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COMPLEXO DE ENSINO SUPERIOR MERIDIONAL S.A IMED CURSO DE DIREITO TASSIA NUNES PAIZ

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Academic year: 2021

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TASSIA NUNES PAIZ

QUEM REGISTRA É DONO? A VALIDADE JURÍDICA DO TÍTULO DE PROPRIEDADE EM ÁREAS DE COLONIZAÇÃO DECLARADAS COMO TERRA

DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL INDÍGENA

Passo Fundo 2017

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TASSIA NUNES PAIZ

QUEM REGISTRA É DONO? A VALIDADE JURÍDICA DO TÍTULO DE PROPRIEDADE EM ÁREAS DE COLONIZAÇÃO DECLARADAS COMO TERRA

DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL INDÍGENA

Monografia apresentada ao Curso de Direito do Complexo de Ensino Superior Meridional - IMED, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Henrique Aniceto Kujawa

Passo Fundo 2017

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TASSIA NUNES PAIZ

QUEM REGISTRA É DONO? A VALIDADE JURÍDICA DO TÍTULO DE PROPRIEDADE EM ÁREAS DE COLONIZAÇÃO DECLARADAS COMO TERRA

DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL INDÍGENA

Monografia apresentada ao curso de Direito, da Faculdade Meridional – IMED, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob a orientação do Professor Prof. Dr. Henrique Aniceto Kujawa.

Aprovado em 04 de dezembro de 2017.

BANCA EXAMINADORA:

_______________________________________________________ Prof. Dr. Henrique Kujawa - Orientador

_______________________________________________________ Profa. Dra. Daniela Gomes

_______________________________________________________ Prof. Guilherme Pavan Machado

Passo Fundo 2017

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Ao meu pai Mauro, minha mãe Sandra e meu irmão Lucas, pelo carinho e apoio incondicionais.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus pelo dom da vida, pela fé e pela coragem que me concede, me fazendo lutar e perseverar a cada dia.

Ao meu pai, minha mãe e meu irmão, pois sem vocês eu nada seria. Muito obrigada pelo amor e dedicação e por tudo o que vocês representam em minha vida.

Ao Professor Dr. Henrique Aniceto Kujawa um agradecimento mais do que especial por tudo o que fez por mim ao longo dessa jornada, sendo mais do que um orientador, mas sim um mentor e amigo, indicando caminhos e fazendo com que eu me desafiasse a cada nova situação. Agradeço imensamente as ideias e conhecimentos compartilhados.

Não poderia deixar de agradecer o Sr. Moacir Paulo Broch, oficial do Cartório de Registro de Imóveis de Sananduva, pela presteza e compreensão durante o desenvolvimento deste estudo.

Igualmente, um agradecimento especial ao Sr. Sidimar Lavandoski pela disponibilidade em compartilhar seu conhecimento e pelas informações prestadas acerca do tema desta pesquisa.

Agradeço também à Sra. Cássia Smaniotto Dal Molin, oficial do Cartório de Registro de Imóveis de Cacique Doble, pela simpatia e empenho em me auxiliar na coleta de informações e documentos para o estudo.

Aos professores do Curso de Direito da IMED, por todo o conhecimento e experiências compartilhadas que me auxiliaram ao longo de meu processo de formação acadêmica.

Aos amigos e colegas, pela cumplicidade, companheirismo e amizade, agradeço por vocês fazerem parte da minha vida, enriquecendo meu dia-a-dia e me fazendo feliz.

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“O sonho começa, a maior parte das vezes, com um professor que acredita em você, que o puxa, empurra para o próximo estágio, às vezes até o aguilhoando com um bastão profundo chamado verdade.”

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RESUMO

Este estudo busca fazer uma análise acerca da validade do ato jurídico da concessão de terras aos agricultores no município de Sananduva, Estado do Rio Grande do Sul, frente à alegação de ocupação tradicional indígena kaingang e a criação da TI Passo Grande do Forquilha. Com base no método de abordagem dialético, a partir de pesquisa bibliográfica e documental, faz-se uma incursão teórica, história e jurídica acerca das características do processo de demarcatório de terras indígenas no Estado, analisando os aspectos da colonização pelos imigrantes e os atos envolvendo a concessão e escrituração de terras. A base legal a ser discutida ao longo do estudo está estabelecida no art. 231, § 1º da Constituição Federal, que trata da ocupação tradicional como princípio do direito indígena, bem como o direito à propriedade disposto no artigo 5º, XXII da Constituição e artigo 1.128 do Código Civil. Além disso, faz-se uma avaliação acerca da Lei de Terras – Lei nº 801, de 18 de outubro de 1850 e leis e decretos estaduais (Lei nº 28, de 5 de outubro de 1899, Decreto nº 313, de 4 de julho de 1900 e Decreto nº 3004, de 10 de agosto de 1922). A falta de critérios para estabelecer a questão da ocupação tradicional, em regiões de colonização, de que trata a Constituição é o principal elemento conflitante e que tem ampliando interpretações diferenciadas na doutrina e jurisprudência. Assim, no caso dos agricultores de Sananduva, a partir das discussões levantadas, aponta-se para a validação do ato jurídico referentes aos títulos de propriedade, sendo os mesmos legítimos atos de domínio e posse, não sendo possível sua nulidade.

Palavras-chave: Direito de Propriedade. Direitos Originários dos Índios. Colonização. Ato

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias AGU – Advocacia Geral da União

Art. – Artigo

CF – Constituição Federal

CGU – Controladoria Geral da União FUNAI – Fundação Nacional do Índio GAB – Gabinete

Nº – Número PET – Petição PRES – Presidência RS – Rio Grande Sul

SPI – Serviço de Proteção ao Índio

SPILTN – Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais STF – Supremo Tribunal Federal

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LISTA DE FIGURAS E QUADROS

Figura 1 – A) Testamento que comprova a compra dos lotes; B) Autos de medição que

resultou na divisão dos lotes. ... 28

Figura 2 – Localização da área de Passo Grande do Forquilha nos municípios de Sananduva e Cacique Doble ... 34

Figura 3 – Mapas das seções de colonização pública – TI Passo Grande do Forquilha ... 35

Figura 4 – Secção Tingó / colonização pública – TI Passo Grande do Forquilha ... 49

Figura 5 – Mapa Colônia Forquilha – Passo Grande do Forquilha... 50

Quadro 1 – Síntese dos principais argumentos de índios e agricultores ... 38

Quadro 2 – Cadeia dominial pública ... 48

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

1 SOBRE O DIREITO INDÍGENA ... 13

1.1 Evolução da matéria no direito brasileiro ... 13

1.2 O Marco Constitucional de 1988 e as interpretações acerca da ocupação tradicional ... 17

2 A POLÍTICA TERRITORIAL INDÍGENA E O PROCESSO DE IMIGRAÇÃO E COLONIZAÇÃO NA REGIÃO NORTE DO RIO GRANDE DO SUL ... 22

2.1 Elementos que marcaram o processo histórico da política territorial indígena no Estado . 22 2.2 A imigração na região Norte do RS, especificamente no município de Sananduva/RS .... 26

3 TERRA INDÍGENA PASSO GRANDE DO FORQUILHA: UMA ANÁLISE DO CONFLITO ... 31

3.1 O processo de restituição das terras indígenas na década de 1990 ... 31

3.2 O conflito agrário envolvendo indígenas e agricultores ... 33

4 DISCUSSÕES ACERCA DO DIREITO DE PROPRIEDADE DA TERRA ... 42

4.1 Sobre o direito de propriedade... 42

4.2 A ocupação tradicional e a propriedade privada ... 44

4.3 Validação ou nulidade dos títulos de terra dos agricultores ... 46

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 56

REFERÊNCIAS ... 59

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INTRODUÇÃO

O objeto de análise do presente estudo é a identificação da validade jurídica do título das propriedades rurais, considerando a demarcação de terras indígenas e os processos administrativos relativos à ocupação tradicional desenvolvidos no Estado do Rio Grande do Sul. A discussão principal centra-se no debate acerca da validade jurídica das ações onde os indígenas reivindicam a demarcação, alegando ocupação tradicional, sendo que foram concedidas aos agricultores mediante escrituração pública final do século XIX e início do século XX. O contexto de pesquisa é a área conhecida como Terra Indígena (TI) do Passo Grande do Forquilha, localizada no município de Sananduva e Cacique Doble, Estado do Rio Grande do Sul, região típica de colonização ocorrida no início do século XX.

Cumpre salientar que a propriedade faz parte dos direitos reais, sendo um dos mais importantes direitos subjetivos materiais. Conforme o art. 5º, inciso XXII da Constituição de 1988, é garantido o direito de propriedade, consistindo num direito que se instrumentaliza pelo domínio e possibilita ao seu titular atributos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto (GOMES, 2008). Nesta senda, o título de propriedade é o instrumento legal que confere o domínio do titular sobre a propriedade.

A TI Passo Grande do Forquilha abrange os municípios de Sananduva e Cacique Doble, no norte do Rio Grande do Sul. No caso específico discutido neste estudo, sobre o impasse entre índios e agricultores no município de Sananduva/RS, com relação à ocupação tradicional indígena e a criação dessa TI, cabe destacar que há uma discussão acerca da validade dos títulos de domínio da terra, uma vez que ocorre uma luta por direitos a partir de diferentes posicionamentos e interpretações do marco normativo da política indigenista e do processo de colonização desenvolvido pelo Estado do Rio Grande do Sul.

O fato dos agricultores possuírem o título da terra gera efeito de direito, pois o registro do domínio torna público o título a que ele se refere e, presumivelmente, autêntico, não quanto à sua essência, mas seguro e eficaz quanto à sua forma e exterioridade (PORTO, 2016). Contudo, a interpretação do direito indígena e do conceito de ocupação tradicional tem suscitado uma série de ações acerca da nulidade desses títulos, buscando avaliar a validade ou não do ato jurídico.

Desse modo, este estudo amplia a discussão sobre a validade e segurança conferida aos títulos de propriedade de terra dos agricultores do Passo do Forquilha, município de Sananduva/RS no que diz respeito à terras reivindicadas pelos povos indígenas e declaradas

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pelo Ministério da Justiça. Justifica-se a pesquisa tendo em vista que o conflito não foi totalmente dirimido na esfera jurídica. Essa discussão é presente uma vez que a tensão social gerada entre indígenas e agricultores em algumas localidades do Estado do Rio Grande do Sul precisa ser analisada de forma relevante, deixando de lado o imediatismo das interpretações. Isso porque existe um processo de polarização e culpabilização ora dos indígenas ora dos agricultores, esquecendo que esta questão é resultado e continuidade de políticas territoriais e atos administrativos desenvolvidos ao longo do processo histórico (KUJAWA, 2014a).

A pretensão é esclarecer como o título de posse e legitimação de posse torna-se válido para determinar a aquisição da propriedade por parte dos agricultores, em contrapartida ao direito indígena, caracterizado como originário. Nesta senda, justifica-se a análise do processo histórico envolvendo as ações da esfera pública (Federal e Estadual) ao longo do período de colonização, buscando, a partir disso, relacionar os preceitos constitucionais relacionados ao direito indígena, ao direito de propriedade e da validade dos atos e títulos jurídicos.

A problemática da pesquisa encontra-se no caráter contraditório das políticas territoriais indígenas que foram construídas ao longo do tempo no Estado do Rio Grande do Sul e de que forma podem interferir na validação ou nulidade dos títulos de posse de terras de agricultores. Toda a trajetória da colonização levantou inúmeros conflitos, principalmente relacionados à questão do direito de propriedade e da validação jurídica das ações de concessão até então firmadas.

Essas considerações corroboram para a formulação da problemática de pesquisa, tendo em vista que apesar do indigenato ser doutrina primária na questão agrária, não pode se confundir apenas com ocupação ou com mera posse (SANTOS, 2014). Ademais, no caso do norte do Rio Grande do Sul, onde se inclui o município de Sananduva e Cacique Doble, a realidade territorial dos agricultores e índios está debruçada em uma série de questões ímpares que envolvem a ordem administrativa e jurídica.

Assim o centro do problema de pesquisa encontra-se na questão da nulidade dos títulos decorrente da demarcação de terras indígenas. A maioria dos títulos de propriedade é centenária, fruto de um processo de imigração pautado em uma política oficial do Estado do Rio Grande do Sul. Desse modo, busca-se avaliar se o reconhecimento de ocupação tradicional indígena resultará na nulidade destes títulos por parte dos agricultores.

Portanto, a discussão em torno do tema centra-se na questão do conflito de legitimidade e legalidade do ato jurídico de validade das escrituras públicas que concederam o título de propriedade aos agricultores, e assim demonstrar que a segurança do ato precisa ser observada e ter grande relevância neste debate. Por isso, tem-se como problema a ser

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respondido: em que medida fica estabelecida a validade do ato jurídico da concessão de terras aos agricultores no município de Sananduva/RS, frente à alegação de ocupação tradicional indígena e a criação da TI Passo Grande do Forquilha?

A partir do método de abordagem dialético, que busca confrontar teorias e verdades em busca de uma conclusão, e de pesquisa bibliográfica e documental, este estudo tem como objetivo principal analisar a validade do ato jurídico da concessão de terras aos agricultores no município de Sananduva/RS, frente à alegação de ocupação tradicional indígena e a criação da TI Passo Grande do Forquilha. Os objetivos específicos versam em identificar as peculiaridades do processo de demarcação de terras indígenas no Rio Grande do Sul; analisar o processo histórico e as bases/fundamentos jurídicos que envolveram os contratos de concessão de terras e a escrituração das mesmas para os agricultores; determinar os elementos que implicam na validação do ato jurídico referentes aos títulos de propriedade de terras por parte dos agricultores; e analisar as repercussões jurídicas, sociais e culturais frente à nulidade dos títulos.

Para atender a esses objetivos o estudo está dividido em quatro capítulos. No primeiro, faz-se uma análise acerca do direito indígena, considerando especialmente a evolução constitucional e o debate sobre as terras indígenas. O segundo capítulo traz os principais aspectos da política territorial indígena no Estado do Rio Grande do Sul, relacionando com os elementos históricos presentes no processo de imigração e colonização. No terceiro capítulo, o foco de discussão é a TI Passo Grande do Forquilha e o conflito acerca da posse das terras que se estabeleceu entre indígenas e agricultores de Sananduva e Cacique Doble a partir da Constituição de 1988. Por fim, no quarto capítulo busca-se apresentar a análise da validade do ato jurídico da concessão de terras aos agricultores, com o objetivo de reiterar os aspectos do direito de propriedade e comprovar a impossibilidade de nulidade dos títulos.

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1 SOBRE O DIREITO INDÍGENA

Neste capítulo busca-se analisar o direito indígena, discutindo o processo de evolução histórica da matéria. A finalidade é compreender de que forma a legislação constitucional foi sendo transformada a partir da necessidade de reavaliar os direitos dos índios, incluindo, especialmente, a questão das terras.

1.1 Evolução da matéria no direito brasileiro

As relações entre os povos indígenas e a população não indígena no Brasil sempre foram marcadas por conflitos. Nesse sentido, a questão indígena parece ter sido relegada a um plano inferior, igualmente a tendência predominante de menosprezo pelos índios, sua história e seus direitos (STEFANINI, 2012).

Desde os primeiros relatos da presença dos portugueses no Brasil, os povos indígenas aparecem sem um Direito interno, estando dispostos ao direito da Corte (SIQUEIRA; MACHADO, 2009). A evolução da legislação indigenista está intimamente relacionada à história do Brasil, sendo que houve uma inclinação em defesa dos interesses dos colonizadores, rompida somente com a promulgação da Constituição vigente (SANTOS FILHO, 2012).

Inicialmente cabe diferenciar o conceito de “direito indígena” e de “direito indigenista”. O direito indígena é considerado como um direito social, sendo referido pela Constituição. Segundo Stefanini (2012, p. 25):

O direito indígena é um autêntico direito transformador no organismo da dinâmica social e que vivifica este tecido axiológico razão pela qual poderia ser concebido como um direito social próprio. [...] é um direito que desborda dos matizes exclusivamente econômicos ou de representação social distributiva em face dos grupos que compõem o todo comunitário para alcançar a própria essência do direito dinâmico a conduzir a uma meta social.

Considera-se o direito indígena como um conjunto de normas e procedimentos internos a uma comunidade indígena, voltado a regulação das relações e modos de vida desses povos. Diferentemente, o direito indigenista faz parte do direito positivo estando presente no contexto social nacional, tendo como objetivo organizar e regular a convivência entre as sociedades indígenas e não indígenas, sendo considerado um direito ocidental criado para orientar as relações de ambos na sociedade (SANTOS FILHO, 2012).

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Na mesma perspectiva Feijó (2014) conceitua o direito indígena como relativo às normas de conduta interna, construídos de forma histórica pelos grupos indígenas. O direito indigenista, por sua vez, corresponde ao ramo do direito positivo que busca regular as relações entre o Estado e os povos índios e demais povos e membros da sociedade.

A compreensão da política indigenista passa pela análise do processo histórico da legislação brasileira. No século XIX o Brasil viveu três regimes políticos: Colônia, Império e República, desde o tráfico de escravos até o início do processo de imigração. Constituiu-se um período de tensões entre oligarquias e centralização do poder, sendo que a política indigenista do período deixou de ser uma questão essencialmente relacionada à mão-de-obra para se tornar uma questão de terras (CUNHA, 1992).

A primeira Constituição do Estado Brasileiro (1824), Imperial, tratava a questão indígena de forma inexpressiva, sendo que não continha nenhuma disposição relativa aos índios, ficando sujeitos à legislação geral (SANTOS FILHO, 2012). Em 1831, ocorreu a promulgação de uma lei que revogava as cartas régias, colocando fim à servidão os índios, sendo este o primeiro ato do Império voltado a favor desses povos que passaram para a tutela do Estado. Em 1845 um decreto regulamentou as missões de catequese e aspectos legais relativos à civilização dos índios. Somente em 1850 iniciou-se a preocupação com as terras indígenas, sendo a Lei nº 601 (Lei das Terras) a responsável pela diretriz de ocupação territorial brasileira, revogando a legislação portuguesa e estabelecendo novos conceitos jurídicos acerca de terras devolutas1, registro de imóveis e reservas indígenas (SOUZA FILHO, 1998).

A Lei das Terras foi considerada a política indigenista mais importante do Brasil Império. Tal instrumento regulamentou o regime de propriedade territorial, passando o território nacional a ser dividido em terras públicas, de domínio do Estado, terras particulares, provenientes de títulos de propriedade legítimos ou posse legalizada e fez-se a reserva de terras devolutas: as pertencentes ao Estado, das extensões necessárias à colonização dos índios (SANTOS FILHO, 2012). Numa mesma perspectiva, Santos Filho (2012, p. 33) fala sobre a primeira Constituição, da seguinte forma:

1 Art. 3º. São terras devolutas: § 1º. As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou

municipal; § 2º. As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta de cumprimento das condições de medições, confirmação e cultura. § 3º. As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta lei. § 4º. As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta lei (Lei nº 601/1850 – Lei das Terras).

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As normas postas durante o Império representaram grande prejuízo aos índios. O silêncio da primeira Constituição brasileira e o rigor da exigência de titulação de posse para reconhecimento da propriedade das terras contida na Lei das Terras (1850) tiveram o efeito de legitimar e incrementar o processo de espoliação das terras dos índios, levado a efeito pelas companhias colonizadoras e pelos próprios colonos (SANTOS FILHO, 2012, p. 33).

Depois da proclamação da República (1889), surgiu a primeira Constituição Republicana, promulgada em 1891. Nela não constou nenhuma menção aos índios. Essa Constituição, em seu art. 64, transferiu as terras devolutas para os Estados federados, sendo que a falta de regulamentação fez que com a interpretação desse dispositivo gerasse confusão acerca do sentido de que as terras indígenas se encontravam sob o domínio dos Estados, o que gerou um espólio abusivo e fraudulento de terras de índios em diversas partes do país (SANTOS FILHO, 2012).

Em 1910, a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), buscou afastar a atuação missionária do clero, responsabilizando o Estado pelo atendimento das necessidades de proteção e integração indígena. Esse instrumento representou uma importante transformação no modo como o Estado tratava a questão indígena (KUJAWA, 2014a). Contudo, grupos conservadores dirigiam críticas ao Serviço e patrocinavam ações junto ao governo com a finalidade de diminuir a influência de sua atuação (KUJAWA, 2015a).

Ainda conforme esse autor, em 1916, o Código Civil colocou a questão indígena sob tutela do Estado, enquanto o Decreto nº 5.484/1928 revogou a tutela orfanológica à qual os índios estavam submetidos. Na década de 1930, com o crescimento do governo de Getúlio Vargas, desenvolveu-se uma nova configuração do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Em 1934 a promulgação da primeira Constituição tratou especificamente do direito a terra pelos indígenas, consagrando o domínio pleno da União sobre as terras ocupadas pelos índios, declarando nulos os títulos de propriedade incidentes sobre as áreas indígenas concedidos pelos estados (art. 129)2. Em 1937 o novo texto constitucional permaneceu quase inalterado3 no trecho relativo à posse das terras indígenas (SANTOS FILHO, 2012).

Com a deflagração do processo de redemocratização do país em 1945, iniciou-se a formação de nova Constituinte, formalizada em 1946. Essa nova lei manteve a previsão de competência da União no art. 5º, passando a dispor no art. 34 sobre os bens da união e, no art.

2 Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados,

sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las (Constituição Federal/1934).

3 Art. 154. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que achem localizados em caráter

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2164 compilou o mesmo dispositivo das duas constituições anteriores, apenas substituindo o trecho “vedado aliená-las” por “com condição de não a transferirem” (GOMES, 2014, p. 46).

No ano de 1967 a nova Constituição assegurou aos índios a posse permanente das terras que habitam, e reconhecer seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades neles existentes (art. 186)5. Além disso, na vigência desta Constituição, foi

editada a Lei 5.371/1967 que em substituição ao Serviço de Proteção aos índios - SPI, criou a Fundação Nacional do Índio - FUNAI (SANTOS FILHO, 2012). Assim, as décadas de 1960 e 1970 culminaram com a extinção do SPI, criação da FUNAI (1967) e do Estatuto do Índio (1973), sendo que neste período intensificou-se a produção acadêmica sobre a questão indígena, orientando para a necessidade de reconhecer a pluralidade cultural e o direito indígena, incluído suas características sociais, políticas econômicas e culturais.

Stefanini (2012, p. 132-133) destaca os três estágios distintos sobre a questão de terras indígenas no Brasil:

1º) Da incorporação da América aos domínios de Portugal até a Constituição de 1824 quando as terras concedidas aos índios eram de domínio pleno destas comunidades sem restrição;

2º) Da Constituição de 1824 até a Constituição de 1934 quando se reconhecia a posse dos índios (direito particular) sobre suas terras (observada a capacidade), sem o respectivo ius abutendi;

3º) Daquela Constituição até a de 1967 quando as terras foram formalmente revertidas à União remanescendo a eles apenas o usufruto restrito - restrição entendida segundo as normas de ordem pública que sobre este direito incide.

Em 1969 a Emenda Constitucional nº 01 manteve as terras dos índios incorporadas ao patrimônio da União (art. 4º, inciso IV), e a competência do mesmo ente público para legislar sobre nacionalidade, cidadania e naturalização, incorporando os índios à comunidade nacional (art. 8º, inc. XVIII, alínea “o”). Especialmente com relação às terras o art. 198 reconhecia o direito de posse dos índios6. Já em 1973 a edição da Lei nº 6.001 criou o Estatuto do Índio, com a finalidade de disciplinar as relações do Estado e da sociedade brasileira com os índios (SANTOS FILHO, 2012).

4 Art. 216. Será respeitada aos Silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a

condição de não a transferirem (Constituição Federal/1946).

5 Art. 186. É assegurada aos Silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao

usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes (Constituição Federal/1967).

6 Art. 198. – as terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal determina a eles

cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes. Parágrafo 1° - ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenha por objetivo o domínio, a posse ou ocupação de terras habitadas pelos silvícolas (Constituição Federal/1969).

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O que se destaca nos textos constitucionais de 1937, 1946 e 1969 a respeito da posse das terras pelos índios é a forma como foi delineada a questão da permanência sobre a terra. No art. 154 da Carta Magna de 1937 observa-se a expressão “caráter permanente”. Já no art. 216 da Constituição de 1946 a expressão usada é “achem permanentemente”. E, no Texto de 1969, em seu art. 198, observa-se o termo “posse permanente”.

Somente com a promulgação da Constituição de 1988 iniciou-se um novo processo histórico acerca das relações entre o Estado e os povos indígenas, reconhecendo o direito dessa população, sua importância e reconhecimento, bem como ampliando a atenção sobre sua forma de organização social, seus costumes e tradições, e sobre as terras por ele ocupadas (SOUZA FILHO, 1998). Na próxima seção faz-se uma análise mais aprofundada a respeito dessa matéria.

1.2 O Marco Constitucional de 1988 e as interpretações acerca da ocupação tradicional

A Constituição Federal de 1988 tornou-se o marco legal mais importante sobre a questão do direito dos povos indígenas, tendo em vista que, ao constitucionalizar entre outros artigos um capítulo exclusivo ao direito desses povos, preocupou-se em determinar os aspectos referentes à preservação cultural e normatização de questões referentes à exploração das terras e reconhecimento de direitos garantidos (MATOS, 2015).

Ao estabelecer uma nova forma de pensar a relação entre os índios e o território brasileiro, a Constituição de 1988, reconheceu a coletividade cultural distinta e o fato desses povos terem sido os primeiros a habitarem o solo brasileiro, garantindo a eles direitos especiais (ARAÚJO et al., 2006).

A Constituição de 1988, no art. 2317, conferiu expressamente aos índios a proteção a sua cultura e direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas. Com base nos

7 Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

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fundamentos dispostos na Constituição de 1988, são reconhecidos aos índios os seguintes direitos:

- Direito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.

- Direitos originários e imprescritíveis sobre as terras que tradicionalmente ocupam, consideradas inalienáveis e indisponíveis.

- Obrigação da União de demarcar as Terras Indígenas, proteger e fazer respeitar todos os bens nelas existentes.

- Direito à posse permanente sobre essas terras.

- Proibição de remoção dos povos indígenas de suas terras, salvo em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população ou no interesse da soberania do país, após deliberação do Congresso Nacional, garantido o direito de retorno tão logo cesse o risco.

- Usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. - Uso de suas línguas maternas e dos processos próprios de aprendizagem; e proteção e valorização das manifestações culturais indígenas, que passam a integrar o patrimônio cultural brasileiro (ARAÚJO et al., 2006, p. 44-45).

Venturi e Bokany (2013) entendem que essas determinações constitucionais asseguram a esses povos o direito de serem reconhecidos não apenas como culturas diferenciadas, mas como povos originários e especiais no contexto do Estado nacional; constituindo-se como sujeitos políticos coletivos com direitos. Sobre isso cabe considerar:

A Constituição de 1988 trouxe uma série de inovações no tratamento da questão indígena. Foi a primeira a trazer um capítulo específico à proteção dos direitos indígenas, além de reconhecer a diferença deste povo. Os povos indígenas não podiam ser vistos, antes da Constituição, como titulares de direitos, como indivíduos, mas como povos que só teriam direitos individuais uma vez integrados ao sistema jurídico, ou seja, para que pudessem reivindicar seus direitos individuais, teriam que deixar de ser índios. Só agora, após a Constituição de 1988, os direitos indígenas saíram da grande lacuna e vazio jurídico para se tornarem direitos visíveis, coletivos (SIQUEIRA; MACHADO, 2009, p. 27).

Nessa perspectiva, a Constituição de 1988 é vista como “o novo parâmetro maior que deve pautar a futura legislação indigenista brasileira” (SOUZA FILHO, 1998, p. 107). Assim, se as Constituições anteriores mantinham como ponto fundamental a preocupação com as terras, relegando a um segundo plano a pessoa do índio, o marco constitucional de 1988 abrangeu todas as questões, evoluindo ao reconhecer os direitos dos povos indígenas e sua necessária proteção (GOMES, 2014).

§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

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A questão da terra recebeu grande atenção por parte da Carta Magna, sendo que entre os direitos fundamentais mencionados, destaca-se o direito fundamental às terras indígenas, disposto no art. 231, caput, pois considera-se a terra como um fator essencial para a sobrevivência da sociedade indígena, sendo o espaço físico fundamental para satisfazer suas necessidades (LOPES; MATTOS, 2006).

A discussão acerca da ocupação tradicional8 é um dos principais aspectos de divergência acerca da questão das terras indígenas e aquelas utilizadas para a colonização. Araújo et al. (2006) destacam que esse debate é presente nos casos em que a demarcação de terras para os índios esbarra em questões como dificuldade de caracterização da ocupação tradicional pelo fato de grande período de tempo ter se passado e também pelos conflitos acerca de questões de posse.

Contudo, a partir do preceito de ocupação tradicional, a demarcação de terra indígena pode ser vista como ato secundário, sendo aquela suficiente para que as terras sejam protegidas pela União, conforme orienta a CF em seu artigo 231 (MATOS, 2015). A consolidação do direito originário, ou seja, do direito dos índios sobre as terras, está expresso na Constituição de 1988. Chaves (2013) destaca que esse é um direito primário, pois é reconhecido como anterior ao Estado brasileiro e sua legitimidade não provém de um ato de reconhecimento formal da parte daquele.

A garantia constitucional da ocupação tradicional está relacionada às terras que os indígenas ocupassem apenas no momento em que ficou estabelecido pela Constituição de 1988 tal direito e não àquelas que tivessem ocupado no passado. Sobre a questão da tradicionalidade pode-se avaliar o aspecto histórico, que pode gerar uma análise que leva a conceber todo o território brasileiro pertencente aos índios, bem como numa perspectiva de continuidade, que pressupõe a efetiva ocupação dos indígenas ao longo do tempo, descaracterizando a tradicionalidade se ocorrer interrupção de uso da terra por determinado período (STEFANINI, 2012).

Chaves (2013) destaca que há uma confusão conceitual do que seja terras tradicionalmente ocupadas por índios. Contudo, a tradicionalidade prevista na Constituição Federal de 1988 não afastou o pressuposto da ocupação permanente, apenas deu enfoque para o modus vivendi indígena, que é uma modalidade de vida enraizada pela tradição, reforçada

8 Não confundir as terras de tradicional ocupação indígena, previstas na Constituição Federal, com as Reservas

Indígenas previstas no Estatuto do Índio. Com efeito, as terras de ocupação tradicional são aquelas de ocupação histórica pelo grupo tribal, onde a comunidade estabeleceu, através de gerações, seus laços culturais e tradicionais, são as terras cuja posse lhes pertence em caráter originário, fruto do indigenato. Já as Reservas indígenas são qualquer porção do Território Nacional que a União destina aos indígenas, para que lá vivam e reproduzam seus costumes sem, contudo, possuir uma ocupação tradicional e imemorial (FEIJÓ, 2014, p. 12).

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pela forma de trabalhar e viver na área. Assim, a tradicionalidade da posse indígena exige continuidade viva, não apenas histórica.

Esse argumento é considerado o principal elemento presente no art. 231 por Stefanini (2012). A expressão “sobre as terras que tradicionalmente ocupam” destaca a relação espaço – tempo, ou seja, a norma constitucional apenas ampara e garante aos índios as terras por eles ocupadas no momento da incidência da lei maior, e não aquelas que ocuparam em tempo passado. Com base nessa corrente, destaca-se:

Interpretar o substantivo terra como realidade de entes ideais (ancestrais), por uma paralela, e a locução tradicionalmente ocupam como pertencente ao passado com a sombra voltada para o presente, por outra, é operar raciocínio anticientífico, rebelde ao sistema e a ratio de direito que sempre vigeu e com morada na insegurança jurídica (STEFANINI, 2012, p. 135).

Ao se estabelecer que os direitos dos índios são originários, destaca-se a possibilidade de nulidade e a extinção dos atos supervenientes que tenha por objeto a ocupação, o domínio ou a posse de terra indígena. Com base numa interpretação simplista acerca dos direitos originários, em alguns casos, acaba-se por violar outro direito de índole constitucional, que é o direito de propriedade (CHAVES, 2013). Desse modo, torna-se fundamental a análise da ocupação tradicional, ou seja, deve haver a forma peculiar e tradicional da comunidade indígena ocupar a terra para defini-la como de ocupação tradicional indígena e, assim, garantir-se o seu direito de posse sobre ela, nos termos da Constituição (FREITAS JUNIOR, 2010). “A tradicionalidade não pode transmutar-se em confisco de terras particulares, especialmente quando inexistente o pressuposto da ocupação permanente” (BORGES, 1991 apud CHAVES, 2013, p. 59).

É nesse sentido que grande parte dos conflitos entre agricultores e indígenas, especialmente no norte do Rio Grande do Sul onde se situa a TI Passo Grande do Forquilha no município de Sananduva e Cacique Doble, vem sendo travados ao longo de várias décadas. Conforme Kujawa (2015b), a reivindicação que ocorre nessas terras, onde os indígenas destacam como sendo de ocupação tradicional, não consideradas devolutas e foram destinadas pelo Estado para o processo de colonização que ocorreu a mais de cem anos. Essas propriedades são ocupadas por descendentes dos primeiros imigrantes, nas quais desenvolve-se a agricultura familiar. Os interesdesenvolve-ses são conflitantes, tendo em vista que os indígenas dizem que o território era ocupado pelos ancestrais, exaltando o sentido da imemoralidade. Já os agricultores apresentam uma ocupação e posse centenária das propriedades tendo em vista

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que a política de colonização foi o principal estímulo que receberam para a aquisição legal das terras.

Portanto, a interpretação acerca da ocupação tradicional referida na Constituição está relacionada à questão de uso e permanência na terra a partir do marco temporal (1988), excluindo àquelas ocupadas no passado. Nessa perspectiva, destaca-se que não há como sustentar juridicamente o direito à terra com base na tradicionalidade histórica. Assim, no próximo capítulo dá-se ênfase a essa questão, buscando levantar os argumentos acerca das terras devolutas e a relação com o processo de colonização no município de Sananduva buscando analisar o direito dos agricultores e encaminhar a discussão sobre a validade dos títulos de propriedade.

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2 A POLÍTICA TERRITORIAL INDÍGENA E O PROCESSO DE IMIGRAÇÃO E COLONIZAÇÃO NA REGIÃO NORTE DO RIO GRANDE DO SUL

Neste capítulo faz-se uma retomada histórica acerca da política territorial indígena no Estado do Rio Grande do Sul, considerando também os aspectos relativos à colonização da região de Sananduva, com o objetivo de compreender o processo de posse das terras por parte dos primeiros colonizadores.

2.1 Elementos que marcaram o processo histórico da política territorial indígena no Estado

No Rio Grande do Sul, a política territorial indígena e o processo de colonização trazem marcas históricas que estão na origem dos conflitos que atualmente ocorrem entre agricultores e índios. Conforme Kujawa (2014a) na segunda metade do século XIX tem-se a intensificação da ocupação do solo na região Sul Brasil e também se estabelece um novo marco legal para a legalização da posse e propriedade da terra, a Lei de Terras nº 601/1850. Além disso, “a ocupação oficial do espaço caracterizou-se, em seu início, pelo aspecto militar e principalmente pela fundação de grandes propriedades” (TEDESCO; CARON, 2014, p. 60).

No Estado, o debate acerca da política indígena foi fortemente influenciado por ideais positivistas. Além disso, manteve características próprias no seu processo de colonização, cuja finalidade Província era a promoção da expansão da população buscando o desenvolvimento. Também havia o interesse de ampliar a povoação do território, devido, principalmente, as constantes lutas que ocorriam entre o império brasileiro e os países platinos, assegurando-se assim a posse do mesmo (RODRIGUES, 2008).

O incentivo às migrações era parte da proposta positivista de governo para implantação de um projeto modernizador, que inserisse o Rio Grande do Sul num modelo de produção capitalista na agricultura, baseado na pequena propriedade, em particular, colonizada por imigrantes e/ou descendentes europeus, ambos símbolos da modernização agrícola e também de um novo etos camponês que deveria ser impresso e difundido no meio rural/agrícola da região (TEDESCO; CARON, 2013, p. 147).

No início da República e nas primeiras décadas do século XX, o Rio Grande do Sul assumiu o controle sobre terras devolutas, utilizando-as para fins de colonização, abrindo “a possibilidade de arrecadação de recursos advindos desses territórios devolutos quer fosse pela venda – feita em hasta pública – quer fosse pela cobranças de impostos devidos ao Estado”

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(TEDESCO; CARON, 2013, p. 150). Contudo, simultaneamente manteve preocupação com os nacionaes, desenvolvendo projetos de colonização mista e mecanismos de incorporação nas vendas dos lotes medidos e com posso efetiva, e com a população indígena, demarcando entre 1910 a 1918 onze áreas indígenas, a maioria na região Norte do Estado, onde havia a maior concentração de caingangues (KUJAWA, 2015a).

A criação da SPI em 1910 trouxe influências na política indigenista gaúcha, sendo que na segunda metade do século XIX amplia-se a ocupação do solo no oeste do Paraná, de Santa Catarina e norte do Rio Grande do Sul, intensificando também a política demarcatória de terras indígenas (KUJAWA, 2015a).

Conforme Silva (2014), o propósito principal do governo gaúcho ao demarcar os onze toldos indígenas não estava associado ao ideário da preservação da cultura indígena ou sobrevivência dessas comunidades. Na verdade, a definição dos espaços estava relacionada com a necessidade de minimizar conflitos entre os índios e os colonizadores legais oriundos das Colônias Velhas (São Leopoldo, com predomínio alemão, e Caxias do Sul, com predomínio italiano). Desse modo, o governo acredita que o aldeamento dos índios e sua pacificação ampliariam as possibilidades para o processo de colonização.

Os Toldos demarcados foram: Faxinal/Cacique Doble – 1910; Carreteiro/Água Santa - 1911; Caseiros/Ibiraiaras - 1911; Inhacorá/São Valério do Sul – 1911; Ligeiro/Charrua – 1911; Nonoai/Nonoai – 1911; Serrinha/Ronda Alta/Três Palmeiras/Constantina – 1911, Ventarra/Erebango – 1911; Guarita/Tenente Portela – 1917; Votouro Kaingang/Faxinalzinho – 1918 e Votouro Guarani/São Valentim – 1918 (KUJAWA, 2015a).

Os elementos contraditórios da política territorial indígena desenvolvida pelo governo gaúcho estão no fato de que:

[...] ao demarcar os toldos Indígenas, positiva-se o direito sobre eles dentro de uma lógica preservacionista e assimilacionista, ao mesmo tempo em que se restringe o direito praticado pelos indígenas de circularem, dentro de sua lógica social e cultural, nas vastas áreas que passaram a ser destinadas para colonização, construindo-se, a partir do marco jurídico da época, o direito à propriedade privada aos colonos. Além disso, a definição do território não garantiu que seu usufruto fosse revertido em benefício das comunidades indígenas, prosperando, em grande medida, a compreensão de que a forma de ocupação do solo praticada pelos indígenas mantinha-o devoluto e improdutivo e, portanto, poderia ser transformado em local de arrendamento, de extração de madeira, de intrusão e de assentamento de agricultores (KUJAWA, 2015, “a”, p. 75).

Entre a década de 1940 e 1960 o Estado realizou diversos atos administrativos e seus efeitos provocaram redução das terras indígenas historicamente demarcadas no Rio Grande do

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Sul9. Kujawa (2015a, p. 33) ressalta que a política territorial indigenista gaúcha manteve “um caráter oscilante e contraditório”, considerando que os problemas relacionados às terras indígenas afetavam a forma como esses povos se desenvolveram. A trajetória da política territorial indígena do Estado do Rio Grande do Sul está alicerçada no seguinte pressuposto:

[...] as ações de expropriação das terras indígenas através do loteamento e venda formal para os agricultores foi a continuidade e a culminância de políticas territoriais contraditórias que tinham como perspectiva o processo de integração dos indígenas na sociedade nacional civilizada. Estas políticas tinham como pressuposto a lógica desenvolvimentista da época: os índios eram vistos como futuros agricultores, por isso a incompreensão da necessidade de “tanta terra para pouco índio” que resultou num recadastramento indígena e na redução das terras historicamente demarcadas (KUJAWA, 2014a, p. 28).

Assim, apesar da legislação avançar no processo de proteção dos direitos dos índios sobre as terras que ocupavam, o Estado trabalhava contra (SOUZA FILHO, 1998). Contudo, na década de 1970 foi iniciado um movimento da igreja, de intelectuais e de outros setores da sociedade contrapondo-se à perspectiva proposta aos índios pelo Estado, contribuindo para sua organização e a exigência de uma nova política indigenista (KUJAWA, 2015a).

Na década de 1980, todo esse movimento em prol dos direitos indígenas também fez parte das ações que fortaleceram a contraposição ao autoritarismo da ditadura militar e ampliaram o debate acerca da democratização do Estado. Sendo que a promulgação da Constituição de 1988 trouxe essa nova perspectiva acerca dos direitos indígenas (art. 231 e 232), incluindo a questão territorial.

A restituição das terras indígenas foi um movimento iniciado na década de 1990, tendo em vista a garantia constitucional do direito à terra que tradicionalmente ocupavam, fazendo com que os índios lutassem para garantir a efetiva posse das terras demarcadas recuperando os limites daquelas que tinham sido reduzidas em meados do século XX e, simultaneamente demarcar novas Terras Indígenas (KUJAWA, 2015a).

9 1) Despacho do interventor federal no Rio Grande do Sul, Cordeiro de Farias (28/03/1941): Redução das terras

indígenas Guarita, Nonoai e Serrinha e criação de reservas florestais.

2) Decreto nº 658 do Governador Walter Jobim (10/03/1949): Declara um conjunto de reservas florestais, incluindo terras indígenas de Serrinha, Nonoai e Cacique Doble.

3) Lei nº 3381 da Assembleia Legislativa do RS (06/01/1958): Autoriza o governo estadual a lotear e vender a área florestal de 6.623 hectares orienta da TI de Serrinha.

4) Decreto do Governador nº 13.795 (10/07/1962): Restabelece os limites da reserva florestal de Nonoai, oriunda da TI de Nonoai, criando a secção Planalto para colonização.

5) Despacho do Governador (16/02/1962): Restabelece os limites das terras indígenas administradas pelo estado destinando parcelas para o processo de loteamento e venda para os agricultores.

6) Processo 15.703/61 da Secretaria da Agricultura (1961): Redução da TI de Inhacorá. (KUJAWA, 2014a, p. 25).

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O custo social, cultural e econômico da restituição da terra aos indígenas é expressivo. Os atos equivocados do Estado no momento em que reduziu as terras indígenas e vendeu aos agricultores, sem dúvida, feriram o direito dos índios com relação à questão territorial. Ademais, essa questão tem gerado um grande ônus ao Estado, bem como suscitando discussões e demandas políticas, jurídicas e legais envolvendo os agricultores e o fato de terem que abandonar suas terras (KUJAWA, 2015a). Por isso, “não é possível analisar os conflitos agrários no estado sem ter presentes os processos que configurar as múltiplas formas de acesso, inserção, aldeamento e apropriação da terra” (TEDESCO; KUJAWA, 2014, p. 75).

Desse modo, com base nas orientações de Kujawa (2015a), pode-se sintetizar quatro momentos podem ser considerados fundamentais no processo de construção da colonização no Estado do Rio Grande do Sul. Primeiramente desenvolveu-se um processo de aldeamento na segunda metade do século XIX e também a demarcação dos Toldos Indígenas em 1910-1918, delimitando o território dos índios com vistas ao projeto de colonização realizado, principalmente, pelos imigrantes europeus. Depois, ao longo da década de 1960, o governo gaúcho, com conivência da União, por ato administrativo, reduziu ou até extinguiu áreas demarcadas como indígenas, promovendo a venda e o assentamento de agricultores, gerando uma reterritorialização dos colonos e também dos índios. Contudo, a partir da Constituição de 1988, o Estado volta a reconhecer o direito indígena sobre terras historicamente demarcadas no período de 1910-1918, o que provocou a declaração de nulidade dos títulos de propriedade que os agricultores obtiveram do Estado nas décadas de 1950-60 e o consequente desalojamento dos mesmos das terras adquiridas e ocupadas há três ou quatro décadas. Nos primeiros anos do século XXI, surge um novo movimento organizado pelos próprios índios, com a finalidade de reivindicar terras que nunca foram demarcadas como indígenas, mas são por eles consideradas de ocupação tradicional, mesmo que estão ocupadas por agricultores e escrituradas desde o final do XIX.

A reivindicação do Passo Grande do Forquilha não é a mesma da década de 1990, na qual estava se restabelecendo os limites das TIs historicamente demarcadas. Ao contrário, a proposta que se mantém é de transformar as áreas agrícolas dos pequenos agricultores que desenvolvem a agricultura familiar em áreas indígenas (TEDESCO; KUJAWA, 2016). Esse movimento organizado, especialmente pelos Kaingangs, denominado “retomada”, busca promover um processo de recuperação de territórios que eles dizem ser de ocupação tradicional, mas que desde o início do século XX faziam parte do rol de áreas destinadas à colonização pelo Estado do Rio Grande do Sul (KUJAWA, 2015b).

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2.2 A imigração na região Norte do RS, especificamente no município de Sananduva/RS

O processo de colonização no Rio Grande do Sul somente foi iniciada no século XIX, após o fim das diversas guerras que aconteceram em território gaúcho, bem como a intervenção da Coroa portuguesa acerca dos grandes latifúndios que compunham a Província Riograndense, fazendo com que grandes extensões de terra ficassem despovoadas. Desse modo, foram iniciadas as primeiras tentativas de instalar pequenos agricultores, fazendo com que terras fossem distribuídas para imigrantes (TEDESCO; CARON, 2014).

Os reflexos atuais acerca do processo de ocupação de terras podem estar relacionado ao fato de no período de 1864 a 1889, ainda no Império, uma conflituosa situação administrativa ocorria no Estado. Além disso, a promulgação da Lei de Terras em 1850, e a abolição da escravatura, foram alguns dos fatores que fizeram da imigração uma alternativa importante para adequar o território gaúcho às diretrizes econômicas do país, bem como formar força de trabalho em substituição aos escravos (TEDESCO; CARON, 2014).

Ainda sobre os reflexos da Lei de Terras, Iotti (2003, p. 7) destaca:

A Lei de Terras, regulamentada em 1854 através do Decreto n. 1318 de 30 de janeiro, definiu a significação de terras devolutas, aboliu a gratuidade de lotes aos colonos, estabelecendo como único título de posse a compra. Criou a Repartição Geral das Terras Públicas que teria a seu cargo a delimitação, divisão e proteção das terras devolutas e a promoção da colonização nacional e estrangeira. Conferiu aos colonos estrangeiros, proprietários de terras, a naturalização de direito, após certo tempo de residência e a dispensa do serviço militar.

Uma adaptação gaúcha da Lei de Terras foi promulgada em 1854 (Lei Estadual nº 304), podendo ser considerada como instrumento inicial do processo de colonização no Estado. Além disso, no período de 1882 até 1889 (Proclamação da República), o governo da Província Riograndense promulgou vários atos que beneficiaram particulares e sociedades de colonização, com a venda de terras devolutas que pertenciam à província, mas com a contrapartida de que fossem colonizadas (IOTTI, 2003). Sobre as colônias, cabe considerar:

No decorrer do século XIX, a iniciativa privada, subsidiada pelo governo imperial, lançou os primeiros ensaios de colonização com imigrantes europeus, em pequena escala, ocupando os espaços deixados pela colonização pública, localizando-se no Rio Grande do Sul, nas cercanias da capital e das colônias públicas. Já no final do século e primeiras décadas do século XX, na região Norte, Noroeste e Missões, formou-se uma nova zona de colonização, onde predominavam colônias particulares, instaladas por sociedades de colonização, empresas, indivíduos, estrangeiros ou nacionais [...] Essa região transformou-se em escoadouro do excedente populacional das colônias velhas [...] (NEUMANN, 2013, p. 171).

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Na região Norte do Estado do Rio Grande do Sul, as primeiras propostas de demarcação para povoamento ocorreram em 1890, sob amparo da legislação da época que autorizava desapropriações e transferia aos Estados a responsabilidade pela colonização (art. 64 da Constituição de 1891). Assim, após a Proclamação da República e a partir da Constituição de 1891, os Estados se tornaram gestores das terras públicas e privadas. Desse modo, governo republicano gaúcho passou a tratar o processo de colonização como uma fonte de renda, sendo que a legitimação da posse de terra aos colonos e imigrantes, assim como a sua venda pelo Estado e o imposto territorial (Lei n. 42/1902) tinham como finalidade garantir fundos para o orçamento estadual. Além disso, no período de 1890 a 1914, quando se encerrou a imigração oficinal no Estado, a cobrança da dívida colonial foi uma das principais ações no âmbito da legislação sobre imigração e colonização (IOTTI, 2003).

Nesse contexto foram identificadas áreas devolutas e que podiam ser ocupadas a partir de diversas alegações, principalmente relacionadas à irregularidades no processo de posse, reavendo o Estado novamente o domínio e, realizando, posteriormente, novas vendas (TEDESCO; CARON, 2014). Cumpre salientar que:

Uma das preocupações centrais dos governos do estado do Rio Grande do Sul, nas primeiras décadas do século XX, era povoar e apropriar privadamente grande parte do território do norte do Estado; nesse intento, políticas colonizatórias (privadas, públicas ou na forma de concessão) viabilizaram a normatização, dificultariam a intrusão (entrada nas colônias e nas reservas de quem não havia previamente adquirido ou não estava contemplado nos programas públicos de inclusão em determinados territórios), trariam bons dividendos financeiros aos cofres públicos, permitiriam processos produtivos e a inclusão de contingentes migratórios que exerciam pressão pela demanda de terra (TEDESCO; KUJAWA, 2014, p. 75).

Na região norte do estado, especificamente nas áreas da Encosta da Serra e do Alto Uruguai, a colonização se ampliou a partir da Proclamação da República, ainda nas primeiras décadas do século XX, quando os primeiros imigrantes, principalmente italianos, começaram a chegar, atraídos pela política de colonização promovida pelo governo. No entanto, a grande ocupação indígena na região era visível, especialmente da etnia caingangues, que viviam nas matas e eram presentes até a parte oeste de Santa Catarina (KUJAWA; TEDESCO, 2014). É essa condição de ocupação que veio contribuir para a reivindicação dos índios pela posse de terras que foram cedidas ou vendidas aos agricultores no processo de colonização.

Em Sananduva, o processo de colonização foi semelhante ao de outros municípios da região Norte do Estado, sendo que a área, a priori, pertencia a um grande latifúndio - a Fazenda Invernada da Serra, que se localizava entre os Rios Apuaê (Ligeiro) e Inhandava (Forquilha). Parte dela pertencia a Francisco Alves Ribeiro do Amaral, Major da Guarda

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Nacional e proprietário de outra grande fazenda a Três Pinheiros, de 158 milhões de metros quadrados (LOVATTO, 1986).

Lovatto (1986) relata que a instalação da Invernada da Serra, ocorreu por volta de 1800-1830, quando se iniciou o povoamento da região de Lagoa Vermelha, especialmente por colonizadores vindos dos Campos de Vacaria. Contudo, foi a partir da Fazenda São João do Forquilha, também parte da Invernada da Serra, e que localizava-se na área do atual município de Sananduva e Ibiaçá, que iniciou-se o processo de colonização, sendo o Coronel Heleodoro de Moraes Branco, motivado pelo incentivo do governo, o responsável pela nova colônia e pelo seu loteamento.

(A) (B)

Figura 1 – A) Testamento que comprova a compra dos lotes; B) Autos de medição que resultou na divisão dos lotes.

Fonte: Kujawa e Tedesco (2014, p. 74)

Conforme Kujawa e Tedesco (2014), na região de Sananduva evidencia-se dois contextos que delinearam a colonização territorial. O primeiro, com a inserção dos campos de Lagoa Vermelha e de Vacaria na rota do tropeirismo (XVIII e XIX), vinculando-se ao crescimento econômico, especialmente da mineração no século XVIII, que exigiu a melhoria dos acessos e a criação de novas rotas de tropeiros o que, consequentemente, ampliou o interesse pelas terras. Um exemplo que pode ser observado diz respeito à Sesmaria1011

10 Sesmaria – (de sesma, derivada do latim sexĭma, ou seja, sexta parte) foi um instituto jurídico português que

normatizava a distribuição de terras destinadas à produção agrícola. Caracterizava-se como áreas de terra inculta ou abandonada, que na época do Brasil Colônia a Coroa Portuguesa cedia aos novos povoadores. O objetivo do

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recebida por Francisco Alves Ribeiro do Amaral no então município de Lagoa Vermelha, que, após a sua morte, fora adquirida por José Bueno de Oliveira (1852) (Figura 1) e, no início do século XX, foi destinada ao projeto de colonização, que resultou no atual município de Sananduva. O segundo contexto, refere-se já ao período republicano, com o desenvolvimento de ações para a ocupação minifundiária por meio de colonização pública e privada, intensificando a colonização a partir da divisão das propriedades legitimadas com direito de posse ou oriundas de Sesmarias (como foi da fazenda Sananduva) ou da apropriação das terras que passaram a ser consideradas devolutas. Nesse processo, o Estado, realizou o loteamento e vendeu aos colonos.

Os primeiros imigrantes chegaram ao município de Sananduva no período de 1890 a 1910, vindos especialmente da serra gaúcha. Contudo, já viviam na região descendentes lusos, oriundos de Santa Catarina, Paraná e São Paulo, negros (ex-escravos), índios caingangues e grandes fazendeiros (LOVATTO, 1986).

A Colônia Particular Sananduva se desenvolveu a partir do interesse político partidário (Partido Republicano), particularmente de Heleodoro de Moraes Branco, bem como de representantes do governo que tratavam da venda dos lotes que foi iniciada em 1901 (ZAMBONIN, 1975). Criada na antiga fazenda de José Bueno de Oliveira e sua mulher Constança Bueno de Oliveira (Anexo A), a área com dimensão de 15.924,92 hectares foi desmembrada em 90 colônias (equivalente a 22 a 25 hectares), sendo negociadas por procuração pelo Intendente Municipal de Lagoa Vermelha Coronel Heleodoro de Moraes Branco, a partir de 1901 (RUCKERT; KUJAWA, 2008).

As áreas públicas, compostas por terras devolutas eram divididas pelo governo, cujas dimensões variavam segundo as circunstâncias e lugares, sendo que as com direito à pose, eram registradas. Já em 1907 a Colônia foi elevada à categoria de Distrito de Lagoa Vermelha, sendo emancipada somente em 1954 (LOVATTO, 1986).

A existência de terras públicas está relacionada com a Lei de Terras de 1850, que estabelece que todas as terras que não tinham título de concessão ou não tivessem legitimação de posse passavam a ser consideradas devolutas e de propriedade da União, que poderia repassa-las através da venda (KUJAWA, 2015a). Cabe salientar que a expansão da

sistema era estimular a produção, sendo que o titular da propriedade tinha obrigações para com o Estado e também poderia perder o direito de posse quando não produzia na terra.

11 As concessões de sesmarias, na maioria dos casos, restringiam-se, aos candidatos a latifúndios, que, afeitos ao

poder, ou ávidos por domínios territoriais, não poderiam apoderar-se materialmente das terras que desejavam para si. [...] traço de uma influência dominialista [...] a concessão de sesmarias não mais é a distribuição compulsória, em benefício da agricultura, revestido de uma verdadeira doação de domínios régios (LIMA, 1954).

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colonização representou uma reconfiguração do território da região norte do Estado, incluindo os espaços a serem ocupados por indígenas e por colonos (KUJAWA; TEDESCO, 2014). A chegada dos imigrantes europeus ou de seus descendentes nas primeiras décadas do século XX promoveram a construção de uma nova territorialidade produtiva naquela região, sendo que a comercialização das colônias também foi baseada na exploração do capital especulativo, e cuja configuração desse território contava com a presença do posseiro, do intruso, do nacional, dos agricultores europeus e dos indígenas, caracterizando essa ocupação e apropriação de terra na região como uma trajetória complexa (TEDESCO; CARON, 2014).

Desse modo, a política de colonização, tanto a oficial quanto a privada eram mediadas pelo Estado do Rio Grande do Sul, sendo que a de origem privada, mesmo sendo menos incentivada, tornou-se a mais praticada, especialmente na região norte (TEDESCO; CARON, 2013). Nesse contexto, a dinâmica histórica da colonização de Sananduva, aponta para o fato e que as terras reivindicadas pelos indígenas constituem-se terras que tiveram a legitimação de posse no século XIX e depois foram subdivididas e vendidas para os agricultores, a partir do processo de colonização privada e também de origem pública, considerando os preceitos da legislação e de atos administrativos do Estado.

Portanto, as políticas públicas desenvolvidas na época para gerenciar o processo de ocupação das terras da região norte, os processos acerca da regulação da questão indígena, bem como a maneira como foi gerenciada a colonização com imigrantes europeus e seus descendentes, foram marcados pelo positivismo, justificando ações governamentais na garantia da unidade política (SILVA, 2013). Além disso, o histórico das políticas indigenistas no Brasil evidencia um grande descompasso entre a previsão legal e as ações do governo, ampliando os conflitos acerca do descaso com o qual a garantia do direito originário a terra vem sendo tratado (GOMES, 2017).

Desse modo, as considerações trazidas até aqui promovem um entendimento acerca das consequências do processo de colonização desenvolvido no Estado, auxiliando na compreensão do conflito que envolve indígenas e agricultores acerca da TI Passo Grande do Forquilha, nos municípios de Sananduva e Cacique Doble, que será discutido no capítulo seguinte.

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3 TERRA INDÍGENA PASSO GRANDE DO FORQUILHA: UMA ANÁLISE DO CONFLITO

Neste capítulo faz-se uma análise da disputa dos índios pela restituição de terras com agricultores, destacando especialmente o conflito que ocorre no Passo Grande do Forquilha, nos municípios de Sananduva e Cacique Doble. Destaca-se a abertura trazida pela Constituição de 1988 acerca das demarcações de terras indígenas, bem como as causas do conflito agrário que tem como escopo o direito dos agricultores com relação à posse e título de suas terras.

3.1 O processo de restituição das terras indígenas na década de 1990

A partir da Constituição de 1988, intensificou-se o movimento indígena pela retomada de ocupação de terras. Gomes (2017, p. 91) orienta que “a demanda pela demarcação de terras indígenas aflorou devido ao diferenciado e notório reconhecimento dos direitos indígenas na CF/88”, sendo que desse momento em diante, diversas regiões do país passaram a conviver com conflitos entre o interesse dos índios pela posse de terras em contraponto com a manutenção da propriedade privada.

Conforme Kujawa (2015b), no Rio Grande do Sul, desde a década de 1990, a partir do ideário constitucional, foi se estabelecendo um processo para recuperar territórios originalmente demarcados no período de 1910 a 1918 como terras indígenas. A partir de um Grupo de Trabalho criado em 1996 (Decreto 37.188) promoveu-se um estudo sobre os perímetros de áreas indígenas, principalmente aquelas que haviam sido reduzidas e que fizeram parte de processos de colonização, formação de reservas florestais, etc. As discussões e resultados gerados apontaram para a possibilidade de grupos indígenas reaver áreas de terra.

Uma segunda situação é o movimento de retomada intensificado a partir de 2004, pelo qual os indígenas reivindicavam novas áreas, ou seja, para além das 11 demarcadas entre 1910 e 1918, bem como pela retomada de áreas reduzidas dentro daquelas comprovadamente e originalmente demarcadas nos Toldos Indígenas (KUJAWA, 2014a).

Gomes (2014) destaca que a primeira situação, que pode ser chamada de recuperação dos limites territoriais de áreas indígenas demarcadas pelo estado do Rio Grande do Sul, se deu devido o art. 64 da Constituição de 1891 que transferiu aos estados o domínio e a atribuição para o gerenciamento das terras devolutas, da mesma forma que já orientava a Lei de Terras de 1850. Ademais, a Constituição Estadual de 1989 estabeleceu o prazo de quatro

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