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OS GENEROS DO DISCURSO

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Academic year: 2021

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~ I

1. 0 PROBLEMA E SUA DEFINit;AO

Todos os diversos campos da atividade humana esdio ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o carater e as formas desse uso sejam tao multiformes quanto os campos da ativida-de humana, 0 que,

e

claro, nao contradiz a unidade nacional de uma lfngua. 0 emprego da lingua efetua-se em forma de enunciados* (orais e escritos) concretos e unicos, proferidos pelos integrantes desse ou da-quele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as con-di<_;:6es espedficas e as finalidades de cada referido campo nao s6 por seu conteudo (tematico) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela sele-<_;:ao dos recursos lexicais, fraseol6gicos e gramaticais da lfngua mas, acima de tudo, por sua constrw;:ao composicional. Todos esses tres

ele-"'

* Bakhtin emprega o termo viskdzivanie, derivado do infinitivo viskdzivat, que significa ato de enunciar, de exprimir, transmitir pensamentos, sentimentos, etc. em palavras. 0 proprio au tor situa viskdzivanie no campo da parole saussuriana. Em Marxismo e filosofia da linguagem (Hucitec, Sao Paulo), o mesmo termo aparece traduzido como "enuncias;ao" e "enunciado". Mas Bakhtin nao faz distins;ao entre enunciado e enun · cia<;:iio, ou melhor, emprega o termo viskdzivanie quer para o ato de produ<,;5o do diSC\11'• so oral, quer para o discurso escrito, o discurso da cultura, urn I'Oillnncc j:l puhlk.1do e absorvido por uma cultura, etc. Por essa raziio, resolvcmos n!lo dcsdohm1 o 11'1'11111 (ja que o proprio auror nao o fez!) e traduzir viskdzi!JII.rlic por cnunt'im lo. (N , doT,)

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262j MIKHAIL BAKH TI N

mentos o contetido tematico, o estilo, a constrw;:ao composicional -estao indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e sao igualmen-te deigualmen-terminados pela especificidade de urn deigualmen-terminado campo da co-municac;:ao. Evidentemente, cada enunciado particular e individual, mas cada campo de utilizac;:ao da lingua elabora seus tipos relativamente estd-veis de enunciados, os quais denominamos generos do discurso.

A riqueza e a diversidade dos generos do discurso sao infinitas por-que sao inesgotaveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade e integral o repert6rio de gene-ros do discurso, que cresce e se diferencia a medida que se desenvolve e se complexifica urn determinado campo. Cabe salientar em especial a extrema heterogeneidade dos generos do discurso (orais e escritos), nos quais devemos incluir as breves replicas do dialogo do cotidiano (sa-liente-se que a diversidade das modalidades de dialogo cotidiano e ex-traordinariamente grande em func;:ao do seu tema, da situac;:ao e da com-posic;:ao dos participantes), o relato do dia-a-dia, a carta (em todas as suas diversas formas), o comando militar laconico padronizado, a or-dem desdobrada e detalhada, 0 repert6rio bastante vario (padronizado na maioria dos casos) dos documentos oficiais eo diversificado univer-so das manifestac;:6es publidsticas (no amplo sentido do termo: univer-sociais, politicas); mas ai tambem devemos incluir as va.riadas formas das ma-nifestac;:6es cientificas e todos os generos literarios (do proverbio ao ro-mance de muitos volumes). Pode parecer que a heterogeneidade dos generos discursivos e tao grande que nao ha nem pode haver urn plano tinico para o seu estudo: porque, neste caso, em urn plano do estudo apa-recem fenomenos sumamente heterogeneos, como as replicas mono-vocais do dia-a-dia e o romance de muitos volumes, a ordem militar padronizada e ate obrigat6ria por sua entonac;:ao e uma obra lirica pro-fundamente individual, etc. A heterogeneidade funcional, como se pode pensar, torna os trac;:os gerais dos generos discursivos demasiadamente abstratos e vazios. A isto provavelmente se deve o fato de que a questao geral dos generos discursivos nunca foi verdadeiramente colocada. Estu-davam-se- e mais que tudo- os generos literarios. Mas da Antiguida-de aos nossos dias eles foram estudados num corte da sua especificidaAntiguida-de artistico-literaria, nas distinc;:6es diferenciais entre eles (no ambito da literatura) e nao como determinados tipos de enunciados, que sao

di-ESTETICA DA CR IA<;:Ao VERBAL 1 263

ferentes de outros tipos mas tern com estes uma natureza verbal (lin-giiistica) comum. Quase nao se levava em conta a questao lingiiistica geral do enunciado e dos seus tipos. Comec;:ando pela Antiguidade, es-tudavam-se OS generos retoricos (demais, as epocas subseqiientes pou-CO acrescentaram a teoria antiga); ai ja Se clava mais atenc;:ao

a

natureza verbal desses generos como enunciados, a tais momentos, por exemplo, como a relac;:ao com o ouvinte e sua influencia sobre o enunciado, so-bre a conclusibilidade verbal espedfica do enunciado (a diferenc;:a da con-clusibilidade do pensamento), etc. Ainda assim, tambem ai a especifi-cidade dos generos ret6ricos (juridicos, politicos) encobria a sua natureza lingiiistica geral. Estudavam-se, por ultimo, tambem OS generos dis-cursivos do cotidiano (predominantemente as replicas do dialogo coti-diano) e, ademais, precisamente do ponto de vista da lingiiistica geral (na escola de Saussure1

, em seus adeptos modernos- os estruturalistas, nos behavioristas americanos2 e, em bases lingiiisticas totalmente dis-tintas, nos seguidores de Vossler\ ). Contudo, esse estudo tambem nao podia redundar em uma definic;:ao correta da natureza universalmente lingiiistica do enunciado, uma vez que estava restrito a especificidade do discurso oral do dia-a-dia, por vezes orientando-se diretamente em enunciados deliberadamente primitivos (os behavioristas aniericanos). Nao se deve, de modo algum, minimizar a extrema heterogenei-dade dos generos discursivos e a dificulheterogenei-dade dai advinda de definir a natureza geral do enunciado. Aqui e de especial importancia atentar para a diferenc;:a essencial entre os generos discursivos primarios (simples) e secundarios (complexos) - nao se trata de uma diferenc;:a funcional. Os generos discursivos secundarios (complexos - romances, dramas, pes-quisas cientificas de toda especie, os grandes generos publidsticos, etc.) surgem nas condic;:6es de urn convivio cultural mais complexo e relati-vamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o es-crito)- artistico, cientifico, sociopolitico, etc. No processo de sua form a-c;:ao eles incorporam e reelaboram diversos generos primarios (simples), que se formaram nas condic;:6es da comunicac;:ao discursiva imediata. Esses generos primarios, que integram os complexos, ai se'transformam e adquirem urn carater especial: perdem o vinculo imediato cqm a reali-dade concreta e os enunciados reais alheios: por exemplo, a replica do dialogo cotidiano ou da carta no romance, ao manterem a sua forma e

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o significado cotidiano apenas no plano do conteudo romanesco, inte-gram a realidade concreta apenas atraves do conjunto do romance, ou seja, como acontecimento artfstico-literario e nao da vida cotidiana. No seu conjunto o romance e urn enunciado, como a replica do dialogo co-tidiano ou uma carta privada (de tern a mesma natureza dessas duas), mas a diferen<;:a deles e urn enunciado secundario (complexo).

A diferen<;:a entre OS generos primario e secundario (ideologicos) e extremamente grande e essencial, e e por isso mesmo que a natureza do enunciado deve ser descoberta e definida por meio da analise de ambas as modalidades; apenas sob essa condi<;:ao a defini<;:ao pode vir a ser ade-quada a natureza complexa e profunda do enunciado (e abranger as suas facetas mais importantes); a orienta<;:ao unilateral centrada nos ge-neros primarios redunda fatalmente na vulgarizas:ao de todo o problema (o behaviorismo lingiifstico eo grau extremado de tal vulgarizas:ao). A propria rela<;:ao mutua dos generos primarios e secundarios e o proces-so de forma<;:ao historica dos ultimos lans:am luz proces-sobre a natureza do enunciado (e antes de tudo sobre o complexo problema da rela<;:ao de reciprocidade entre linguagem e ideologia).

0 estudo da natureza do enunciado e da diversidade de formas de genero dos enunciados nos diversos campos da atividade humana e de enorme importancia para quase todos os campos da lingiifstica e da fi-lologia. Porque todo trabalho de investiga<;:ao de urn materiallingiifsti-co materiallingiifsti-concreto - seja de historia da lingua, de gramatica normativa, de materiallingiifsti- confec<;:ao de toda especie de dicionarios ou de estilistica da lingua, etc. -opera inevitavelmente com enunciados concretos (escritos e orais) rela-cionados a diferentes campos da atividade humana e da comunica<;:ao - anais, tratados, textos de leis, documentos de escritorio e outros, di-versos generos literarios, cientfficos, publidsticos, cartas oficiais e co-muns, replicas do dialogo cotidiano (em todas as suas diversas modali-dades), etc. de onde os pesquisadores haurem os fatos lingiifsticos de que necessitam. Achamos que em qualquer corrente especial de estudo faz-se necessaria uma no<;:ao precisa da natureza do enunciado em ge-ral e das particularidades dos diversos tipos de enunciados (primarios e secundarios), isto e, dos diversos generos do discurso. 0 desconheci-mento da natureza do enunciado e a rela<;:ao diferente com as

peculia-ridades das diversidades de genero do discurso em qualquer campo da _ investiga<;:ao lingiifstica redundam em formalismo e em uma abstra<;:ao

exagerada, deformam a historicidade d~ investiga<;:ao, debilitam as re-la<;:6es da lingua com a vida. Ora, a lingua passa a integrar a vida atra-ves de enunciados concretos (que a realizam); e igualmente atraatra-ves de enunciados concretos que a vida entra na lingua. 0 enunciado e urn nucleo problematico de importancia excepcional. Examinemos nesse corte alguns campos e problemas da lingiifstica.

Tratemos em primeiro lugar da estilfstica. Todo estilo esra indisso-luvelmente ligado ao enunciado e as formas tfpicas de enunciados, ou seja, aos generos do discurso. Todo enunciado - oral e escrito, primario e secundario e tambem em qualquer campo da comunica<;:ao discursi-va (rietchevoie obschenie)* - e individual e por isso pode refletir a indi-vidualidade do falante (ou de quem escreve), isto e, pode ter estilo in-dividual. Entretanto, nem todos OS generos sao igualmente propkios a tal reflexo da individualidade do falante na linguagem do enunciado, ou seja, ao estilo individual. Os generos mais favoraveis da literatura de fic<;:ao: aqui o estilo individual integra diretamente o proprio ediff-cio do enunciado, e urn de seus objetivos principais (contudo, no am-bito da literatura de fic<;:ao OS diferentes generos sao diferentes possibi-lidades para a expressao da individualidade da linguagem atraves de diferentes aspectos da individualidade). As condi<;:6es menos propfcias para o reflexo da individualidade na linguagem estao presentes naqueles generos do discurso que requerem uma forma padronizada, por exemplo, em muitas modalidades de documentos oficiais, de ordens militares, nos sinais verbalizados da produ<;:ao, etc. Aqui podem refletir-se nao so os aspectos mais superficiais, quase biologicos da individualidade (e ainda assim predominantemente na realiza<;:ao oral dos enunciados desses tipos padronizados). Na imensa maioria dos generos discursivos (exceto nos artfstico-literarios), o estilo individual nao faz parte do plano

...

* Obschenie, substantivo neutro,

e

c omunica~ao, rietchev6ie

e

deriva~ao de rietch, que

e

discurso, fala, em alguns aspectos linguagem, mas aqui, na acep~ao ba:khtiniana,

e

discurso, dai traduzirmos rietchev6i como "discursivo" e rietchev6ie obschen(e como co-munica~a o discursiva, porque

e

esse o sentido do pensamento de Bakhtin . (N. doT.)

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2661 MIKHAIL BAKHTIN

do enunciado, nao serve como urn objetivo seu mas e, por assim dizer, urn epifenomeno do enunciado, seu produto complementar. Em dife-rentes generos podem revelar-se difedife-rentes carnadas e aspectos de uma personalidade individual, o estilo individual pode encontrar-se em di-versas relac;:oes de reciprocidade com a lingua nacional. A propria ques-tao da lingua nacional na linguagem individual e, em seus fundamen-tos, o problema do enunciado (porque so nele, no enunciado, a lingua nacional se materializa na forma individual). A propria definic;:ao de - estilo em geral e de estilo individual em particular exige urn estudo mais profundo tanto da natureza do enunciado quanto da diversidade de generos discursivos.

A relac;:ao organica e indissoluvel do estilo como genero se revela ni-tidamente tambem na questao dos estilos de linguagem ou funcionais.

No fundo, OS estilos de linguagem ou funcionais nao sao outra coisa

senao estilos de genero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicac;:ao. Em cada campo existem e sao empregados generos que correspondem as condic;:oes espedficas de dado campo; e a esses gene-ros que correspondem determinados estilos. Uma determinada func;:ao (cientffica, tecnica, publidstica, oficial, cotidiana) e determinadas con-dic;:oes de comunicac;:ao discursiva, espedficas de cada campo, geram determinados generos, isto e, determinados tipos de enunciados estilis-ticos, tematicos e composicionais relativamente esraveis. 0 estilo e

in-dissociavel de determinadas unidades tematicas e - 0 que e de especial

importancia- de determinadas unidades composicioniJ.is: de determi-nados tipos de construc;:ao do conjunto, de tipos do seu acabarnento, de tipos da relac;:ao do falante com outros participantes da comunicac;:ao discursiva- com os ouvintes, os lei to res, os parceiros, o discurso do ou-tro, etc. 0 estilo integra a unidade de genero do enunciado como seu elemento. lsto nao significa, evidentemente, que o estilo de linguagem nao possa se tornar objeto de urn estudo especial independente. Seme-lhante estudo, ou seja, a estilfstica da lingua como disciplina auto noma, tarnbem e possfvel e necessario. No en tanto, esse estudo so sera corre-to e eficaz se levar permanentemente em coma a natureza do genero dos estilos lingi.ifsticos e basear-se no estudo previo das modalidades de ge-neros do discurso. Ate hoje a estilistica da lingua tern sido desprovida de semelhante base. Daf a sua fraqueza. Nao existe uma classificac;:ao dos

ESTETICA DA CRIA<;:Ao VERBAL 1 267

estilos de linguagem que tenha reconhecimento geral. Os auto res das clas-sificac;:oes freqi.ientemente deturpam a principal exigencia logica da classificac;:ao - a unidade do fundamento , As classificac;:oes sao suma-mente pobres e nao diferenciadas. Por exemplo, numa grarnatica aca-demica da lingua russa recentemente publicada sao apresentadas as seguintes variedades estilisticas da lingua: o discurso do livro, o dis-curso popular, o disdis-curso abstrato-cientffico, tecnico-cientffico, jorna-listico-publidstico, oficial, familiar cotidiano, discurso popular vulgar. Paralelamente a esses estilos de linguagem, figuram como modalida-des estilisticas palavras dialeticas, palavras arcaicas, expressoes profis-sionais. Semelhante classificac;:ao dos estilos e absolutamente casual, baseia-se em diferentes prindpios (ou fundamentos) de divisao em es-tilos. Alem disso, essa classificac;:ao e tambem pobre e pouco diferen-ciada*. Tudo isso e resultado direto da incompreensao da natureza de genero dos estilos de linguagem e da ausencia de uma classificac;:ao bern pensada dos generos discursivos por campos de atividade (bern como da distinc;:ao, muito importante para a estilfstica, entre generos primarios e secundarios).

A separac;:ao dos estilos em relac;:ao aos generos manifesta-se de for-ma particularmente nociva na elaborac;:ao de ufor-ma serie de questoes his-toricas. As mudanc;:as historicas dos estilos de linguagem estao indisso-luvelmente ligadas as mudanc;:as dos generos do discurso. A linguagem

literaria e urn sistema dinamico e complexo de estilos de linguagem; 0

peso espedfico desses estilos e sua inter-relac;:ao no sistema da linguagem literaria estao em rnudanc;:a permanente. A linguagem da literatura, cuja composiyao e integrada pelos estilos da linguagem nao literaria, e urn sistema ainda mais complexo e organizado em outras bases. Para enten-der a complexa dinamica historica desses sistemas, para passar da descri-c;:ao simples (e superficial na maioria dos casos) dos estilos que estao pre-sentes e se alternam para a explicac;:ao historica dessas mudanc;:as faz-se necessaria uma elaborac;:ao especial da historia dos generos discursivos

...

.

* Classificas;6es igualmente pobres, vagas e sem urn fundamento bern pensatlo dos estilos de linguagem sao apresentadas por A. N. Gv6zdiev em seu livro Ensaios de ·i:1tilo da

lin-gua russa (Moscou, 1952, pp. 13-5). Essas classificas;6es se baseiam numa assimilas;ao acdtica das nos;6es tradicionais de estilos de linguagem. (N. da ed. russa.)

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(tanto primarios quamo secundarios), que refletem de modo mais ime-diato, preciso e flexfvel todas as mudan<;:as que transcorrem na vida so-cial. Os enunciados e seus tipos, isto e, os generos discursivos, sao correias de transmissao entre a historia da sociedade e a historia da linguagem. Nenhum fenomeno novo (fonetico, lexico, gramatical) pode imegrar o sistema da lingua sem ter percorrido urn complexo e longo caminho de experimemac,:ao e elaborac,:ao de generos e estilos*.

Em cada epoca de evoluc,:ao da linguagem literaria, o tom e dado por determinados generos do discurso, e nao so generos secundarios (literarios, publidsticos, ciemfficos) mas tambem primarios (determi-nados tipos de dialogo oral- de salao, fmimo, de drculo, familiar-co-tidiano, sociopolftico, filosofico, etc.). Toda ampliac,:ao da linguagem literaria a custa das diversas camadas extraliterarias da lingua nacional esta intimamente ligada a penetrac,:ao da linguagem literaria em todos OS generos (literarios, ciemfficos, publidsticos, de conversac,:ao, etc.), em maior ou menor grau, tambem dos novos procedimentos de genero de construc,:ao do todo discursivo, do seu acabamento, da inclusao do ou-vime ou parceiro, etc., o que acarreta uma reconstruc,:ao e uma renova-c,:ao mais ou menos substancial dos generos do discurso. Quando re-corremos as respectivas camadas nao literarias da lingua nacional estamos recorrendo inevitavelmente tambem aos generos do discurso em que se realizam essas camadas. Trata-se, na maioria dos casos, de diferentes tipos de generos de conversac,:ao e dialogo; daf a dialogizac,:ao mais ou menos brusca dos generos secundarios, o enfraquecimento de sua com-posic,:ao monologica, a nova sensac,:ao do ouvinte como parceiro-inter-locutor, as novas formas de conclusao do todo, etc. Onde ha estilo ha genero. A passagem do estilo de urn genero para outro nao so modifica o som do estilo nas condic,:6es do genero que nao lhe e proprio como destroi ou renova tal genero.

Desse modo, tanto os estilos individuais quanto os da lingua satis-fazem aos generos do discurso. Urn estudo mais profundo e amplo des-'Y

* Essa nossa tese nada tern a ver com a de Vossler acerca do primado do estilistico sobre o gram:itico. Nossa exposi<;ao subseqiiente o mostrar:i com plena clareza. (N. da ed. russa.)

tes e absolutamente indispensavel para uma elaborac,:ao eficaz de todas as quest6es da estilfstica.

Contudo, tanto a questao metodologica de prindpio quanto a ques-tao geral relativa as relac,:6es redprocas do lexico com a gramatica, por urn lado, e com a estilfstica, por outro, baseiam-se no mesmo problema do enunciado e dos generos do discurso.

A gramatica ( e o lexico) se distingue substancialmente da estilfstica 1

(alguns chegam ate a coloca-la em oposic,:ao a estilistica), mas ao mesmo tempo nenhum estudo de gramatica (ja nem falo de gramatica norma-tiva) pode dispensar observac,:6es e incurs6es estilisticas. Em toda uma serie de casos e como se fosse obliterada a fronteira entre a gramatica e a estilistica. Ha fenomenos que uns estudiosos relacionam ao campo da gramatica, outros, ao campo da estilistica. Urn deles eo sintagma.

Pode-se dizer que a gramatica e a estilfstica convergem e divergem em qualquer fenomeno concreto de linguagem: se o examinamos ape-nas no sistema da lingua estamos diante de urn fenomeno gramatical, mas se o examinamos no conjunto de urn enunciado individual ou do genero discursivo ja se trata de fenomeno estilistico. Porque a propria escolha de uma determinada forma gramatical pelo falante e urn ato estilistico. Mas esses dois pontos de vista sobre o mesmo fenomeno concreto da lingua nao devem ser mutuamente impenetraveis nem sim-plesmente substituir mecanicamente urn ao outro, devendo, porem, combinar-se organicamente (na sua mais precisa distinc,:ao metodolo-gica) com base na unidade real do fenomeno da lingua. 56 uma con-cepc,:ao profunda da natureza do enunciado e das peculiaridades dos generos discursivos pode assegurar a soluc,:ao correta dessa complexa questao metodologica.

0 estudo da natureza dos enunciados e dos generos discursivos e, segundo nos parece, de impord.ncia fundamental para superar as con-cepc,:6es simplificadas da vida do discurso, do chamado "fluxo discursi-vo", da comunicac,:ao, etc., daquelas concepc,:6es que ainda dominam a nossa lingiifstica. Alem do mais, o estudo do enunciado como unidade real da comunicariio discursiva permitira compreender de tnodo mais correto tambem a natureza das unidades da lingua (enquanto. sistema) - as palavras e orac,:6es.

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270

I

M I KHAIL BAKH TI N

2. 0 ENUNC IADO COMO UNIDADE DA COMUNICAc;:AO DISCURSIVA. DIFERENc;:A ENTRE ESSA UNIDADE E AS UNIDADES

DA LfNGUA (PALAVRAS E ORAc;:OES)

A lingiiistica do seculo XIX, a come<;:ar por Wilhelm Humboldt, sem negar a fun<;:ao comunicativa da linguagem, procurou colod-la em segundo plano, como algo secundario; promovia-se ao primeiro plano a fun<;:iio da forma<;:iio do pensamento, independente da comunicaflio. Daf a famosa formula de Humboldt: "Sem fazer nenhuma men<;:ao a neces-sidade de comunica<;:ao entre os homens, a lingua seria uma condi<;:ao indispensavel do pensamento para o homem ate mesmo na sua eterna solidiio."* Outros, por exemplo os partidarios de Vossler, colocavam em primeiro plano a chamada fun<;:ao expressiva. A despeito de toda a diferen<;:a na concep<;:ao dessa fun<;:ao por teoricos particulares, sua essen-cia se resume a expressao do mundo individual do falante. A lingua e deduzida da necessidade do homem de auto-expressar-se, de objetivar-se. A essencia da linguagem nessa ou naquela forma, por esse ou aquele caminho se reduz a cria<;:ao espiritual do individuo. Propunham-se e ainda se prop6em varia<;:6es urn tanto diferentes das fun<;:6es da lingua-gem, mas permanece caracteristico, senao o pleno desconhecimento, ao menos a subestima<;:ao da fun<;:ao comunicativa da linguagem; a lingua-gem e considerada do ponto de vista do falante, como que de um falan-te sem a rela<;:ao necessdria com outros participanfalan-tes da comunica<;:ao dis-cursiva. Se era levado em conta o papel do outro, era apenas como papel de ouvinte que apenas compreende passivamente o falante. 0 enun-ciado satisfaz ao seu objeto (isto e, ao conteudo do pensamento en uncia-do) e ao proprio enunciador. Em essencia, a lingua necessita apenas do falante - de urn falante - e do objeto da sua fala, se neste caso a lingua pode servir ainda como meio de comunica<;:ao, pois essa e a sua fun<;:ao secundaria,. que nao afeta a sua essencia. Urn grupo lingiiistico, a mul-tiplicidade de falantes evidentemente nao pode ser ignorada de manei-ra nenhuma quando se fala da lingua; no entanto, quando se define a

"

* Humboldt, W ilhelm. Sobre a diftrenra entre os organismos da linguagem humana e a influencia dessa diferenra no desenvolvimento mental da humanidade. Sao Petersburgo, 1859, p. 51. (N. da ed. russa.)

ESTETICA DA CR I A<;:AO VER BA L I 271

essencia da lingua, esse momento nao se torna necessaria e determic nante da natureza da lingua. As vezes o grupo lingiifstico e visto como uma certa personalidade coleriva, "o espirito do povo", etc., e se lhe da grande importancia (entre os representantes da "psicologia dos povos"), mas tambem neste caso a multiplicidade de falantes, dos outros em re-la<;:ao a cada falante dado, carece de substancialidade.

Ate hoje ainda existem na lingiifstica ficfoes como o "ouvinte"* eo "entendedor" (parceiros do "falante", do "fluxo unico da fala'', etc.) . Tais fic<;:6es dao uma no<;:ao absolutamente deturpada do processo com-plexo e amplamente ativo da comunica<;:ao discursiva. Nos cursos de lingiiistica geral (inclusive em alguns tao serios quanto ode Saussure4), aparecem com freqiiencia representa<;:6es evidentemente esquematicas dos dois parceiros da comunica<;:ao discursiva - o falante eo ouvinte (o receptor do discurso); sugere-se urn esquema de processos ativos de dis-curso no falante e de respectivos processos passivos de recep<;:ao e com-preensao do discurso no ouvinte. _Nao se pode dizer que esses esquemas sejam falsos e que nao correspondam a determinados momentos da realidade; contudo, quando passam ao objetivo real da comunica<;:ao discursiva eles se transformam em fic<;:ao cientffica. Neste caso, o ou-vinte, ao perceber e compreender o significado (lingiiistico) do discurso, ocupa simultaneamente em rela<;:ao a ele uma ativa posi<;:ao responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usa-lo, etc.; essa posi<;:ao responsiva do ouvinte se for-ma ao Iongo de todo o processo de audi<;:ao e compreensao desde o seu infcio, as vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante. Toda compreensao da fala viva, do enunciado vivo e de natureza ativa-mente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensao e prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. A compreensao pas-siva do significado do discurso ouvido e apenas urn momento abstrato da compreensao ativamente responsiva real e plena, que se atualiza na subseqiiente resposta em voz real alta.

E

claro que nem sempre ocorre

"

* 5/Uchatiel, derivado de sluchat (ouvir); ponimdiuschi, de rivado de ponimtit, enrender, compreender. (N. doT.)

(7)

imediatamente a seguinte resposta em voz alta ao enunciado logo de-pois de pronunciado: a compreensao ativamente responsiva do ouvido (por exemplo, de uma ordem militar) pode realizar-se imediatamente na as;ao (o cumprimento da ordem ou comando entendidos e aceitos para execus;ao), pode permanecer de quando em quando como compreen-sao responsiva silenciosa (alguns generos discursivos foram concebidos apenas para tal compreensao, por exemplo, os generos liricos), mas isto, por assim dizer, e uma compreensao responsiva de efeito retardado: cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subseqtientes ou no comportamento do ouvinte. Os generos da complexa comunicas;ao cultural, na maioria dos casos, foram con-cebidos precisamente para essa compreensao ativamente responsiva de efeito retardado. Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente,

mu-tatis mutandis, ao discurso escrito e ao lido.

Portanto, toda compreensao plena real e ativamente responsiva e nao e senao uma fase inicial preparatoria da resposta (seja qual for a for-ma em que ela se de). 0 proprio falante esta determinado precisamente a essa compreensao ativamente responsiva: de nao espera uma com preen-sao passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma

con~ordancia,

uma participa<;ao, uma objes;ao, uma execus;ao, etc. (os diferentes generos discursivos pressu-p6em diferentes diretrizes de objetivos, projetos de discurso dos falantes ou escreventes). 0 empenho em tornar inteligivel a sua fala e apenas o momenta abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante. Ademais, todo falante e por si mesmo urn respondente em maior ou menor grau: porque ele nao e 0 primeiro falante, 0 primeiro a ter vio-lado o eterno silencio do universo, e pressup6e nao so a existencia do sistema da lingua que usa mas tambem de alguns enunciados antece-dentes - dos seus e alheios - com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relas;6es (baseia-se neles, polemiza com des, simplesmen-te os pressup6e ja conhecidos do ouvinsimplesmen-te). Cada enunciado e urn elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados.

Desse modo, o ouvinte com sua compreensao passiva, que e repre-sentado como parceiro do falante nos desenhos esquematicos das lin-gtiisticas gerais, nao corresponde ao participante real da comunicas;ao discursiva. Aquilo que o esquema representa e apenas urn momento

abs-trato do ato pleno e real de compreensao ativamente responsiva, que gera a resposta (a que precisamente visa o falante). Por si mesma, essa abs-tras;ao cientifica e perfeitamente justificada, mas sob uma condis;ao: a de ser nitidamente compreendida apenas como abstra<;ao e nao ser apre-sentada como fenomeno pleno concreto e real; caso contririo, ela se transforma em fics;ao.

E

exatamente o que acontece na lingtiistica, uma vez que esses esquemas abstratos, mesmo nao sendo apresentados dire-tamente como reflexo da comunicas;ao discursiva real, tampouco sao completados por alusoes a uma maior complexidade do fenomeno real. Como resultado, o esquema deforma o quadro real da comunica-s;ao discursiva, suprimindo dela precisamente os momentos mais subs-tanciais. Desse modo, o papel ativo do outro no processo de comunica-s;ao discursiva sai extremamente enfraquecido.

0 mesmo desconhecimento do papel ativo do outro no processo da comunicas;ao discursiva e o empenho de contornar inteiramente esse processo manifestam-se no uso impreciso e ambiguo de termos como "fala'' ou "fluxo da fala''. Esses termos deliberadamente imprecisos habitualmente deveriam designar aquilo que e submetido a uma clivi-sao em unidades da lingua, concebidas como cortes desta: unidades fonicas (fonema, sflaba, cadencia da fala) e significativas (oras;ao e pa-lavra). "0 fluxo da fala se desintegra ... ", "nossa fala se divide ... "- e as-sim que nos cursos gerais de lingtifstica e gramatica, bern como nos es-tudos especiais de fonetica e lexicologia, costumam introduzir as par-tes dedicadas ao estudo das respectivas unidades da lingua. Infelizmente, ate a nossa gramatica academica recentemente lans;ada emprega o mes-mo termes-mo indefinido e ambfguo "nossa fala''. Veja-se comes-mo se introduz a respectiva parte da fonetica: "Nossa

fola

se divide antes de tudo em oras;6es, que por sua vez podem decompor-se em conibinas;oes de pa-lavras e papa-lavras. As papa-lavras se dividem nitidamente em unidades fo-nicas mfnimas - as silabas ... As sflabas se dividem em sons particulares da fala ou fonemas ... " *

0 que vern a ser "fluxo da fala'', "nossa fala''? Quale a sua exten-sao? Terao prindpio e fim ? Se tern duras;ao indefinida, qu~ corte deles

"

(8)

274 / MIKHAIL BAKHTIN

nos tomamos para dividi-lo em unidades? A respeito de todas essas quest6es reinam a plena indefini<;:ao e a reticencia. A palavra

indefini-da rietch ("fala, [discurso]"), que pode designar linguagem, processo de

discurso, ou seja, o falar, urn enunciado particular ou uma serie inde-finidamente longa de enunciados e urn determinado genero discursivo ("ele pronunciou urn rietch [discurso]"), ate hoje nao foi transformada pelos lingiiistas em urn termo rigorosamente limitado pela significa<;:ao e definido (definivel) (fen6menos anilogos ocorrem tambem em ou-tras linguas). Isto se deve a quase completa falta de elabora<;:ao do pro-blema do enunciado e dos generos do discurso e, conseqiientemente, da comunica<;:ao discursiva. Quase sempre se verifica o jogo confuso com todas essas significa<;:6es (exceto com a ultima). Mais amiude su-bentende-se por "noss.a fala" qualquer enunciado de qualquer pessoa; alem do mais, essa compreensao nunca e sustentada ate o fim*.

Entretanto, se e indefinido e vago o que dividem e decomp6em em unidades da lingua, nestas tambem se introduzem a indefini<;:ao e a confusio.

A indefini<;:ao terminol6gica e a confusio em urn ponto metodo-l6gico central no pensamento lingiiistico sao o resultado do desconhe-cimento da real unidade da comunica<;:ao discursiva - o enunciado. Porque o discurso s6 pode existir de fato na forma de enuncia<;:6es con-cretas de determinados falantes, sujeitos do discurso. 0 discurso sempre esta fundido em forma de enunciado pertencente a urn determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma nao pode existir. Por mais dife-rentes que sejam as enuncia<;:6es pelo seu volume, pelo conteudo, pela constru<;:ao composicional, elas possuem como unidades da comunica-<;:ao discursiva peculiaridades estruturais comuns, e antes de tudo

limi-T

*Alias nem ha como sustenra-la. Uma enuncia-;:ao como ''Ah!" (replica de urn dialogo) nao pode ser dividida em ora-;:6es, combina<;:6es de palavras, sflabas. Conseqi.ienremen-te, nem toda enuncia<;:Jo serve. Demais, dividem a en uncia<;:ao (a fala) e chegam a unidades da lingua. Com muita freqi.iencia a ora<;:ao

e

definida como o enunciado mais simples, logo, ja nao pode ser uma unidade da enuncia<;:ao. Pressup6e-se em silencio a fala de urn falanre, desprezando-se os sons harm6nicos dialogicos. Em comparas:ao com os limites dos enunciados, todos os demais limites (entre ora<;:6es, combina<;:6es de palavras, sinragmas, palavras) sao relativos e convencionais. (N. da ed. russa.)

ESTfTICA DA CRIA<;:Ao VERBAL

I

275

tes absolutamente precisos. Esses limites, de natureza especialmente subs-tancial e de prindpio, precisam ser examinados minuciosarhente.

Os lirnites de cada enunciado concreto. como unidade da comuni-ca<;:ao discursiva sao definidos pela alterndncia dos sujeitos do discurso,

ou seja, pela alternancia dos falantes. Todo enunciado- da replica su-cinta (monovocal) do diilogo cotidiano ao grande romance ou tratado cientifico- tern, por assim dizer, urn prindpio absoluto e urn fim abso-luto: antes do seu inicio, os enunciados de outros; depois do seu terrnino, os enunciados responsivos de outros (ou ao menos urna cornpreensao ativarnente responsiva silenciosa do outro ou, por ultimo, uma a<;:ao responsiva baseada nessa compreensao). 0 falante termina o seu enun-ciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar

a

sua cornpreensao ativamente responsiva. 0 enunciado nao e uma unidade convencional, mas uma unidade real, precisamente delimitada da alternancia dos su-jeitos do discurso, a qual termina corn a transmissao da palavra ao ou-tro, por mais silencioso que seja o "dixi" percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou.

Essa alternancia dos sujeitos do discurso, que cria lirnites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida, de-pendendo das diversas funs;6es da linguagem e das diferentes condi<;:6es e situa<;:6es de comunica<;:ao, e de natureza diferente e assume forrnas varias. Observamos essa alternancia dos sujeitos do discurso de modo mais simples e evidente no dialogo real, em que se alternarn as enun-cia<;:6es dos interlocutores (parceiros do dialogo), aqui denorninadas replicas. Por sua precisao e simplicidade, o diilogo e a forma classica de comunica<;:ao discursiva. Cada replica, por mais breve e fragmenraria que seja, possui urna conclusibilidade espedfica ao exprimir certa po-si<;:ao do falante que suscita resposta, ern rela<;:ao

a

qual se pode assumir uma posis;ao responsiva. Essa conclusibilidade espedfica do enunciado sera objeto de nosso exame posterior (trata-se de urn dos tras;os funda-mentais do enunciado). Ao rnesmo tempo, as replicas sao interligadas. Mas aquelas rela<;:6es que existem entre as replicas do dialogo- as rela<;:6es de pergunta-resposta, afirmas;ao-obje<;:ao, afirma<;:ao-conconJancia, pro-posta-aceita~ao, ordem-execu<;:ao, etc. - sao impossiveis entre unidades da lingua (palavras e ora<;:6es), quer no sistema da lingua (no C<orte ver-tical), quer no interior do enunciado (no corte horizontal). Essas

(9)

rela-c;:6es espedficas entre as replicas do di<ilogo sao apenas modalidades das relac;:6es espedficas entre as enunciac;:6es plenas no processo de comu-nicac;:ao discursiva. Essas relac;:6es so sao possfveis entre enunciac;:6es de diferentes sujeitos do discurso, pressup6em outros (em relac;:ao ao fa-lame) membros da comunicac;:ao discursiva. Essas relac;:6es entre enun-ciac;:6es plenas nao se prestam

a

gramaticalizac;:ao, uma vez que, reitere-mos, nao sao possfveis entre unidades da lingua, e isso tanto no sistema da lingua quanto no interior do enunciado.

Nos generos secundarios do discurso, particularmente nos retoricos, encontramos fenomenos que parecem contrariar essa nossa tese. Mui-to amiude o falante (ou quem escreve) coloca quest6es no ambiMui-to do seu enunciado, responde a elas mesmas, faz objec;:6es a si mesmo e refuta suas proprias objec;:6es, etc. Mas esses fenomenos nao passam de repre-sentac;:ao convencional da comunicac;:ao discursiva nos generos prima-rios do discurso. Essa representac;:ao caracteriza os generos retoricos (lato sensu, incluindo algumas modalidades de popularizac;:6es cientfficas), conti.rdo todos os outros generos secundarios (artfsticos e cientfficos) se valem de diferentes formas de introduc;:ao, na construc;:ao do enun-ciado, dos generos de discurso primarios e relac;:6es entre eles (note-se que aqui eles sofrem transformac;:6es de diferentes graus, uma vez que nao ha uma alternancia real de sujeitos do discurso).

E

essa a natureza dos generos secundarios*. Entretanto, em todas essas manifestac;:6es, as relac;:6es entre generos primarios reproduzidos, ainda que eles estejam no ambito de urn enunciado, nao se prestam

a

gramaticalizac;:ao e con-servam a sua natureza espedfica essencialmente distinta da [natureza] das relac;:6es entre as palavras e orac;:6es (e outras unidades da lingua -grupos de palavras, etc.) dentro do enunciado.

Aqui, com base no material do dialogo e das suas replicas, e neces-sario abordar previamente 0 problema da orarao como unidade da lin-gua em sua distinc;:ao em face do enunciado como unidade da comunica-rao discursiva. (A questao da natureza da orac;:ao e uma das mais comple-xas e diffceis na lingtifstica. A !uta de opini6es em torno dessa questao continua em nossa ciencia ate os dias de hoje. Nao e tarefa nossa,

eviden-"'

*As cicatrizes dos limites estao nos generos secundarios. (N. da ed. russa.)

temente, revelar essa questao em toda a sua complexidade; nossa inten-c;:ao e abordar apenas urn aspecto, mas tal aspecto nos parece de impor-tincia substancial para toda a questao. Para nos importa definir com precisao a relac;:ao da orac;:ao com o enunciado. lsto ajudara a elucidar com mais clareza o enunciado, de urn lado, e a orac;:ao, de outro.)

Posteriormente trataremos dessa questao, por ora observamos ape-nas que os limites da orac;:ao enquanto unidade da lingua nunca sao de-terminados pela alternancia de sujeitos do discurso. Essa alternancia, que emoldura a orac;:ao de ambos os !ados, convene-a em urn en uncia-do pleno. Essa orac;:ao assume novas qualidades e e percebida de mouncia-do inteiramente diverso de como e percebida a orac;:ao emoldurada por ou-tras orac;:6es no contexto de urn enunciado desse ou daquele falante. A orac;:ao e urn pensamento relativamente acabado, imediatamente cor-relacionado com outros pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enunciado; ao termino da orac;:ao, o falante faz uma pausa para passar em seguida ao seu pensamento subseqtiente, que da continuidade, completa e fundamenta o primeiro. 0 contexto da orac;:ao e o contex-to da fala do mesmo sujeicontex-to do discurso (falante); a orac;:ao nao secor-relaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto extraverbal da realidade (a situac;:ao, o ambiente, a pre-historia) nem com as enun-ciac;:6es de outros falantes, mas tao-somente atraves de todo o contexto que a rodeia, isto e, atraves do enunciado em seu con junto. Se, porem, a orac;:ao nao esta cercada pelo contexto do discurso do mesmo falante, ou seja, se ela

e

urn enunciado pleno e acabado ( uma replica do dialogo), entao ela estara imediatamente (e individualmente) diante da realidade (do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciac;:6es dos ou-tros; depois destas ja nao vern a pausa, que e definida e assimilada pelo proprio falante (pausas de toda especie, como manifestac;:6es gramati-cais calculadas e assimiladas, so sao possfveis dentro do discurso de urn falante, isto e, dentro de urn enunciado; as pausas entre as enunciac;:6es nao sao, evidentemente, de natureza gramatical e sim real; essas pausas reais - psicologicas ou suscitadas por essas ou aquelas circunstancias ex-ternas - podem destruir tambem urn enunciado; nos genere? ardstico-literarios secundarios, tais pausas sao levadas em conta pelo .artista, o diretor de cena, o ator, mas elas sao diferentes por prindpio t~nto das pausas gramaticais quanto das pausas estilisticas - por exemplo, entre

(10)

278 / MIKHAIL BAKHTIN

os sintagmas- no interior do enunciado); depois delas espera-se uma resposta ou uma compreensao responsiva de outro falante. Semelhante oras;ao, tornada enunciado pleno, ganha uma validade semantica especial: em rela<;:ao a ela pode-se ocupar uma posi<;:ao responsiva, com ela se pode concordar ou discordar, execura-la, avalia-la, etc.; no contexto, a oras;ao carece de capacidade de determinar a resposta; ela ganha essa capacidade (ou melhor, familiariza-se com ela) apenas no conjunto do enunciado. Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente novas per-tencem nao a propria oras;ao, que se tornou enunciado pleno, mas pre-cisamente ao enunciado, traduzindo a natureza dele e nao a natureza da oras;ao: elas se incorporam a oras;ao completando-a ate torna-la enun-ciado pleno. A oras;ao enquanto unidade da lingua carece de todas es-sas propriedades: nao e delimitada de ambos OS !ados pela alternancia dos sujeitos do discurso, nao tern contato imediato com a realidade (com a situas;ao extraverbal) nem relas;ao imediata com enunciados alheios, nao disp6e de plenitude semantica nem capacidade de determinar ime-diatamente a posis;ao responsiva do outro falante, isto e, de suscitar res-posta. A oras;ao enquanto unidade da lingua tern natureza gramatical, fronteiras gramaticais, lei gramatical e unidade. (Examinada em urn enunciado pleno e do ponto de vista desse todo, ela adquire proprie-dades estilisticas.) Onde a oras;ao figura como urn enunciado pleno ela aparece colocada em uma moldura de material de natureza diversa. Quando esquecemos esse pormenor na analise de uma oras;ao, detur-pamos a sua natureza (e ao mesmo tempo tambem a natureza do enun-ciado, gramaticalizando-o). Muitos lingiiistas e correntes lingiiisticas (no campo da sintaxe) sao prisioneiros dessa confusao, e o que estudam como oras;ao e, no fundo, algum hibrido de oras;ao (de unidade da lin-gua) e de enunciado (de unidade da comunicas;ao discursiva). Nao se intercambiam oras;6es como se intercambiam palavras (em rigoroso sentido lingiiistico) e grupos de palavras; intercambiam-se enunciados que sao construidos com o auxilio das unidades da lingua: palavras, combinas;6es de palavras, oras;6es; ademais, o enunciado pode ser cons-truido a partir de uma oras;ao, de uma palavra, por assim dizer, de uma unidade do discurso (predominantemente de uma replica do dialogo), mas isso nao leva uma unidade da lingua a transformar-se em unidade da comunicas;ao discursiva.

ESTETICA DA CRIA \: AO VER BAL I 279

A ausencia de uma teoria elaborada do enunciado como unidade da comunicas;ao discursiva redunda em uma distins;ao imprecisa da ora-s;ao e do enunciado e freqiientemente total_ confusao dos do is.

Voltemos ao dialogo real. Como ja dissemos, trata-se da forma mais simples e classica de comunicas;ao discursiva. A alternancia dos sujei-tos do discurso (falantes), que determina os limites dos enunciados, esta aqui representada com excepcional evidencia. Contudo, em outros campos da comunicas;ao discursiva, inclusive nos campos da comuni-cas;ao cuitural (cientifica e artisrica) complexamente organizada, ana-tureza dos limites do enunciado e a mesma.

Complexas por sua construs;ao, as obras especializadas dos diferen-tes generos cientificos e artisticos, a despeito de toda a diferens;a entre elas e as replicas do dialogo, tambem sao, pela propria natureza, uni-dades da comunicas;ao discursiva: tambem estao nitidamente delimi-tadas pela alternancia dos sujeitos do discurso, cabendo observar que essas fronteiras, ao conservarem a sua precisao externa, adquirem urn ca-rater interno gras;as ao faro de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - ai revela a sua individualidade no estilo, na visao de mundo, em rodos os elementos da ideia de sua obra. Essa marca da individualidade, jacente na obra, e 0 que cria prindpios interiores es-pedficos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicas;ao discursiva de urn dado campo cultural: das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia, de outras obras da mesma corrente, das obras das correntes hostis combatidas pelo autor, etc.

A obra, como a replica do dialogo, esta disposta para a resposta do outro (dos outros), para a sua ativa compreensao responsiva, que pode assumir diferentes formas: influencia educativa sobre os leitores, sobre suas convics;6es, respostas criticas, influencia sobre seguidores e conti-nuadores; ela determina as posis;6es responsivas dos outros nas com-plexas condis;6es de comunicas;ao discursiva de urn dado campo da cultura. A obra e urn elo na cadeia da comunicas;ao discursiva; como a replica do dialogo, esta vinculada a outras obras- enunciados: com aque-las as quais ela responde, e com aqueaque-las que lhe respondem; ao mesmo tempo, a semelhans;a da replica do dialogo, ela esta separaqa daquelas pelos limites absolutos da alternancia dos sujeitos do discurso.

Desse modo, a alternancia dos sujeitos do discurso, que etnoldura o enunciado e cria para ele a massa .firme, rigorosamente delimitada

Referências

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