• Nenhum resultado encontrado

HISTÓRIAS DE CAVALEIROS, MANUSCRITOS E TRADUÇÕES 1

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "HISTÓRIAS DE CAVALEIROS, MANUSCRITOS E TRADUÇÕES 1"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

Revista Brasileira de Tradutores Nº. 23, Ano 2011

Dircilene Fernandes Gonçalves Universidade de São Paulo - USP

lenefego@gmail.com

E TRADUÇÕES

1

Stories of knights, manuscripts and translations

RESUMO

Na Idade Média, a tradução foi um importante instrumento de transmissão de conhecimento. Acompanhando esse movimento, na ficção, afirmar que um texto era tradução de um antigo manuscrito encontrado ao acaso, recebido como herança, ou mesmo das mãos de um misterioso desconhecido era uma prática bastante utilizada como forma de valorizar a obra, pois lhe conferia uma aura de verdade histórica. Muitas vezes, essas traduções também faziam parte da ficção: eram pseudotraduções, ou seja, textos apresentados como se fossem traduções, mas que, na verdade, eram obras originais. Algumas obras importantes dentro da tradição da chamada literatura de cavalaria foram concebidas dessa maneira; entre elas Parzival, de Wolfram Von Eschenbach (alemão, ca. 1210), Tyrant lo Blanc, de Joanot Martorell (catalão, 1490) e Dom Quixote, de Cervantes (espanhol, 1605/1615) são exemplos desse tipo de prática.

Palavras-Chave: tradução; manuscrito; pseudotradução; ficção; cavalaria

ABSTRACT

In the Middle Ages, translation was an important instrument to propagate knowledge. Along with this movement, the introduction of a text as a translation of an ancient manuscript discovered by chance, received as a legacy, or even from a mysterious stranger was a common practice used as a means to increase the value of a work, as it provided such work an air of historical truth. However, sometimes these translations were also part of the fiction: they were pseudotranslations, narratives introduced as translations but that were really original works. Important works within the tradition of chivalric romance, such as Parzival, of Wolfram Von Eschenbach (German, ca 1210), Tyrant lo Blanc, of Joanot Martorell (Catalan, 1490) and Don Quixote, of Cervantes (Spanish, 1605/1615) are examples of this kind of practice.

Keywords: translation; manuscript; pseudotranslation; fiction; chivalry.

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional de Matéria Cavaleiresca, em

maio de 2011, na Universidade de São Paulo.

Anhanguera Educacional Ltda.

Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 4266 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 rc.ipade@aesapar.com Coordenação

Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original

Recebido em: 14/02/2012 Avaliado em: 22/03/2012

(2)

1. O TRADUTOR INEXISTENTE

– [...] Ele é um cavaleiro que não existe... – Mas como não existe? Eu o vi! Era de verdade! – O que viu? Ferragem... É alguém que existe sem existir, entende, aprendiz? (CALVINO, 1993, p. 20)

Peço desculpas se o título parece um trocadilho infame, mas não pude resistir a parodiar Italo Calvino, pois seu personagem, o nobre Cavaleiro Agilulfo, que existe somente como alma de sua armadura, me parece a imagem perfeita para o personagem observado neste trabalho: o tradutor que existe somente como alma de sua narrativa.

Assim como acontece com Agilulfo, se o despirmos da armadura/narrativa, ele não fica nu, simplesmente desaparece. Portanto, para apreendê-lo, precisamos observá-lo revestido da brilhante armadura da narrativa que lhe dá existência.

Essa figura tradutória peregrina pela literatura há séculos, pelos mais diversos motivos, percorrendo os mais diversos caminhos. Porém, como nos concentramos aqui na matéria cavaleiresca, acompanharemos seus passos dentro de três obras representativas – cada uma a seu modo e ao modo de seu tempo – da literatura de cavalaria: Parzival, de Wolfram von Eschenbach (alemão, ca. 1210), Tyrant lo Blanc, de Joanot Martorell (catalão, 1490) e Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (espanhol, 1605/1615).

Em cada uma dessas obras, de maneira diferente, aparece a figura de um tradutor que afirma ter recebido a incumbência de traduzir para determinado vernáculo um manuscrito antigo contando as aventuras de nobres e valentes cavaleiros. Geralmente, são relatos de eventos pertencentes a um passado relativamente distante, os manuscritos originais jamais são apresentados e seus autores, raramente nomeados. No caso de Dom

Quixote, como se verá, essas questões são mais complexas.

Esse tradutor que se apresenta de maneira humilde, prometendo fazer o melhor de seu ofício para ser fiel ao original é, na verdade, um indivíduo tão imaginário quanto os heróis das narrativas. Como os bravos cavaleiros, é um personagem de ficção e só existe em função do narrado.

Pode-se perguntar, então, por que usar esse tipo de recurso? Não seria mais fácil simplesmente contar a história sem recorrer a essa peripécia narrativa?

De fato, a história poderia ser contada de outra maneira, entretanto, perderia parte do encantamento. Apesar de parecer um mero detalhe que, muitas vezes, passa até despercebido ou, se notado, cai rapidamente no esquecimento, a presença do tradutor fictício confere ao texto uma outra dimensão, um deslocamento de perspectiva. O leitor

(3)

não tem acesso direto aos eventos; para apreciá-los, precisa olhar através de um filtro, passar por uma antecâmara.

Num ensaio sobre a tradução como técnica narrativa, Julio César Santoyo (1984) diz que ela “reduz a distância entre a vida e a ficção; e na passagem de uma a outra, serve de vestíbulo e câmara de adaptação” (p. 49; tradução minha) e ainda, citando Ortega y Gasset, que ela “atua como trampolim que lança nossa atenção à dimensão lendária da ilha estética” (1980, p. 64; SANTOYO, 1984, p. 49; tradução minha).

2. PSEUDOTRADUÇÃO: FICÇÃO DENTRO DA FICÇÃO

“Al procedimiento pictórico de insertar un cuadro en un cuadro, corresponde en las letras el de interpolar una ficción en otra ficción.” (BORGES, 1999, p. 56)

Dentro dos estudos da tradução, esse recurso narrativo, apesar de não ser uma novidade, começou a ser observado mais de perto na década de 1970, especialmente por Gideon Toury, professor da Universidade de Tel Aviv, dentro dos chamados DTS (Descriptive Translation Studies), desde uma perspectiva que estuda a tradução a partir do texto traduzido, analisando seus efeitos na cultura de chegada.

Toury trabalha com a noção de “assumed translation”, ou seja, com textos que, dentro de uma determinada cultura, se apresentam como traduções. O conceito de

assumed translation obedece a três postulados básicos, dos quais o que nos interessa neste

trabalho é o primeiro, o postulado do texto-fonte (source-text postulate). Esse postulado

[...] pressupõe a existência de um outro texto em outra língua/cultura, que tem precedência lógica e temporal sobre a tradução, tendo lhe servido como ponto de partida. O que importa aqui não é o texto-fonte em si, mas a suposição de que ele exista, de modo que sua existência concreta não é absolutamente necessária. Um texto pode ser estudado como tradução se há um suposto original, o que é o caso da pseudotradução. (GONÇALVES, 2007, p. 41)

Portanto,

[...] o importante não é a existência concreta de um texto-fonte, mas a ideia de que ele exista. Desse ângulo, é perfeitamente viável – e aceitável – que sua existência seja pura ficção, uma invenção à qual o autor tenha recorrido por qualquer motivo que lhe tenha parecido necessário ou interessante. Uma vez que temos uma “pseudofonte”, a tradução será uma “pseudotradução”, uma tradução fictícia para uma fonte fictícia.

(GONÇALVES, 2007, p. 42)

Toury diz que

[...] um texto-alvo que tenha sido supostamente marcado como uma tradução [...] pode revelar a falta de um texto correspondente em qualquer outra língua/cultura, e não apenas quando simplesmente não se pode localizá-lo. Um texto-fonte concreto pode nunca haver existido [...].

(4)

As observações feitas por Catherine Batt ao analisar o tradutor medieval no ensaio “Mallory's Questing Beast and the Implications of Author as Translator” (1987) oferecem um bom panorama do uso da pseudotradução na época da produção da literatura cavaleiresca.

Segundo Batt, nesse período, a tradução como parte de um relato fictício funcionava como testemunha de uma continuidade literária. A referência a um texto-fonte antigo conferia à produção contemporânea uma genealogia, que, por sua vez, garantia o

status literário da obra e do autor perante o público.

A suposta tradução recorria a toda uma tradição precedente para valorizar a narrativa. O pseudotradutor se colocava como aquele que se propunha reproduzir um original da maneira mais fiel possível, mas que, eventualmente, poderia necessitar fazer algumas modificações, tais como deixar de fora partes que tornassem o texto prolixo ou que, de alguma maneira, ferissem a moral da época, ou preencher espaços em branco com comentários baseados em suas “pesquisas” ou em anotações à margem do original.

Como parte do aparato narrativo, esse tradutor fictício cria a ilusão de uma verdade histórica, conduzindo o leitor a aceitar o texto como tal. Susan Bassnett, em seu ensaio “When a Translation is not a Translation?” (1998), fala do estabelecimento de um tipo de entendimento tácito entre tradutor e leitor, que ela chama de collusion (conluio, conspiração). O autor cria uma persona tradutora e precisa fazer com que o leitor conspire com ele na criação dessa ilusão. Para isso, lança mão de recursos que confiram autenticidade a seu texto para torná-lo crível, verossimilhante.

Desse modo, a reação à ideia de uma fonte é mais importante que a existência dessa fonte propriamente dita. O pseudotradutor se torna um tipo de historiador, recontando o passado, porém, de maneira interpretativa. Isso quer dizer que exigências do contexto no qual a obra está sendo produzida podem modificar as coordenadas que direcionam a maneira como o “original” será traduzido.

O tipo de “original” mais comum nas pseudotraduções é o manuscrito antigo que aparece por acaso no meio de documentos esquecidos em alguma biblioteca ou dos pertences de alguma família tradicional, ou de maneira misteriosa. Esse manuscrito pode ser encontrado pelo próprio tradutor ou este pode recebê-lo das mãos de outro, que encomenda o serviço, servindo-lhe de mecenas. Geralmente, os eventos narrados pertencem a um passado distante e historicamente relevante e, na maioria das vezes, passam-se em terras estrangeiras, o que os torna acessíveis somente por meio da imaginação.

(5)

A ideia do manuscrito sempre confere a uma obra um ar de mistério que chama a atenção e provoca a curiosidade do leitor. No entanto, como tal interessantíssimo original não pode ser apresentado – pois que não existe –, ele acaba invariavelmente desaparecendo de modo tão misterioso quanto apareceu, ou é roubado, ou involuntariamente destruído. Esse procedimento garante a verossimilhança, uma vez que impossibilita qualquer escrutinação ou comprovação de falsidade.

É lógico que nem sempre a obra é apresentada como uma tradução verdadeira na qual o autor utiliza um pseudônimo para sua persona tradutória. Em muitos casos, o recurso narrativo não é velado e é apresentado como parte do jogo literário. É o conluio proposto pelo autor ao leitor como parte do prazer da narrativa.

3. TRÊS TRADUTORES PARA TRÊS NOBRES CAVALEIROS

Dentro da matéria cavaleiresca, destaco três obras que utilizaram a pseudotradução como recurso narrativo. São elas: Parzival, de Wolfram von Eschenbach (alemão, ca. 1210);

Tyrant lo Blanc, de Joanot Martorell (catalão, 1490) e Dom Quixote, de Miguel de Cervantes

(espanhol, 1605/1615). A intenção deste artigo não é fazer uma análise das obras, mas observar como o fato de terem sido escritas como pseudotraduções influencia em sua narrativa.

Escritas num espaço de quatrocentos anos, cada uma delas trata a matéria cavaleiresca de maneira diferente, pelo próprio momento histórico de sua produção.

Quando Eschenbach escreveu Parzival, ca. 1210, a novela de cavalaria vivia um momento de glória. Segundo A. T. Hatto, tradutor da obra para o inglês na edição aqui utilizada (Ed. Penguin, 2004) 2, especialista em língua e literatura alemãs, Wolfram von

Eschenbach foi o maior poeta narrativo alemão da Idade Média. A obra foi escrita como continuação da obra inacabada do francês Chrétien de Troyes (ca. 1135 – ca. 1191), Perceval (ca. 1185 – ca. 1191), que Eschenbach recontou e terminou, acrescentando episódios iniciais e finais.

A novela trata da jornada de aperfeiçoamento pessoal do jovem cavaleiro Parzival ao longo de suas aventuras. Sua peregrinação não é em busca do Graal, mas de

um Graal. Como explica Hatto, a imagem que geralmente temos do Graal como o cálice

utilizado por Cristo na última ceia não é a única forma de Graal encontrada na literatura de cavalaria; ele também aparece em forma de prato, pedra, outro cálice que não o da ceia

2 Todas as referências e citações das três obras são retiradas das edições citadas. As traduções do texto em inglês (Parzival)

(6)

cristã. No entanto, sua simbologia está sempre ligada à busca da perfeição. Em Parzival, o Graal é uma pedra.

No início da obra, entre os capítulos dois e três, Eschenbach insere um pedido de desculpas por seu tratamento desconfiado das mulheres, que formavam boa parte do público leitor das novelas de cavalaria; desconfiança devida a uma experiência pessoal mal sucedida. Essa inserção é uma pausa na narrativa na qual ele remete à tradição oral: “[...] eu continuaria esse conto de aventuras para vocês. Mas, quem desejar que assim seja, não o tome como um livro. [...] mas esta história segue adiante sem a orientação de livros.” (p. 69). Até aqui, ele está apenas (re)contando uma história tradicional, sem mencionar fontes escritas, nem mesmo Chrétien de Troyes, cuja obra é o ponto de partida para sua narrativa.

A pseudotradução entra na história somente no quinto capítulo, quando Eschenbach se dá conta de que ignorara o fato de seu público ser formado fundamentalmente por leitores tradicionalistas que tinham certo conhecimento da cultura francesa, em moda na época. Assim, para valorizar sua narrativa e atrair a atenção desse público, ele resolveu criar uma pseudofonte para sua criação.

Essa fonte fictícia não é a obra de Troyes, mas um texto anterior e não vinculado a ele, como se Troyes e o suposto autor do manuscrito traduzido por Eschenbach estivessem recontando uma mesma história; o que faz sentido, uma vez que ela pertenceria a uma tradição oral, podendo ser passada adiante livremente.

A primeira referência a uma fonte aparece casualmente: “O conto nos informa [...]” “[...] a não ser que minha fonte esteja enganada [...]” (p. 120). Daí por diante serão muitas as menções à fonte ao longo da obra, todas elas aparecendo como reiterações de que a história está sendo narrada de acordo com as informações obtidas num manuscrito original.

O suposto autor do manuscrito que está sendo traduzido por Eschenbach para completar o texto de Troyes é citado no capítulo oito. Ele aparece de repente, como se já tivesse sido mencionado anteriormente: “O próprio Kyot lhe dá esse nome” (p. 213); depois, no mesmo parágrafo, é devidamente apresentado: “Kyot é o notável provençal que viu esse Conto de Parzival escrito em língua pagã [...]”(p. 214). Em nota de rodapé, Hatto identifica essa língua pagã como sendo o árabe. No capítulo seguinte, essa referência ocorre novamente quando nosso narrador diz que “O famoso Mestre Kyot encontrou a versão original desse conto em escrita pagã abandonado negligentemente numa esquina de Toledo” (p. 232).

(7)

Vale lembrar que Toledo foi um importante centro de tradução da Idade Média, onde se concentrava a maior parte do trabalho de tradução de textos do grego e do árabe. Desse modo, foi um ponto fundamental de difusão de conhecimento científico e filosófico para a Europa ocidental (DELISLE; WOODSWORTH, 1998, p. 128).

Note-se que Kyot não é o autor original do texto, mas o tradutor de um original árabe para o francês, este, o manuscrito sendo traduzido na narrativa de Eschenbach. Portanto, cria-se uma perspectiva tripla: original/tradução/tradução da tradução, com uma pseudofonte e dois pseudotradutores. Esse recurso confere ao texto uma ilusão histórica ainda maior, tanto pelo distanciamento temporal e geográfico quanto pela referência a um verdadeiro ponto de encontro cultural e centro de tradução da época (Toledo).

No entanto, para reiterar a credibilidade da narrativa foi também necessário “salvar” Kyot de sua origem pagã, que poderia causar desconfiança (embora os conhecimentos filosóficos e científicos pagãos fossem muito bem-vindos e bem aproveitados em Toledo). Por isso, nosso tradutor-narrador não deixa de informar que Kyot renunciou ao paganismo e foi batizado na fé cristã, pois, “de outra forma, este conto ainda seria desconhecido. Nenhuma arte infiel seria capaz de revelar a natureza do Graal e de como se atinge o conhecimento de seus segredos” (p. 232). Delisle e Woodsworth observam que “no século XII, era essencial que os tradutores estivessem associados à Igreja; os que não se convertiam ao cristianismo eram empregados apenas como intermediários, com o propósito de dar uma versão oral em vernáculo dos textos árabes” (1998, p. 129).

No mesmo capítulo, Eschenbach também revela e “salva” o autor original, certo Flegetanis, descendente da linhagem de Salomão, mas de pai infiel e, como Kyot, salvo pelo batismo, tornando-se capaz de reconhecer e relatar as maravilhas do Graal.

Mesmo assim, a origem pagã de Kyot ainda é um fator de hesitação diante da verdade de sua tradução, e nosso pseudotradutor se isenta da responsabilidade, condicionando seu trabalho à honestidade de sua fonte: “[...] se Kyot estiver dizendo a verdade”(p. 384), “[...] se o provençal falou a verdade” (p. 399).

No final da narrativa, Eschenbach cita Chrétien de Troyes, uma vez que está completando sua obra inacabada. Logo, Troyes é um intermediário entre o trabalho de Kyot e o de nosso pseudotradutor, que recebe o texto completo de Kyot, enviado da Provença, e o traduz para completar o texto inacabado de Chrétien de Troyes (p. 410).

Esse jogo de perspectiva mostra que a pseudotradução em Parzival não é mero enfeite da narrativa, mas um recurso utilizado conscientemente para gerar a

(8)

profundidade necessária a fim de criar a sensação de possibilidade histórica. O fato de serem narrados fatos maravilhosos sem explicação racional não elimina essa possibilidade porque a visão de realidade da época permitia essa mescla do real com o que hoje consideramos mera fantasia; os limites entre real e imaginário eram outros.

Quase três séculos mais tarde, quando a visão sobre a novela de cavalaria passava por mudanças diante do desabrochar do pensamento renascentista, vem ao prelo

Tirant lo Blanc, do catalão Joanot Martorell, escrita entre 1460 e 1466 e publicada em 1490.

Embora o estilo de escrita estivesse mudando, o mundo cavaleiresco ainda povoava a imaginação dos leitores. Tirant, no entanto, é um cavaleiro bem diferente de Parzival. Ele não cavalga por um mundo povoado por maravilhas; suas aventuras não ultrapassam o humano e seus feitos são mérito de sua inteligência, habilidade, força e caráter.

Assim como Parzival, Tirant também é apresentado como uma pseudotradução. Entretanto, como seus cavaleiros, seus tradutores também são diferentes. Enquanto em

Parzival a referência a uma fonte a partir da qual a narrativa é traduzida aparece somente

no quinto capítulo e o autor dessa fonte é apresentado apenas no oitavo, em Tirant, o autor se apresenta como tradutor logo no início da obra, na carta-dedicatória ao Príncipe D. Fernando de Portugal, suposto mecenas que lhe encomendara o trabalho:

Como a referida história e ações do citado Tirant estão em língua inglesa, e foi do agrado de vossa ilustre senhoria rogar-me as vertesse em língua portuguesa, julgando que eu, por ter permanecido algum tempo na ilha de Inglaterra, deveria conhecer melhor que outros aquela língua – esses rogos se converteram para mim em mui agradáveis ordens, porquanto, sendo eu próprio cavaleiro, imponho-me a obrigação de divulgar os atos virtuosos dos antigos cavaleiros, precipuamente porque nesta obra se trata de maneira extensíssima sobre os direitos e os deveres de armas e cavalaria.

[...].

(MARTORELL, 1998, p. 5)

E para que outro não possa ser recriminado por deficiências que se encontrem nela, eu Joanot Martorell, cavaleiro, quero sozinho responsabilizar-me por ela, e não outrem por mim: pois, por mim só foi divulgada, a serviço do mui ilustre Príncipe e senhor Rei expectante, Dom Fernando de Portugal, tendo sido começada a dois de janeiro do ano de mil quatrocentos e sessenta. (p. 6)

Todavia, no fechamento da obra, após o final da narrativa, há uma observação que atribui a finalização do trabalho a outro tradutor, a pedido de outro mecenas, devido à morte de Martorell:

Aqui acaba o livro do valoroso e incansável cavaleiro Tirant lo Blanc, príncipe e César do Império grego de Constantinopla, o qual foi traduzido do inglês para a língua portuguesa e depois para a língua vulgar valenciana, pelo magnífico e valente cavaleiro Mossém Joanot Martorell que, tendo morrido, não pode acabar de traduzir senão três partes. A quarta parte, que é o final do livro, foi traduzida, a pedido da nobre senhora Dona Isabel de Loris, pelo magnífico cavaleiro Mossém Martí Joan de Galba; se se encontrar aí alguma falha, pede ele que se atribua a sua ignorância [...]. (p. 850)

(9)

Na apresentação da edição utilizada (Ed. Giordano, 1998), o tradutor Cláudio Giordano aponta que estudos sobre a obra indicam que “deve ter havido o pedido do príncipe português”, mas que “é de todo improvável que tenha sido feita uma versão portuguesa do Tirant, e o catalão é sem dúvida a língua em que Martorell redigiu originalmente sua obra” (p. XLI), e, citando o escritor e crítico espanhol Martí de Riquer em Aproximació al Tirant lo Blanc, mostra que o segundo tradutor provavelmente não tenha existido:

(...) Tirant lo Blanc é, de sua dedicatória ao final, obra escrita por Joanot Martorell a partir de janeiro de 1460 até cerca de 1466, estando seguramente terminada em 1468, quando morreu o escritor (...) Embasados em boa crítica, deve-se creditar total confiança à dedicatória na qual Joanot Martorell se proclama inequivocadamente autor único de todo o Tirant (...)

(p. XLII)

Em belo prólogo reproduzido nessa edição, Mario Vargas Llosa enquadra Tirant entre a tradição medieval arturiana e Cervantes:

[...] O Tirant lo Blanc, em contrapartida, é o canto-de-cisne literário daquela época que dava os últimos estertores medievais e se transformava rapidamente ao influxo dos ventos italianos e franceses num mundo renascentista. Damaso Alonso assinalou com precisão[...] que Martorell está como que a cavalo entre dois mundos, e que estes, em seu romance, coexistem e se fundem. De fato: o Tirant lo Blanc, além de outras coisas, estende uma ponte entre a visão naîve da tradição medieval arturiana e o realismo irônico renascentista de Cervantes. O idealismo heroico e as irrealidades do amor cortês estão ainda presentes no Tirant lo Blanc, relativizados, porém, pelos lampejos de humor e humanizados pela sensualidade e o amor carnal. (p. XLIX)

Após apresentar-se, o tradutor passa somente a narrar os eventos, fazendo poucas intervenções e limitando-se a pequenos comentários, tais como “o livro não registra” (p. 724), “o livro esquece” (p. 750), “retoma a narração” (p. 750), “para evitar prolixidade, a história não declina nomes” (p. 757), “cujo teor em nossa língua” (p. 800). Com esse procedimento, o pseudotradutor lembra durante a narrativa que a obra é uma tradução, e que por trás dela existe um documento histórico que confere autoridade aos fatos narrados.

Não existe aqui a dupla perspectiva criada em Parzival e tampouco a sombra de dúvida sobre a credibilidade da narrativa; a ilusão de realidade criada pela pseudotradução é corroborada pela humanidade do herói, desvinculado dos fatos maravilhosos numa época em que as fronteiras entre real e fantasia já não eram mais as mesmas no imaginário do leitor.

Mais de um século depois, em 1605 e 1615, quando esse limiar havia se movido ainda mais na direção oposta ao maravilhoso, e quando este, além de mera fantasia, era considerado pernicioso, Miguel de Cervantes publica Dom Quixote, considerado a pá de cal sobre a novela de cavalaria, embora, em seu prólogo a Tirant lo Blanc, Vargas Llosa apresente uma outra perspectiva, desde a qual

(10)

[...] contrariamente às pretensões e sermões de alguns catedráticos, Cervantes não “matou” o romance de cavalaria senão que lhe tributou soberba homenagem, aproveitando o melhor que havia nele e adaptando ao seu tempo, da única maneira que lhe era possível – mediante uma perspectiva irônica –, sua mitologia, seus rituais, suas personagens, seus valores.

D. Quixote é o romance de cavalaria de uma época em que já não havia cavaleiros nem a realidade permitia criar-se a ilusão de uma ordem cavaleiresca do mundo, mas na qual, nada obstante, esse ideal impossível ainda sobrevive, refugiado em duas últimas trincheiras: a nostalgia e a loucura. (p. XLIX)

Particularmente, gosto desse ponto de vista. Não sou especialista em Cervantes, mas o creio brilhante demais para ser apenas irônico. Na introdução à edição aqui utilizada (Ed. Planeta, 1992), Martín de Riquer afirma que, com o Quixote, Cervantes se situa no caminho que acreditou ser o mais adequado para o romance moderno.

De fato, Cervantes trabalha numa época de transição para um novo tipo de escrita e sua sátira não se dirige à instituição cavaleiresca, mas ao que é inverossímil nas novelas de cavalaria. O que ele condena é o improvável, representado pelo maravilhoso simplesmente inexplicável, que pode ser nocivo às mentes sem discernimento. No período de formação do romance moderno, a exemplaridade é elemento obrigatório e, para tanto, a verossimilhança é condição indispensável.

Como uma crítica às novelas de cavalaria, o Quixote logicamente recupera e aplica recursos desse tipo de narrativa. Dentre eles, a pseudotradução. Assim como em

Parzival, Cervantes não se coloca inicialmente como tradutor; a página de rosto da

primeira edição em 1605 traz a seguinte apresentação: “El ingenioso hidalgo Don Quixote de la Mancha. Compuesto por Miguel de Cervantes Saavedra” (1992; reprodução da página de rosto da primeira edição). Entretanto, no prólogo, Cervantes se declara padrasto do Quixote, dizendo: “Pero yo, que aunque parezco padre, soy padrastro de don Quijote [...]” (p. 12), fazendo uma sutil negação da autoria, o que indica uma outra origem para a obra. Além disso, menciona o uso da imitação, também muito utilizada na literatura de cavalaria como recurso de valorização da obra, inserindo-a numa tradição: “Sólo tiene que aprovecharse de la imitación en lo que fuere escribiendo; que cuanto ella fuere más perfecta, tanto mejor será lo que se escribiere”(p. 18).

Dentro da complexidade de elementos da obra, a pseudotradução no Quixote é muito mais do que um recurso para criar a ilusão de verdade ou possibilidade histórica. Ela sequer estabelece um distanciamento temporal, uma vez que o suposto original trata das aventuras do personagem principal, que é contemporâneo à narrativa e chega até mesmo a ver o livro com sua própria história.

(11)

Pero está el daño de todo esto que en este punto y término deja pendiente el autor desta historia esta batalla, […]. Bien es verdad que el segundo autor desta obra no quiso creer que tan curiosa historia estuviese entregada a las leyes del olvido […] (p. 97)

O segundo autor é o próprio Cervantes, que até esse momento se comporta como um compilador de dados de arquivos da região da Mancha; e “o autor”, quem será?

A resposta a essa pergunta vem no capítulo seguinte, quando o narrador revela que a história de Dom Quixote veio lhe parar nas mãos por acaso, quando, estando em Toledo, comprou alguns manuscritos velhos por mero gosto pela leitura, e entre eles havia um em árabe. Como não soubesse árabe, procurou algum mouro que pudesse lhe dizer do que se tratava. Aí estamos novamente: Toledo e manuscritos árabes; o grande centro de tradução da Idade Média e os escritos árabes tão traduzidos naquela época.

O título do manuscrito, traduzido pelo mouro, era “Historia de don Quijote de la Mancha, escrita por Cide Hamete Benengeli, historiador arábigo” (p. 102). Eis aí nosso autor, com nome e profissão. Cervantes, então, encomenda ao mouro a tradução completa do manuscrito, passando de compilador de arquivos a uma espécie de editor de um documento.

À moda da tradição medieval, ele dá ao Quixote uma genealogia. Entretanto, assim como ocorre em Parzival, a verdade dos fatos é colocada em dúvida pelo fato de o autor ser árabe, o que causa certa desconfiança “natural”. Cervantes, todavia, em vez de simplesmente “batizar” o autor para autenticar a credibilidade da narrativa, cria para ele uma natureza dupla que o coloca entre a mentira e a verdade: ele é árabe e, portanto, um possível mentiroso, mas é um historiador, um homem cujo trabalho é relatar a verdade dos fatos.

O jogo entre verdade e mentira continua até o final da obra, com várias menções ao Cide, ora como historiador, ora como mouro, sempre sustentando a dúvida, sem jamais apontar para uma verdade definitiva.

Essa verdade não pode mesmo existir, uma vez que a intenção de Cervantes é mostrar os livros de cavalaria como o lugar do inverossímil. Nesse contexto, a pseudotradução é um recurso narrativo perfeito, sendo ela mesma um lugar do falso, um simulacro, uma criadora de ilusões.

4. OUTRAS HISTÓRIAS

A pseudotradução parece ser um artifício elementar, mas, como destaca Santoyo, “mesmo simples, o artifício supõe, sem dúvida, uma modificação notável do ponto de vista narrativo habitual” (1984, p. 38; tradução minha). Discreta, ela geralmente passa

(12)

despercebida. Seu efeito sobre a obra somente é notado quando se chama a atenção sobre ela.

Tomando emprestado o nicho de comparação usado por Borges numa das epígrafes utilizadas acima, a tradução, quando ficção, se assemelha à moldura de um quadro, que só é notada quando alguém aponta para ela, mas que, com sua sutileza, faz parte da harmonia da obra. Sem dúvida, sem essa moldura, as aventuras de nossos três bravos cavaleiros seriam outras histórias.

REFERÊNCIAS

BASSNETT, Susan. When a Translation is not a Translation? In: BASSNETT, Susan; LEFÉVERE, André. Constructing Cultures: Essays on Literary Translation. [S.l]: Multilingual Matters Ltd., 1998, p. 25-40 (Topics in Translation, 11).

BATT, Catherine. Mallory's Questing Beast and the Implications of Author as Translator. In: The

Medieval Translator: The Theory and Practice of Translation in the Middle-Ages. ELLIS, Roger

(Ed.). Cambridge: D. S. Brewer, 1987, p. 143-166.

BORGES, Jorge Luis. Cuando la ficción vive em la ficción. In: Textos Cautivos. Madrid: Alianza Editorial, 1999, p. 56-59 (Biblioteca Borges).

CALVINO, Italo. O cavaleiro inexistente. 2 ed. reimp. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Barcelona: Planeta, 1992.

DELISLE, Jean; WOODSWORTH, Judith (org.). Os tradutores na história. Trad. Sérgio Bath. São Paulo: Ática, 1998 (Coleção Múltiplas Escritas).

ESCHENBACH, Wolfram von. Parzival, 1 ed. reprinted. Translated by A. T. Hatto. London: Penguin Books, 2004.

GONÇALVES, Dircilene Fernandes. Pseudotradução, linguagem e fantasia em O Senhor dos

Anéis, de J. R. R. Tolkien: princípios criativos da fantasia tolkieniana. São Paulo, 2007. 230 f.

Dissertação (Mestrado em Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

MARTORELL, Joanot. Tirant lo Blanc, Trad. Cláudio Giordano, São Paulo: Editora Giordano, 1998.

ORTEGA y GASSET, José. El Espectador (Antología), Madrid: Alianza Editorial, 1980, p. 64. Citado por SANTOYO, Julio César. La traducción como técnica narrativa. In: Actas del IV

Congreso de la Asociación Española de Estudios Anglo-Americanos. Salamanca: Ediciones

Universidad de Salamanca, 1984, p. 49.

SANTOYO, Julio César. La traducción como técnica narrativa. In: Actas del IV Congreso de la

Asociación Española de Estudios Anglo-Americanos. Salamanca: Ediciones Universidad de

Salamanca, 1984, p. 37-51.

TOURY, Gideon. Descriptive Translation Studies and Beyond. [S.l]: John Benjamins Publishing Company, 1995 (Benjamins Translation Library, v. 4).

Dircilene Fernandes Gonçalves

Mestre em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês - USP - FFLCH - DLM Orientadora: Prfa. Dra. Lenita Maria Rimoli Esteves. Doutoranda em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês - USP - FFLCH - DLM. Orientadora: Profa. Dra. Lenita

Referências

Documentos relacionados

Para a realização da análise fatorial, utilizaram-se 37 variáveis (Tabela 1) produzidas para o estudo, o que inclui dados presentes no ambiente pedonal de três bairros da cidade

Definidos os dois eixos do domínio analisado, foram escolhidas três, das onze abordagens mencionadas por Hjørland (2002), a saber: 1) Estudos bibliométricos, no que se

A Seqüência de Três Níveis oferece um quadro mais amplo de uma situação e pode ser útil para fazer perguntas a respeito da situação de pessoas que não estão fisicamente

No entanto, expressões de identidade não são banidas da linguagem com sentido apenas porque a identidade não é uma relação objetiva, mas porque enunciados de identi- dade

QUANDO TIVER BANHEIRA LIGADA À CAIXA SIFONADA É CONVENIENTE ADOTAR A SAÍDA DA CAIXA SIFONADA COM DIÂMTRO DE 75 mm, PARA EVITAR O TRANSBORDAMENTO DA ESPUMA FORMADA DENTRO DA

¢ll', ™pe• oÙ m£qon œrga qalassopÒrwn ¡li»wn ka• buq…hj oÙk o‧da dolorrafšoj dÒlon ¥grhj, Leukoqšhj œce dîma baqÚrroon, e„sÒke pÒntou ka• s ka•

O Diretor-Geral do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca - CEFET/RJ, no uso de suas atribuições e considerando o Regulamento dos

O Diretor-Geral do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca - CEFET/RJ, no uso de suas atribuições e considerando o Regulamento do