca a dependência ao Outro de toda consti-tuição de sujeito.

Para Freud toda angústia é fundam entalm ente angústia de separação. De fato, o que gera a angústia é m enos a separação do que aquilo que aconteceria se essa separação não acontecesse: a angústia surge da experiência dessa liga-ção que desm ente a separaliga-ção. A angústia é, portanto, m arca dessa separaliga-ção, m arca de um vestígio deixado pela sim bolização dessa separação. A encarnação de um objeto ( seja um bichinho de pelúcia, um paninho m acio, um objeto eletivo que Winnicott cham a de objeto transicional) é esse vestígio, esse reliquat

que significa que essa separação não é totalm ente sim bolizável, que há um resto.

No final das contas, a suposta onipotência da m ãe, a dependência suposta ao seu capricho, é que cria um a situação de perigo para o sujeito.

“O espanto se apossa de você m ais facilm ente ao sair de um estado de contem pla-ção e de concentrapla-ção profundas, quando você está num a m editapla-ção profunda, ou recolh ido n a m ú sica ou m ergu lh ado n o son o. Mais fácil e fortem en te do qu e qualquer outra, um a percepção visual o fará m ergulhar no espanto. Mas

especial-m ente, se é a presença de uespecial-m a pessoa feespecial-m inina que você percebe por perto ( e provavelm ente é a m esm a coisa tanto para os hom ens quanto para as m ulheres) . De m odo que o aparecim ento da m ãe, despertando o hom em da m editação na qual ele está profundam ente absorto, seria o caso eidético ideal do espanto.” (

BENJA-MIN, 1 9 2 0 -1 9 2 2 / 2 0 0 1 )

O recolhim ento de que Benjam in fala não é em Deus, explicita ele, nem em si m esm o: é um recolhim ento incom pleto que “desencarna a carne” e a desenraiza “do corpo estrangeiro”, donde a prevalência do visual. E acrescenta: “O espanto é um fenôm eno que só pode se instalar quando a sós”, e põe em jogo a dim en-são do duplo.

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de vista, a fobia m ostra com o o m edo trata a angústia. Os pacientes fóbicos apresentam novos surtos de angústia quando a fobia desaparece; na neurose obsessiva, quando o sujeito é im pedido de entregar-se aos seus rituais. Essa relação com o desejo do Outro encontra sua resolução norm ativa no com plexo de Édipo, isto é, no lugar que o pai pode tom ar com o sendo aquele que se ocupa do desejo da m ãe. Nisso, a culpabilidade tem ligação com a angústia, o que Kierkegaard ( 1844/ 1935) desenvolveu m agnificam ente, sob um outro ângulo, e que é constatado pelo trabalho histórico de Jean Delum eau ( 1983) sobre o pecado e o m edo. A fobia m anifesta ao m esm o tem po um a realização e um fracasso; de certo m odo a operação edipiana erra o alvo, um a vez que ao m es-m o tees-m po es-m anifesta e disfarça ues-m a falha da separação.

Há algum tem po o tem a do declínio do pai, do enfraquecim ento de sua função, tem tom ado ares de banalidade. E no entanto, esse enfraquecim ento não é recente. O advento do cristianism o é um dos m om entos decisivos para isso, e um a disputa com o a do filioque é evidência disso. É certo, no entanto, que nossa época m ostra um enfraquecim ento de um a dim ensão im aginária do pai — não sem relação com a prom oção de figuras ideais para além da fam ília. Há, entre-tanto, algum a coisa estrutural no fato de que, falando propriam ente, nenhum pai está à altura de substituir por com pleto a dim ensão sim bólica de sua função. As inevitáveis fobias que balizam e escandem o desenvolvim ento da criança m anifestam isso. Quer se trate do m edo da escuridão, do lobo, etc., essas fobias aparecem em idades determ inadas: por volta de 3 a 5 anos, e a fobia de Hans provavelm ente é um a dessas; depois por volta de 8-9 anos, quando a criança apreende que pode perder ou ser perdida por seus pais, que são m ortais. É por isso que se pode dizer, ante essa incom pletude, “só tem os m edo verdadeira-m ente daquilo que não podeverdadeira-m os coverdadeira-m preender” ( MAUPASSANT, 1884/ 1979) . Lacan diz a m esm a coisa quando, ante a pergunta de um a jornalista quanto ao que “leva as pessoas a se subm eterem à psicanálise”, responde que é “o m edo. Quando acontecem ao hom em coisas que ele não com preende, m esm o que sejam coisas que ele quis, o hom em tem m edo. Ele sofre por não com preender e, pouco a pouco, entra num estado de pânico. É a neurose.”

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cujo interior um a civilização se sentiu ‘pouco à vontade’ e povoou de fantasias m órbidas”. A angústia e o desespero am eaçavam a coerência social. “Os ho-m ens da Igreja”, escreve Jean Deluho-m eau,

“ design aram e desm ascararam esse in im igo dos h om en s. Prepararam o inven tário dos m ales qu e ele é capaz de provocar, e o rol de seu s agen tes: os tu rcos, os ju deu s, os h ereges, as m u lh eres ( especialm en te as feiticeiras) ( ...) . Um a am eaça

global de m orte en con trou -se assim segm entada em m edos, certam en te tem íveis,

porém nom eados e explicados, porquanto refletidos e esclarecidos pelos hom ens da Igreja. Essa enunciação designava os perigos e os inim igos contra os quais o com bate era pelo m enos possível, se não fácil, com a ajuda da graça de Deus. ( ...) O discu rso eclesiástico, redu zido à su a essên cia, era de fato o segu in te: os lobos, o m ar e as

estrelas, as pestes, as privações e as gu erras n ão precisam ser tão tem idos qu an to o dem ônio e o pecado, e a m orte do corpo, não tanto quanto a m orte da alm a. Desm ascarar Satã e seus agentes e lutar contra o pecado, adem ais, era dim inuir a quantidade de infelicidades existentes sobre a Terra, das quais eles são a verdadeira

causa. ( Id., ibid.)

Jean Delum eau observa, por outro lado, que se introduz então um certo m edo de si m esm o, porque “todo hom em , se não tom ar cuidado, [ pode] se tornar um agente do dem ônio”.

Isso que é descrito para nós dessa m aneira é um notável tratam ento do m edo pelo m edo. Essas agressões incom preensíveis rem etem às fontes do m edo. Explicá-las, nom eá-las, colocá-las num com bate no qual cada um pode encon-trar seu lugar, ainda que não m ude nada nas agressões, m odifica o valor e o próprio sentido do m edo.

Relendo Athalie de Racine, em 1956, Lacan desenvolveu um a hipótese próxi-m a a isso ( LACAN, 1955-1956/ 1981) . A pripróxi-m eira cena da exposição próxi-m ostra o encontro de Abner, um oficial da rainha Athalie que reina pelo terror, com o grande sacerdote Joad, que conspira a fim de levar ao trono o seu filho, filho que deveria ter sido m orto quando criança, e que ele escondera.

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poder diante do poder da rainha, que parece não ter lim ites. Zeloso vem do latim zelus, que quer dizer “ ciúm e” , que por sua vez provém do grego zelos, “em ulação”, “rivalidade”; designa um vínculo im aginário, um a m ultidão de assem elhados ( REY, 1992) . Diante disso, Joad responde: “Eu tem o a Deus, caro Abner, e não tenho nenhum outro tem or.”

Ao redor desse tem or a Deus — e Lacan enfatiza a que ponto esse term o é fundam ental num a certa tradição que é a nossa — gira a posição de Abner, zeloso, porém indeciso, um pouco deprim ido, que fica firm e e se junta ao grupo fiel. A eficácia desse tem or a Deus é transform ar o zelo inicial em fideli-dade no final da cena, porquanto os “zelosos adoradores” se tornam a “tropa fiel”, fidelidade que deriva de fides, a fé — fé nesse Deus terceiro que articula m inha ligação ao m eu sem elhante. Essa passagem , parecida com aquela descri-ta por Delum eau, não é um em buste de prestidigidescri-tação.

Lacan pode dizer:

“o tem or a Deus é um significante que não se encontra em toda parte. Foi preciso

qu e algu ém o inven tasse, e o propu sesse aos h om en s com o rem édio para u m m undo feito de m últiplos terrores, tem er um ser que, no final das contas, só pode exercer seus m aus-tratos por m eio dos m ales que estão aí, presentes de form a m últipla, na vida hum ana. Substituir os inum eráveis tem ores pelo tem or a um ser

único que não dispõe de outro m eio para m anifestar seu poder senão aquilo que é tem ido por trás desses nu m erosos tem ores, é u m bocado difícil de adm itir.” ( LACAN, 1 9 5 5 -1 9 5 6 / 1 9 8 1 )

As culturas sem pre propuseram esse tipo de tratam ento do m edo pelo m edo. Um m edo im aginário, difuso, que am eaça aparecer de surpresa, é substituído por um m edo orientado, focalizado, com o um a espécie de fobia generalizada, que serve de rem édio para a solidão paralisante da angústia, ao coletivizar essa angústia. Tal intervenção, portanto, introduz um a dim ensão suplem entar com Deus com o figura de Pai ideal. Põe em ação um efeito de sim bolização daquilo que há de m ais Real para cada um , por trás dessas m últiplas infelicidades: a m orte, a m orte incom preensível, a respeito qual nada podem os saber, porque rem ete a um a abertura no próprio saber. Todas as crianças da idade de Hans são pequenos m etafísicos, preocupados com essa questão. O que encontram no Outro que interrogam é um ponto de não-saber, no qual está alojada um a crença. Nesse lugar, é preciso abster-se cuidadosam ente de inscrever um a certeza que fu n cion e com o u m tam pão, qu e faça extin gu ir a cu riosidade do pequ en o perguntador que tenta lim itar essa abertura no Outro.

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crianças pequenas de um m aternal — crianças de m ais ou m enos 3 anos — terá guardado na lem brança a dificuldade que a professora pode ter para sim ples-m ente arruples-m á-las eples-m grupo. Alguns anos ples-m ais tarde, as crianças forples-m aples-m uples-m a fila sem m aiores dificuldades, elas se organizam sob a tutela da professora, ou do líder que tenha surgido de dentro de suas próprias fileiras.

O reagrupam ento sob um a figura tutelar sem pre constituiu um a das m anei-ras m ais com uns de tratar o m edo. O pai, ou sua figura, protege do m edo. Esse reagrupam ento se faz à custa de um a regressão que m antém o sujeito em deter-m inada posição, aquela que Freud qualificava codeter-m o infantil, deter-m as que pode tom ar corpo e constituir um a proteção eficaz contra a neurose. É o que a reli-gião realizava ( “Não tenhais m edo!”) num tem po em que seu lugar no cam po cultural perm itia isso. O relativo declínio do discurso religioso, a m odificação de seu lugar no nosso m undo tem ligação com a em ergência da psicanálise com o sintom a revelador do m al-estar em nossa civilização.

ENTÃO, TEMOS MEDO DE QUÊ?

De nosso corpo, respondia Lacan. Esse m edo de si m esm o se cham a angústia. Os outros registros do m edo se articulam aí, ou procedem daí. O que é o corpo? Em francês, pelo m enos, não se diz “eu sou”, m as sim “eu tenho” um corpo. O corpo é um haver, um a posse que tam bém nos possui; é algo de que gozam os — entendam gozo no seu sentido jurídico. O gozo que é gozo do corpo é aquilo que está além do prazer, que funciona com o barreira. O gozo é aquilo que se pode experienciar, por exem plo, na dor. Ora, as proteções funcionam e, na m aioria das vezes, nos põem ao abrigo de experienciar essa dim ensão de nosso corpo.

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objetos são os lugares onde se realizaram as trocas com o Outro através dos cuidados, da m aternagem , etc., lugares de gozo com em orativos de um gozo prim eiro, perdido para sem pre.

Essa im agem , portanto, é furada; o sujeito não reencontra aí os seus objetos, eles estão faltando. Não o seio, m as o furo da boca, não o olhar, um a vez que, diante do espelho, eu não m e vejo ver. O que retém a im agem são essas faltas, em bora a im agem com o unificada as oculte.

Se existem m edos do corpo ligados a perigos que o am eaçam diretam ente, a angústia é esse m om ento em que pressentim os que nosso próprio corpo po-deria não ser senão um desses objetos próprios ao gozo do Outro, próprios para não ser senão um desses resíduos. A angústia é, assim , um m edo do m edo, m edo de algum a coisa que escapa à com preensão, ao saber, m edo desse gozo enigm á-tico para o sujeito.

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que acabava de ocorrer. Tratava-se de um am or m aravilhoso com um hom em que lhe “corresponde” perfeitam ente: “A gente se entende bem intelectualm en-te, sentim entalm ente e...”, fiquei esperando que dissesse “sexualm ente”, m as ela acrescentou “... financeiram ente”.

Certa dim ensão do Outro, que perm itia o tratam ento da angústia canalizan-do-a com o m edo con tra o qu al esse Ou tro se fazia protetor, en con tra-se rem anejada hoje em dia. A organização de um poder aurático2 perm itia outrora essa gestão: o príncipe exercia o poder em nom e de um princípio divino que o distinguia da m ultidão; e se tinha o poder, a autoridade procedia de um outro lugar que lhe conferia, ao m esm o tem po, a sua unicidade ( cf. BENJAMIN, 1935-1939/ 2000) . Os progressos científicos seduziram esse esquem a — tudo o que é vivo vale tudo o que é vivo, cada organism o vale tanto quanto um outro — m as o organism o da ciência é o hom em -m áquina da m edicina, porque da pró-pria vida nada sabem os. Essa vida, enigm ática, adquiriu hoje em dia um caráter sagrado n o qu al Ben jam in via “ o derradeiro extravio da tradição ociden tal enfraquecida que busca no cosm ologicam ente im penetrável o sagrado que per-deu” ( idem , 1921) . Esse desm oronam ento das figuras tutelares tem com o correlato um a certa subida do m edo, resgate dessa em ancipação do sujeito m oderno agora ante um m undo que lhe é explicado, m as que perm anece insen-sato para ele, e cada vez m ais incom preensível.

Em seu estudo sobre o totalitarism o, Hannah Arendt enfatiza a função do terror nesse regim e, inédito até o século passado ( ARENDT, 1951-1968/ 1972) . Ela lem bra a dim ensão cientista que funda essas ideologias baseadas em Darw in ou Marx. O que vai prevalecer sobre as leis positivas do direito fundado sobre o desvio que não pode ser reabsorvido entre legalidade e justiça, serão as leis da Natureza ou da História, baseadas num ‘discurso cientista’,3 num a ideologia que não pertence à ciência propriam ente dita, m as deriva dela. A Lei se torna a lei científica. São leis, no sentido científico do term o, ao qual o regim e em questão não tem m ais apenas que se subm eter, m as cuja realização tem que garantir, realização tornada instrum ento da vontade do Outro — a Natureza, a História. Assim , não basta a constatação de um a raça “inapta a viver”, trata-se de efetuar seu exterm ínio em nom e de um processo lógico que caracteriza esse terror m oderno. Terror m oderno que é apenas a conseqüência dessa nova versão da lei que se confunde com o m ovim ento da Natureza ou da História. Esse regim e de terror realiza o isolam ento de cada um em relação a cada um , “o isolam ento (loneliness) é o capital do terror m oderno”.

2 No original, auratique. Neologism o do autor: um adjetivo referente a “ aura” ( cf. BENJAMIN,

1935-1939/ 2000) . ( N. do T.) .

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Vivíam os num m undo em que nosso gozo se situava, se regulava a partir do Outro ( cf. LACAN, 1973) . Hoje em dia, na esperança de recuperar um pouco desse gozo perdido, som ente nos situam os a partir do objeto. Assim é possível com preender a passagem de um a chefia que procedia de um direito divino para essa que se funda apenas em designar um objeto no outro, um fragm ento de gozo, do qual som os espoliados e que é preciso recuperar destruindo-o, o que é evidenciado pela m oderna prom oção do discurso da vítim a — os grandes líderes sanguinários do século XX se legitim avam assim : vítim as dos gozadores que eram os judeus, os burgueses, etc. ( cf. VANIER, 2003) .

Porque se a ciência está em vias de substituir a religião — Benjam in situava o capitalism o com o um a religião não expiatória m as culpabilizante — se, por exem plo ela fornece m andam entos de preservação do vivo — não fum arás, não beberás, etc. — e gera dessa m aneira um a espécie de hipocondria generalizada, por isso m esm o deixa o sujeito na angústia, à falta de um a ética do desejo, en gu içad o q u an to a u m sen tid o q u e su sten te su a vid a, em b u sca d e u m balizam ento que regule o seu gozo. Com o conduzir sua vida? Executar determ i-nadas escolhas em função de quê?

Se a ciência, com o nova religião, só im perfeitam ente substitui as necessida-des da antiga ordem , vai ser preciso por isso nos deixarm os fascinar pelo bom tem po antigo, por essa nostalgia do pai de que Novalis já falava? Um a certa desilusão da m odernidade não deve encontrar seu abonador nos tem pos antigos repentinam ente idealizados e igualm ente ilusórios. A psicanálise tam bém é fi-lha da m odernidade. Não é um a religião nem um a ciência, m esm o que deva sua em ergência ao progresso do discurso da ciência, um a vez que se encarrega de rejeitá-la. Conseqüentem ente, com porta um a jogada ética. O tratam ento analí-tico perm ite que o sujeito saiba algum a coisa de seu gozo, perm ite apreender esse Real — e se contrapor a ele — e suportar essa parte que incessantem ente escapa ao sujeito, parte que, no entanto, é estrutural, em bora retorne ao sujeito com o aquilo que lhe é o m ais estrangeiro. O tratam ento analítico pode então perm itir não interpretar ilusoriam ente esse Real com o espoliação de um gozo que o captura e que ele quer recuperar no Outro, por conta de quem , à sua revelia, ele o descartou.

A psicanálise não prom ete o fim da angústia. Apenas um por um , sem solu-ção global — m as Kierkegaard não dizia que “a todo instante o indivíduo é ele próprio e o gênero hum ano”? — ela pode perm itir viver com a angústia que é a m arca da nossa condição, da nossa finitude e da nossa paradoxal liberdade.

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Alain Vanier

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