16. Encontro Nacional da ABET
3 a 6/9/2019, UFBA, Salvador (BA)
GT07 - Trabalho análogo ao escravo: conceitos, manifestações e desafios na
sociedade contemporânea
TRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVO: CONCEITO, ESPÉCIES E BEM JURÍDICO
TUTELADO À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
Gustavo Lelles de Menezes (UNESP-FRANCA)
RESUMO
A criminalização da exploração da mão de obra escrava constitui fenômeno mundial. No
âmbito do ordenamento jurídico interno, esse processo de criminalização já atravessa
séculos. Nada obstante, o trabalho análogo ao de escravo, infelizmente, ainda faz parte da
realidade do processo produtivo de bens no Brasil. Fator que contribui para a intensificação
de tal cenário é o desacordo interpretativo do conceito do crime previsto no artigo 149 do CP.
Nesse sentido, desponta a atuação do Supremo Tribunal Federal que, a despeito de já possuir
jurisprudência sobre a temática, não apresenta entendimento uníssono por parte de seus
ministros. A presente pesquisa visa analisar as contradições que envolvem a construção
jurídica do conceito do crime de trabalho análogo ao de escravo no âmbito do STF. Para
tanto, utilizaremos o método dialético a fim de averiguar as contradições e posições
majoritárias que envolvem à questão, lançando mão à pesquisa empírica de cunho qualitativo,
por meio da análise de decisões do Supremo Tribunal Federal.
PALAVRAS-CHAVE: Trabalho Escravo. Direito Penal. Dignidade da Pessoa Humana.
Conceituação. Bem Jurídico.
INTRODUÇÃO
O crime de redução à condição análoga à de escravo é previsto no artigo 149 do
Código Penal. Foi a Lei 10.803/2003 que lhe deu nova redação, por sua vez, promovendo
significativas alterações na referida norma incriminadora, conquanto inseriu expressamente
um rol de condutas que ensejariam a configuração do ilícito penal.
Com efeito, a aludida alteração legislativa tornou a redação do artigo 149 do Código
Penal aparentemente mais clara, passando a prever que para sua caracterização bastaria a
ocorrência de uma das condutas nucleares nele contidas, quais sejam, a submissão a
trabalhos forçados; submissão a jornadas exaustivas; sujeição a condições degradantes de
trabalho; e/ou restrição da locomoção em razão de dívidas contraídas com o preposto e/ou
empregador, ou seja, servidão por dívidas.
Ocorre que, sustentamos nesse trabalho a hipótese de que as alterações legislativas
parecem não ter surtido o efeito esperado.
Estima-se que cerca de 369.000 (trezentas e sessenta e nove mil) pessoas estejam
submetidas à condição análoga à de escravo no Brasil, mesmo entre os anos de 1995 a 2018,
53.607 mil (cinquenta e três mil, seiscentos e sete) terem sido libertadas (OBSERVATORIO
ESCRAVO, 2015).
Isso se deve tanto às limitações estruturais das agências estatais de execução das
medidas legais e a uma crescente tendência de retrocesso em relação a iniciativas
fundamentais ao enfrentamento do trabalho escravo
1. Além disso, é possível citar a
impunidade dos perpetradores do crime de trabalho escravo, evidenciada pelo baixo número
de condenações penais
2.
De fato, nota-se, certa resistência por parte de alguns tribunais em reconhecer o
trabalho em condições análogas a de escravo, bem como para a consequente
responsabilização penal do agente que se beneficia com essa forma espúria de exploração
de mão de obra (MESQUITA; FREITAS, 2016).
Dentre as controvérsias que circundam a questão, despontam os embates e
discussões que orbitam ao redor da necessidade ou não do cerceamento da liberdade da
vítima para a caracterização do crime em lume e qual seria o bem jurídico tutelado pela norma
penal.
O referido desacordo interpretativo é sentido no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
Se por um lado a jurisprudência da Corte tem se firmado no sentido de que o bem jurídico
tutelado pela norma não se limita a liberdade ambulatorial, conquanto alberga, também (e
principalmente) a dignidade da pessoa humana. Por outro, importa salientar que tal
entendimento não é uníssono, tendo em vista que um número considerável de ministros
apresenta visão binária e extremamente simplista sobre a questão, que se distancia, e muito,
da nova roupagem das formas contemporâneas de escravidão.
O trabalho análogo ao de escravo constitui grave violação aos direitos humanos, de
modo que elenca o rol de normas jus cogens.
Dessa forma, é imperioso analisar de que forma a mais alta Corte de Justiça do país,
o Supremo Tribunal Federal, tem se portado quando se depara com esse tipo de violação.
Vale dizer, por meio da presente pesquisa intenta-se analisar a evolução interpretativa judicial
do conceito de trabalho análogo ao de escravo no âmbito do STF, de forma a evidenciar as
contradições interpretativas sobre a temática da configuração, conceituação e bem jurídico
tutelado pelo crime disposto no artigo 149 do Código Penal.
A princípio a pesquisa tinha como escopo apenas a análise de acórdãos que
versassem sobre a temática. Todavia, tendo em vista o grau de importância e relevância da
decisão monocrática proferida pela ministra Rosa Weber no bojo da ADPF 489, por opção
metodológica, também a analisaremos.
1Nesse sentido podemos citar as tentativas reiteradas de barrar a dita “lista suja”; o enfraquecimento do Grupo Especial de Fiscalização Móvel; redução do número de auditores fiscais do trabalho; a expedição da Portaria do Ministério do Trabalho nº 1.129/2017 -felizmente, já revogada, mas que visava uma delimitação conceitual deficiente e restritiva do crime de trabalho escravo- ; e a reforma trabalhista, ao extirpar direitos da classe trabalhadora e promover a ampliação das possibilidades de terceirização.
2 Segundo pesquisa realizada pela Divisão de Informação Estatística do Ministério Público Federal (BRASIL, 2014), no período de 2010 a 2014, 1.177 inquéritos policiais foram instaurados para a investigação do crime previsto no artigo 149 do CP, dos quais apenas 471 ações penais foram ajuizadas, e, dentre elas, apenas 7 execuções criminais foram autuadas.
Para o levantamento do banco de dados, trabalhou-se da seguinte forma. Por primeiro
foi acessado o sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal (http://portal.stf.jus.br/). Ato
contínuo, utilizou-se o ícone “Jurisprudência”, o qual disponibiliza um menu, em que
selecionamos o ícone “pesquisa”. O acesso ao referido ícone proporcionou o direcionamento
à tela denominada “Pesquisa de Jurisprudência”, em que são disponibilizados diversos filtros
de pesquisa, nos quais se deve inserir informações atinentes a cada um desses filtros. Nesse
sentido, no campo “pesquisa livre” inserimos o termo “trabalho escravo”. Os demais campos
permaneceram vazios, com exceção do ícone “acórdãos”, o qual selecionamos.
Realizados tais parâmetros de pesquisa, o sistema encontrou um total de 24 (vinte e
quatro) acórdãos. Nada obstante, dentre esse total de acórdãos encontrados, 8 (oito) não
foram analisados pelo fato de discutirem assuntos estranhos ao trabalho análogo ao de
escravo.
Dessa forma, iniciou-se o estudo com um total de 15 acórdãos
3. Ato contínuo, por meio
da leitura das ementas de tais julgados, selecionamos aqueles em que vislumbrou-se uma
maior pertinência em relação à temática objeto deste trabalho e aqueles em que houve uma
mudança de paradigma no que se refere ao entendimento da Corte, o que nos remeteu ao
número de 5 acórdãos, quais sejam: Inquérito 2.054/DF; RE 398.041/PA; RE 466.508/MA;
Inquérito 2.131/DF; e Inquérito 3412/AL.
1. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA
A primeira legislação pátria, após o processo de independência em relação a Portugal,
a tratar sobre a escravidão foi o Código Criminal do Império de 1830. O referido diploma
tratava os escravos como algozes, e não como vítimas, posto que sua vigência se deu em
época na qual a escravidão era legalmente permitida. Nesse ínterim, cumpre destacar as
referências à escravidão contidas no codex, que segundo HADDAD (2017 p. 13)
concentravam-se em três aspectos:
(...) para dizer que a punição moderada usada contra escravos era um crime justificável (art. 14 (6) ); para estabelecer as sanções que lhes poderiam ser aplicadas e em que quantidade (art. 60); e para definir o crime de insurreição (art. 113): “ Julgar-se-há cometido este crime, reunindo-se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força”.
3RE 4599510/MT; RHC 127528/PR; Inq. 3564/MG; HC 119645/SP; HC 102439/MT; Inq. 3412/AL; Inq. 2131/DF; RE 507110 ED/MT; RE 541627/PA; HC 91959/TO; RE 466508/MA; RE398041/PA; Inq. 2054/DF; HC 84802/SP; RE 15627/PA
Por outro lado, esse mesmo Código previa o crime de redução à escravidão em seu
artigo 179. Nesse aspecto, é pertinente explicitar que não se tratou de um paradoxo, mas sim,
de uma escolha legislativa pautada na legalidade da escravidão e na composição da
sociedade que era integrada por pessoas livres e não libertas. Dessa forma, o referido artigo
de lei não tinha nenhum compromisso com a criminalização da escravidão em si; seu
compromisso era com a impossibilidade da perda do status de liberdade por aqueles que não
eram considerados escravos. Tanto é assim que a própria redação do artigo de lei induz a tal
conclusão: “Reduzir à escravidão a pessoa livre, que se achar em posse da sua liberdade”.
Posteriormente, o Código Penal de 1890 (subsequente ao anterior), não tipificou
condutas atreladas ao trabalho escravo. Muito provavelmente isso tenha ocorrido em virtude
da abolição da escravidão dois anos antes, por meio da Lei Áurea
4. É que, ao que parece, o
legislador presumiu que não haveria necessidade de criminalizar comportamentos que
envolvessem à submissão de pessoas ao trabalho escravo, conquanto a existência de uma
norma anterior, de caráter geral e cogente, determinando o fim da escravidão (HADDAD,
2017).
Por meio do advento do Código Penal de 1940 tem-se a criminalização da escravidão
em seu sentido amplo, ou seja, não mais se tratava de repudiar a conduta de escravizar
apenas parcela da população (como ocorria nos Códigos Criminais anteriores), mas sim, de
todo e qualquer ser humano. A norma tinha a seguinte redação “reduzir alguém a condição
análoga a de escravo: Pena –reclusão de dois a oito anos”.
Nota-se a opção legislativa pelo termo “condição análoga”, que foi motivada pela
conclusão de que a escravidão de pessoas se tornou uma impossibilidade legal, no Brasil.
Ocorre que, tratava-se redação extremamente vaga consoante a existência de um tipo
penal aberto que contribuía para problemas interpretativos.
Nesse esteio, a Lei 10.803/2003 deu nova redação ao art. 149 do Código Penal, de
modo a inserir um rol de condutas que caracterizariam a prática do delito. Conforme elucida
Barbosa (2017, p.181) a alteração legislativa e a consequente construção do conceito de
trabalho análogo ao de escravo não foi fruto exclusivo de embates doutrinários e
jurisprudenciais, mas também, e principalmente, esteve pautada na experiência dos Grupos
Móveis, vale dizer, pela frequência em que determinados modos de execução eram
verificados nas inspeções.
A partir da mencionada Lei a redação passou a ser a seguinte:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhsubmetendo-os fsubmetendo-orçadsubmetendo-os submetendo-ou a jsubmetendo-ornada exaustiva, quer sujeitandsubmetendo-o-submetendo-o a csubmetendo-ondições
4 Lei n. 3.353, de 13 de maio de 1888, cujo artigo 1 asseverou: “Art. 1. É declarada extinta, desde a desta Lei, a
escravidão no Brasil”. BRASIL. Lei n. 3.353, de 13 de maio de 1988. Declara extinta a escravidão no Brasil. Colleção das leis do Imperio do Braszil de 1810. Rio d Janeiro: Imprensa Nacional, 1891. V.1, p.228.
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Destarte, o trabalho análogo ao de escravo passou a ser gênero, o qual apresenta
como espécies o trabalho forçado, condições degradantes de trabalho, jornadas exaustivas e
servidão por dívida.
Não obstante, a aludida Lei fez mais do que inserir novas figuras caracterizadoras do
tipo penal, conquanto houve a ampliação do bem jurídico tutelado. Conforme elenca Brito
Filho (2017,p. 349):
A liberdade, todavia, não é o principal bem jurídico tutelado, devendo ser considerado que houve nessa questão, uma ampliação do eixo de proteção da liberdade para, também e principalmente, a dignidade da pessoa humana, a partir da concepção de Kant a respeito desses dois princípios.
Ocorre que, esse entendimento não é absoluto. Ecoa tanto na doutrina, quanto na
jurisprudência de alguns tribunais pátrios que o único bem jurídico tutelado pelo art. 149, do
CP seria a liberdade de ir e vir. Para essa corrente, nos casos em que não houver o cerceio
da liberdade de locomoção, mas existirem condições degradantes de trabalho ou jornadas
exaustivas, tratar-se-iam de meras irregularidades trabalhistas.
Não fosse só isso, pairam críticas às aludidas espécies de trabalho análogo ao de
escravo, no sentido de que configurariam figuras de conceito extremamente indeterminado.
Esse descompasso interpretativo é sentido na Suprema Corte brasileira, conforme
será demonstrado no tópico a seguir.
2. A JURISPRIDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
2.1 O Inquérito 2.054/DF
No ano de 2006 o STF analisou o Inquérito 2.054-DF. A atuação do Supremo
pautava-se em analisar a possibilidade de recebimento de denúncia em face do então Deputado
Federal Inocêncio Gomes de Oliveira (PMDB/PE), porquanto teria aliciado trabalhadores
rurais e os submetido à condição análoga a de escravo.
No caso sub judice, tratava-se de reabertura de investigação que havia sido arquivada
outrora pelo Procurador Geral da República. Prevaleceu o voto da Ministra Relatora Ellen
Gracie, no sentido de que o arquivamento de inquérito policial pela PGR prescinde de
chancela judicial, bem como inexistiam provas novas hábeis a desarquivar a investigação.
A despeito de o Supremo não ter se manifestado sobre o conceito de trabalho escravo
ou sobre o bem jurídico tutelado pelo art. 149 do CP, cabe ressaltar os motivos que levaram
ao arquivamento da primeira investigação e a posterior tentativa de reabertura.
Segundo consta nos autos do expediente, o então PGR, Geraldo Brindeiro, por meio
da análise do relatório do Grupo Especial Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho,
não vislumbrou a conduta criminosa prevista no artigo 149 do Código Penal, porquanto o delito
importaria, em sua visão, supressão absoluta do estado de liberdade, o que não teria ocorrido
no caso concreto.
Além disso, sustentou que não restou caracterizado o elemento subjetivo do tipo,
conquanto o deputado investigado não teria agido com dolo, consistente na vontade de
explorar o trabalho escravo.
Entretanto, cabe ressaltar que o aludido parecer foi exarado pelo PGR Geraldo
Brindeiro em momento anterior à entrada e vigor da Lei 10.803/2003, ao passo que a tentativa
de reabertura da investigação e ajuizamento de nova denúncia pautada nos mesmos fatos, e
o consequente entendimento acerca da configuração de trabalho escravo contemporâneo se
deu em momento em que o ordenamento jurídico havia introduzido as figuras das condições
degradantes de trabalho e as jornadas exaustivas. Sabe-se que a lei penal não retroage, salvo
em benefício do réu (o que não ocorreu no caso em lume), todavia é possível observar a
mudança de paradigma conceitual dentro do próprio Ministério Público Federal a partir da
entrada em vigor da Lei 10.803/2003.
A denúncia foi rejeitada por maioria de votos.
2.2 O RE 398.041/PA
No bojo do RE 398.041/PA, ainda no ano de 2006, discutiu-se questão atinente à
competência material para processamento e julgamento do crime de trabalho análogo ao de
escravo. Em um primeiro momento poder-se-ia concluir que o referido julgado não teria
relação com a temática objeto desta pesquisa. Ocorre que, para definição da competência os
ministros teceram considerações acerca do bem jurídico tutelado pela norma penal.
No caso, o Tribuna Regional Federal da 1ª Região havia determinado a anulação da
ação penal, declarando a incompetência da Justiça Federal, conquanto o crime de trabalho
análogo ao de escravo seria de competência da Justiça Estadual, pelo fato de ser delito contra
a liberdade individual, não atraindo qualquer as hipóteses do art. 109 da Constituição Federal.
O Ministério Público Federal, por sua vez, interpôs o RE justamente com o fito de
reverter a decisão do Tribunal a quo, alegando, em síntese, que o referido tipo penal
configuraria crime contra a organização do trabalho, e não somente crime contra a liberdade
individual.
A jurisprudência do STF sobre esse tema em específico foi construída a partir de
decisão do ministro Moreira Alves, no bojo do RE 90.042, segundo o qual, os crimes contra a
organização do trabalho somente seriam aqueles que ofenderiam o sistema de órgãos e
instituições que preservam, coletivamente, os direitos e deveres do trabalhadores, de maneira
que, diversamente, não se caracterizariam quando houver violação de direito de um
determinado trabalhador.
O relator, ministro Joaquim Barbosa, em seu voto afastou a aplicação de tal
precedente, sob a argumentação de que nele discutia-se violação de direitos laborais
consistente na ausência de anotação na Carteira de Trabalho de um único trabalhador. Nesse
sentido, aduziu que a Corte não poderia continuar conferindo aplicação genérica ao
precedente, ainda mais, em casos como o sub judice, no qual estavam inúmeros
trabalhadores “em situação de total violação de liberdade e da autodeterminação de cada um”.
(STF, 2006, P.10)
Acerca do voto de Joaquim Barbosa é interessante ressaltar que é realizado um cotejo
entre a os bens jurídicos dignidade da pessoa humana e a organização do trabalho, de
maneira que, inclusive, o relator se vale de citações doutrinárias robustas, tais como as de
Flavia Piovesan e Ingo Sarlet, para aduzir que a despeito de a organização do trabalho
configurar a objetividade jurídica da norma penal, a dignidade da pessoa humana também
seria afetada.
O ministro Ayres Brito, acompanhando o relator, foi mais enfático ao tratar sobre o
protagonismo da dignidade da pessoa humana, ao aduzir que “não se pode ver o tema da
organização do trabalho dissociado do tema da dignidade da pessoa humana. Sem dúvida a
organização do trabalho é projeção do princípio da dignidade da pessoa humana (...)” ( STF,
2006, p. 29).
Outra discussão importante foi pautada pelo ministro Cezar Peluso que, em seu voto,
entendeu que o crime de trabalho análogo ao de escravo nem sempre ocorreria nas relações
de trabalho. O entendimento não prosperou.
De fato, antes da entrada em vigor da Lei 10.803/03, conquanto a antiga redação do
tipo penal previsto no art. 149, CP que era extremamente vaga, parte da doutrina entendia
que qualquer pessoa poderia ser o sujeito ativo e sujeito passivo do crime. Todavia, consoante
a inserção das espécies de trabalho análogo ao de escravo, especificando as situações que
caracterizam esse delito, o ilícito passou a ser crime próprio.
O ministro Gilmar Mendes, em seu voto, reconhece que o crime de trabalho análogo
ao de escravo deve ser enquadrado como crime contra a organização do trabalho, sob a
alegação de que, no caso, havia sido configurada ofensa ao interesse de ordem geral na
manutenção dos princípios básicos sobre os quais se estrutura o trabalho em todo o país.
Todavia, Mendes foi categórico ao aduzir que a despeito de todas as alterações
empreendidas pela Lei 10.803/2003, o bem jurídico tutelado continuaria a ser a liberdade
individual do trabalhador, entendida como a de ir e vir. E é justamente nesse esteio
argumentativo que sustenta que não se pode aduzir que todo fato, a princípio considerado
como trabalho escravo contemporâneo, pode implicar ofensa ao bem jurídico organização do
trabalho. Em seu ver, somente naqueles casos em que exista pluriofensividade da conduta
do agente criminoso, e a quantidade de vítimas envolvidas, bem como a repercussão social
causa sejam significativas é que pode-se falar e afetação do bem jurídico “organização do
trabalho”.
Outrossim, ainda em seu voto, o ministro Mendes também teceu considerações quanto
à caracterização do crime de trabalho análogo ao de escravo, mais especificamente acerca
da figura das “condições degradantes de trabalho”. O ministro consignou que trata-se de
cláusula indeterminada que teria o potencial de ser utilizada indevidamente para permitir um
alargamento exacerbado do suporte fático normativo, de forma a abranger todo e qualquer
caso e que trabalhadores são submetidos a condições aparentemente indignas de trabalho.
Colacionamos trecho de sua decisão:
Tem-se em mente, por exemplo, os fatos muito comuns em que as autoridades relatam como sendo caso de “trabalho escravo” a existência de trabalhadores em local se instalações adequadas, como banheiros, refeitório e etc, sem levar em conta que estas são, na maioria das vezes, o retrato da própria realidade interiorana do Brasil (STF, 2006, p.18)
Ao que parece o ministro tenta abrandar uma situação criminosa, visando conferir-lhe
uma status de normalidade, pautando-se nas mazelas sociais a que os trabalhadores estão
acometidos fora do local de trabalho, em suas vidas cotidianas. Ocorre que esse argumento
não pode prevalecer. Primeiro porque é deveras discriminatório e preconceituoso chegando
a fazer crer que existiriam níveis de dignidade do ser humano de acordo com a localidade e
as condições sociais em que vive: o pobre pode ser submetido a qualquer situação
degradante, pelo fato de já viver permeado pela miséria e portanto, acostumado. É uma
construção lógica que fere princípio éticos e tão caros do Estado Democrático de Direito. Em
segundo lugar, pelo fato de o empregador figurar como garante de seus empregados, sendo
responsável por lhes proporcionar um ambiente de trabalho adequado, trabalho decente, e
também pelo fato de dever cumprir a função social da empresa.
O recurso foi provido por maioria de votos.
2.3 O RE 466.508/MA
No ano de 2007 foi julgado o RE 466.508. Tratou-se de recurso interposto pelo
Ministério Público Federal em face de Habeas Corpus concedido parcialmente pelo TRF 1, no
qual o tribunal alegou a incompetência da justiça federal, sob o argumento de que a prática
do crime de trabalho análogo ao de escravo teria atingido somente interesses individuais dos
trabalhadores, e não a organização do trabalho.
No caso, trabalhadores da Fazenda Pindaré do Vale, teriam sido submetidos,
conforme relata a denúncia, “a condições precárias de higiene, desprovidos de alimentação,
água e abrigo adequados, além de ausência de pagamento regular das remunerações”, além
disso, consta que a fiscalização empreendia pelos Grupos Móveis teria encontrado caderno
de anotações pertencentes aos gatos no quais constavam “compras de roupas, remédios,
materiais de higiene pessoal, limas, botas e outros, inclusive dívidas de hotel (...)” (STF, 2007)
Há relatos também de aliciamento e transporte de trabalhadores (inclusive um menor
de idade) de outros municípios para a Fazenda.
Por unanimidade o STF não deu provimento ao recurso, consignando que ao caso
seria aplicado como precedente o voto do ministro Moreira Alves no bojo do RE 90.042, o
qual, por sua vez, havia sido rechaçado quando do julgamento do RE 398.041.
Em voto deveras sucinto, os ministros, por unanimidade entenderam que no caso
ocorreram apenas descumprimentos de normas de proteção do trabalho, porquanto ausente
o cerceio da liberdade (entendido, na ocasião, como bem jurídico tutelado pelo art. 149, CP)
e, logo, impossível a caracterização do crime de trabalho análogo ao de escravo.
Tal entendimento demonstra uma alternância abrupta de interpretação acerca da
caracterização do crime de trabalho análogo ao de escravo e bem jurídico tutelado pela norma
penal que a maioria dos ministros do Supremo adotou anteriormente.
Nota-se a resistência da jurisprudência em reconhecer a dignidade da pessoa humana
como principal bem jurídico tutelado pela norma, consoante o fato de que a despeito de
existentes as condições degradantes de trabalho não houve a caracterização do crime pela
ausência de cerceio da liberdade ambulatorial.
2.4 O Inquérito 2.131/DF
Tratou-se da análise de recebimento ou rejeição de denúncia oferecida em face de
João Batista de Jesus Ribeiro, à época senador da república, e Osvaldo Brito Filho. O
Ministério Público Federal imputava-lhes as práticas dos crimes de aliciamento de
trabalhadores (art. 207, §º 1º, CP), frustração de direitos trabalhistas (art.203, §1º, i, e § 2º) e
redução a condição análoga à de escravo (art. 149, CP).
Consta que os denunciados teriam submetido cerca de 35 trabalhadores à condição
análoga a de escravo na Fazenda Ouro Verde, no Estado Pará. Registre-se que João Batista
era o proprietário da fazenda e Osvaldo Ribeiro o administrador da propriedade rural.
O Supremo analisava a existência de substrato mínimo probatório hábil a autorizar a
deflagração da ação penal contra os denunciados.
Em seu voto, a relatora ministra Ellen Gracie, transcreveu trechos do relatório de
inspeção realizado pelos Grupos Móveis no qual foram narradas as condições em que os
trabalhadores estavam submetidos:
a)- “alojamentos” em ranchos de folha de palmeiras, sem qualquer beneficiamento do piso, sendo que um dos ranchos foi levantado sobre um brejo com mau cheiro insuportável, além de excessiva umidade; b)- não havia cozinha, e sim “fogareiros” improvisados”; c)- não havia refeitório e, por isso, os trabalhadores sentavam-se sobre pedras e restos de árvores (ou mesmo sobre a relva ou o solo nu); d)- a água suja que os trabalhadores bebiam tinham três” fontes”: um “brejo lamacento” (aparentemente a nascente de um córrego), uma “cacimba rústica” (onde havia acúmulo de “água brejada” que se espalhava pelas cercanias) e uma represa (cuja água era partilhada entre os trabalhadores e os animais da fazenda); e)- ausência de sanitários para os trabalhadores; f)- não havia fornecimento de equipamento de proteção individual (...); g)- havia trabalhadores enfermos com lesões nas mãos. (STF,2012)
A relatora ainda consignou que os trabalhadores praticavam jornada de até 12 (doze)
horas de segunda-feira à sábado, e aos domingos de 6 (seis) horas.
Nesse esteio, Grace consignou expressamente que havia elementos indicativos da
prática do crime de redução à condição análoga à de escravo, nas modalidades condições
degradantes de trabalho e jornadas exaustivas. No que toca à essa última, a ministra
ressaltou, ainda, que a jornada além de exaustiva era forçada, porquanto os trabalhadores
não tinham outra opção, sendo obrigados a trabalhar, vez que não podiam, de forma
espontânea, trabalhar oito horas diárias.
No bojo de seu voto, a ministra faz cotejo em relação as alterações promovidas pela
Lei 10.803/2003, e a consequente ampliação do rol de condutas amoldadas ao art. 149 do
Código Penal e aduz que ante a ocorrência do delito de trabalho análogo ao de escravo “há
claro atentado ao princípio da dignidade da pessoa humana na vertente do direito à liberdade
e do direito ao trabalho digno” (STF,2012)
Ademais, a relatora observa, em seu voto, que a atual redação do supradito artigo de
lei, visou atender compromisso internacionalmente assumido pelo governo brasileiro pela
erradicação do trabalho escravo contemporâneo.
Além disso, traçou considerações segundo as quais o trabalho degradante constitui
forma grave de violação de direitos humanos, e para tanto, lançou mão à citações doutrinárias,
trazendo à baila citações de obras de Flávia Piovesan e José Carlos Monteiro de Brito Filho.
As passagens doutrinárias selecionadas reforçam que o bem jurídico tutelado pela norma
penal é a dignidade da pessoa humana, nas situações de ocorrência de jornadas exaustivas
e condições degradantes de trabalho, nos moldes ocorridos no caso concreto.
Ocorre que o entendimento da ministra não foi unânime, havendo divergência
interpretativa substancial.
O ministro Gilmar Mendes entendeu pela rejeição da denúncia, discordando da
relatora.
Segundo consta em seu voto, Mendes defende que é preciso realizar distinções entre
eventuais descumprimentos da legislação trabalhista e o “trabalho escravo”. Dessa forma,
elencou que os fatos descritos no relatório do Grupo Móvel e contidos na denúncia, não
configuram crime, mas sim meras irregularidades trabalhistas. Para tanto, argumentou que as
situações encontradas no local de trabalho inspecionado são corriqueiras nas regiões
paupérrimas do Brasil e, por isso, se repetem nas condições de trabalho. Por isso, aduziu que
“não é razoável qualifica-las de criminosas por esta exclusiva razão”. (STF, 2012)
Ademais, acrescentou que os auditores, em seu ver, se valeram de um discurso
deveras subjetivo e ideológico na construção do relatório.
No afã de dar robustez a seus argumentos, mais especificamente ao fato de considerar
o tipo penal extremamente aberto e que a caracterização do delito estaria eivada de conceitos
ideológicos, o ministro traz à baila que a Relatora Especial da ONU sobre Formas
Contemporâneas de Escravidão suas Causas e Consequências, Gulnara Shahinian, teria
sustentado, inclusive, que deveria haver alteração do tipo penal com vistas a uma definição
mais aclarada, de forma a suprimir as figuras indeterminadas que compõe o delito.
“O Governo deve decretar uma definição mais clara do crime de trabalho escravo, o que ajudaria mais a Polícia federal a investigar e abrir processos criminais contra perpetradores do trabalho escravo”. O relatório da Sra. Gulnara Shahianian, datado de 13 de julho de 2010, revela a questão crucial que estamos enfrentando: em razão de o tipo penal do art. 149 do CPB ser excessivamente aberto, a caracterização do delito de redução a condição análoga à de escravo tem se prestado à fixação de conceitos ideológicos, o que impõe a esta Corte uma análise acurada, sob pena de compactuar com a utilização do direito penal para fins outros que não a proteção do mínimo ético, indispensável ao convívio em sociedade.
(...)
O objetivo da Lei nº 10.803/2003 não é usar Juízes Criminais para combater irregularidades de cunho trabalhista, sob pena de se chegar à prisão por dívida vedada constitucionalmente (CF, art. 5°, LXVI) (STF,2012)
Ocorre que a própria Relatora, em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo
no ano de 2012 (FOLHA DE SÃO PAULO, 2012) exarou que estima o conceito de trabalho
análogo ao de escravo adotado pelo Código Penal brasileiro, dando ênfase à importância da
presença das figuras
das“condições degradantes de trabalho” a qual, segundo ela, confere
uma perspectiva importantíssima de direitos humanos à legislação.
Nesse sentido, aduziu que em momento algum, quando da elaboração do relatório,
consignou que defendia a alteração do conceito brasileiro de trabalho escravo por meio da
supressão das figuras que o compõe. Pelo contrário, ao sugerir que o governo decretasse
uma definição mais clara de trabalho escravo, Shahinian sugerira a dilatação do atual
conceito, com vistas a aumentar as possibilidades fáticas de caracterização de trabalho
análogo ao de escravo e, com isso, aumentar o âmbito de proteção da norma.
Outrossim, seguindo a mesma linha de posicionamento anteriormente defendida em
outros julgados, Mendes aduz que o bem jurídico tutelado pela norma penal é a liberdade de
locomoção do trabalhador, de forma que, para a caracterização do crime em quaisquer de
suas formas, imprescindível o cerceio da liberdade ambulatorial.
No que se refere a este ponto específico do voto do ministro, importa trazer à baila as
considerações de Maria Armond Dias Paes (2018), acerca dessa relação binária entre
trabalho escravo e liberdade, no sentido de que trata-se de concepção simplista, superficial e
errônea, conquanto cria obstáculos ao combate à escravidão.
Essa constatação – de que a restrição à liberdade de locomoção, entendida em sentido estrito (isto é, não decorrente da contração de dívida0, constitui o único elemento fático absolutamente não tolerado pelos juízes n aplicação do direito penal- indica que, em diversas ocasiões, a decisões dos juízes brasileiros são orientadas por determinada concepção histórica sobre a escravidão brasileira vigente até o século XIX. Segundo essa concepção, a escravidão era e é algo associado à restrição da liberdade de locomoção.
A denúncia foi recebida por maioria de votos, vencidos os ministros Gilmar Mendes,
Dias Toffoli e Marco Aurélio (os quais comungam da mesma opinião quanto ao fato de o bem
jurídico tutelado ser exclusivamente a liberdade ambulatorial). O ministro Cezar Peluso
recebeu a denúncia em parte.
2.5 O Inquérito 3412/AL
Tratou-se da análise de recebimento ou rejeição de denúncia proposta pelo Ministério
Público Federal em face de João José Pereira de Lyra, deputado federal à época, e Arnaldo
Baltas Cansanção, porquanto teriam submetido a jornada exaustiva e a condições
degradantes de trabalho, 56 (cinquenta e seis) trabalhadores da empresa Laginha
Agroindustrial S.A.
Consta da denúncia que a situação criminosa foi descoberta por meio de fiscalização
empreendida pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, por meio da qual detectou o
seguinte quadro fático: o alojamento destinado aos trabalhadores sujo, com mau cheiro, sem
ventilação adequada; ausência de colchões no alojamento, utilizando os trabalhadores, para
dormir, “espumas de má qualidade, visivelmente envelhecidas, sujas e muitas rasgadas”;
água disponibilizada no alojamento proveniente apenas de torneiras; a água disponibilizada
aos trabalhadores nos canaviais, em caçambas precárias e sujas; não havia banheiros não
havia mesas ou cadeiras para refeições; não havia material de primeiros socorros; não eram
entregues equipamentos de proteção adequados aos trabalhadores; o transporte dos
trabalhadores era realizado em ônibus precários; os trabalhadores eram submetidos a
exaustiva jornada de trabalho, constando informações de que prestariam até seis horas extras
por dia; não era disponibilizado transporte aos trabalhadores para o retorno às respectivas
residências durante as folgas; que o lugar onde dormiam era chamado de “Cadeião”.
O ministro Marco Aurélio, relator, a despeito de aduzir que por meio da Lei 10.803/2003
o legislador enumerou as condutas que indicam a redução do trabalhador à condição análogo
a de escravo, consignou que toas as novas figuras, para sua caracterização, necessitam estar
atreladas à restrição da liberdade ambulatorial. Nesse esteio, concluiu que no caso em
testilha, as imputações consubstanciavam responsabilidade não penal, mas sim cível,
trabalhista ou administrativa, conquanto o caso fático desenhado não passou de
inobservâncias de normas trabalhistas, ante a ausência de restrição da liberdade.
É imperioso salientar que o ministro colaciona citação doutrinária de Cezar Roberto
Bitencourt para sustentar seu argumento, todavia, cai em contradição, tendo em vista que no
trecho selecionado, o aludido autor aduz que o principal bem jurídico tutelado é a liberdade
individual, mas sob o aspecto ético-social, conduzindo à dignidade da pessoa humana. O
autor, inclusive, faz distinção entre os crimes de cárcere privado e sequestro e o delito de
trabalho análogo ao de escravo.
o bem jurídico protegido, nesse tipo penal, é a liberdade individual, isto é, o status libertatis, assegurado pela Carta Magna brasileira. Na verdade, protege-se aqui a liberdade sob o aspecto ético-social, a própria dignidade do indivíduo, também igualmente elevada ao nível de dogma constitucional. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo fere, acima de tudo, o princípio da dignidade humana, despojando-o de todos os valores ético-sociais, transformando-o em res, no sentido concebido pelos romanos. E, nesse particular, a redução à condição análoga à de escravo difere do crime anterior – sequestro ou cárcere privado –, pois naquele a liberdade “consiste na possibilidade de mudança de lugar, sempre e quando a pessoa queira, sendo indiferente que a vontade desta dirija-se a essa mudança”, enquanto neste, embora também se proteja a liberdade de auto-locomover-se do indivíduo, ela vem acrescida de outro valor preponderante, que é o amor próprio, o orgulho pessoal, a dignidade que todo indivíduo deve preservar enquanto ser, feito à imagem e semelhança do Criador. Em sentido semelhante manifestava-se Aníbal Bruno, afirmando que referido fato delituoso não suprime determinado aspecto da
liberdade, mas, “atinge esse bem jurídico integralmente, destruindo o pressuposto da própria dignidade do homem, que se opõe a que ele se veja sujeito ao poder incontrastável de outro homem, e, enfim, anulando a sua personalidade e reduzindo-o praticamente à condição de coisa, como de escravo romano se dizia nos antigos textos.
A ministra Rosa Weber (redatora), divergiu do relator. Em seu voto, parafraseado
decisão da Suprema Corte estadunidense no caso Brown v. Board of Education, aduziu que
(...)
na abordagem desse problema, não podemos voltar os nossos relógios para 1940, quando foi gravada a parte especial, ou mesmo para 1888, quando a escravidão foi abolida no Brasil. Há que se considerar o problema da escravidão à luz do contexto atual das relações de trabalho e da vida moderna.(STF, 2012)Vale dizer, as situações de ocorrência de trabalho análogo ao de escravo devem ser
interpretadas de maneira evolutiva, conforme a realidade atual. Nesse sentido, a ministra
aduziu que as formas contemporâneas de escravidão não são aquelas mesmas encontradas
nos navios negreiros ou nos engenhos de cana. Segundo observou em seu voto
Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade, tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta na capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo” (STF,2012)
Rosa Weber enfatizou que o art. 149, CP trata-se de tipo misto alternativo, de maneira
que a ocorrência de qualquer uma das figuras lá descritas configura o delito. Destarte aduziu
que a inserção d art. 149 no capítulo dos crimes contra a liberdade individual não é fato
determinante para a interpretação do dispositivo à luz de literalidade da posição geográfica n
Código Penal, consoante a alteração que lhe deu a Lei 10.803/2003.
5Ante o exposto, concluiu que não é necessário o cerceamento da liberdade de
locomoção para configuração do trabalho escravo contemporâneo em suas espécies
condições degradante de trabalho e jornadas exaustivas.
O ministro Luiz Fux acompanhou o voto da relatora e aduziu a necessidade de
interpretação das normas, mais especificamente do Código Penal, à luz da Constituição
Federal, o que condiciona ao entendimento de que as condições degradantes de trabalho e,
por sua vez, o trabalho análogo ao de escravo fere a dignidade da pessoa humana.
5Veja-se, por exemplo, que o crime de ameaça (art.147, CP) está inserido no mesmo capítulo e neste crime não há restrição da liberdade ambulatorial.
O ministro Dias Toffoli observou em seu voto que o bem jurídico tutelado seria a
liberdade pessoal que, no entendimento exarado, revelou ser a liberdade ambulatorial,
pautando-se, na construção de seu argumento, unicamente na posição topográfica do art. 149
no Código Penal.
O ministro Gilmar Mendes proferiu seu voto no sentido de enxergar as condições
degradantes de trabalho como meras irregularidades trabalhistas. Nesse passo, inclusive,
aduziu pela normalidade da situação relatada no relatório de fiscalização.
Por maioria, nos termos do voto da relatora, o Supremo recebeu a denúncia.
2.6 A ADPF 489/MC-DF
Em 16 de outubro de 2017 era publicada no Diário Oficial da União a Portaria
1.129/2017 pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), assinada pelo então Ministro do
Trabalho Ronaldo Nogueira Oliveira, com aval do ex presidente da República Michel Temer.
Segundo informações contidas em nota oficial lavrada pelo MTE, a Portaria se
prestava a aprimorar e dar segurança jurídica à atuação do Estado brasileiro no combate ao
trabalho análogo ao de escravo. Para tanto, dispôs sobre os conceitos de trabalho forçado,
jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho, para fins de concessão de
seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização promovida por auditores
fiscais do trabalho (MTE, 2017).
Confira-se o art. 1º, da Portaria, in verbis:
Art. 1º Para fins de concessão de benefício de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser identificado como submetido a regime de trabalho forçado ou reduzido a condição análoga à de escravo, nos termos da Portaria MTE nº 1.153, de 13 de outubro de 2003, em decorrência de fiscalização do Ministério do Trabalho, bem como para inclusão do nome de empregadores no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo, estabelecido pela PI MTPS/MMIRDH nº 4, de 11.05.2016, considerar-se-á:
I - trabalho forçado: aquele exercido sem o consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de expressar sua vontade; II - jornada exaustiva: a submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria;
III - condição degradante: caracterizada por atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem na privação da sua dignidade;
IV - condição análoga à de escravo:
a) a submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária;
b) o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, caracterizando isolamento geográfico;
c) a manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto;
d) a retenção de documentação pessoal do trabalhador, com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho; (grifos nossos)
Percebe-se que os conceitos de trabalho análogo ao de escravo e suas espécies foram
condicionados à caracterização da restrição da liberdade de locomoção do indivíduo.
Na data de 20/10/2017 o partido político Rede Sustentabilidade ajuizou Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)
6perante o Supremo Tribunal Federal, com
o intuito de obter a declaração de inconstitucionalidade da Portaria, sob a argumentação de
que aquele ato administrativo ofenderia “o marco legal do combate ao trabalho escravo no
país”, porquanto atenta contra o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como contra
a sistemática jurídica nacional e internacional dos direitos humanos, em especial contra
normas que compõem o arcabouço basilar protetivo dos direitos sociais.
Nessa linha argumentativa, o Rede Sustentabilidade apontou como um dos principais
vícios do ato administrativo a indevida restrição do conceito de redução à condição análoga à
de escravo. Esclareceu que as formas contemporâneas de escravidão podem ou não envolver
o cerceamento da liberdade de locomoção dos trabalhadores, e que sempre atingem a
dignidade humana da pessoa humana.
Em decisão monocrática, a Ministra Relatora Rosa Weber conheceu da arguição e
suspendeu liminarmente todos os efeitos jurídicos da Portaria, até o julgamento do mérito pelo
Plenário do Supremo Tribunal Federal.
A ministra aduziu que o art. 149 do Código Penal é a norma que serve de substrato
atuação dos auditores fiscais, polícia federal, ministério público federal, judiciário e demais
órgãos e entidades envolvidas no combate ao trabalho escravo. Elencou que o tipo penal em
questão não exige a ocorrência de restrição da liberdade de locomoção para caracterização
das espécies jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho.
Em seu voto, a ministra lembrou da sistemática do Direito Internacional dos Direitos
Humanos, elucidando todos os aparatos normativos internacionais os quais vigoram no Brasil.
Nesse sentido, sustentou que a Portaria tem o condão de vilipendiar os Tratados
Internacionais dos quais o Brasil é signatária e o desrespeito às recomendações feitas pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos, no bojo da condenação imposta ao país no caso
Fazenda Brasil Verde vs. Brasil.
6 ADPF 489 MC/DF, Relatora Ministra Rosa Weber, julgamento em 23.10.2017. Constaram como amici curiae na ADPF Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC); Comissão Pastoral da Terra (CPT); Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); e Confederação Nacional da Indústria (CNI).
A ministra considerou que a definição imposta pela Portaria, deveras restritiva, não era
compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, a jurisprudência dos tribunais sobre a
matéria e os tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
Rosa Weber ressaltou que "a 'escravidão moderna' é mais sutil e o cerceamento da
liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente
físicos” (STF, 2017).
Nesse esteio argumentativo, deixou claro em seu voto que de acordo com a
jurisprudência majoritária do Supremo Tribunal Federal o bem jurídico tutelado pela norma
insculpida no art. 149 do Código Penal é, principalmente, a dignidade da pessoa humana,
princípio da República Federativa do Brasil e princípio tônico do Estado Democrático de
Direito.
Ainda, elencou que “a violação do direito ao trabalho digno, com impacto na
capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação, também significa
‘reduzir alguém a condição análoga à de escravo”.
Nesse sentido, fez considerações sobre os reflexos do conceito intentado pelo
Ministério do Trabalho, ao aduzir que:
A definição conceitual proposta na Portaria afeta as ações e políticas públicas do Estado brasileiro, no tocante ao combate ao trabalho escravo, em três dimensões: repressiva (ao repercutir nas fiscalizações procedidas pelo Ministério do Trabalho), pedagógico-preventiva (ao disciplinar a inclusão de nomes no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo) e reparativa (concessão de seguro-desemprego ao trabalhador resgatado). Consoante a fundamental judicial, as definições conceituais do ato questionado, sobremodo restritivas, não se coadunam com o que exigem o ordenamento jurídico pátrio, os instrumentos internacionais celebrados pelo Brasil e a jurisprudência dos tribunais sobre a matéria (STF, 2017)