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1 O autor e a obra
... 51.1.
Informações biobibliográficas
... 51.2.
O Nobel português
... 71.3.
Fragmentos da crítica do romance saramaguiano
e da atribuição do Nobel a um português
... 72 A tipologia da narrativa
... 93 O tempo histórico e o tempo da narrativa
... 124 O título e as linhas da ação
... 175 Síntese das sequências narrativas
... 196 Caracterização das personagens e a relação entre elas:
os universos do poder e do contrapoder
... 317 A visão crítica
... 357.1.
O espaço físico
... 357.2.
O espaço social
... 377.3.
A voz do narrador: intenção interventiva
... 428 A dimensão simbólica do romance
... 449 A linguagem e o estilo
... 469.1.
Intertextualidade
... 469.2.
Pontuação, recursos expressivos e reprodução
do discurso no discurso
... 4710 A subversão no romance
... 4911 Alargamento cultural
... 5012 Preparação para exame
... 51CRES-M C © I dei as de L er
O tempo histórico
e o tempo da narrativa
O tempo histórico diz respeito à época histórica na qual se enquadram os acontecimentos e a ação. O tempo da narrativa, por seu turno, diz respeito à ordem pela qual os acontecimentos são narrados, podendo este não corres-ponder à ordem pela qual aconteceram, sendo que o autor pode recorrer a analepses e prolepses.
A ação do romance desenrola-se entre 1711 e 1739, período de tempo re-constituído através de referentes temporais associados a acontecimentos his-tóricos, tal como indicam as duas balizas temporais, inseridas no início e no fim do romance, respetivamente:
• “D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mu-lher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria” [p. 9] – o casamento real foi em 1708;
• “Entre os mil cheiros fétidos da cidade, a aragem noturna trouxe-lhe o da carne queimada. Havia multidão em S. Domingos […], é um que fazia comé-dias de bonifrates e se chamava António José da Silva” [p. 399]– alusão ao auto de fé em que foi queimado o referido escritor, em 1739.
O tempo histórico do romance corresponde, então, às primeiras décadas do século XVIII, época marcada por assinaláveis contrastes resultantes da coe-xistência paradoxal de práticas retrógradas e medievalizantes, por parte da corte e do povo, e de um esforço de modernização e abertura ao espírito ilumi-nista da Europa, do qual é principal representante o rei D. João V.
Memorial do Convento, enquanto romance histórico, espelha essa reali-dade, denunciando assimetrias, absurdos, paradoxos que caracterizam a so-ciedade portuguesa do início de setecentos.
3
Estaremos perante um romance histórico? Sim, pela minuciosa infor-mação que organiza. Mas ninguém se entrega assim tão apaixonadamente a um passado se não estiver possuído de uma enorme gana, talvez de des-forço, talvez de resgate. Sente-se que a época de D. João V dói, por qual-quer fundo motivo, a José Saramago. […] como se algo transbordasse de um memorial tão denso de uma geração de há mais de dois séculos e meio, e ainda hoje não haja suficiente capacidade para conter esse excesso.
Óscar Lopes, in Os Sinais e os Sentidos,
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Memorial do Convento, de acordo com as palavras de Óscar Lopes, revela, também, uma relação muito próxima e marcadamente afetiva entre o autor (homem do século XX) e a época que retrata (início do século XVIII). Nas palavras do crítico literário, é como se Saramago tivesse uma missão a cumprir: exorcizar a dor que, “por qualquer fundo mo tivo”, a época de D. João V lhe provoca. Tempo histórico do romance
Aspetos históricos Evidências em Memorial do Convento
Dissipação do ouro do Brasil por parte
de D. João V
– Megalomania do monarca traduzida em:
• vida faustosa na corte;
• procissões ricamente engalanadas;
• construção do convento de Mafra em função de caprichos pessoais;
• construção da casa de Pegões, do palácio de Vendas Novas e outras estruturas de suporte aos cortejos nupciais;
• distribuição de arcas de moedas pelo povo que se encontrava na rua;
• pompa excessiva do cortejo de Elvas;
• construção de uma casa no meio da ponte de pedra sobre o rio Caia, ricamente decorada.
Miséria do povo
– A fome, a doença e o medo em Lisboa e Mafra; – A exploração e o abandono do povo, de que Baltasar é o
paradigma, enquanto vítima da guerra. Falta de visão
e de gestão empreendedora
– Lisboa como entreposto comercial do ouro e das pedras preciosas do Brasil e das especiarias do Oriente, não retirando os justos dividendos.
Importação de modas, artistas
e materiais estrangeiros
– Contratação do alemão Ludwig como arquiteto de Mafra e de Domenico Scarlatti como professor particular de música da infanta Maria Bárbara;
– Importação de mármores, de estátuas de santos, de sinos e carrilhões, de candeeiros, de castiçais, de cálices e custódias de prata, vindos de Roma, Veneza, Milão, França, Holanda, para a construção e decoração do convento; – Importação de madeiras dos países nórdicos e de
pranchas de angelim (madeira) do Brasil para as estruturas de apoio à construção.
Fuga de intelectuais e cientistas notáveis
para a Europa
– Os estudos científicos de Padre Bartolomeu na Holanda; – Fuga de Padre Bartolomeu para Espanha (Toledo), por
causa da Inquisição. Interesse pelas
inovações culturais e científicas oriundas da Europa
– O apreço do rei pela música, pelos livros;
– A proteção mecenática do projeto de construção da Passarola.
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A linguagem
e o estilo
Saramago sempre assumiu a noção de que “há uma aprendizagem da crita literária”. Deste modo, a sua escrita resulta de um longo processo de es-tudo e de aprendizagem da língua, processo que implica muita leitura, muito trabalho metódico, muito conhecimento dos cânones da literatura portuguesa, muita consciência da responsabilidade cultural e cívica do escritor. A narrativa saramaguiana foi, progressivamente, assumindo grande relevância literária, tanto pela qualidade, como pelo inédito do uso da palavra (inédito que passa inevitavelmente pela alteração do normatismo da expressão gráfica e da pon-tuação, mas respeitando a sintaxe própria de uma qualquer outra narrativa), bem como por uma apropriação criativa de grandes textos literários.
9.1.
Intertextualidade
São vários os momentos de intertextualidade no romance, ou seja, momen-tos em que o narrador, ultrapassando as barreiras do tempo, se apropria de ou-tros textos literários, muitas vezes com intencionalidade irónica. Assim, esta intertextualidade com outras obras e outros autores ocorre, principalmente, com as referências a:
• Pessoa e Mensagem – pp. 249, 311;
• Camões e Os Lusíadas – pp. 142, 219-220, 325;
• Padre António Vieira e o Sermão de Santo António aos Peixes – p. 181. O narrador evidencia, igualmente, conhecimento de histórias da tradição e do imaginário popular (como a história do vulto do homem na lua) e recorre ao património da literatura de tradição oral, nomeadamente provérbios e ditos populares:
• “ainda agora a procissão vai na praça”;
• “o cântaro está à espera da fonte”;
• “quem parte e reparte […] para alguma coisa aproveitaria a arte”;
• “a pobre não emprestes, a rico não devas, a frade não prometas”;
• “pelo dedo se conhece o gigante”;
• “o hábito não faz o monge”;
• “de noite todos os gatos são pardos”;
• “é como estar na engorda antes do matadouro”;
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• “chegou-se-lhe o fogo ao rabo”;
• “nem sempre galinha, nem sempre sardinha”;
• “quem de gosto carrega não cansa”.
9.2.
Pontuação, recursos expressivos e reprodução
do discurso no discurso
No que diz respeito à pontuação, aos recursos expressivos e à reprodução do discurso no discurso, as principais características da escrita saramaguiana são as que se listam abaixo.
• Pontuação
– no discurso direto é abolido o uso do travessão e dos dois pontos e são substituídos pela vírgula o ponto de interrogação e outros sinais de pontua-ção, marcando-se o início de cada fala apenas pelo uso da maiúscula inicial; a vírgula como o mais recorrente e importante sinal de pontuação: separa as várias falas das personagens, conferindo-lhes certo ritmo (aceleração) e marca momentos de enumeração exaustiva [pp. 251-252];
• Recursos expressivos e apropriação criativa da linguagem
– o uso da anáfora – “Seiscentos homens agarrados desesperadamente aos doze calabres que tinham sido fixados na traseira da plataforma, seiscen-tos homens que sentiam, com o tempo e o esforço, ir-se-lhes aos poucos a tesura dos músculos, seiscentos homens que eram seiscentos medos de ser […]” [p. 283];
– o uso da comparação – “Quase tão grande como Deus é a basílica de S. Pedro de Roma que el-rei está a levantar” [p. 10];
– o uso da enumeração de cariz popular – “ele é os ourives do ouro e da prata, ele é os fundidores dos sinos, ele é os escultores de estátuas e relevos, ele é os tecelões, ele é as rendeiras e bordadeiras […]” [pp. 251-252];
– o jogo de expressões antinómicas – “entre o nariz rubicundo e o outro héc-tico, entre a nádega dançarina e a escorrida, entre a pança repleta e a bar-riga agarrada às costas” [pp. 29-30];
– a apropriação/interpretação subjetiva do discurso evangélico – “Pater nos-ter que non estis in coelis” [p. 171];
– as invetivas e as interpelações diretas ao leitor, criando um estilo próximo da oratória barroca e uma maior cumplicidade entre narrador e leitor – “quem cuida ele que nós somos, alguns ignorantes” [p. 143];
– o uso da ironia – “se há de o marinheiro levar um tiro fora da barra, de um corsário francês, melhor é que lho deem aqui, morto ou ferido sempre está na sua terra” [p. 86]; “todo o mundo puxa com entusiasmo, homens e bois, 9 A linguagem e o estilo