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As Populações nos Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental. Ou, Da Demografia dos Grandes Números à Demografia dos Pequenos Números

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As Populações nos Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental.

Ou, Da Demografia dos Grandes Números à Demografia dos Pequenos Números

Apresentação

O presente texto tem como objetivo apresentar alguns aspectos da discussão que envolvem as populações, nos contextos dos estudos ambientais. As reflexões que aqui se fazem fundamentam-se nas experiências que temos em processos de licenciamento ambiental e de discussões teórico/metodológicas sobre as formas como o homem e a sociedade são tratados nesses processos. Consideramos essa discussão de extrema relevância, pois o que verifica recorrentemente nos estudos ambientais, é uma abordagem fragmentada do homem e de suas ações. Isso deve-se tanto à forma como estruturaram-se as equipes responsáveis por tais estudos, como pelo escopo apresentado pela Resolução 01/86 do CONAMA. Tendo origem em empresas de consultoria, que prestavam serviços às grandes obras de engenharia, tais equipes tinham por competência avaliar a viabilidade das obras (em seus aspectos de engenharia e econômico/financeiros) e para tanto constituíam-se basicamente de engenheiros, sociólogos e economistas. Já a legislação privilegiou um enfoque que fragmentou a realidade nas dimensões dos fenômenos naturais físicos e bióticos e na dimensão sociais, econômicas, culturais, demográficas, antropológicas, históricas, etc., tudo em pacote denominado de “meio antrópico”.

Porém, o que a realidade tem cobrado à todos aqueles que se dedicam aos estudos ambientais, é que as abordagens que tem sido feitas não respondem a realidade, e tal situação têm colocado em dúvida a viabilidade dos empreendimentos propostos. Um exemplo de tal situação, é a reação das populações atingidas por grandes obras (as hidrelétricas, por exemplo), contra a sua instalação. As exigências impostas pelos estudos ambientais, pela aplicação de metodologias de investigação que dêem conta da apreensão da realidade em sua multidimensionalidade – o sentido de holismo fortemente reivindicado pelos ambientalistas –, aliam-se aos processos de complexificação das relações sociais do mundo contemporâneo. Essa realidade têm exigido aos estudos sobre a sociedade, a necessidade um novo olhar sobre ela. Um olhar

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profundo, com novas lentes que permitam enxergar que essas diversidades passam a ocorrer, cada vez mais, em escalas locais. O desafio imposto aos estudos sobre as populações, seja eles voltados às questões ambientais, ou não, impõem à demografia a exigência da adoção dessas novas lentes. É sobre isso que trataremos aqui. O pano de fundo dessa discussão, que será no final do texto, foi um debate sobre população e meio ambiente, promovido pelo curso de Ciências Sociais na PUC-SP, no ano de 1998.

Considerações Gerais

A obrigatoriedade de apresentação de estudos e de relatórios de impacto ambiental em obras potencialmente impactantes, está completando 14 anos. A data é importante, pois foi a partir da Resolução CONAMA 01 de 1986, como é sabido, que sistematizou-se as normas de licenciamento de empreendimento no país. O escopo tanto dos estudos de impacto ambiental, quanto dos relatórios de impacto ambiental (EIA-RIMAs), obrigam uma abordagem mínima de temas, que acabaram por fragmentar a realidade em três dimensões, que segundo seus formuladores dariam conta de representa-la: os “meios” físico, biótico e antrópico.

O primeiro grande problema de tal abordagem, é que as metodologias de análise que daí surgiram reforçaram uma fragmentação analítica da realidade. As equipes multidisciplinares constituíram-se neste contexto, onde cada grupo de especialistas era responsável por apresentar diagnósticos da realidade e prognósticos dos impactos nesse escopo. O ideário constituinte dessa formulação fundamenta-se no desenvolvimento da especialização do “conhecimento perito”, que pauta-se na fragmentação dos espaços e dos tempos. Assim, “natureza viva”, “natureza morta” e a sociedade somente são intercambiáveis pela articulação racional dos conhecimentos peritos. O sentido dessa fragmentação gera uma desarticulação tempo-espacial na análise, pois para cada uma dessas “dimensões” da realidade, os processos e as escalas são de ordem extremamente diversa. Dentro de cada uma dessa dimensões existem ainda outras tantas dimensões que fragmentam ainda mais esses espaços e tempos. Por exemplo, as dinâmicas superficiais de encostas, possuem processos e escalas que diferenciam-se das dinâmicas estruturais dos embasamentos (a geomorfologia/pedologia e a geologia); assim como os tempos e territórios de investigação das formações vegetais e dos grupos animais são distintos (aflora e a fauna); dentro desses grupos existem ainda mais subdivisões de

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especialização e portanto de subdivisões tempo-espaciais. No capítulo “antrópico”, onde reside o segundo problema, essa fragmentação assume um caráter radical. Não trataremos aqui especificamente desse “segundo problema”, que vincula-se à designação dos aspectos da produção/existência humana como um “meio”, um envoltório/envolvimento do e ao homem, o “meio antrópico”. Mas que da forma como é concebido o escopo dos EIA/RIMA, as abordagens no capítulo que abrange o homem e à sociedade, suas ações e relações, aprofundam de forma radical a fragmentação tempo espacial da vida. Política, economia, saúde, cultura e demografia aparecem como universos particulares que alienam o homem dos processos complexos que envolvem esses universos. É nesse sentido que a fragmentação radicaliza-se e multidimensiona o homem. Mergulhando um pouco mais na formas e conteúdos desse processo, enxergaremos as mãos do ideário da modernidade.

O fato contraditório nesse processo, é que os estudos ambientais acabaram por propor a idéia de que eles possuiriam como característica marcante, o holismo. A abrangência holística dos estudos ambientais, vinha substituir as antigas análises positivas que fragmentavam-se nas especialidades técnicas. Porém, este holismo apenas aparece como metáfora nas “matrizes de impacto e de medidas mitigadoras”, que apresentam-se como a síntese possível das diversas dimensões da realidade abordadas nesses relatórios. Essa estrutura de construção matricial de relações de causa e efeito entre os elementos das dimensões da realidade, expõe às claras a forma instrumental como a realidade é desmontada e remontada nestes contextos, e exemplifica como o aparelho ideológico dessa modernidade tende a criar o conceito em detrimento da realidade, para depois legitimar o conceito como realidade1.

É nesse contexto que procuraremos analisar como as populações são tratadas nos contextos da questão ambiental.

População e os Licenciamentos Ambientais

Em recente encontro de geógrafos (X Simpósio Nacional de Geografia Urbana, ocorrido em outubro de 1999), houve um momento onde foi feita uma severa crítica aos conteúdos apresentados nos EIA-RIMAs, sobremaneira de seu caráter pouco crítico

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(instrumental) e desrespeitosos às características locais. Quanto ao primeiro aspecto, a contratação de um EIA-RIMA, óbvio, visa a aprovação do licenciamento do empreendimento/atividade. O problema é que muitos desses relatório utilizam-se de argumentos pouco plausíveis para tanto, tornando-os muito frágeis e tecnicamente pouco convincentes. Neste caso cabe a cada técnico envolvido aceitar, ou não, compor o grupo que o elabora, e ao órgão licenciador, aceitar, ou não, os argumentos (técnicos, políticos, sociais, econômicos e ambientais) expostos. Mas o que chamou mais a atenção foi o ponto em que a crítica volta-se ao entendimento de que esses relatórios, de forma geral, não distinguem adequadamente como o empreendimento/atividade agirá na realidade sociedade em suas diversas escalas. É sobre esse aspecto que nos deteremos.

No início deste artigo argumentamos que o formato proposto para o escopo dos EIA/RIMAS contribuiu para a fragmentação da realidade, ao separa-la metodologicamente em “meios”. Os tempos e os espaços e a relação tempo-espaço tornam-se independentes para os diversos universos da realidade. Porém, existe um outro fator desse escopo que também contribui para o acirramento dessa fragmentação, que é a “obrigatoriedade” da definição para a análise de “diferentes níveis de áreas de influência” para as ações propostas . De antemão duas escalas territoriais de análise são impostas: a área de influência direta e a área de influência indireta das ações impactantes do empreendimento. A princípio os limites desse territórios seriam dificilmente definidos, devido à diversidade dos elementos da realidade tratados, que tanto possuem dimensões e escalas distintas, quanto são atingidos de formas diferentes pelos empreendimentos. Uma coisa, por exemplo, é definir o território de um grupo de lobos guará, da ocorrência de uma espécie de bromélias, ou de uma formação geológica, e outra a área de abrangência de uma “linha de leite”, na produção pecuária, ou dos limites municipais que determinam a jurisprudência da organização político administrativa de um município, atingidos, por exemplo, pelo enchimento de um reservatório. A solução que a legislação propôs, foi a adoção de um critério físico-ambiental para essa delimitações, que são as bacias hidrográficas. A rigor, desse ponto de vista fisico-ambiental, a bacia hidrografica responde adequadamente como um “território de influência”, pois a água é meio e um veículo extremamente susceptível à modificações, além de ser um grande agente modificador do meio envoltório, de ser

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manancial para o homem e um recurso para a agricultura. Porém, como é sabido, essa unidade não responde às atividades humanas. Para titulo de exemplo e para não nos estendermos mais neste assunto, basta lembrar os problemas causados na implantação dos Comitês de Bacia do Estado de São Paulo (dentro do Plano Estadual de Recursos Hídricos), onde houve a necessidade de uma compatibilização, que foi política, entre os territórios das bacias e os dos municípios participante de cada Comitê. Portanto, nem sempre os limites das bacias hidrográficas foram respeitados.

O problema que está colocado, e que é central na discussão sobre como o componente população costuma ser tratado nos estudos ambientais, é da questão da escala, que é de dimensão e de abrangência, a ser adotada nos estudos. Porém, como a população costuma ser tratado nestes estudos? Podemos considerar basicamente que de duas formas, ainda independentemente da escala: uma mais estritamente demográfica e outra sociológica. Explico. Boa parte do item “meio antrópico” é dedicado a um prognóstico e diagnóstico das populações direta e indiretamente atingidas pelo empreendimento/atividade, que implica em sua caracterização mais estritamente demográfica. Ou seja, implica em apresentar um pacote de variáveis onde constam os volumes de população atingida, sua condição de urbanidade ou ruralidade, renda (média e per capita, do chefe e/ou da família), grau de instrução, taxa de mortalidade infantil, taxa de mortalidade infantil por veiculação hídrica, saldos migratórios, dinâmicas de crescimento passadas (taxa de crescimento geométrico anual das populações total, urbana e rurais), dinâmicas de crescimento futuras (projeções das populações total, urbana e rural), ocupação segundo setores de atividade, etc.

Esse “pacote” deveria reproduzir a realidade demográfica, pelo menos nas duas escalas recomendadas (áreas de influência direta e indireta). Contudo, problemas começam a aparecer tanto quando são definidas tais áreas, quanto da disponibilidade de informação referentes à data de execução dos relatórios. Isso ocorre porque as fontes de dados utilizados são geralmente censitária e, portanto, possuem limitações territoriais e temporais em seu uso. Outro fato é que dependendo do tipo de empreendimento essa disponibilidade é ainda mais precária.

Por exemplo, no caso da construção de uma hidrelétrica a área de influência indireta, correspondente a uma subbacia hidrografia, que pode abranger alguns

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municípios (mesmo que fisicamente existam divisores de água no interior de alguns dos municípios que separe esta subbacia de outra), os dados demográficos e socieconômicos devem considerar a totalidade desses municípios. Isso garante que possa existir dados censitários para esses municípios em um tal volume, que possibilite uma certa consistência nas informações. Contudo, se este empreendimento demandar os estudos em um período intercensitário, o problema ocorrerá com a desatualização das informações, que fragiliza o estudo. Já para as área de influência direta, os dados secundários dos censos não são passíveis de uso, a não ser que os dados dos setores censitários estiverem disponíveis. Porém, por vezes essas áreas podem abranger parte de alguns setores, o que dificultaria seu uso (mesmo porque nas zonas rurais esses setores possuem uma grande área). Nesse casos, é recomendada a utilização de investigação direta, através de entrevistas com as famílias em todos os domicílios que serão atingidos, mesmo porque é necessário um levantamento completo das pessoas que deverão ser realocadas. Em tal situação, a caracterização demográfica deverá contar no mínimo com as mesmas variáveis utilizadas na analise regional (área de influência indireta), para que seja possível uma análise conjunta das duas escalas territoriais (isso no caso dos dados censitários não serem muito antigos), pois sempre a área de influência direta está contida na indireta.

Situação diferente ocorre com obras lineares, como rodovia, ferrovias, linhas de transmissão, de dutos (gasodutos, óleodutos, etc.), etc. cujas áreas de influência são determinadas a partir do eixo do empreendimento. Neste caso, a limitação por bacias torna-se um pouco mais complexa, tendo em vista que essas obras atingem pequenas parcelas de diversas bacias. Por exemplo, no caso de uma linha de transmissão – LT – que corre em uma meia encosta de um vale, pode-se considerar como área de influência indireta a uma faixa que tem como limites, de um lado o talvegue do curso d’água e, do outro, o divisor de água dessa bacia. Essa área defini-se dessa forma sucessivamente para as demais bacias para toda a faixa correspondente à LT. Já a área de influência direta é determinada pela “área de domínio” da linha, que varia conforme a tensão de transmissão da energia (mas quase nunca passa dos 100m de cada lado do eixo da linha). A utilização de dados censitários para a caracterização demográfica dessas áreas de influências torna-se complicada, pois só seria possível se usado dados dos setores censitários, mas mesmo assim muito precariamente. A alternativa para a caracterização

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demográfica de tais áreas de influência só poderá ser realizada pela investigação direta, a partir de entrevistas com as famílias ali residentes (isso geralmente encarece os custos de execução do relatório pela impossibilidade de uso de dados secundários).

Situações particulares apresentam-se quando os empreendimentos/atividades estão localizadas em área densamente povoadas e cuja sua influência ultrapassa os limites regionais. Esse é o caso, por exemplo, de um licenciamento portuário de um terminal de graneis sólidos no Porto de Santos que irá embarcar commodites – a soja, por exemplo – que são produzidas no Centro-Oeste do país. A delimitação da área de influência indireta poderia ser dada pela bacia hidrográfica dos rios contribuintes para o estuário de Santos, porém a Baixada Santista é uma região metropolitana e a área de influência deve respeitar essa característica metropolitana regional. O fato que se deve indagar é qual a relevância de um diagnóstico sobre as características demográficas e socioeconômicas e mesmo biótica e físicas do município de Peruíbe (distante aproximadamente 80 Km de Santos), para as conclusões sobre a viabilidade ambiental do terminal. Por outro lado, esse terminal pode estar causando mais impactos em regiões produtoras como Rio Verde (GO) ou Nova Mutum (MT) do que em Peruíbe, apesar dessas estarem a centenas de quilômetros de Santos. Então, elas não deveriam ser consideradas como áreas de influência indireta? Se são, como caracteriza-las demograficamente? Quais são os componentes demográficos importantes para serem analisados nesse contexto de regiões sob influência de “pontos externos” (tendo em vista as teorias das centralidades)? Existem ainda outras questões. Se mais de 90% dos volumes de soja são transportados por caminhão, como deverão ser tratados esses fluxos? A malha rodovia por onde trafegam esses caminhões também não poderia ser considerada como “área de influência indireta”? Como tratar esse fluxo pelas avenidas da cidade de São Paulo (passagem obrigatória para a Baixada Santista)? Como devem ser tratadas essas questões nos diagnósticos e prognósticos e como a demografia pode contribuir para essa discussão?

Essas são questões que obrigatoriamente deveriam estar incorporadas nos EIA-RIMAs, e demais instrumentos de licenciamento ambiental, mas que raramente ocorrem. Na verdade, o escopo desses relatórios apresenta, via de regra, apenas a divisão “clássica” das áreas de influência (as bacias hidrográficas nas indiretas e algum marco, as vezes legal, para as diretas, como: limites municipais, zoneamentos urbanos,

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faixas de domínio legal, microbacias, vias de circulação, etc.), transformando a análise da realidade em algo burocrático.

É neste contexto, que poderíamos considerar como instrumental, que são concebidas as análises demográficas nos estudos de impacto ambiental, ou seja, o componente demográfico aparece apenas como um item do capítulo do “meio antrópico”, e dependendo da natureza do empreendimento/atividade, ele somente aparece como “algo ilustrativo” (uma coleção de dados expressos em uma série de tabelas e gráficos, que pouco se articulam com o restante do relatório). A título de exemplo, uma das informações importantes para a avaliação da viabilidade ambiental e econômica do empreendimento, é a geração de emprego diretos e indiretos. As estimativas de emprego são normalmente feitas a partir de uma composição de calculos que envolvem os valores investidos e as dimensões do empreendimento, segundo médias do setor da atividade a ser desenvolvida. Geralmente não são utilizados outros parâmetros, como as características da não de obra do local, ou mesmo do volume da população por sexo e idade. Isto porque o argumento de que tal empreendimento gerará um grande volume de empregos no período de sua implantação e um outro tanto quando de sua operação, podem representar um impacto negativo ou invés de positivos como poderia se imaginar.

Como exemplo citaremos o caso da implantação da hidrelétrica de Bocaina no rio Paranaíba na divisa de Minas Gerais com Goiás em meados dos anos 80. Não tratava-se de uma grande hidrelétrica (com um potencial a ser instalado de 165 MW2), mas havia a previsão de que no período de maior intensidade das obras, estas absorveriam por volta de 5.000 operários, enquanto em seu decorrer a média seria de 3.000 de trabalhadores. A CEMIG, que era a empreendedora, apontava este como sendo um grande argumento para a viabilização da obra, pois quem poderia ser contra a geração de empregos? Dois aspectos foram apresentados à empresa pela equipe que fazia os estudos ambientais. O primeiro argumentava sobre o tipo de emprego gerado e a característica da mão de obra envolvida, que ganhou tanta notoriedade que acabou por possuir uma designação específica: os barrageiros3. São operários especializados ou não que correm de obra em obra, não se fixando após o seu término. O segundo aspecto, e talvez o mais grave,

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A título de comparação, Xingó no Rio São Francisco tem um potencial instalado de 5.000 MW.

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Ver “As políticas de gestão da força de trabalho e as condições de vida do trabalhador das obras barrageiras.” Souza, Angela M. Tude de, in Travessia, resista do migrante, ano II, no 6, janeiro de 1990.

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vinculava-se às características demográficas da região onde iria ser construída a barragem. A cidade mais próxima às obras (a 1,5 Km) era Davinópolis em Goiás, cuja população não ultrapassava, em 1987, os 600 habitantes. Do lado mineiro a mais próxima (a 40 Km) era Abadia dos Dourados com 3.047 habitantes. A população total desse municípios não chegava aos 11.000 habitantes. A idéia inicial da CEMIG era instalar o canteiro de obras em Davinópolis, pois era o “centro urbano” mais próximo e portanto ofereceria a infra-estrutura necessária. Contudo, a equipe ambiental expôs à empreendedora que este seria um grande erro, pois Davinópolis não possuía suporte para o fornecimento nem de mão de obra (se fosse o caso), nem de serviços, e que o canteiro teria dimensões que ultrapassaria o dobro do tamanho da cidade, provocando uma tal desestruturação no tecido urbano de Davinópolis, que os danos a ela impostas seriam irreversíveis. Outro argumento era que devido às características “nômades” dos barrageiros, esses não estabeleceriam vínculos locais, ao contrário fomentariam uma desestruturação social e cultural local, pois poderiam induzir o surgimento de “serviços marginais”, tais como a prostituição, o jogo e o consumo de álcool. Além disso existiam notícias que, devido à esta característica “nômade” dos barrageiros, eles seriam vetores para a introdução de novas doenças no local, podendo causar grandes problemas de saúde pública. Assim, os estudos mostravam que não se deveriam cometer os mesmos erros, que eram comuns na construção de hidrelétricas, como foi o caso da UHE de Sobradinho na Bahia. Sobradinho pode ser considerada como um “anti-paradigma” de solução para as populações envolvidas.

A conclusão da CEMIG foi que devido a esses fatores, associados às características da produção rural da região (pecuária extensiva nos vales e terrenos acidentados e monocultura da soja e café nas chapadas), o canteiro deveria ficar isolado e ser “auto suficiente” (o que o tornaria mais caro).

Essa foi uma situação extrema, onde a falta de cuidados na análise das características demográficas regionais e locais na implantação daquela hidrelétrica, poderia ter causado fortes impactos negativos nas populações residentes em seu entorno. Porém, existem outros tantos exemplos (como o citado de Sobradinho) onde esse cuidados não ocorreram, sendo que o “capítulo população” aparece apenas como um item no cumprimento de num requisito formal dos relatórios. Cabe destacar que os estudos mais aprofundados sobre as características demográficas das regiões afetadas

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por empreendimento, acontecem com maior freqüência somente quando há a necessidade de realocação de populações. Tal situação deve-se ao fato de que boa parte das equipes de especialistas que passaram a elaborar os EIA/RIMAs, eram aquelas que já produziam os estudos de viabilidade econômica dos empreendimentos. Na área energética, já a partir de meados da década dos 70, a Eletrobrás em seu “Manual de Viabilidade” estipulava, a partir de um item denominado de “Conta 10” (cada item do memorial descritivo do empreendimento era designado como uma Conta), o escopo das informações socioeconômicas necessárias de serem observadas. Ela exigia essencialmente dados sobre a produção renunciada das propriedades rurais, o valor de mercado dessas propriedades, o valor das benfeitorias nelas existentes e informações sobre as populações diretamente afetadas e que necessitariam ser realocadas (dados de estrutura familiar, renda familiar, instrução e atividades econômicas, etc.).

Segundo o Manual a quantificação desses itens era um dado importante para a conclusão da viabilidade da obra, contudo, quando observados os números totais do conjunto das contas, a Conta 10 (comumente chamada de socioeconômica e ambiental, pois as “perdas ambientais” também passaram a compô-la, após a edição da Resolução 01/86 do CONAMA) esta não ultrapassava 1% do valor total. Mas a questão fundamental é que boa parte da “tradição” que orientou a formatação das equipes ambientais teve origem nas experiências oriundas do setor energético e consequentemente da estrutura imposta pelo “Manual da Eletrobrás”, como era conhecido. O resultado disso tudo é que a estruturação dos estudos e das equipes ambientais no interior das empresas de consultoria, fixou-se a partir do comando de economistas, engenheiros e sociólogos que já lideravam os estudos anteriormente à obrigatoriedade do licenciamento ambiental4.

Essa situação explicaria, em parte, o fato da inexistência de especialistas em demografia nas equipes que passaram a elaborar os EIA/RIMAs e demais instrumentos de licenciamento. Na verdade, tais estudos eram, e ainda são, geralmente executados por sociólogos e principalmente economistas, que tem como prática corriqueira tanto a elaboração de projeções de populações, quanto de estimativas das populações situadas em áreas menores ou diferentes daquelas apresentadas nos dados secundários. Por não

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A presença de sociólogos nesse grupos era tão expressiva, que no 4º Congresso Estadual dos Sociólogos de São Paulo realizado em 1987, foi criada uma comissão especial de meio ambiente, que passou a discutir o papel desse profissional nessas equipes.

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terem, em muitos casos, o conhecimento apropriado para a utilização de determinadas metodologias, quando as utilizam o fazem de maneira imprópria causando sérias distorções nos resultados encontrados. Casos típicos ocorrem quando projetam-se população, onde freqüentemente utilizam-se as médias passadas do crescimento de uma determinada população para inferir as futuras (espelha-se o comportamento passado para prevê-se o futuro); ou quando, para elaboração de estimativas territoriais, utiliza-se como método a relação proporcional simples entre as áreas das bases de dados (um distrito, por exemplo), para aquelas em que busca-se as populações (uma bacia hidrográfica). A utilização dessas práticas aliada ao despreparo das equipe dos órgãos que avaliam os relatórios que instruem os processos de licenciamento, resultam, em muitos casos, em erros nas conclusões dos estudos, que acabam por comprometer a real avaliação dos impactos que a presença dos empreendimentos causarão sobre as populações. Essa situação poderá justificar a viabilidade de empreendimentos, quando na verdade isso não deveria ocorrer.

Essa realidade gerou como conseqüência, mais expressivas no caso da área energética, uma série de conflitos junto as populações, quando da implantação dos grandes empreendimentos. Esse conflitos propiciaram um processo cumulativo de experiências, culminando na organização (na cidade de Goiânia em 1989) do I Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragens. A experiência traumática dos desassentados de Sobradinho5, sensibilizou vários setores da sociedade6, que procuraram organizar as populações de futuros projetos para resistirem à remoção caso mínimas condições não fossem atendidas. Esse trabalho teve grande repercussão, inicialmente entre os atingidos pelos projetos de duas hidrelétricas que seriam construídas no rio Uruguai, na divisa entre os estados do Paraná e Santa Catarina (Itá e Machadinho), e posteriormente em outras regiões do país. O resultado desse movimento foi a constituição de várias associação de atingidos por barragens por todo o país, que de forma articulada tem resistido contra sua remoção (o caso mais recente foi a organização dos moradores do Vale do Ribeira, no estado de São Paulo, contra a construção da hidrelétrica de Bananal, projeto hoje em suspenso).

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Ver o texto da Profa. Ligia Sigaud “Efeitos sociais de grandes projetos hidrelétricos: as barragens de Sobradinho e Machadinho” Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ, 1986.

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Dentre eles a igreja Católica – através do Conselho Indigenista Missionário e Comissão da Pastoral da Terra -, da CUT, do MST, do PT e de diversos Sindicatos Rurais.

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A intenção da citação da experiência com os atingidos por barragens, foi ilustrar um dos aspecto das complexas relações envolvida nesse tipo de projeto e que devem ser captados e interpretados pelos estudos ambientais. O fato é que os pesquisadores das Ciências Sociais têm se empenhado no sentido de superar algumas das limitações que as “análises de diagnóstico” colocam, principalmente na identificação das particularidades das relações internas que são específicas das realidades locais, vinculadas aos movimentos mais gerais, cuja ação possui uma escala mais ampla (regional ou nacional)7. Na verdade, este não é um problema exclusivo dos estudos ambientais, mas de um problema analítico mais profundo das Ciências Sociais. Mas que a questão ambiental ajudou a suscita-lo devido, principalmente, ao seu caracter interdisciplinar e multidimensional (no sentido da dimensão espacial). Contudo, a infinidade situações impostas pelas particularidades que envolvem a realidade e que passaram a ser consideradas relevantes para as tomadas de decisão (ser, ou não, viável a construção de uma hidrelétrica, por exemplo), tornam os instrumentais rotineiramente utilizados pelos especialista impróprios, ou no mínimo limitados.

A questão é que, no caso da demografia, devido às características de como ela é comumente tratada nos estudos ambientais, essa situação é ainda mais grave, porque, de um lado esses estudos apoiam-se intensamente em fontes secundárias de dados que apresentam informações com níveis de agregação espacial em escalas muito grandes, onde as variáveis apresentadas não podem ser, na maioria dos casos, desmembradas para escalas menores; e por outro, porque, como foi colocado, muitos dos técnicos que as utilizam não são, a rigor, especialistas dessa área do conhecimento, o que impede que os estudos incorporem outros dados socioeconômicos como próxes para informações sobre as populações, quando esses não são suficientes para isso. Reiteramos que essas é a situação do estado atual das Ciências Sociais, contudo consideramos que no caso da demografia a condição merece um destaque, pois enquanto na primeira a questão do poder explicativo dos paradigmas tradicionais que estruturam o entendimento dos

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A Profa. Ilse Scherer-Warren, que desde de meados dos anos 80 tem procurado estudar os movimentos populares e os projetos de construção de hidrelétricas no rio Uruguai, tem contribuído muito para essa discussão. Ver Scherer-Warren, I e Reis, M.J. As barragens do Uruguai: dinâmica de um Movimento Social. Boletim de Ciências Sociais, Florianópolis, no 42, abr/mai/jun/1986; Scherer-Warren, I. Projetos de grande escala, a ocupação do espaço e a reação popular. XII Encontro Anual da ANPOCS, Água de São Pedro/SP, out/1988; Scherer-Warren, I e Reis, M.J. O Movimento dos Atingidos pelas Barragens do Uruguai: unidade e diversidade. Cadernos CEAS, Salvador, no 120, mar/abr/1989; e Scherer-Warren, I e

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fenômenos está colocado, na demografia este debate ainda não está sendo feito de forma ampla.

O fato de hoje serem questionados os poderes explicativos das metateorias, das metanarrativas, da grande cartografia dos territórios, ou da História Universal é porque algo mudou na realidade e nas formas de sua apreensão. Não entraremos nesse debate aqui, mas a indicação da dúvida sobre o poder explicativos das teorias universais, mostra que há uma mudança em curso e que devemos prestar a atenção, principalmente pelo fato dela possuir duas mãos, ou seja, de um lado há uma complexificação da realidade, e de outro existe uma nova exigência explicativa para o real. Neste segundo caso ocorre um processo paradoxal, porque essa maior exigência se dá por uma sofisticação das teorias, que é conseqüência da maior capacidade de reflexão que as teorias têm sobre elas próprias (fenômeno que Giddens denominou de “reflexividade” de modernidade8). Isso colocado, porém sem ainda concluir se há realmente um “novo mundo”, indica que, de qualquer forma, algo de novo está no ar e a demografia deve prestar atenção nesse movimento, pois senão correrá o risco de perder seu papel como um agente capaz de entender a realidade. Essa é a reflexão que faremos mais adiante. Porém, antes apresentaremos um exemplo de como um olhar através de uma lente de aumento sobre a realidade, permite um outro poder de explicação sobre ela.

O Caso das Famílias, do Povoados e os Diamantes

Talvez o relato que faremos aqui não constitua novidade para alguns dos leitores, que em suas práticas analíticas desenvolvem suas pesquisas segundo metodologias próximas a aquela por nós experimentadas. Porém, consideramos de relevância essa exposição porque nos ajudará a exemplificar nossa reivindicação por uma “nova demografia” (termo que não consideramos o melhor). Voltamos para os estudos ambientais que compuseram o “Projeto Básico Ambiental da Hidrelétrica de Bocaina”, um empreendimento arrolado no “Plano 2010 da Eletrobrás”, que concluiria o aproveitamento energético no rio Paranaíba na divisa de Minas Gerais com Goiás (essa seria a última hidrelétrica da “partição de queda” da bacia do Paranaíba).

Reis, M.J. Blomer, N.M. A ameaça de migrar e a reatualização da identidade camponesa. PIPSA Regional Sul II, Florianópolis, mai/1989.

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Compondo a “equipe socieconômica” do projeto, havia como recomendação a elaboração duas linhas básicas de estudo: uma que indicariam os valores das indenizações dos proprietários que teriam suas terras alagadas, ou suas atividades interrompidas (no caso das atividades de mineração, muito importantes na região); e outra de diagnóstico sobre as famílias que deveriam ser removidas (ou seja, as exigências que estavam contidas na “Conta 10 da do Manual da Eletrobrás”). Para o primeiro grupo foram desenvolvidos uma série de estudos de economia regional e local, que não trataremos aqui. O que nos interessa é o segundo grupo de estudos que envolviam as famílias9

Para a análise das famílias havia como preocupação central dimensionar a população diretamente afetada, que deveria ser realocada. Os procedimentos corriqueiros nesses casos incluíam a identificação das famílias que desejavam receber as indenizações integrais sobre seus bens (imóveis e terras) e se mudarem para outros locais, e aquelas que gostariam de receber as indenizações, mas receber lotes e moradias nos projetos de reassentamento. Naquela região do Alto Paranaíba as famílias afetadas (de proprietários e trabalhadores) localizavam-se somente em propriedades rurais, não existindo áreas urbanas ou mesmo povoados atingidos pelas águas do futuro reservatório. Devido à sua dispersão no território (880 pessoas - em 204 famílias - em 440 Km2), foi dada uma atenção redobrada no diagnóstico de quais tipos de relações que as famílias estabeleciam entre si em seu cotidiano (como as de parentesco e de vizinhança), pois esperava-se que no processo de sua transferência para as novas áreas, essa relações fossem reproduzidas. Para a identificação dessas relações, as metodologias convencionais estabelecem como procedimento a aplicação de questionários, formatados de maneira a ser possível a identificação da estrutura de parentesco das famílias e as relações de vizinhança que elas estabelecem. A partir das informações dos questionários elabora-se a construção de sociogramas onde várias alternativas de arranjos dessas relações são propostos.

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Cabe destacar que este escopo ampliou-se quando os estudos primários apontaram para problemas não anteriormente previstos pela CEMIG, e que não eram objeto do contrato. O fato é que os estudos ambientais tornaram-se tão relevantes, que provocaram a alteração tanto da planilha de custo da

hidrelétrica, quanto das suas dimensões. Eles mostraram, por exemplo, que devido ao uso da água para a irrigação das culturas das chapadas (soja, café e reflorestamento, numa ocupação das terras ainda disponíveis em 30 anos) e pela existência de grandes extensões de terrenos calcários, o nível médio de água do reservatório jamais seria atingido.

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Naquela região investigada, constatou-se que havia uma forte relação entre os membros da família Sucupira, que era predominante sobremaneira nas margens mineiras dos rios Paranaíba e Verde (um importante afluente do primeiro em sua margem direita). Contudo, os questionários não conseguiram identificar dois fatos que estruturavam as relações socioculturais locais, que redefiniram toda a estratégia tanto dos realocamentos, quanto da reconstituição das ligações impedidas pelo alagamento das margens dos rios. O primeiro refere-se a um vínculo que as populações da região estabeleciam com os povoados, que estava estruturado pelo ciclo religioso das novenas, e não, como inicialmente era esperado, por relações econômicas onde esses povoados exerceriam apenas o papel de entreposto comercial. Neste caso, a reconstituição dos acessos alagados se daria apenas pela lógica dos trajetos entre o consumidor e os mercados (em muitos casos o acesso ao “consumo” de produtos culturais, como das festas, também era tratado com essa “lógica”), havendo a previsão de criação de novos povoados, caso algumas áreas ficassem isoladas. Como é sabido, em áreas tradicionais e pouco densas as manifestações religiosas acontecem nas propriedades rurais e/ou nos pequenos povoados da região. Isso foi investigado no projeto, porém o que chamou a atenção é que havia uma relação de circulação das pessoas pelos povoados que respeitava a mesma trajetória das novenas e que ocorria não somente no momento do rito religioso, mas também nos jogos (campeonato de futebol e de cartas, por exemplo) e em “tudo mais o que uma corruptela oferece”. Nos questionários foi possível a identificação do forte vínculo que algumas famílias estabeleciam com os povoados, porém não havia como perceber a circularidade dos eventos. Isto somente ocorreu por acaso, quando a equipe técnica passou a observar os cartazes com as datas e os locais desses eventos, que estavam espalhados pelos bares, armazéns e escolas de toda a região. Até o momento em que foram desenvolvidos os estudos, não foi possível descobrir se o ciclo das novenas é que estruturaram as demais formas da mobilidade cotidiana, ou foi o contrário.

Mas o fato que estava claro, é que as posturas de investigação tradicionalmente utilizadas para os estudos ambientais apoiadas nas experiências advindas das exigências na “Conta 10” da Eletrobrás, não davam conta de apreender fenômenos que particularizam determinadas regiões. Isso comprovou-se quando realizou as investigações com as famílias. E aqui chegamos ao segundo ponto. Como afirmado

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anteriormente, havia uma forte presença da família Sucupira, que possuía núcleos em diversas das propriedades da região, sobremaneira da porção média da Paranaíba (naquela parte da bacia) e no rio Verde. Eles afirmavam invariavelmente, que no caso da necessidade remoção gostariam de morar próximos nas novas áreas, fato que se confirmava pela constante relação de vizinhança que estabeleciam. Essas constatações acabaram opor orientar a estrutura inicial do sociograma de realocamento das famílias. Porém, outra observação ao acaso alterou radicalmente o que havia sido inicialmente imaginado. Com as constantes visitas dos técnicos especialistas às propriedades para a elaboração de suas pesquisas, constatou-se que em algumas das propriedades (não vizinhas e em alguns casos muito distantes uma das outras) as paredes das cozinhas, geralmente muito simples com fogão de lenha e telha-vã, estavam inteiramente adornadas com diversas panelas e peças de alumínio extremamente areadas (inclusive calotas de automóveis). Esse fato, que chamou a atenção não só da equipe socioeconômica, mas de outros grupos de especialistas (aliás quem primeiramente alertou para esse fato foram os geólogos), foi estudado e a sua explicação mostrou que certas famílias daquela região estabeleciam determinados vínculos de solidariedade (através da ajuda mútua em várias atividade), que não passavam pelas relações de parentesco aparentemente mais óbvias. O símbolo dessa identidade foi codificado naquele arranjo de panelas e, a partir daí, as propostas de ordenamento das famílias nos novos locais foram totalmente refeitas.

Assim as panelas areadas nas paredes estruturavam uma linguagem que precisava ser decodificada. Como acreditávamos, o texto utilizado por aquelas famílias em suas relações cotidianas não era o linearidade do parentesco, mas da solidariedade. A estrutura de parentesco era a linguagem que estava operando através de nós (os técnicos da equipe socioeconômica e os “manuais de trabalho”), e por isso não conseguíamos ver nada que fugisse a ela. Já aquela estrutura de solidariedade utilizava-se de uma linguagem que foi inventada. Nela o texto inventado não tinha uma epistemologia pronta, ao contrário ele foi construído a partir de códigos que foram inventados pelo grupo, neste sentido, o texto possuia uma ontologia própria. E esse código estava suspenso naquelas diversas cozinhas. Bastou olha-las para entendermos que um tipo específico de vínculos estava escrito.

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A partir daí algumas perguntas passaram a ser clareadas. Na verdade, a hipótese que surgiu, porém que não pôde ser confirmada pelo fim dos trabalhos, é que poderia haver um vínculo entre a ciclicidade dos eventos socioculturais daquela e os vínculos de solidariedade dados por uma característica marcante daquela região, que é a atividade mineraria de diamantes (foi em um afluente do rio Paranaíba no município de Coromandel, que foi encontrado o “Getúlio Vargas”, um dos maiores diamantes do país). Sabe-se que a atividade de garimpo estabelece uma série de relações danosas à populações locais, que vão deste seu envolvimento com atividades ilícitas até sua desestruturação pelo forte fluxo migratório de pessoas em busca de riqueza rápida. Talvez uma das formas de preservação da integridade cultural, moral e ética das famílias locais diante desse movimento, foi a criação de estratégias para que, de um lado, estivessem constantemente unidas (as ciclicidade das novenas – daí possamos concluir serem elas o instrumento inicial de introdução dessa prática espacial, pois ela em sua estrutura sagrada é cíclica - e jogos nos povoados) e, de outro, o seu fortalecimento através de uma rede de solidariedade, que não se comunicava pelas formas aparentes de parentesco e vizinhança, mas por uma outra que tiveram que inventar.

Mas essas são apenas conjecturas. O exemplo do caso dos estudos ambientais do projeto da UHE de Bocaina, nos mostra pelo menos dois fatos relevantes na discussão aqui proposta. O primeiro diz respeito ao fato de como os estudos, quando bem conduzidos, sobre as populações envolvidas na implantação de grandes empreendimentos, pode influir nos procedimentos decisórios de sua implantação, independentemente da resistência dos envolvidos contra as obras. Já o segundo mostra o desafio proposto pelas análises ambientais, que exige o desenvolvimento de metodologias que dêem conta da apreensão dos fenômenos tanto na escala regional, quanto na local. O problema, como colocado inicialmente, é que muitos desses estudos partem de técnicas consagradas que invariavelmente utilizam-se de dados que estão agregados em escalas muito grandes, impedindo a observação de processos extremamente complexos que se dão na realidade local e que não podem ser apreendidos com esse tipo de “lente”. A produção de dados, informações e metodologias que permitam extrair da realidade aspectos até então escondidos (as novas

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lentes) é, portanto, o desafio que se apresenta para a Demografia, assim como para as Ciências Sociais.

A Demografia Pós-Moderna, ou da Modernidade Radical

“O problema imediato é compreender os processos sociais mediante os quais suas qualidades objetivas são estabelecidas. Com isso, podemos avaliar melhor a afirmação de que, a partir dos anos 70, vem ocorrendo algo vital para nossa experiência do espaço e do tempo que provocou a virada do pós-modernismo”10

Jamenson em 198411 já reivindicava a aceitação do conceito de “hiperespaço”, como uma categoria para a definição da escala mais pertinente para a análise dos fenômenos sociais. A introdução desse conceito traduz um movimento que recoloca o espaço como categoria explicativa para a compreensão de diversos fenômenos sociais que não podem ser compreendidos com o arsenal conceitual que aceita o espaço, quando o aceita, apenas em sua expressão em escalas grandes – os megaespaços das teorias universais totalizantes da modernidade: da luta de classes, da divisão do trabalho, dos territórios nacionais, da dependência econômica, da urbanização fordista, etc. O hiperespaço não é outra forma do megaespaço, ante é sua negação. O sentido de hiper não dimensional, mas ontológico. É o espaço radical, profundo minimamente detalhado, é o espaço do lugar. Mas qual a razão dessa reivindicação? Por que a “teoria do espaço universal” não responde mais como instrumento analítico? A resposta está na mesma razão pela qual a metanarrativa, a metalinguagem, a metateoria e a “grande história” não dão conta mais de expressar, interpretar, o que ocorre no mundo contemporâneo. E mais, a descoberta de que as metatorias e metanarrativas não são mais eficientes para a interpretar a realidade, parte da constatação de que processos sociais complexos, que possuem uma unidade explicativa própria, se desenrolam em unidades de espaços muito pequenos, são fragmentários e sobrepostos. Os territórios de violência nas grandes aglomerações urbanas; os conflitos entre os interesse de conservação e de uso em ambientes preservados; as identidades territorializadas dos

10

Harvey, David, (1993) “A Condição pós-moderna”, Rio de Janeiro, Loyola, pag. 207

11

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bairros, étnicos ou não; a periferia da periferia e a hiperperiferia12 desenhando a segregação mosaica do tecido urbano13; a identificação pulverizada de situações de risco; a cidade global e suas redes próprias; a riqueza da riqueza e a hiperriqueza, são alguns exemplos de como os fenômenos sociais aprofundam-se em escala, pulverizam-se e sobrepõem-pulverizam-se uns aos outros em espaços que possuem, em sua dimensão vertical, características singulares. É sobre essa realidade que nos debruçamos, complexa, não exatamente como reivindica Morin14, onde a permeabilidade de situações não permite olhares com lente de grande angular, mas sim de lentes macro, que captem, extraiam dessa realidade as informações que desejam nos passar. Parece ser interessante a metáfora desse mergulho do olhar, com o avanço da tecnologia de sensoriamento remoto. É impressionante a diferença de resolução das imagens de 10 anos com as que temos hoje – as antigas imagens dos Landsat, com resolução de 30 metros, das do satélite Ikonos, com resolução de 1 metro. No primeiro era impossível a observação em detalhe de algo que tivesse menos de 30 metros quadrados e área, hoje esse detalha já possível com objetos que tenham até 1metro quadrado de área – de uma escala regional, para uma local - e não nos enganemos se na próxima geração de satélites essa resolução permita observar pardais voando. Olhares profundos, detalhados, para demandas de interpretação de uma realidade que complexifica-se, que emerge de uma existência que se dá, no limite, que é o lugar, onde essa expressão espacial que identifica é constituinte do ser (é a essência do ser nas palavras de Milton Santos15).

A esse contexto, como sabemos, muitos autores como o citado David Harvey, de forma polêmica e controversa, tem denominado de era pós-moderna. Não entrarei na polêmica pós-moderna e muito já se tem dito sobre sua existência ou não. Porém, considero três aspectos envolvidos nessa polêmica como sendo de muita valia. Um pode ser exemplificado na interessante idéia de Milton Santos de que nossa era é a era da “confusão dos espíritos”16, onde os territórios e os lugares (que possuem papel ativo na formação das consciências) produzem-se em movimentos de verdadeira esquizofrenia,

12

Ver trabalho inédito “Cumulatividade de riscos urbanos e condições sócio-econômicas adversas na periferia metropolitana de São Paulo: rumo à construção de uma hiperperiferia?”, de Eduardo César Marques e Haroldo Gana Torres.

13

Souza, Gustavo (1990) “Limiar da Utopia: a ação coletiva nas ocupações de terra do Parque Regina e do Jardim Maia, São Paulo”. Dissertação de Mestrado, Departamento de Geografia, FFCH-USP.

14

Morin, Edgar “O Pensamento Complexo”, Lisboa

15

Santos, Milton (1988) “A Metamorfose do Espaço Habitado”, São Paulo, HUCITEC

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estimulada pelo conflito entre a ação globalizante e a fragmentação do local. Outro nas provocações de Edward Soja17 sobre uma “geografia pós-moderna”, onde o espaço ocupa o mesmo status da história como categoria explicativa no escopo da teoria social crítica. A terceira interpretação, elaborada por Giddens, propõem que o momento atual não revela situações de pós-modernidade, mas antes de período onde a modernidade tende a radicalizar-se, por um acirramento da ação do pensamento racional à todas as esferas da vida social. Não há um desmonte das “dimensões institucionais da modernidade”, mas ao contrário uma radicalização dessa modernidade, que permitiu a percepção de que esta produziu algumas situações de disjunção tempo-espaciais. Segundo o autor, tal processo foi possível pelo privilégio dado à explicações historicista para os fenômenos sociais, que acabou deslegitimando qualquer explicação que se pautasse em categorias espaciais.

A aceitação do espaço como uma categoria analítica na teoria social, apresenta-se como uma “mea culpa” da modernidade, que ao refletir sobre si, conscientiza-se sobre o erro de seu abandono e percebe que a realização concreta da sociedade se dá através e por esse espaço. Assim, como as sociedades tem sua história ela também tem seu espaço, e a combinação de ambos é que dá a sua identidade e explicação. Porém, não trata-se de um espaço qualquer, como locus da produção social – o megaespaço das metateorias da modernidade –, mas de um espaço que fragmenta-se, esquizofreniza-se, polissemiza-se, é o espaço do vivido (Lefebvre, 1968) por onde flui a sociedade e seus atos e suas ausências; é espaço da geografia das práticas sociais (Santos, 199618); é o hiperespaço, proposto por Jamenson; é espaço da geografia pós-moderna da Los Angeles de Soja; são os espaços da construção das heterotopias anunciadas por Foucault. Essa é a novidade que o mundo atual apresenta a todos nós e que concretiza-se no apelo cotidiano que nos é feito para que atentemos à essa dimensão espacial, que reduz-se cada vez mais em sua escala. Como exemplo, basta lembrar as recentes experiências de projetos propostos por diversos setores à Fundação Seade (do meio ambiente à segurança, passando pelo saneamento e a promoção social)19, que exigem

17

Soja, Edward (1995) “Geografias Pós-Modernas: a introdução do espaço na teoria social crítica”, São Paulo, Loyola. Interessante observar que os três autores, incluindo Harvey, sejam geógrafos.

18

“A natureza do espaço”, São Paulo HUCITEC, 1996.

19

Para título de exemplo, em recente projeto concluído com a Companhia de Saneamento Básico de São Paulo – Sabesp -, ficou claro que os estudos sobre a demanda de água na Região Metropolitana de São Paulo, não pode ser tratados apenas na escala como é tradicionalmente feito, pois quando a cobertura de

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que seu desenvolvimento ocorra em escalas que sejam no mínimo a dos setores censitários.

É sobre essa realidade que propomos a introdução de uma “demografia dos pequenos números”, que dê conta de produzir dados populacionais na escala do hiperespaço, do espaço que assume sua forma radical, profunda. A tarefa é complicada, pois essa radicalização das diferenças espaciais (a “evaporação” dos grandes territórios), impõe a necessidade da produção de dados que representem essas “microescalas”, a partir de dados secundários, sem a necessidade da produção de levantamentos de campo exaustivos, porque esses são demorados e muito caros. A “demografia do hiperespaço”, a “demografia pós moderna” ou da “modernidade radical” aparece como exigência para a interpretação dessa realidade, como exemplifica tão bem o estudo realizado por Marques e Torres, anteriormente citado.

Não trata-se de “inventar outra Demografia”, pois muitos já realizam-na. Mas deve-se estar alerta para uma realidade que apresenta uma face ambígua, motivada pela necessidade da ação de um pensamento homogeneizador, único, que mitigue a ação do motor da modernidade, que é a transformação para a recriação constante – a ação da destruição criativa. Hoje o pensamento homogeneizador está ideologizado na figura realidade global e da segurança hegemônica propiciada pela ação da técnica e da ética tecnicista20. Ter consciência disso é um grande passo para que a demografia de conta de apreende as faces dessa grande invenção que é a realidade.

água atinge índices que aproximam-se dos 100%, o resíduo faltante (3 ou 4%) é dificilmente identificável e consequentemente atendido. Isso deve-se à necessidade de informações em pequena escala, que implicaria, em alguns casos, no levantamento cadastral dos domicílios. Outro exemplo foi a proposta de elaboração de estudos, pela Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo, para a identificação de pressões demográficas em área de proteção ambiental. No caso, sua elaboração exige que os dados demográficos sejam apresentados em escalas a vezes inferiores aos dos setores censitários (de forma semelhante ao que ocorre nos estudos de impacto ambiental).

20

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Bibliografia

Giddens, A. (1991) “As conseqüências da modernidade”, São Paulo, Editora da UNESP,.

Harvey, David, (1993) “A condição pós-moderna”, Rio de Janeiro, Loyola.

Lefebvre, Henry (1972) “La vida cotidiana em el mundo moderno”. Madrid, Alianza Editorial.

Marques, Eduardo C. e Torres, Haroldo G. “Cumulatividade de riscos urbanos e condições sócio-econômicas adversas na periferia metropolitana de São Paulo: rumo à construção de uma hiperperiferia?” Inédito

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Soja, Edward (1993) “Geografias Pós-Modernas: a introdução do espaço na teoria social crítica”, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores.

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Souza, Angela M. Tude de (1990) “As políticas de gestão da força de trabalho e as condições de vida do trabalhador das obras barrageiras.”, in Travessia, resista do migrante, ano II, no 6, janeiro de 1990.

Souza, Gustavo (1990) “Limiar da Utopia: a ação coletiva nas ocupações de terra do Parque Regina e do Jardim Maia, São Paulo”. Dissertação de Mestrado, Departamento de Geografia, FFCH-USP.

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