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Peter Brown. a Ascensão Do Cristianismo No Ocidente (2)

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Departamento de história Curso: História medieval I Professor: Clinio Amaral

Texto base: BROWN, Peter. A ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Editorial Presença, 1999.

Capítulo 2 – Cristianismo e Império

Bardaisan morreu em 222. No Livro das Leis das Nações sustentava a possibilidade de mudanças para os costumes, vistos como imóveis segundo Peter Brown, através da adoção do livre-arbítrio. No mesmo século de sua morte, houve significativas transformações no cenário romano. No mundo oriental, a dinastia sassânida (que governou a Pérsia entre 224 e 651) formou um império poderoso. Na região do império romano, após a crise do século III (235-284), houve uma recuperação que engendrou profundas mudanças.

No período de crise, ocorreram falências, fragmentação política, grandes derrotas militares. Mas a ação de Diocleciano entre 284 e 305 trouxe a superação. A sua política garantiu maior controle sobre as regiões por causa do sistema de co-imperadores, chamado de “Tetrarquia”. Dessa forma, o imperador e os seus agentes passaram ter as funções que, durante muito tempo, eram delegadas às elites locais. Como o autor demonstrou, apesar da reestruturação, a sociedade romana estava abalada e ansiosa pelo retorno da nova lei.

O primeiro grande artífice da renovação imperial foi Diocleciano. Embora o peso da burocracia tenha aumentado em seu governo, Peter Brown sustentou que a cobrança de impostos não passou de 10% do excedente agrícola. Na realidade, a grande modificação foi em relação da forma como o Estado lidava com as elites locais.

Os poderes locais perderam os privilégios; apenas a corte imperial passou a ser fonte de privilégios honoríficos, as cidades que se desenvolveram, a partir de então, foram aquelas transformadas em centros administrativos. O exemplo mais visível desse novo tipo de cidade foi o de Constantinopla, criada em 327, pelo imperador Constantino. Tratava-se da “nova Roma” oriental. Assim, foram criadas em cada região uma metropolis, ou seja, uma cidade

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cuja função era a de centralizar a administração, levando as demais cidades a uma condição menor.

Outro aspecto abordado pelo autor como sendo indício de alterações no império romano diz respeito à função da religião. Para o autor, as sociedades, mesmo aquelas que estão a passar por tensões, mantêm-se conformadas se pelo menos um aspecto da vida social permanecer inalterado. Os habitantes do império sentiam que poderiam manter a contemplação aos seus deuses. O conhecimento sobre o sagrado era perpetuado por meio de ritos e gestos do passado.

Assim, a religio – a forma mais adequada de venerar cada deus servia de suporte social e de coesão de famílias ou mesmo de comunidades inteiras. Nesse sistema, a religio que os deuses recebiam estava relacionada à imagem que os próprios homens tinham de si mesmos. Por exemplo, os filósofos místicos buscavam os deuses mais elevados e pela ação deles almejavam unir-se ao Uno – a fonte plena e intoxicante e ainda metafisicamente necessária a qualquer indivíduo. No entanto, apesar de privilegiar um determinado tipo de divindade, isso não implicava na negação dos outros deuses1.

No contexto de recuperação do império, Peter Brown lembrou como Diocleciano, para comemorar 20 anos de governo estável, erigiu um monumento no foro, em 303. No entanto, poucos anos depois disso, em 29 de outubro de 312, o imperador Constantino, após ter vencido o seu oponente Maxêncio, entrou em Roma. Apesar do altar do Capitólio estar ornamentado para as celebrações, o imperador não compareceu, indo diretamente para o seu palácio. Posteriormente, justificou a sua ausência em função de um sinal que recebeu do Deus único dos cristãos. Aliás, atribuiu às suas conquistas ao Deus cristão.

Em 325, em Niceia, cidade de Iznik da atual Turquia, Constantino promoveu um concílio com todos os bispos cristãos do seu império. A sua ação ofereceu uma situação única para a Igreja cristã, pois pode ver-se a si mesma e, pela primeira vez, teve a elaboração de uma lei universal. Para o autor, a escolha desse imperador pelo Deus cristão não poderia ter sido prevista em 300 do mesmo modo que não se poderiam prever os seus êxitos como imperador.

Segundo Peter Brown, para compreender o significado da medida adotada por Constantino, torna-se fundamental entender a situação da Igreja cristã anterior ao ano de 312. Nessa data, a Igreja cristã não era mais uma religião nova no império. Em 303, houve a última perseguição oficial a instituição, trata-se das leis imperiais de Diocleciano, conhecidas

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pelos cristãos como “Grande Perseguição”. As medidas foram aplicadas durante 11 anos em partes da Ásia Menor, da Síria e do Egito. Para o autor, essa perseguiu assinalou a maturidade da Igreja cristã.

Desde o seu surgimento até as perseguições do início do século IV, a própria Igreja havia passado por modificações. Em 303, já contava com uma hierarquia bem definida, aliás, desde as perseguições de 250 e de 257, o império havia perseguido os bispos, padres e os diáconos da Igreja. No discurso dos cristãos do final do século III e do início do século IV existiam referências às igrejas como lugares claramente definidos para a veneração.

As igrejas do século III foram construções humildes que constituíam apenas uma sala de reunião. Provavelmente, aproveitavam estruturas de casas já existentes. Esse autor criticou os autores que reproduziram imagens equivocadas sobre a Igreja, que conheceu a paz com Constantino, em 312. Primeiramente, seria impossível determinar o número de cristãos no império. Segundo a estimativa apresentada, representavam certa de 10% da população cuja maioria estava na região da Síria e da Ásia Menor e nas mais importantes cidades do Mediterrâneo. No obstante, o mito, desenvolvido posteriormente, segundo o qual os cristãos eram uma minoria constantemente perseguida que foram levados à clandestinidade por causa da repressão, não condiz com a realidade histórica. Também não há qualquer base para o outro mito de que o cristianismo representasse uma religião dos menos favorecidos.

Pesquisas recentes demonstraram a existência de uma pequena nobreza estabelecida na Ásia Menor. Além disso, havia cidades em que os cristãos eram reconhecidos como membros de uma instituição e o concílio de Elvira, em 300, na Andaluzia, tomou decisões sobre os seus membros que, devido às suas funções no império, eram obrigados a participar do culto imperial e presenciar os sacrifícios feitos. Na verdade, tais exemplos foram dados para demonstrar como, dificilmente, seja possível aceitar que os cristãos do período de Constantino fossem completamente desprovidos de bens, de escravos e não estivessem, de forma alguma, vinculados ao poder. A instituição da qual faziam parte açambarcava uma variedade muito grande de tipos sociais.

Por essa razão, o autor propôs compreendê-la como o império em miniatura porque os grandes e poderosos encontravam-se com os menos favorecidos como iguais. Afinal, estavam sujeitos a uma mesma lei universal e veneravam o mesmo Deus. Isso não quer dizer que as diferenças sociais desaparecessem, não, pelo contrário, nos momentos de reunião, havia

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lugares para todos. Porém, a condição de cristãos os igualava e isso explica o fato de que todos estavam preocupados com dois temas-chave: a salvação e o pecado2.

O discurso cristão apresentava todos os homens como sujeitos a uma lei universal cuja intenção era a de salvá-los do pecado. Salvação significava o abandono da idolatria e a negação do poder dos demônios, pois os cristãos não negavam a existência dos deuses pagãos; apenas afirmavam que eles eram demônios que estavam na Terra para afastar os homens do verdadeiro Deus. Por isso, as preocupações de Diocleciano em relação aos ritos dos deuses, foram entendidas como mais um subterfúgio maléfico para afastar os homens do império do Deus cristão, visto como Deus único.

Por não negarem os deuses pagãos, mas lhes atribuir poderes maléficos, uma das práticas comuns entre os cristãos à época era a do exorcismo. Tal atitude tornava visível o poder do verdadeiro Deus, pois os possuídos, quando exorcizados, berravam os nomes dos deuses pagãos em um espetáculo que despertava a atenção de todos. Outra forma de tornar visível o poder do verdadeiro Deus era o martírio. Afinal, no mundo romano, as execuções eram um espetáculo público e violento. Era a oportunidade para o cristão dar o seu testemunho de fé e, apesar das violências sofridas, não se curvar aos deuses pagãos. A morte para o cristão tinha um significado especial, pois representava o único triunfo desejado. Na verdade, simbolizava a entrada na glória de Deus e, por isso, em última instância, o triunfo sobre o pecado capaz de levar à vitória contra a morte.

No mundo antigo já havia indícios de uma linguagem filosófica relativa ao pecado e à conversão. Os cristãos desenvolveram a tese segundo a qual a filosofia era a arte da transformação pessoal. Sustentaram que a sua religião era uma filosofia dada por Deus, aberta a todos. A possibilidade da transformação total por meio da conversão e do batismo foi um tema importante entre os autores cristãos3. No sistema filosófico dessa religião o pecado era visto como um problema comum a todos. Nesse sentido, diferenciava-se dos outros sistemas presentes no império, pois esses sustentavam o melhoramento da pessoa de forma individual.

Como o pecado pertencia a todos, o cristianismo desenvolveu a noção de penitência, aliás, era a própria comunidade quem decidia o tipo de penitência a ser realizada pelo pecador. Na maior parte das regiões, a chefia da luta contra o pecado foi incumbida ao bispo, que era visto como juiz e árbitro dos pecadores. Essa era a função do bispo que deveria ser auxiliado pelo seu clero.

2 Cf. Ibidem, p. 44.

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A preocupação com a salvação e a arbitragem do bispo criou uma situação nova para as religiões do período. Para a absolvição do pecado havia a necessidade do arrependimento, desenvolveu-se subjacente a essa concepção a noção de caridade, ou seja, uma espécie de reparação concreta e visível. Para o autor, isso serviu com um instrumento de controle sobre a riqueza através de um novo tipo de justificação ideológico.

Esse sistema de transferência de riqueza foi importante porque fez com que a Igreja, como instituição, não precisasse da generosidade de doadores ricos. Aliás, como acontecia com os templos pagãos, os quais sofreram com a crise do século III. Os cristãos, através da noção de esmola, engendraram um significado importante à doação de recursos, como o pecado era ordinário, tal tipo de ação também deveria ser. Por essa razão, a Igreja do final do século III era coesa e altamente solvente; os seus membros eram reconhecidos pela capacidade que tinham de tratar si mesmos e dos outros.

Em 251, a Igreja cristã de Roma sustentava, com base nas dádivas dos fiéis, 154 membros do clero (dos quais 52 eram exorcistas) e cuidava de 1500 viúvas, órfãos e desamparados. Só estes últimos eram mais numerosos do que os membros da maior parte das associações profissionais da cidade; e o clero constituía um corpo tão vasto, e consciente de si mesmo, quanto a ordo, ou conselho urbano, de qualquer pequena cidade.

Foi deste ponto de vista crucial que a Igreja cristã ganhou uma proeminência desproporcionada em relação ao número pequeno de cristãos na totalidade do Império. A sociedade politeísta era constituída por um imenso número de pequenas células; apesar de apoiada nos costumes ancestrais, era tão delicada e quebradiça como uma colmeia. A Igreja cristã, pelo contrário, juntava actividades que se tinham mantido separadas no antigo sistema de religio, criando uma constelação maciça, compacta, de compromissos.4

Com base nisso, o autor demonstrou como a moralidade, a filosofia e o ritual estavam interligados, todos esses elementos faziam parte de uma religião. Isso era diferente do mundo politeísta em que cada um dos aspectos citados formava corpos desconexos.

Capítulo 3 – Tempora Christiana: Tempos cristãos

Desde a conversão de Constantino, institui-se a sensação entre os cristãos de que a história estava do lado deles. Viam o seu tempo como uma época de triunfo. As modificações do século IV tinham ocorrido em um cenário preparado por Cristo para

4 Ibidem, p. 50.

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evidenciar Sua vitória. Além disso, na maior parte dos relatos do período nota-se, segundo Peter Brown, a ideia de que a história move-se para um fim anteriormente preparado.

A colaboração de Constantino e dos imperadores posteriores representou a opção por ajudar um grupo defensor de mudanças. Assim, desde 312, Constantino e o seu filho, Constâncio II (337-361) foram progressivamente cerceando o culto pagão. Além disso, fecharam templos e foram omissos em relação às violências cometidas pelos cristãos contra os templos pagãos.

O século IV marcou ainda a institucionalização da palavra paganus, “pagão” para demonstrar a condição inferior do culto politeísta. Inicialmente, a palavra significava uma distinção entre os civis, vistos como cidadãos de segunda classe, em comparação aos militares. O padre Osório, de Braga, a pedido de Santo Agostinho escreveu a História contra os Pagãos cujo conteúdo adicionou outro senso pejorativo a esse adjetivo. Para Osório, pagus, de paysans, paesanos, era uma religião de camponeses provincianos, que negavam as transformações sofridas no império5.

As polêmicas com os pagãos colocavam-se para além da pregação do clero. Em 436, Teodósio II (408-450) reuniu-se com os seus juristas a fim de unificar os éditos publicados pelos imperadores anteriores sobre os cristãos. Assim, em 438, nasceu o Código de Teodósio, trata-se do mais compacto e duradouro monumento da época da Igreja triunfante6. No entanto, as pessoas que assistiam aos sermões de Santo Agostinho, embora se considerassem bons cristãos, ainda não estavam completamente livres de suas crenças anteriores. Por isso, a proposta dos líderes da Igreja de um monoteísmo não se aplicava a todos os aspectos da vida quotidiana.

Muitos dos que escutavam Santo Agostinho não negavam os poderes dos seres inferiores, afinal lembravam ao seu bispo que os próprios deuses tinham previsto a saída deles dos seus templos em oráculos. Entre os séculos IV e V, uma quantidade importante dos crentes espalhados pelo império pensava do mesmo modo que a congregação de Santo Agostinho (354-430). Para que a sociedade como um todo aceitasse a postura “intransigente” dos líderes cristãos, era necessário que se operasse uma modificação na cultura do império.

Peter Brown propôs que ela tenha ocorrido entre as gerações que separam a Igreja triunfante de Constantino e o período menos otimista a partir de Teodósio I, imperador entre 379 e 394.

5 Cf. Ibidem, p. 53.

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Neste sentido, o cristianismo latino do início da Idade Média tem menos a ver com a conversão de Constantino do que com a geração perturbada, mas imensamente criativa – uma geração de invasões bárbaras, guerras civis e enfraquecimento da autoridade imperial – que coincidiu com os anos de maturidade de S. Agostinho. O próprio Agostinho, baptizado em 387 e eleito bispo de Hipona, na costa do Norte da África (a moderna Anhangá/Boné, Argélia) em 395, veio a falecer em 430 com idade de 76 anos, num mundo já muito diferente daquele em que tinha crescido.7

O legado de Constantino foi a paz e a riqueza e a possibilidade da Igreja assumir uma posição forte. Ao se aproximar da instituição, o próprio imperado transformou-se em um grande doador. As suas igrejas e basílicas eram, conforme chamou atenção o autor, verdadeiros “salões reais”, como evidentemente o nome basílica, de basileus, rei, aponta8

. Tais construções formavam um complexo maior dotado de sala de audiência, um palácio episcopal, armazéns de vitualhas para os pobres e um grande pátio semelhante ao da casa de nobre.

Mais do que representar o poder da instituição, tais construções também engendraram outro tipo de administração urbana. Os bispos e os membros do clero foram isentos de impostos e dos serviços públicos. A Igreja foi a instituição cuja expansão foi a maior no período de tensão pelo qual o império passava. As outras associações tinham ficado paralisadas. Através de uma hierarquia, os membros do clero formavam um tipo de ordo. Constantino solicitou que os bispos servissem de juízes e questões envolvendo cristãos, no entanto, eles também aturam para os casos de não cristãos. Como os custos dos litígios civis subiram consideravelmente, o bispo transformou-se em Provedor de Justiça da comunidade local.

Ao mesmo tempo, o sistema de caridade dos cristãos passou a servir como uma espécie de previdência pública. Tradicionalmente, o império havia confiado as funções administrativas aos membros da elite local, com o advento do cristianismo, estruturado como era, houve uma alteração decisiva, pois os cristãos passaram a atuar efetivamente no conjunto da estrutura do império9. Diferentemente do período de Constantino, a partir do século V, apesar da existência de suntuosas basílicas, o que impressionava na Igreja cristão era a quantidade de igrejas de dimensões menores, as quais comprovavam o seu enraizamento junto à estrutura imperial. 7 Ibidem, p. 55. 8 Cf. Ibidem, p. 56. 9 Cf. Ibidem, p. 57.

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Ao demonstrar como os bispos cristãos agiam diferentes em relação aos altos dignitários do período anterior, Peter Brown citou o exemplo de Atanásio (296-373). Em sua “carreira” lidou com os adversários acusando-os de negarem a ortodoxia de Niceia, definida em 325. No entanto, para o autor, não se pode dizer que, à época, houvesse clareza sobre aquilo que se considerava “ortodoxo”. A atribuição de Atanásio como um herói da luta contra os hereges é uma construção posterior. No final do século IV, narrava-se a “controvérsia ariana” como se ela fosse um debate estudado. Tal construção encobre uma questão importantíssima; os cristãos ocidentais tinham considerado a polêmica como sendo o início dos problemas entre a Igreja e o Estado.

Na realidade a questão foi uma espécie de prova de força em que os chefes locais, os bispos, almejaram descobrir o limite para se aproveitarem das fraquezas do império, sobretudo, a dependência dos imperadores dos grupos de poderosos locais. Nesse contexto, os homens fortes eram os membros da Igreja. No entanto, em regiões, como, por exemplo, o Norte da Síria, na Numídia, na atual Tunísia, ocorreu um crescimento populacional acompanhado da formulação de novas formas de vida em aldeias. Em 270, Antônio, 250-256, dirigiu-se para o deserto, regressando em 310, como um famoso erémétikos, homem do deserto. Trata-se do eremita cristão posterior. Segundo o autor, era o campo o lugar onde as formas mais radicais do cristianismo ganhavam força10.

No Egito, o nome grego monachos, “sozinhos” foi atribuído aos celibatários totalmente dedicados ao Espírito Santo. Ao mesmo tempo, esses movimentos abriam caminho para novas interpretações religiosas como foi o caso de Manes (216-277) em uma aldeia ao Sul de Ctesifonte. Trata-se da primeira religião nova nascida do cristianismo. O maniqueísmo espalhou-se por toda a área de vida sedentária do Mediterrâneo à China. A sua difusão era feita por missionários ascetas. Devido à perseguição violenta do império romano, a religião perdeu espaço no mundo ocidental, contudo, isso não ocorreu no Egito, na Síria e na Palestina. A grosso modo, o eleito dessa religião pertencia às classes mais favorecidas.

Talvez, exista uma relação entre as experiências religiosas, como, por exemplo, o monasticismo e um sentimento entre os povos do império romano de que ainda havia espaço para mudanças. Na realidade, muitos crentes do império, sobretudo os eruditos, tinham a sensação de que, apesar da conversão dos imperadores, o mundo ainda não era cristão o bastante.

10 Cf. Ibidem, p. 59.

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A animada história religiosa do século IV tendeu a fazer esquecer o facto de a revolução religiosa associada ao reinado de Constantino ter ocorrido paralelamente a uma revolução social – a criação e a estabilização de uma nova classe superior confiante em si própria. As esplêndidas mansões romanas tardias, que dominavam os campos em todas as províncias do Império do Ocidente, são testemunhos de um mundo restaurado. Os seus ocupantes – em parte possuidores de terras em parte funcionários governamentais – aceitavam a nova ordem com entusiasmo. Para eles, a conversão ao cristianismo era antes do mais uma conversão à majestade quase divina do Império Romano, agora restaurado e protegido pelo Deus único dos cristãos.11

Esse contexto produziu o labarum de Constantino, ou seja, o sinal de sua vitória na Ponte Múlvia e, portanto, a representação da instauração de uma nova ordem. Mas, no final do século IV, o contexto mudou bastante. Novas guerras civis e as vitórias dos visigodos sobre o exército romano restauraram um clima de enfraquecimento e insegurança, principalmente, após as vitórias germânicas que conduziram ao saque de Roma, em 410. O visigodo Alarico, que comandou o saque, conseguiu uma vitória inimaginável aos olhos dos romanos.

Embora tais acontecimentos não fossem definitivos, os cristãos passaram a empregar a expressão tempora christiana, ou seja, “os tempos cristãos”. O seu significado não estava relacionado à tranquilidade do período de Constantino, pelo contrário, era compreendido como um período de ansiedade sobreposto a uma crise política de autoridade, cujo resultado foi as sucessivas invasões “bárbaras” do século V12. Esse contexto catastrófico permitiu aos cristãos ações jamais pensadas anteriormente. Peter Brown citou o exemplo de Pôncio Merópio Paulino (355-431), ulteriormente, bispo de Nola na Campânia.

Esse cristão declarou publicamente que a era de consenso tinha chegado ao fim, durante a guerra civil, no Norte da Hispânia, ele se lançou em uma vida asceta sem qualquer tipo de compromisso. Ao ser questionado por um amigo, Ausônio de Bourdeaux, ele se recusou a retomar as suas funções administrativas na Aquitânia, alegando uma sorte de redefinição da pietas romana. Através desse princípio, os romanos estabeleciam os laços de lealdade para com os amigos e para com a terra de origem. No entanto, a posição Paulino foi a de se interessar apenas para com a piedade com Cristo. Em sua mentalidade, expressava-se a ideia de “escravos de Deus, insurrectos contra o mundo”13.

11

Ibidem, p. 62. 12 Cf. Ibidem, p. 64. 13 Ibidem, p. 65.

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Outros nomes importantes do cristianismo da época fizeram parte desse tipo de exposição. Certamente, o mais relevantes deles foi Santo Agostinho, transformado em bispo de Hipona em 397, e advogado por uma nova vida. Em seguida, Peter Brown inicia a sua análise sobre o conteúdo das Confissões de Agostinho. Na obra, o bispo relatou as suas experiências anteriores à sua conversão e como tudo aquilo havia perdido o sentido no verão de 386, ocasião em que adotou uma vida regrada como condição para receber o batismo – o qual recebeu das mãos de Santo Ambrósio (340-397).

Embora a conversão significasse, em certos aspectos, uma renúncia para o mundo devido às implicações ascéticas, Peter Brown destacou como os grandes latinos, convertidos ao cristianismo, tiveram uma inserção de destaque junto à Igreja. Na verdade, passaram de um estilo de vida pública para outro, mesmo que não tivessem consciência disso14. Contudo, nem todos os cristãos concordavam com a visão sobre a “graça” divina apresentada por Santo Agostinho em suas Confissões. Na obra, defendia que ela atuava junto ao coração humano de forma lenta, moldando a débil e instável vontade até conseguir uma decisão firme e vencedora.

Para aqueles que discordavam do bispo de Hipona, como Pelágio, um leigo da Britânia, a “graça” divina não agia dessa maneira. A sua ação gerava a natureza humana através da qual o homem seguiria a ordens de Deus. Assim, cada cristão era o próprio artesão de sua alma. A controvérsia mencionada ilustrou o debate sobre o arbítrio do ser humano. Os cristãos do século V decidiram favoravelmente pelo entendimento de Santo Agostinho. Para Peter Brown isso designou a necessidade da comunidade cristã de possuir heróis e não o processo de automelhoramento. Assim, Deus criava os heróis, como, por exemplo, Constantino cuja missão foi nutrida por visões corriqueiras.

No mundo de Agostinho, o ‘eleito’, e o ‘predestinado’, eram tranquilizadoramente visíveis. Eram os heróis da fé, cuja memória era agora celebrada em todas as cidades do Mediterrâneo em festivas de massas, rodeada de um sentido de triunfo e prazer colectivos. Eram os mártires, cujo amor por Deus os tinha levado a ultrapassar a todos os outros amores, incluindo o amor pela própria vida. Eram os grandes bispos, os conversos espectaculares (como Agostinho) a quem o amor por Deus, enquanto Verdade, permitira trazer a cultura pré-cristã do seu passado tempestuoso a fim de a colocar ao serviço da Igreja católica. Era este o obejctivo da graça […]15

14 Cf. Ibidem, p. 66.

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A tese de Santo Agostinho transformou-se mais aceitável pelo seu caráter igualitário. Na visão de Pelágio, era necessário combater à divisão da Igreja entre os cristãos de primeira ordem e os de segunda, afinal insistia na capacidade dos cristãos para se transformarem em criaturas perfeitas. Com isso, objetivava pôr fim à distinção entre o leigo e o monge, formando uma comunidade de cristãos ascetas. Ao contrário Agostinho aceitou o fato de que a Igreja era uma instituição diferenciada, por isso, nem todos os cristãos poderiam ser perfeitos. Entretanto, eram iguais devido à dependência da graça de Deus, a sua doutrinada da eleição servia como alento para os humildes e uma advertência para os vaidosos.

Segundo Santo Agostinho, embora os membros fossem imperfeitos, a Igreja católica era uma instituição gloriosa. Apenas o batismo poderia ser fonte de garantia contra o pecado original responsável por afastar os homens de Deus. Para tanto, a Igreja deveria formar uma instituição universal porque era o único repouso na Terra capaz de trazer ao homem a felicidade perdida.

Já em A Cidade de Deus, cujo início ocorreu em 413, representou a oportunidade do bispo de responder às críticas pagãs por causa do saque de Roma, em 410. A porta para a “cidade Gloriosa” era a Igreja católica.

Capítulo 6 – Reverentia, rusticitas: de Cesário de Arles a Gregório de Tours

Em 15 de fevereiro de 495, embora o papa Gelásio (492-496) tenha feito diversas advertências, um grupo de senadores romanos realizou a celebração anual da Lupercalia. Ironicamente, o grupo em questão era composto por homens públicos e “bons cristãos”. Em meio às dificuldades do ano de 494, marcado por epidemias e más colheitas, tentava-se preparar um novo ano menos difícil. Apesar da “arruaça” ter ocorrido nas ruas de Roma, a cidade de maior tradição cristã do Ocidente latino, a memória coletiva remontava a períodos bem anteriores ao advento do cristianismo. Para Peter Brown, procurava-se um mundo romano da época mítica de Rômulo e Reno.

Em 500, o cristianismo era a única religião pública em toda a área do Mediterrâneo. Mas isso não quer dizer que havia triunfado completamente em relação às práticas pré-cristãs. Segundo o autor, a situação mencionada aparece em diversas fontes laudatórias do período, que não apresenta de forma direta a situação além das cidades romanas; afinal tal religião, essencialmente, continuava a ser a manifestação religiosa das cidades romanas.

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Caso se aborde períodos ulteriores, notar-se-á que havia um esforço dos bispos para ampliar a ordem cristã, se possível, de forma imponente, em suas próprias cidades. Porém isso não quer dizer que os campos constituíssem regiões desérticas para o cristianismo. Houve um movimento de construção, na região de Tours, a partir da segunda metade do século VI, igrejas patrocinadas por grandes proprietários e, até mesmo, os servos da região da Hispânia, investiram os seus poucos recursos nesse processo de construção. Entretanto, os campos ainda não apresentavam o mesmo padrão de cristianização, pois tal ordem ainda era “reconhecidamente romana” cujo foco era as cidades e os seus bispos, compreendidos como o centro de um catolicismo de grande intensidade16.

Mesmo que se considerassem os campos como regiões mais integradas, no final do século V e no século VI, há de se considerar uma questão colocada naqueles tempos. Após de expulsados os “demônios” dos templos e a “idolatria”, o cristianismo continuava a se deparar com problemas criados por um misticismo difuso junto aos grupos sociais. Com algumas variações, os homens dos campos e das cidades viam o mundo natural à sua volta como um espaço cujas energias interferiam em praticamente todos os aspectos da vida. Por essa razão, não adiantava apresentar um Deus único como centro do mundus ou trazê-lo para mais próximos aos homens por meio de Jesus. Havia a necessidade de que a religião fizesse sentido para a população que se via inserida no mundo natural. Assim, o cristianismo deveria agir sobre o mundo, demando a sua generosidade e neutralizando os seus perigos, por meio de ritos cujas origens estavam na Europa pré-cristã.

Apesar da maior parte dos santuários pagãos estar completamente arruinada nas regiões onde o cristianismo estivesse inserido, houve casos, como, por exemplo, da década de 60 do século VII, em regiões da Hispânia, cujos templos pagãos ainda recebiam ofertas votivas. Por isso, as oferendas eram transferidas para as igrejas locais. Isso marca uma permanência das atitudes religiosas pré-cristãs em várias partes da Europa, na ocasião, consideras como convertidas ao cristianismo.

Ao citar um cristão contemporâneo, Peter Brown demonstrou como estava clara a permanência. Eu seu questionamento, o homem apresentava o problema, pois dizia que mesmo que todos os ídolos fossem destruídos com os seus respectivos templos, os cristãos não poderiam tapar o Sol, ou colocar guardas às margens do Nilo para evitar que manifestações pagãs silenciosas fossem realizadas. O mesmo se aplicava à Europa, uma vez que cada encruzilhada, cada nascente de rio, cada árvore poderia receber ex votos.

16 Cf. Ibidem, p. 114.

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Após apresentar o contexto religioso do final do século V e do século VI na Europa ocidental, o autor indicou como as diversas regiões cristãs do período enfrentavam desafios diferenciados. No caso dos cristãos do Oriente grego, via-se o mundo como uma triunfante vitória nascida com Constantino. Percebia-se o tempo presente como uma época de grande entusiasmo, pois Cristo trouxera grandes modificações. Os deuses pagãos e os seus templos tinham desaparecido e foram substituídos pelos homens santos e mártires cujas ações teriam contribuído para a nova ordem.

Tal contexto não quer dizer que o triunfo dessa religião fosse maior na região oriental, deve-se pensar que a natureza dos questionamentos religiosos era diferente entre o Ocidente e o Oriente. No mundo oriental, os “helenos” como eram chamados os intelectuais gregos continuavam a defender os seus deuses pagãos. Em Atenas, até 529, esses homens ensinaram com apoio público. A diferença estava no fato de que os líderes cristãos orientais preocupavam-se muito menos do que os seus colegas ocidentais com o peso do passado pagão. Como viviam em um império que funcionava bem e se declarava como cristão; isso era suficiente para persuadi-los de que tudo estava bem.

Para os ocidentais, havia o medo que, entre os batizados, o paganismo pudesse reviver. Segundo Peter Brown, o bispo de Arles, entre 502 e 542, Cesário foi quem transmitiu explicitamente às gerações posteriores tal estado de espírito preocupado. Esse bispo passou a usar os sermões de Santo Agostinho, proferidos em Hipona um século antes, para convencer o seu auditório de como determinadas práticas pagãs poderiam ser perigosas. Para o autor, apesar do seu estilo de pregação, Cesário era um nobre romano-gaulês, “fabricado” no contexto monástico de Lérins. Para ele, o retorno às práticas pagãs significaria, de fato, falta de educação; tratava-se de se comportar como os rustici, ou seja, os camponeses rudes, ignóbeis incapazes de compreender e aceitar a cultura. Por tal motivo, suscetíveis de cometerem erros.

Acabar com as rusticitas tinha um significado muito maior do que a destruição de templos e ídolos.

Significava nada menos do que tentar alterar toda uma mentalidade. Cesário e aqueles que se lhe seguiram pretendiam destronar a antiga imagem do mundo. Na prédica de um homem como Cesário, o mundus, o universo físico, perdia toda a sua autonomia. Não tinha vida própria para além da que lhe era dada por vontade de Deus. O tempo cristão, por exemplo, não correspondia directamente ao ritmo orgânico da Natureza, demonstrado na sucessão das estações; correspondia aos grandes actos de Deus, em que ele pusera o mundo de lado, a fim de tratar directamente com a Humanidade. O tão festejado princípio do ano, nas Calendas de Janeiro, nada significava

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quando comparado com a divina humildade do nascimento de Cristo, no Natal. Os dias da semana tinham mantido, desde os tempos imperiais, os nomes dos vários deuses, que tinham governado a Terra a partir dos seus tornos colocados nas agourentas esferas dos planetas. Tais nomes, associados aos poderes que controlavam o mundus deviam desaparecer. O ideal que os cristãos contassem os dias da semana de acordo com os Dias do Senhor, como prima feira, secunda feira, (de acordo com tão alto critério, Portugal seria o único país completamente cristianizado na Europa!). Antes do mais, negava-se aos seres humanos a possibilidade de uma participação activa, através dos antigos rituais, no funcionamento do mundus. Pensar que a vontade humana podia interferir no sentido de alterar o curso das coisas num mundo material onde tudo dependia da vontade de Deus, era, na opinião de Cesário, o cúmulo da estupidez. […]

[…] Passaria ainda muito tempo (talvez até à morte da Europa camponesa no século XIX) antes que as mentalidades denunciadas por Cesário viessem a alterar-se significativamente. E, mais importante ainda, do ponto de vista da difusão do Cristianismo, são as sugestões, espalhadas um pouco por todas as fontes cristãs, do recurso a um processo de compromisso. Não se estava perante meras ‘tradições pagãs’, mais ou menos estúpidas, como Cesário e outros bispos diziam, mas sim frente a tentativas pensadas dos cristãos do século VI no sentido de tentarem adaptar as aptidões religiosas daquele tempo aos esquemas de uma época passada. O Cristianismo teve geralmente a iniciativa neste processo de ajustamento: as comunidades pagãs acabaram por aceitar os símbolos e os ritos cristãos. Nos banquetes sacrificiais fazia-se o sinal da cruz.17

Para Peter Brown, seria necessário algo mais do que a poesia proposta por Cesário para conseguir obter a cristianização imaginativa do mundus. Certamente, o culto aos santos foi a ferramenta mais importante. Tal tipo de culto procurou criar costumes ligados à reverentia católica – direcionada para os grandes santuários. Esses lugares foram transformados, no período, em grandes centros de peregrinação. A reverentia foi transformada na resposta adequada à rusticitas, porque, caso os santos fossem venerados, atuariam de modo a influenciar o mundus. Assim, os santos conseguiram oferecer outro significado aos fenômenos e aos lugares do mundo natural, pois passaram a representar o sagrado procurado pelas pessoas.

Para o autor, foi Gregório de Tours, bispo de Tours entre 573 e 594, cujos escritos mais defendeu esse tipo de “função” para os santos. Em termos de geração e de formação intelectual, Gregório era diferente de Cesário. O bispo de Tours nasceu, em 538, alguns anos antes da morte de Cesário, a sua função de bispo aproximou-o ainda mais do centro nórdico da Francia. Contudo, antes de se tornar bispo muita coisa havia passado na Europa.

Não se pode esquecer-se da tentativa de Justiniano (483-565), que ficou no poder como imperador de 527 até a sua morte, de conquistar o Mediterrâneo ocidental, cujo

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resultado foi a destruição da ordem social da Itália devido ao seu fracasso. A peste de 542 a 570 espalhou-se rapidamente pelo império do Oriente trazendo consequências catastróficas. Mesmo na Gália de Gregório, a mortalidade trazida, segundo o autor, pode ser comparada, guardada as devidas proporções, à mortalidade engendrada pela primeira guerra mundial. No final da vida do bispo de Tours, o poder e a confiança na cultura começavam a deixar o Mediterrâneo em direção ao Noroeste da Europa.

Gregório de Tours, apesar de suas críticas aos reis francos, comportava-se como um súdito leal e deseja que a realeza fosse uma defensora do cristianismo. Mesmo a conflituosa situação política da Gália, dividida por lutas familiares pelo poder, não alterou a sua imagem de certa estabilidade junto aos estrangeiros. Na realidade, na região, formara-se uma espécie de confederação de regiões, cujas fronteiras eram defendidas por um Estado viável18.

Na Gália, antigas famílias romanas tinham sobrevivido desde o Reno até a Aquitânia. Somou-se a essa classe dominante, uma outra de origem franca e romana. Tal grupo estava unido pelo catolicismo. Ao longo das gerações, os bispos de Gália tinham passado por modificações. No passado, século V, tinham sido os sustentáculos morais da população romana em face ao contexto conturbado desse século. À época de Gregório de Tours cada qual representava o quadro social do novo reino franco. Apesar de fazer de modo “pessoal”, cada bispo era a representação da lei e da ordem em sua região. Os bispos controlavam fortunas pessoais espalhadas pela Gália e ainda, segundo o autor, eram responsáveis pela distribuição de esmolas por meio de um complexo sistema de ajuda piedosa.

O sexto século foi o período em que as cidades romanas da Gália perderam a sua vivacidade. Passaram a representar centros cerimoniais. Os centros urbanos deixaram de ser espaços fechados e ordenados tal como foram no período romano. Agora, alargavam-se para os campos e estavam rodeadas por diversos santuários e, para além deles, encontravam-se os palácios administrativos de uma aristocracia rural. Entretanto ainda eram dominadas por muralhas romanas transformadas em castelo de bispos.

Ao se considerar a obra de Gregório de Tours, há de se ponderar o fato que vinha de uma família de bispos cuja ação contribuíra para modelar a região da Gália do Sul. “A reverentia (devoção) era tradicional na família”19. O seu pai trazia sempre consigo um medalhão de relíquias cujos poderes o protegia. Gregório, ao aprender ler, conseguiu, por meio de um “remédio” curar a gota do seu pai, através de uma receita sobrenatural presente na Bíblia. Embora, a priori, se comparado a Cesário, o bispo de Tours possa ser considerado um

18 Cf. Ibidem, p. 120. 19 Ibidem, p. 121.

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rusitici, tal comparação seria equivocada. A sua receita viria ser o Livro das Sagradas Escrituras, não o conhecimento difundido pelos rudes.

Com a idade de 34 anos, o bispo de Tours esperava que os cristãos católicos tivessem a mesma devoção pelos santos que ele tinha. Peter Brown, ao descrever aspectos da obra desse eclesiástico, mostrou como Gregório teve oportunidades de visualizar os piores e os mais vulneráveis aspectos dos magnates da Gália. Em sua História, escrita em um latim “rústico”, não para se dirigir aos camponeses, mas aos senhores atuais e futuros cuja linguagem distanciava-se do latim e, aos poucos, compunha o francês. Peter Brown considera um equívoco chamar esse texto de História dos Francos, pois as inquietações do bispo não podem ser associadas a aspectos étnicos, mas aos temas da penitência e ao pecado.

Ao escrever a história do seu tempo, Gregório de Tours visava a assegurar que os problemas dos pecadores abastados, francos ou romanos, seriam lembrados por muito tempo. Ao fazer isso, conseguiu dar pormenores das ações desses pecadores. Os santos desempenharam um papel fundamental na estrutura desse texto, porque foram representados como os guardiões de uma ordem moral cujos representantes terrenos eram os bispos das cidades da Gália. O contexto da História de Gregório de Tours é o mundo urbano que clama por justiça e paz.

Ele passou a impressão de uma região completamente cristianizada. As suas alusões ao paganismo dizem respeito às áreas “bárbaras” do Norte da Gália, e das colinas e florestas do Reno e do Mosela. A sua preocupação, portanto, era a facilidade com a qual surgia versões alternativas do Cristianismo todas as vezes em que os bispos relaxavam e diminuíam a vigilância. Em Vida dos Padres da Igreja, Gregório defendia que, mesmo em regiões longínquas, a memória dos homens santos e dos eremitas seria eternamente lembrada. Isso soava como uma advertência àqueles que insistiam em admirar pessoas menos recomendáveis.

Para o autor, Gregório de Tours recuperou em sua obra certa magia, pois a correta devoção aos santos conseguiria tocar em diversos pontos da vida nos campos da Gália. No início da Idade Média, a relíquia era um vestígio material, deixado por uma pessoa santa, uma pgnora, ou seja, uma garantia da proximidade do Paraíso. Ela comprova a existência do Paraíso, de onde Adão foi expulso, mas que os santos estavam agora.

Assim, o sagrado retornou aos campos da Gália, a água, tocada por São Martinho voltara a ter poderes sobrenaturais. Uma árvore usada por esse santo para fazer “remédios” também tinha poderes.

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Capítulo 7 – Bispos, cidade e deserto: A Roma do Oriente

No capítulo, o autor refere-se, inicialmente, aos episódios que envolveram Pedro, o Ibérico, um príncipe da Geórgia, eleito bispo de Maiouma, cidade portuária de Gaza, que enfrentou problemas com a sua congregação. Pedro era um defensor do concílio da Calcedônia, de 451. Ele sofreu ameaças para realizar a “Grande Liturgia” do mesmo modo que o seu antecessor. Esse ritual público tinha como função garantir os favores de Deus para com a sua cidade. Apesar das controvérsias, havia consenso sobre o fato de que Pedro era a autoridade eclesiástica mais importante da cidade.

Após a realização da cerimônia, em agosto de 452, retirou-se para o palácio onde recebeu o Conselho da cidade e os representantes imperais. Os rituais públicos realizados pelo bispo e pelo seu clero geravam enormes gastos para a cidade. Tal como na Gália, os bispos tinham por função impor ordem à cidade. No entanto, ao contrário do caso da Gália, os bispos do Oriente eram conselheiros da cidade e não um poderoso local. Afinal, o sistema imperial criado por Diocleciano e Constantino mantinha-se em uma região tão extensa como a do posterior império Otomano. Assim, os bispos herdaram atribuições de um governo centralizado e foram sistematicamente introduzidos nas cidades. Acabaram por assumir funções que tinham, durante muito tempo, sido desempenhadas pelos conselhos urbanos.

Ao mesmo tempo, exerciam a função de vigias do imperador, pois deveriam dar informações ao imperador sobre funcionários corruptos ou incompetentes. Na realidade, eram representantes do imperador nas cidades. Para exemplificar isso, Brown sublinhou que as ordens do imperador eram lidas em público aos notáveis no salão de audiências do bispo20. Em seguida, fixadas no pórtico das igrejas. Eles desempenham funções como controlar o peso e a medida utilizados nos mercados, fiscalizavam o estado de conservação das muralhas, em momentos difíceis, chegavam até mesmo a abençoar e a disparar as catapultas.

Ao se tratar do século VI, o reinado de Justiniano se sobressai demasiadamente por causa das implicações trazidas por suas ações de governo. No entanto, nem mesmo o seu governo foi capaz de impor a unidade religiosa no império, embora tenha tentado. Nem mesmo o Estado e as suas cidades importantes foram capazes de exercer a força coercitiva para isso.

Paradoxalmente, os bispos, ao administrarem as cidades, entravam em contato com aspectos pouco cristãos. Ao transpor o espaço das igrejas, as classes governamentais estavam

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muito ligadas aos símbolos de poder e prosperidade que muito pouco, ou nada, tinham a ver com o cristianismo. Desde o final do século V, houve mudanças nas elites orientais cujos resultados foram dramáticos. Trata-se da formação de uma juventude que passou a apoiar as atividades de competição das cidades. Nesse contexto, cada cidade passou a ser dividia em dois grupos – os “Azuis” e os “Verdes”, que eram incentivados a colaborar com as atividades de competição.

No fundo, trata-se de grupos completamente profanos que apresentavam grande rivalidade, sobretudo, nas corridas de cavalo. Tinham no hipódromo um lugar para celebrar as vitórias. Esse espaço, muito criticado pelos escritores cristãos, desempenhava uma função importante na mística imperial.

Decorria daqui um dos paradoxos da sociedade romana oriental. No Ocidente, os bispos sentiam-se cada vez mais seguros do seu domínio sobre as cidades sobreviventes, tendendo a fechar-se nestes oásis de propriedade cristã cuidadosamente mantida e a enfrentar os campos onde o Cristianismo parecia menos seguro, ou que, pelo menos, eram mais difíceis de controlar. Na Síria e no Egipto, pelo contrário, era como se as cidades, os centos de governo imperial, fossem enclaves de vida profana no meio de uma população rural temente a Deus. Ao longo do Nilo, as aldeias, que em tempos tinham crescido à volta de tempos pagãos, encontravam agora uma nova coesão no seu clero cristão e uma nova lealdade para com os patriarcas monofisitas de Alexandria.21

Aliás, foram os membros do clero que transformaram o siríaco e o copta em línguas literárias importantes. Paralelamente ao mundo urbano, surgiu uma realidade cristã nova e pujante. Apesar da separação entre o campo e a cidade no império oriental. Em seu imaginário, a separação mais relevante era entre o “deserto” e o “mundo”. O primeiro estava ligado às representações da vida angelical dos ascetas, já o segundo estava vinculado ao comportamento mais hesitante das pessoas mundanas. Homens e mulheres do clero ou cujas atribuições e obrigações sociais os distanciavam da totalidade de Cristo.

Se comparado ao mundo ocidental, nota-se outra diferença presente na forma de pensar dos orientais. Na sociedade ocidental, desde Santo Agostinho, existia a tendência em associar a manifestação da graça triunfante de Deus a homens, vistos como santos, que “venceram o mundo” e, um número significativo dessas pessoas, conseguiu isso como bispos e como governantes de cidades, pois representava a lei e a ordem. Assim, santidade e cargo eclesiástico convergiam. Porém, o mundo oriental, acreditava-se que o Espírito Santo agia

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em pessoas para que elas fossem ativas fora da sociedade, portanto, no deserto. Mas não se trata de um “deserto” impenetrável, pragmaticamente, encontrava-se a distâncias curtas. A questão era que apenas o “deserto”, compreendido como oposto à vida organizada, podia possibilitar aos ascetas, através de penitências e trabalho árduo, gozar da glória angelical do paraíso terrestre.

Mesmo toda a admiração de ocidentais como Gregório de Tours aos santos não fazia com que eles procurassem o paraíso na Terra. Os vestígios desse lugar sagrado estavam, por exemplo, na sepultura de São Martinho, ou seja, um morto que gozava desse lugar sagrado. No Oriente, acreditava-se que pessoas santas e vivas poderiam aproveitar disso ainda em vida. Os santos “angélicos” não deixavam o mundo, afinal não interrompiam suas relações com ele. Ao invés de fazer isso, para a imaginação dos seus contemporâneos, limitavam os seus problemas através de suas orações.

Esses indivíduos santos do deserto satisfaziam a necessidade de solidariedade e de direção espiritual da sociedade oriental. Como os membros do clero e, sobretudo, os bispos estavam envolvidos com as questões de diferenciação social do mundo, não eram capazes de atender aos anseios espirituais da sociedade. Para os monges orientais, não se diferenciava um leigo de um clérigo, pois ambos estavam ligados ao mundo. Contudo, essa situação não era vista como um problema para os contemporâneos.

Na verdade, o verdadeiro problema residia no fato de que a Igreja oriental não era única, ou seja, havia um império notadamente unificado, mas que não gozava de uma igreja unida. Até mesmo as medidas enérgicas de Justiniano para estabelecer uma igreja única através de Constantinopla fracassaram. Para o homem da década de 20 do século VI, em Constantinopla, havia uma combinação de ansiedade e determinação somada à consciência de que se vivia em um mundo em transformação.

A queda do império romano ocidental era lida de forma diferenciada pelos grupos religiosos. Os pagãos consideram que o fim dos cultos nos templos tinha sido o responsável, já os cristãos monofisitas atribuíram a culpa ao concílio da Calcedônia. Ao mesmo tempo, perceberam que Constantinopla não era mais a “nova Roma”, com a queda da capital ocidental, era a única verdadeira capital do império romano. Para Peter Brown chamar esse império de Bizantino é um equívoco, porque nega a continuidade com o império romano e, ao mesmo tempo, despreza o sentimento dos homens do século VI de que faziam parte do império romano. Eles se viam a si mesmos como romanos. Usava-se ainda o latim nas leis, embora houvesse a preocupação de fazer traduções gregas e siríacas. Assim, a língua dos “romanos” era utilizada como a língua sagrada do Estado “romano”.

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Ironicamente, para Constantinopla, Roma havia caído por não ter sido tão “romana”. O autor, ao descrever a magnitude do orçamento anual do império oriental, no início do século VI, que era de 90 000 moedas de ouro, sublinhou que nenhum outro estado a Oeste da China era capaz de ter tal quantia de modo regular à sua disposição.

Após apresentar a capacidade econômica e a forma como o império oriental compreendia a situação no Ocidente, Peter Brown passou a dar informações sobre o imperador que mais marcou o século VI. Justiniano assim como o seu tio, que governou em seu nome entre 518 e 527, era originário do vale Vardar, perto de Skopje, atualmente é uma cidade da República da Macedônia. A cidade fazia parte de uma área periférica do império cuja língua era o latim, além disso, encontrava-se a meio caminho, em linha reta, entre Roma e Constantinopla. Justiniano acreditava verdadeiramente que deveria unificar o império romano cristão.

Ao contrário de seus antecessores, Justiniano era bastante intolerante com as práticas tais como a utilizada por Teodósio II que havia declarado a não existência de pagãos no império. Na prática, isso possibilitava aos homens sábios que mantivessem as suas práticas religiosas, desde que mantivessem certa discrição. Esses homens conseguiam, inclusive, ter cargos públicos. Mas Justiniano começou a mudar isso. Em 528, estipulou o prazo de três meses para que os pagãos se convertessem ao cristianismo; em 529, proibiu que os professores pagãos de filosofia da academia de Atenas de ensinarem em público. Para ele, todo o conhecimento deveria ser cristão.

Subjacente às suas medidas autoritárias, teve consciência da importância de ter em mãos um código romano atualizado, pois o Código de Teodósio II não parecia ser suficiente. Portanto, ordenou ao advogado Triboniano que, juntamente com uma equipa de especialistas, produzisse um Digesto de todo o corpo legal de Roma. Após ter lido 1428 livros de lei, condensou-as em 800 000 palavras.

Ao mesmo tempo, preparou-se um novo livro de ensino para as escolas de leis de Beirute – os Institutos. O Código de Teodósio foi assim actualizado pelo de Justiniano: O Codex Justinianus. Este código apareceu em 529, o Digesto e os Institutos em 533. O Direito romano que mais tarde foi restabelecido na Europa medieval, e que foi a base de todos os códigos subsequentes de direito ‘civil’, bem como do direito imperial russo que se manteve em vigor até 1917, não era um legado directo de Roma, mas sim de Justiniano. Baseava-se nas obras produzidas por um grupo de juristas de Constantinopla, dirigida ao longo de cinco trabalhosos anos por um homem decidido a testar até ao limite as possibilidades do Império que governara.22

22 Ibidem, pp. 138-139.

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A sua reforma legislativa definiu o ritmo da década de 30 do século VI. Criou-se, durante algum tempo, a sensação de que o imperador era capaz de fazer qualquer coisa. No entanto, em 13 de janeiro de 532, eclodiram confrontos nas ruas de Constantinopla. As facções Azul e Verde uniram-se pela primeira vez. Desejavam substituir os conselheiros do imperador e, se possível, o próprio imperador. A repressão foi violenta e matou 30 000 cidadãos, o hipódromo foi palco de um verdadeiro massacre.

De uma forma hábil, o imperador usou a destruição causada para os seus fins políticos. Assim, a principal basílica da cidade foi substituída pala magnífica igreja de Santa Sofia, tratava-se de uma igreja decida à “Sabedoria Sagrada”. A igreja foi consagrada cinco anos após o motim Niké e foi transformada no símbolo da devoção do imperador e como centro do mundo ortodoxo.

Na mesma época em que a igreja estava sendo construída, verificou-se uma grande expansão entre 533 e 540. Cartago, a Sicília, Roma e Ravena caíram nas mãos do imperador oriental. Na realidade, Justiniano, independentemente do seu insucesso posterior, acentuou uma tendência cuja reversão só ocorreu em 800. Trata-se do fato de que, no início da idade média, os papas estavam subordinados aos imperadores orientais. Até 800, todos os documentos papais enviados aos bispos e representantes das cidades eram datados segundo o ano do reinado do imperador de Constantinopla. Ele era o senhor de quem, na verdade, o papa dependia23.

Sob o seu governo, uniram-se as bacias orientais e ocidentais do Mediterrâneo, as suas moedas de ouro, os solidi imperais, eram consideradas no Ceilão como cunhadas no maior império do mundo. No interior do Mediterrâneo circulavam cerâmicas uniformes, que explicitam a homogeneidade econômica e do consumo de um império unificado. Para Peter Brown, todas as conquistas desse imperador deparam-se com um inimigo poderosíssimo – a peste bubônica. No verão de 542, chegava ao Ocidente trazendo terríveis estragos, dentre os quais o esvaziamento de cidades costeiras. Aliás, segundo o autor, a peste manteve-se endêmica no Oriente Médio até meados do século VIII. Para o autor, apenas após o fim da peste é que se verifica o surgimento de dois novos Estados o rejuvenescido império bizantino e o recente Califado de Bagadade.

A partir de 542, a extensão do imperial, que tinha sido uma arma importante de Justiniano, transformou-se em mais uma poderosa ameaça. A partir de então, as mais

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longínquas fronteiras passaram a competir por um quinhão dos poucos recursos existentes. Além disso, entre 540 e 628, a guerra contra a Pérsia seria um grande problema para o império oriental.

A Itália e o Danúbio acabaram por perder frente a uma emergência formidável: sob a direcção de Cosróis I (530-579), os Persas voltaram a manifestar o desejo de juntar a Mesopotâmia à costa mediterrânica. Senhor de um vasto Império que se estendia, através do planalto iraniano, até à Ásia Central, o ‘Rei dos Reis’ persa dispunha de uma eterna vantagem militar […]24

Nesse contexto hostil, a estrutura imperial, a partir 550, começou apresentar falhas cujos resultados podem ser notados ao longo do Danúbio até a região Sul, junto ao Egeu. Na época, tribos eslavas penetraram a região montanhosa do hinterland balcânico, chegando à Grécia e à costa Dalmácia. Mesmo nessa conjuntura complicada, Justiniano continuou a procurar a unidade religiosa. Ele estava disposto a convencer os dissidentes monofisitas a aceitarem as conclusões do concílio da Calcedônia.

Em meio às questões religiosas, o reinado de Justiniano ainda foi marcado pela questão dos Três Capítulos. O papa Vigílio (537-555) foi obrigado a aceitar as reinterpretações do concílio da Calcedônia sustentadas por Justiniano. Por causa do papel fundamental exercido do Tome do papa Leão, o concílio foi visto pelo clero latino como sendo o “seu concílio”. Justiniano não estava muito preocupado em agradar os latinos, a sua intenção era a de ganhar os sírios. Nesse quadro, Peter Brown considerou surpreendente a posição dos monofisitas, que estavam próximos aos pressupostos defendidos por Justiniano, mas, mesmo assim, não foram influenciados pela tentativa do imperador de transformar o concílio da Calcedônia em algo irrelevante para os monofisitas.

Justiniano, juntamente com os monofisitas, tinha grande devoção pela teologia de Cirilo de Alexandria, patriarca de Alexandria entre 412 e 444. No entanto, os bispos do concílio da Calcedônia, embora louvassem Cirilo tinham considerado como “ortodoxos” certos bispos que atacavam com veemência a teologia desse patriarca. Em parte a relação com os monofisitas devia-se à sua esposa – Teodora. Ela era uma devota monofisita influenciada pela obra de Severo de Antioquia (465-538). Até a morte de sua esposa, o imperador conseguiu manter uma boa relação com a oposição religiosa, para Peter Brown, a

24 Ibidem, p. 142.

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morte dela em 548, marca a perda da sua capacidade de lidar com essa oposição com a mesma eficácia anterior.

O contexto social, da década de 50 do século VI, foi marcado pela diminuição do poder dos bispos “calcedônios”, que estavam instalados nas cidades. Na época, já não era mais possível exercer o mesmo domínio a partir das cidades como fora feito anteriormente. Além disso, tais bispos eram constantemente atacados pelo “deserto” e por santos monofisitas. Simão, o Eremita, não se submeteu ao concílio e lembrou aos cristãos que não era de um trono de um bispo onde se encontrava a santidade, mas sim nos montes.

Como resultado da peste na Síria, verificou-se um processo, cujo resultado, em longo prazo, seria o de nivelar as cidades e os campos. Para os monofisitas, a perda de controle das cidades não significava que estivessem assumindo uma posição marginal. Partiram para os mosteiros de aldeias desenvolvidas. No Egito e na Síria e, mesmo em outras regiões, redes informais tinham sido formadas baseadas nas aldeias. Entre 542 e 578, Jacob Baradeus, bispo monofisita de Edessa, decidiu estabelecer uma hierarquia para os monofisitas. Dessa forma, deixara de lutar por espaço dentro a hierarquia da Igreja única do império, criando a sua própria em sua igreja própria.

A Igreja monofisita criada por Jacob não se assemelhava à antiga Igreja imperial. Não tinha uma estrutura celular, onde as diversas comunidades urbanas se acumulavam numa pirâmide cujo topo estava em Constantinopla. Pelo contrário, consistia num conjunto de redes regionais. As cidades e os campos eram iguais, porque se encontravam igualmente cobertos pelos compridos tentáculos de uma mesma identidade religiosa. Até as fronteiras do Império foram ignoradas; ao longo do século VI; os missionários monofisitas tinham criado aquilo que já se chamou uma ‘Comunidade’ de reinos cristãos na periferia do Império. Em 551, a aristocracia arménia rejeitou o Concílio de Calcedónia. Muito mais a sul, Axum e Núbia eram reinos monofisitas independentes, e os xeques árabes da fronteira síria começava a parecer como patronos de mosteiros monofisitas. O clero monofisita viajava facilmente entre os seus correligionários, desde Constantinopla até à Mesopotâmia persa. O pesado sentido colectivo de uma simples comunidade urbana ligada na celebração da Eucaristia, com que iniciámos este capítulo, deu lugar a um mundo de redes justapostas, que se estendiam às cidades, às vilas e aldeias. Por todo o Médio Oriente, calcedónio e manofisita passaram a viver lado a lado, sem se misturarem. Ambos sentiam estar mais ligados aos correligionários longínquos do que aos vizinhos ‘heréticos’ da mesma cidade.25

25 Ibidem, p. 146.

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Após a morte de Justiniano, as próximas gerações testemunharam guerras terríveis com a Pérsia, uma escalda da violência entre Azuis e Verdes e pelo fortalecimento da Igreja monofisita. Além disso, houve um crescimento dos textos hagiográficos, semelhantes ao contemporâneo Gregório de Tours, no desejo de descrever os aspectos do sagrado. A teologia de João de Éfeso demonstra como a santidade fluíra do deserto para as terras habitadas.

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