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A INFLUÊNCIA DE SANTO AGOSTINHO E DE BOÉCIO NO PENSAMENTO DE ANSELMO DE BEC (SÉCULO XI)

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A INFLUÊNCIA DE SANTO AGOSTINHO E DE BOÉCIO NO PENSAMENTO DE ANSELMO DE BEC (SÉCULO XI)

RIBEIRO, Elizabete Custódio da Silva OLIVEIRA, Terezinha

Este trabalho é parte dos resultados de nossa pesquisa, em nível de mestrado, que traz por título “O divino e o humano em Anselmo de Bec: novos caminhos para a educação no século XI”. Nosso intuito consiste em apontar a importância da leitura dos clássicos, especificamente das obras de Agostinho e Boécio, para a formação do teólogo e filósofo Anselmo de Bec e de suas reflexões a respeito da existência de Deus e da racionalidade humana.

Tendo em vista uma perspectiva de longa duração, observamos que o profundo conhecimento que Anselmo adquirira ao estudar o pensamento de Agostinho e Boécio consistiu em fontes essenciais para que ele pudesse ser capaz de alcançar um melhor entendimento das complexas questões que urgiam por respostas no seu presente, ou seja, no século XI. Acreditamos, portanto, que foi a partir destas leituras, ou seja, no conhecimento da História que Anselmo pôde construir as bases sob as quais ele fundamentou o seu pensamento.

Políbios (1985) aponta que não é possível termos uma idéia do todo se observar uma só de suas partes, que a educação e o exercício mais sadios para uma vida ativa podem ser encontrados no estudo da história. De fato, à educação de uma sociedade não basta um simples olhar do “aqui e agora”, pois muito do passado o nosso presente preserva.

Bloch (1965), ao escrever sobre o ofício do historiador, lembra que o passado é algo imutável, mas que o seu conhecimento fornece a base necessária para que nossa ação, no presente, seja mais consciente, que os exemplos nos servem de aprendizado, nos aperfeiçoam, pois, mesmo diante de momentos e questões muito distintas, as angústias humanas são semelhantes. Bloch também escreve nos chamando a atenção para o fato de que os acontecimentos não nascem e nem se explicam por si próprios, sendo eles compreensíveis à medida que buscamos entender suas causas, por meio da pesquisa e da reflexão histórica.

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Durkheim (1995) ressalta que o afastamento momentâneo do presente precisa se dar por um único motivo: o de compreendê-lo melhor, uma vez que é o homem em sua totalidade que precisamos conhecer:

O homem de hoje é o homem exigido pelas necessidades do dia, pelo gosto do dia, e a necessidade do dia é unilateral e será substituída por outra, amanhã. Daí o surgimento de todos os tipos de choques, de revoluções que não podem senão perturbar a seqüência regular da evolução. Não é o homem de um instante, o homem tal como o sentimos num momento do tempo, sob a influência de paixões e necessidades momentâneas, que precisamos conhecer, mas sim o homem em sua totalidade (DURKHEIM, 1995, p. 19).

A passagem evidencia que não é o homem de um único instante que importa quando nos propomos a entendê-lo melhor, tampouco é proveitoso quando à luz de nossas necessidades momentâneas procuramos explicá-lo. Investigar o passado nos possibilita entrar em contato com as experiências e conhecimentos dos homens que viveram antes de nós e nos tornarmos aptos a contribuir em algo para nosso presente e gerações futuras.

É importante observarmos que Políbios, Bloch e Durkheim são autores que vivenciaram presentes distintos, mas que compactuaram no sentido de registrar o quanto a História é uma fonte essencial de conhecimento e que isso independe do momento no qual se vive.

A sociedade que Anselmo vivenciou, portanto, foi resultado de um longo e difícil processo histórico, no qual não podemos deixar de pontuar, além das obras de Agostinho e Boécio, a importância da ação unificadora da Igreja cristã entre os séculos V e X.

Segundo Guizot (1907, p. 77)

[...] Se não houvesse existido a egreja christã, o mundo inteiro teria sido entregue á força material. Só a egreja é que exercia um poder moral. Ainda fazia mais; mantinha, derramava a idéa de uma regra, de uma lei superior a todas as leis humanas; professava a crença, fundamental para a salvação da humanidade, de que acima de todas as leis humanas ha uma lei chamada, conforme os tempos, ora a razão, ora o direito divino, mas que sempre e em toda a parte é a mesma lei com nomes diversos.

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Este autor também afirma que “nunca houve sociedade que excedesse a egreja nos esforços que esta fez desde o seculo V até o seculo X para exercer a sua acção e assimilar a si o mundo externo” (1907, p. 105), ou seja, a Igreja foi a única instituição que se manteve em condições de nortear a sociedade, agregando por meio da fé diferentes povos em torno de um só ideal de vida – o cristão.

Dar um norte à sociedade neste momento de caos foi um grande desafio que a Igreja enfrentou, pois, segundo Le Goff (2005), permeavam esta história “sinistros protagonistas”:

[...] Confusão acrescida pelo terror. Mesmo levando em conta os exageros, as notícias de massacres e de devastações que enchem toda a literatura do século 5º não deixam dúvidas quanto às atrocidades e destruições que acompanharam os “passeios” dos povos bárbaros. Eis a macabra abertura que se apresenta no início da história do Ocidente medieval. Continuará a dar o tom ao longo de dez séculos. O ferro, a fome, a epidemia, as feras, tais serão os sinistros protagonistas desta história (p. 27).

[...] Queda demográfica, perda de tesouro de arte, ruína de rotas, oficinas, entrepostos, sistemas de irrigação, culturas. Destruição continuada, porque das ruínas dos monumentos antigos retiram-se pedras, colunas, ornamentos [...]. Neste mundo empobrecido, subalimentado, enfraquecido, uma calamidade natural completa o que o bárbaro começou. A partir de 543 a Peste Negra, vinda do Oriente, devasta a Itália, Espanha e uma grande parte da Gália durante mais da metade de um século [...] (p. 37).

Le Goff descreve um cenário disforme, permeado pelo medo, pela pobreza e, que fica ainda mais dramático por causa da peste, mas, o autor enfatiza que estes séculos foram essenciais, pois tratava-se da infância do Ocidente:

Na história da civilizações, como na dos indivíduos,a infância é decisiva. E muito, senão tudo, ali se decide. Entre os séculos 5º e 10º, nascem modos de pensar e de sentir, temas e obras que formam e informam as futuras estruturas das mentalidades e das sensibilidades medievais (LE GOFF, 2005, p. 107).

Neste contexto, podemos concluir, que muitas destas formas de pensar e de sentir foram instigadas nos homens pela intervenção da Igreja na sociedade. Le Goff atribui aos

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bispos e monges o nome de “chefes polivalentes de um mundo desorganizado” (2005, p. 40).

Portanto, consideramos que a Igreja lutou com os instrumentos que possuía, dando à sociedade a moral, os costumes, os valores perdidos, fornecendo aos homens novos motivos para viver e buscar a felicidade, não mais terrena, mas posterior a esta vida.

Os esforços empreendidos pela Igreja por muitos séculos não foram em vão, pois os frutos deste trabalho puderam começar a ser vistos na efervescência da sociedade do presente de Anselmo. Pensamos, inclusive, que o pensamento anselmiano é uma expressão, mesmo que remota, dos primeiros indícios1 de significativas mudanças na forma de ser e de pensar e, em conseqüência, da necessidade de novos parâmetros para a educação no medievo.

Entendemos que Anselmo, ao teorizar a respeito da existência de Deus em um mundo eminentemente cristão, evidenciou que a sociedade principiava a adquirir novos contornos.

Oliveira (2005, p. 24 e 25) escreve que o século XI vivenciou um desabrochar de novidades na vida dos homens medievais e destaca a importância do pensamento de Anselmo:

Os homens de seu tempo vivem um novo momento histórico. Assistimos, nesse século, o renascimento das cidades, o studium generale e a sistematização das relações feudais. Tudo isso adquire uma importância muito grande no Ocidente.

Nesse sentido, suas formulações, exemplo de reflexões Escolásticas, precisavam mostrar, pela razão e pelo intelecto, a existência de Deus em todas as coisas. É por isso que a sua reflexão evidencia alguns aspectos novos e relevantes no que diz respeito ao pensamento educacional.

A maneira que escolhe para discutir e provar que Deus existe expressa um novo caminho do pensamento, pois, embora siga os ensinamentos do grande mestre da Igreja, Santo Agostinho, Anselmo precisa dar respostas a questões e problemas próprios do século XI.

1 Temos como hipótese de trabalho que as mudanças evidenciadas no século XI podem ser vistas como os primeiros indícios, ainda que frágeis, do princípio do surgimento da sociedade moderna.

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Como vimos na passagem, as reflexões de Anselmo expressam as relações do século XI e foi por meio do seu Monológio, do Proslógio e de algumas de suas Cartas que buscamos observar este “novo momento histórico” do qual se refere Oliveira, bem como a influência de Agostinho e Boécio nas formulações anselmianas.

De acordo com o relato de Eadmero,2 Anselmo foi um espírito inquieto, bastante envolvido com as questões de seu tempo. Ele nasceu em Aosta-Itália e viveu entre os anos de 1033 e 1109. Vindo de família nobre, escolhera a vida religiosa à política. Sobre sua infância e juventude pouco se sabe, mas é certo que estudara os clássicos, com afinco, e que conhecia como poucos do seu tempo o latim. Seu presente foi marcado, essencialmente, pelo início do embate entre os poderes temporal e espiritual, permeando, inclusive, no seio da própria Igreja a desordem na moral e nos costumes.

Contra este estado de coisas, a Igreja procurou reformar a si e a sociedade como um todo e foi a este momento de grandes questionamentos em torno da fé cristã que Anselmo procurou responder em seus escritos.

Em meio ao desabrochar de um novo momento do medievo, provocado pela maturação das relações feudais, e de questionamentos em torno da doutrina cristã, Anselmo foi impelido por seus pares a transcrever lições que já lhes havia comunicado sobre a essência divina e seus atributos, utilizando-se somente da razão nesta tarefa:

Alguns irmãos de hábito pediram-me muitas vezes e com insistência para transcrever, sob forma de meditação, umas idéias que lhes havia comunicado em conversação familiar, acerca da essência divina e outras questões conexas com esse assunto. Isto é, atendendo mais a como deveria ser redigida esta meditação do que à facilidade da tarefa ou à medida das minhas possibilidades, estabeleceram o método seguinte: sem, absolutamente, recorrer, em nada, à autoridade das Sagradas Escrituras, tudo aquilo que fosse exposto ficasse demonstrado pelo encadeamento lógico da razão, empregando argumentos simples, com um estilo acessível, para que se tornasse evidente pela própria clareza da verdade (ANSELMO, Monológio, Prólogo).

Este desafio foi aceito e Anselmo elaborou uma teoria em prol da defesa da existência de Deus. Mais do que isto, podemos dizer que as formulações de Anselmo

2 Eadmero era discípulo de Anselmo e seu relato sobre a vida e a obra do seu mestre fazem parte do volume I das

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expressam a complexidade das relações sociais do momento e a capacidade reflexiva dos pensadores medievais.

São estas formulações de Anselmo, encontradas essencialmente nas Cartas,3 no Monológio e no Proslógio, que escolhemos como principais fontes para evidenciar a influência de Santo Agostinho (354-430) e de Boécio (470-525), pensadores que constituem a raiz teórica anselmiana.

Boécio foi um dos mais importantes pensadores do florescer da Idade média. Podemos perceber que ele de fato expressa um período de transição, uma vez que foi chamado de “o último romano e o primeiro escolástico” por Grabmann (1949, p. 10).

Boécio vivenciou um período de transição, de intenso caos social decorrente da desagregação do Império Romano. Ele é um importante exemplo da evidência de que focos de pensamento reflexivo se mantiveram na Idade Média, mesmo diante das maiores adversidades.

Sobre Boécio escreveu Steenberghen (s/d, p. 54 e 55):

A actividade política de Boécio não o desviou nunca da filosofia, de cujo valor cultural ele claramente se apercebeu. O seu objectivo parece ter sido colocar ao serviço da jovem civilização que desabrochava no reino gótico os tesouros da sabedoria grega que pudera conhecer em Atenas. Tinha querido traduzir para latim tudo o que conhecia de Aristóteles e, sem dúvida, de Platão e do platonismo [...]. Por isso, o papel de Boécio foi capital como veículo da filosofia grega e sobretudo da lógica de Aristóteles. Transmitiu também idéias estóicas, neoplatonicas e augustinianas. A sua influência foi profunda durante toda a Idade Média; foi o verdadeiro educador do Ocidente.

Na passagem vimos que havia uma grande preocupação de Boécio em transmitir o conhecimento. Sua atuação como tradutor e comentarista, essencialmente de algumas obras de Aristóteles para o latim (aparentemente seu mais estimado projeto de vida), demonstravam que ele acreditava que era primordial viabilizar o conhecimento para as novas gerações.

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Para este pensador, o que nos torna homens é o conhecimento e este é o único bem que verdadeiramente nos pertence. Boécio de fato queria que o conhecimento fosse acessível a todos e que os homens fossem mais racionais e reflexivos, que fossem capazes de olhar o outro, de viverem juntos.

Esta discussão fica evidente em sua mais conhecida obra, A Consolação da Filosofia, escrita pouco antes de sua morte, durante o período em que Boécio esteve preso, acusado de traição política. Vejamos as suas palavras:

[...] assim é a natureza humana: superior a todo o resto da criação quando usa de suas faculdades racionais, mas da mais baixa condição quando cessa de ser o que realmente é. Nos animais, essa ignorância de si mesmo é inerente à sua natureza; no homem é uma degradação. Como é grande o vosso erro quando pensais em vos exaltar com coisas externas! É algo inconcebível! E ademais, quando alguém se distingue pelos ornamentos que ostenta, são os ornamentos que são admirados, e não quem os traz (BOÉCIO, 1998, p. 40 e 41).

A passagem expressa a confiança de Boécio na racionalidade humana. Para este pensador é uma degradação quando o homem se afasta desta razão, deixando-se levar pelo que é aparente. O homem deixa de ser superior em relação à criação quando se afasta de sua essência, quando o ter assume uma importância maior do que o ser. Esta é uma das preciosas lições de Boécio para a atualidade.

Além da sua Consolação da Filosofia, outra obra precisa ser destacada: o De Trinitate, disponibilizado em português por intermédio da tradução de Lauand (2008).

Lauand escreve que o De Trinitate foi o principal escrito teológico de Boécio e que esta obra expressou as “primícias do método escolástico”.

[...] O surgimento desse opúsculo, no início do século VI, assinala o nascimento da Escolástica, um método que iria marcar por quase mil anos o pensamento ocidental e, séculos mais tarde, consubstanciar-se em sua mais importante instituição educacional: as Universidades. Mas o De Trinitate não se restringe a aspectos formais ou metodológicos. Ao valer-se do instrumental aristotélico para a análise do conteúdo da fé, Boécio lançava conceitos e teses fundamentais, que exerceriam extraordinária influência sobre o pensamento teológico posterior.

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[...] há ainda uma outra contribuição inovadora de Boécio que incide sobre outro elemento ainda mais decisivamente essencial na constituição da escolástica como método: um estilo de pensamento teológico. Os opúsculos teológicos de Boécio – dos quais o principal é precisamente o De Trinitate – são as “primícias do método escolástico” [...] (LAUAND, 2008, p. 1-3).

O autor considera este escrito de Boécio um marco, um inaugurar do pensamento que influenciaria toda a Idade Média: a filosofia-cristã ou Escolástica,4 pois o De Trinitate explicita uma aliança entre fé e razão, “um estilo de pensamento teológico”.

A este respeito é importante ressaltarmos a proximidade de pensamento entre esta obra de Boécio e as formulações anselmianas, o que torna evidente a influência do pensamento boeciano sobre Anselmo. O Monológio de Anselmo, por exemplo, foi escrito sem citar uma só vez a Bíblia, o mesmo fato que Lauand observou no De Trinitate de Boécio:

[...] não há nem sequer uma única citação ou referência à Bíblia, e isto num tratado teológico sobre a Santíssima Trindade. Não que a Escolástica se caracterize por ser racional, não-bíblica, mas é preciso frisar aqui a especial importância dada a razão na tarefa de conjugar razão e fé [...] (LAUAND, 2008, p. 3).

Lembramos que não é o fato de não citarem a Bíblia que merece destaque, mas sim o estilo próximo de pensamento e elaboração escrita das obras. Fé e razão constituem o fio condutor do pensamento na Idade Média e destes autores (Boécio e Anselmo). De fato, percebemos que há uma supremacia da fé sobre a razão, mas a razão tem um papel de muita evidência, sendo constantemente convocada a confirmar os elementos da fé.

Certamente, devemos pesquisar até onde for dado ao olhar da razão humana ascender às alturas do conhecimento da divindade [...] (BOÉCIO, 2008, p. 6).

Fica claro, então, que a criatura racional deve colocar todo o seu poder e querer para recordar, compreender e amar o bem supremo, finalidade para a qual ela reconhece ter recebido a sua existência (ANSELMO, Monológio, Cap. LXVIII).

O entendimento do que se crê, ou seja, o crer para compreender e o compreender para crer,5 foi um ideal defendido por Agostinho como meta de todo o cristão: “[...] a

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“[...] a Escolástica foi a maneira que os homens medievais elaboraram para produzir o saber, seja das coisas divinas, seja das coisas humanas e naturais. [...] é mais do que um método [...] não se trata apenas de uma forma de estudo, mas de uma forma de vida (Oliveira, 2005, p. 11).

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respeito das verdades confiadas à fé, esforçamo-nos de ter igualmente um conhecimento pela razão” (1995, p. 31).

Agostinho, teórico e legitimador da doutrina cristã, ressalta o fato dos sujeitos precisarem ser formados, educados, inclusive porque o cristão que despreza o conhecimento6 não tem condições de compreender sua própria fé. Este pensador é a fonte reconhecida de Boécio e Anselmo, inclusive explicitada por eles em suas obras:

No entanto, tu examinarás se as sementes lançadas em mim pelos escritos de S. Agostinho produziram frutos [...] (BOÉCIO, 2008, p. 6). [...] se alguém tiver a impressão de que, neste opúsculo, alguma coisa pareça demasiadamente nova ou que não esteja de acordo com a verdade, rogo-lhe não tachar-me, precipitadamente, de inovador presunçoso ou de assertor da falsidade. Leia primeiro o De Trinitate, do citado Santo Agostinho, e, depois, julgue o meu opúsculo segundo essa obra (ANSELMO, Monológio, Prólogo).

A influência de Agostinho é bastante nítida nas obras de Boécio e de Anselmo, ele foi um formador de opiniões em meio a desagregação social, pois, ao falar de homens reais e não exclusivamente de religião, tornou-se um ícone e uma grande influência por muitos séculos do medievo.

Mesmo que vivenciando momentos distintos, Agostinho, Boécio e Anselmo expressaram que a fé e a razão são conhecimentos não rivais e que precisam estar em harmonia na busca pelo melhor entendimento possível de Deus, do homem e do mundo. Os três pensadores em questão, inclusive, possuem discussões muito próximas em relação à Trindade, a existência de Deus e a racionalidade humana.

Entendemos que cada sociedade procura se constituir e se desenvolver tendo em vista um ideal de homem, ou seja, de acordo com um modelo que acreditem estar compatível com a realidade vivenciada no momento. Novas formas de interpretação da vida resultam, indubitavelmente, em novas formas de educar, em novos caminhos que atinjam, por fim, o propósito último de transformar o homem real no homem ideal.

5 Esta máxima agostiniana remete ao texto bíblico de Isaías 7-9: “Se não crerdes, não ficareis firmes”. 6

Santo Agostinho dedica parte de sua obra A Doutrina Cristã para chamar a atenção de que é preciso conhecer as línguas, a ciência, os números; conhecimento este que possibilitaria o entendimento das Escrituras Sagradas e a prática da fé.

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Sob a legítima influência de Agostinho e Boécio, as formulações anselmianas retratam exatamente um desses momentos de transformação, nos quais novos ideais de homem e de sociedade são gestados. Por um lado, observamos um grande respeito à tradição, aos ensinamentos da doutrina cristã e, por outro, temos um questionar evidente desta tradição, um impulso para o novo.

Este questionar chega até a figura suprema do cristianismo: Deus. E é por isso que Anselmo precisa teorizar a respeito de sua existência. Nas obras Monológio e Proslógio, Anselmo apontou Deus como criador de todas as coisas, um ser supremo que não só existe como, também, dá existência a tudo

Como tudo aquilo que tem sido criado vive, necessariamente, em virtude de outro, e este outro tem vida totalmente própria, segue-se que, da mesma maneira – pois nada existe senão criado pela essência suprema (ANSELMO, Monológio, XIII).

Para Anselmo, de fato há uma razão que precede todas as coisas, por isso, em seu Monológio, discute com afinco que o nada não existe:

(...) O nada ou é alguma coisa ou não é nenhuma. Se é alguma coisa, então tudo o que saiu do nada foi feito de algo. Mas, ao contrário, se não é nenhuma coisa, fica incompreensível como algo possa ter sido feito do nada, que é carência de tudo: do nada, nada se origina, como sói dizer-se comumente. Donde se conclui que tudo aquilo que foi feito recebeu a origem de algo, pois uma coisa é feita de algo ou de nada. Pense-se, então, o nada como sendo alguma coisa ou nenhuma, porém fica evidente que tudo o que foi feito origina-se de algo (ANSELMO, Monológio, cap. VIII).

Oliveira (2005, p. 25-27) escreve que esta discussão de Anselmo expressa o surgimento de uma nova forma de investigar a natureza das coisas, observando todas as possibilidades de se explicar a existência de algo e tendo no uso da razão a condição primeira deste entendimento.

Este é um pensamento que pressupõe uma leitura nova de mundo, que aponta para uma independência maior do homem em relação a Igreja. Estava posto, portanto, na ordem do dia a necessidade eminente de explicações mais elaboradas e que dessem conta de

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explicar as relações sociais evidenciadas no princípio de retomada do comércio e das cidades.

Podemos dizer que as formulações anselmianas proporcionaram a abertura de um caminho pelo qual os homens puderam atentar-se para as suas responsabilidades diante da vida, para o fato de que são eles próprios os agentes de transformação de uma sociedade.

Seria com vistas a esta tarefa de “transformar o mundo” que Deus presenteou o homem dando-lhe o dom da razão, o intelecto, presente este que Anselmo, repetidas vezes, agradece: “Obrigado, meu Deus. Agradeço-te, meu Deus, por ter-me permitido ver, iluminado por ti, com a luz da razão aquilo em que, antes, acreditava pelo dom da fé que me deste” (ANSELMO, Proslógio, IV). Para Anselmo, é por meio deste presente divino, do intelecto que o homem pode crer na existência de Deus e compreender a sua própria existência. Eis o novo que se apresenta no campo da mentalidade e da educação medieval.

O que encontramos em Anselmo é um exemplo para a educação na atualidade: o reconhecimento da pesquisa histórica como um caminho pelo qual podemos compreender melhor nosso presente, é um exercício de leitura e de reflexão que capacita os homens, independente da época em que se vive.

FONTES

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. São Paulo: Paulus, 2002. ______. A Doutrina Cristã. São Paulo: Paulus, 2002.

______. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995.

______. Confissões; De Magistro. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984. ______. O Livre-arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995.

ANSELMO DE BEC, Santo. Monológio. IN: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

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______. Proslógio. IN: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984. ______. Obras completas. Madrid: Bibliotecas de Autores Cristianos, 1952. BOÉCIO. A Consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

EADMERO. In: Obras completas. Madrid: Bibliotecas de Autores Cristianos, 1952. ISAÍAS. In: BÍBLIA SAGRADA: Antigo Testamento. Editora Vida: Flórida, EUA, 1994.

REFERÊNCIAS

BLOCH, M. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América, 1965 (Coleção Saber).

DURKHEIM, E. A Evolução Pedagógica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995, p. 03-77. GRABMANN, M. Filosofia Medieval. Barcelona: Labor, 1949.

GUIZOT, F. História da Civilisação na Europa (vol. I, lições 1 a 7). Lisboa: Livraria Editora, 1907.

LAUAND, J. Cultura e Educação na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ______. Boécio e o De Trinitate: Tradução e estudo introdutório. Disponível em <http://www.hottopos.com/convenit5/lauan.htm> , acesso em 10.07.2008. LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2005.

OLIVEIRA, T. A escolástica no debate acerca da separação dos poderes eclesiástico e laico. Editora Mandruvá: São Paulo, 2005.

______. Escolástica. São Paulo: Mandruvá, 2005. POLÍBIOS. História. Brasília: Editora UnB, 1985.

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