a
TOPICOS
TRANSATLÃNTICOS
Emergência
da
Lusofonia
num
Mundo
Plural
EDITORES
Silvério da
Rocha-Cunha
Noémi
Marujo
Cláudia Teixeira
Marco
Martins
Paulo Rodrigues
Maria
do
Rosário
Borges
Introduçáo
o
título
destetexto
remete'
Paraum
anacronismoevidente'
na
aplicaçáodo
conceiro de lusofonia à Idade
Média
eModerna'
temPolongo
sobre
o
qual
se delineiaesta análise.
Náo
obstante,infere de uma
semântica deliberadade
desafioa
outrosconceiros
e
perspectivas,que náo
apenasmoldam
alguns discursoshistóricos como
setêmprojectadoedominadoopalcodosmed.iaed'aopiniáopúblicadesdeasegunda
metade do séc.
)O(
contextualizemos a problemática.
"o
orientalismo"'
de Edwardsaid'
veioff^zer
um
amplo debate a Pardr d.a análise da visáo europeiado
Outro' no
caso concreto sobre
o
mundo
árabe-islâmico.Texto
fundamental
e com múltiplas
consequências'Numa
perspectiva epistemológica, esteve
na
baseda
corrente de
pensamento
dos
designados Estudos pós-coloniais.Num
plano
mais pragmático
(mas
náo
menos -conceptual) navulgarizaçáo
do
próprio vocábulo
orientalisma
aplicado'
em
geral'
ao
Isláo
e
aosmuçulmanos'queintrinsecamenteveiculaumapercepçáodeexterioridadeàrealidade
ocid'ental.Consequênciainvoluntária,poisnâoera,defacto,esseoseuobjectivo.
Osconfrontosgeneralizadosenffeesteocid'enteeospaísesislâmicos
aprofundaram este fosso
entre
nós eo
ouff\'
Numa
dicotomia simplista
(mas eficaz) os discursos ideológicos
justificaram
as
intervençóes armadasem nome dos
mais
altosvalores, os da democracia e dos direitos humanos'
Náo
se pode deixar de sentir a
ironia
brutaldestesargumentos,nomomentoactual,emquegovernosdemocraticamente
eleitosnoprópriocoraçáodaEuropa(oudoquepensávamoscomoEuropa)forampura
e simplesmente d,estituídos,
por
imperativos deum
absffacto"mercado"
e deuma
mais concreta"dívida extefna" (como
éo
casoda
Grécia e daltália)'
eem
que â dignidadeCAPÍTULO
VIII
Os muçulmanos
de
Portu
gelze lusofonia
como
metáfora
(sécs.
XII-)flD
Maria Filomena
LoPes de Barros
Uniuersidad'e de Euoral CID
EHUS-UE
-100
'
Topicos TransatlânLicos: Emergência da LusoJonia num Mundo Pluralhumana
vacila
inexoravelmentee
nos
recolocanos
níveis
básicosda
sobrevivênciaeconómica (como com os gregos e os Portugueses, no pelotáo cimeiro deste processo)'
E, no
entanto,
Processos similares aconteceramno
Passado,objecto
iâ
deescrurínio,
análise
críúca
e
desmontagemideológica
pela
História'
Refiramos um
exemplo ainda relativamentepróximo, o do
surto de colonialismo euroPeu do séc'XIX'
também ele
justificado
pelos ideais
do
seutemPo:
a
ampliaçáodos
conhecimentoscientíficos
a
novosterritórios
(Mad'ariaga,2008:
lI4-I15'
relativamentea
Espanha nasua
política
de expansáomarfoquina).
A
Memória
e aHistória'
conceitos indissociáveis'parecem cadavezmais ausentes dos discursos políticos
e
dos mediae simultaneamente deuma
consciênciacolecdva,
9ue,
de
direito,
deveriam
incorporar'
Numa
sociedadedominada
pelos imediatismos,de
um
temPo breve,ou
mesmode
um
náo-tempo'
de uma frenética resposta humana,individual
e social, à"produtividade"
(e apenas a ela)' as ciências sociais e humanasdeveriam,
cada vezmais, encontrar-se na charneira da reflexáocrítica e na construçáo de
um
novo
paradigma, quefinalmente
envolvào
eu eo
7utro' como é propugnado pelos estudos pós-coloniais. Essencial, neste projecto, será a própria recuperaçáo da noçáode
um
temPolongo,
que necessariamente advémdo
Passado' seffansforma
no
Presentee
se projecta
no
Futuro. Nenhum fenómeno social
será compreensívelou
interpretável
sema
contextu alizaçíoda
sua genealogiae
arqueologiapróprias,
enfim da
suaHistória, como
também,
semela, nunca
se poderáatingir
ainteligibilidade
da diferença, dos d.istintos Percursos humanos eculturais'
existentes hoje'como no passador pese à nossa noçáo uniformizadora de globalizaçáo.
É
,r.rt"
perspectiva, que se retoma o propósito inicial deste texto'A
lusofonia é aqui entendida comoum
conceitocultural
restrito, que envolve a noçáo de uma. portugalidade possívelnos
períodos considerados.Metáfora,
maisdo
que
a
verdadeira projecçáo doconceito
tal
como
o
entendemoshoje, implica contudo
um
similar movimento
deaculturaçáo que acomPanha uma primeva colonizaçáo, a
do próprio território
português'Diferentemente,
contudo,
se postulao
Pfocessode
construçáohistórica
desta lusofoniamuçulmana (como, de resto, também da judaica)' Por um lado, porque se
limita
ao esPaçodo
Reino, para, apenas depoisdo édito
de expulsáo/conversáode
1496 se projectar paraa|ém dele;
por
outro,
porque
implica, de fato, uma
aPreensáo integradorado
outro'enquanto membro de uma mesma comunidade linguística, de
um
esPaço comum e de ummesmo poder.
A
lusofonia apela,pois,
a
uma
metáforade
pertençae
náo de
exclusáo'redimindo uma outra faceta do
Muçulmano
que náo a do simples e mais visível confronto armado: a da sua pafricipaçáo, ao lado da minoria judaica, na constfuçáo da Europa'Dito
de outra forma, oMuçulmano
enquânto Parte de nós'Os rwçulmanos de PortugaL: alusoJonía como metdÍora
(sécs'
XII-XD
'
1011-
A minoria
muçulmana:
dasorigens
à conversáoforçada
Neste sentido, a noçáo d.e
um
mundo plural
é passível de ser aplicado à sociedademedieva
peninsular,
com
as diferenças inerentesa
um
outro
temPo
e
a
uma
outrasociedad.e. Apesar
da
formaçáodo reino
português,como
dos demaisda
Hispânia'
semanifestar
no
nossoimaginário em funçáo de
um
prolongado
esforçobélico
entreCristáos
e Mouros,
outras componentes sociais emergiráo desse complexo processo deapreensáo
territorial
e
populacional.Assim, a
ideologicamente designada"Reconquista cristá" incorpora comunidades muçulmanas nos novos reinos em formaçáo'
do reino
deNavarra,
à
coroa
de
Aragáo,
passandopor
Leáo-castela'
Em
todas as
emefgentes formaçóes políticas se integram, enquadram e
legitimam
gruPos de mouros otJ sírracenos'enquanto populaçáo livre, com identidade fiscal
própria
e o reconhecimentoimplícito
da prática de uma religiáo diferenciada'tJma rociedìd,
plural,pois,
a desta Hispânia cristá elatina'
em que à maioria cristá elatina
se subord.inam as minorias. judaica e amuçulmana, reproduzindo, como
se do
ourro
lado
do
espelho se tratasse,a
realidadedo
Al-Andalus muçulmano
e
árabe' na incorporaçáo de minorias étnico-religiosas'o
reino português náo se revela como excepçáo. Duas datas, de resto'delimitam
avivência desses grupos muçulmanos. Datas
que' como
quaisquer' emHistória'
apelam a
um
referencial meramenteindicativo,
remetendo, neste casoconcfeto'
paradois
actoslegislativos régios.
o
primeiro,
deMarço
de 1170, na outorga doforal
dos mouros forros de Lisboa, Almada, Palmela e Alcácer,por
Pârtedo
primeiro rei'
D'
Afonso Henriques;o segundo,
no
édito promulgado PorD.
Manuel
I,
em Dezembro de 1496' ordenandoa
conversáoforçadaou'emopçáo,aexpulsáodejudeusemuçulmanosdoReino.
Umciclo,pois,queiniciadocomoforal,terminacomoédito.Masnáodemodo
absoluto,
em
quaisquer dos casos. Estes actos régios apelama
um
momento
específico
em que se cristaliza
o
acto da escrita, quemolda
masnáo
abarca toda a realidade social'No
primeiro
caso,
tratando-se
da
matriz
original
de
legitimaçáo
das
comunasmuçulmanas,
tal
náo exclui a existênciaanterior
d'e muçulmanos livres' emparalelo com
os outros
mnuri, sinónimo
de
escravos/cativosde
guerra'
No
último'
a
expulsáonáo
implica,defacto,todososmuçulmanos,sendooprópriosoberanoaabrirexcepçóes
nessesentido(Barros,2007:604-605;Soyer2007:244-246)'
uma
relaçáo
prlvilegiada
surge,
no
reino
português,
enffe
a
figura
tutelar102
.
Topicos Transatlanticos: Emergência da Lusofonia numMundo PluralO
foro
deLisboa e
os seus legistas mafcaráouma
const""tt
p'oàt''çáo em funçáo
das necessidadese
interessesdo
soberano, desdeo
período
matricial' As
cartasde
foral'
outorgadas
nos
sécs.XIII
e
XIV
às várias comunidades muçulmanasdo
Reino'
náoapenas seguem
o
modelo desse primevoforal
de 1170 como consignam que' em caso de dúvida ou de omissáo, se sigao
referidoforo.
Nos sécs.xIV
eXV
sefáo os legistas dessacomuna chamados pelos monârcas a sistematizar e a
produzir
textos legislativos, segundo âs nofmasdo
direito
islâmico, que reforçam eunificam
a tributaçáo devida aorei
peloconjunto das
comunid.adesmuçulmanas.
Processoimplicitamente legitimador
dos ambos os protagonistas, que envolvetanto
o
reconhecimentojurídico
das comunas Por partedo
monarca, comoa
tâcitaratificaçáo do rei português, como seulegítimo
senhor'por
parredos
muçulmânos.Vínculo
que funciona, pois,
num duplo
sentido
(Barros, 2007).Esta relaçáo esrruturanre, como
foi
referido, diferencia a realidade portuguesa das suas congéneresibéricas, repartidas
entre múltiplos
poderese
jurisdiçóes
(HinojosaMontalvo,
2002:96-101).O
poder régio, em Portugal, impóe-se, Progressivamente' náosem
conflitos
comouttos
poderosos senhores que acflram nazofiameridional
do Reino'onde se concentraÍn as comunas muçulmanas. Apenas depois de
um
longo
Processo' seconsubstancia uma
jurisdiçáo
régia sobreo
conjunto
dessa populaçáo'
os rneus qn,tt'ros'no
discurso d.o monarca,que
seencontram sob
sua"guarda
e
encomenda"
(Barros'2009a).
Vector
náo despiciendona
modulaçáo destas comunidades, nomeadamente no que ao aspectocultural
se refere.O
percruso
histórico
desta
minoria
sofre,
de
festo como
a
judaica,
ascondicionantes de uma progressiva afirmaçáo
identitária da
respublica
cltristiana, sob aégide
papal.
O
evolutivo
pfocesso
de
crístianizaçãode
temPos
e
espaços, decomportamentos
e
valorese'
mesmo'
do
próprio
vocabulário, comPorta
uma
lentaconstruçáo de
um
cristianocentrismo que configuratâ a Europa, delineando mentalidades einfluindo
na praxispolítica.
E, neste sentido, o séc.XIV
trarájá
mudanças substanciaisà sociedade europeia,
com
as expulsóes dos judeus de Inglaterra e de França e os motins e que,em
1391, se registampor
toda a Castela e Aragáo também elesdirigidos
contra aminoria
judaica.para
os
muçulmanos
do
Reino
português,dois
momentos
se destacaráo nesteprocesso, enquanro rupruras decisivas na vivência dessas comunidades.
o
primeiro
em termos cronológicos data d.ascortes
de
Elvasde
1361,na
obrigatoriedade,tanto
parajudeus como
paramuçulmanos,
deviverem em
bairrospróprios, nos
centros urbanosï:ir
os muçulmanos de Portugal: alusoJonia como metút'ora (sécs.
Xn-xv)
'
103Concílio
deLatráo
d,e 1215,que
estabeleciaa
estrita separaçáo dos membros dos três credoso
segundo, emerge dascortes de coimbra
de
1390,
proibindo
os
apelos domaezzin
à
oraçáo, invocando-se
explicitamente
as
"ordenaçóes
da
lgrqi"
numâreferência directa ao
Concílio
deVienne de
1311, que, de facto,interditava
esta práticanos reinos cristáos (Barros, 20072198).
Ambas as
medidas
se
inserem,
como se referiu,
num
mesmo
Processo' naexpressáo
identitária
d.eum
etnocentrismo que se consolida emcontraponto
à alteridaderepresentada
por
mouros e por judeus.A
ideia deum
espaçopúblico
cristáo, expurgado da presençado ou1o, remete, Parâ as mourarias e asjudiarias
(se bem que náo de modoabsoluto), a vivência
dessesgrupos urbanos,
religiosamente diferenciados;o
domínio
sonoro, enquanto
expressáode
poder, uniformiza
essemesmo
espaço'
doravantesubordinado
apenâs
aos
sinos
dahomogenelzador,
que
indelevelmente comunidades em presença.lgreja,
na
imposiçáo
de
um
temPo
cristáomarcará
os ritmos
do
quotidiano
para todas
asComo
ourras normarivas restritivas, estas náo sáo passíveis de ser explicadas (comoacontece
em
muitos
discursoshistoriográficos),
Por
uma
aplicaçáodo
binómio
de tolerância/intolerância.Náo tanto
Por seconstituírem
como anacronismos (toda a nossalinguagem relativamente ao Passado
é
anacrónica), masporque
sesituam
num
registodas mentalidades
e,
Portânto,
de
decorrênciae
náo de origem de
um
determinado fenómeno sociológico.Dito
deoutra
forma,
nâo ê a suPosta intolerância que determinaas normativas enunciadas; elas transcorrem
de
um
complexo
Processoidentitário,
Queinfere
de uma
evoluçáoestrutural,
e
que
seaplica
tanto
àsminorias,
como,
noutros contextos, aos demais agentes sociais-
embora, logicamente,com
diferentes graus de violência psicológica e, em alguns casos, mesmo fïsica (como se verifica em 1391).Processo desfecho
se
consubstancia,a
partir de
finais
do
séc'
XV,
na afirmaçáo ideológica dos Reis Católicosda
Europa.Tanto
para Fernandoe
Isabel, deCastela
e
Atagâo, como paraD.
Manuel
I,
de Portugal, oepíteto
materializa-se ipso factona
própria
práticapolítica.
Os
primeiros,
com
a
obrigatoriedadeda
conversáo forçadaou,
em opçáo, de expulsáo,do
território
dos judeus de Castela e Aragáo, emMarço
de 1492;o
segundo,com
medidas similares, mas aplicadas às duasminorias
do
reino,
emDezembro
de
1496. Pioneiro na consrruçáo de uma sociedade pelo menos exteriormente homogénea,D.
Manuel
acabapor criar um
novo
paradigma socialcom
a
eliminaçáojurídico
de mouros e judeus. As conversóes, para os membros dessas minorias que optampor
permanecerno
reino, implicam uma outra
ruPrura social,
baseadajá
náo
emdiferentes adscriçóes religiosas, mâs numâ clivagem ainda mais fracturante: a que sePara curo
104
'
Tópicos Transatlântícos: Emergêncía da LusoJonía num Mundo pluralos recentes conversos, os cristáos-novos, da demais populaçáo
do
reino. Semanticamente estadistinçáo
perpetua-sedurante
os séculos subsequentes, aplicando-se esse vocábulo aos descendentes dejudeus, e
a
de
mouriscos aosde
muçulmanos.Não
interessava otempo e as geraçóes que decorriam da conversâo
-
o estigma perduraria.A
inquisiçáo e osestatutos de limpeza de sangue velariam pela sua manutençáo.
Castela e Aragáo
evoluiriam
tambémno
mesmo senddo.Enue
l50l
e
1502 nacoroa de Castela e
em
1525,na
de Aragão, sáo aplicadas medidas similares aos gruposmuçulmanos, numa cristianizaçáo forçada dessas comunidades (Harvey
,
1982: 150). Em toda a Europado
séc.XVI,
de resto,o
conceirodo
Estado moderno emerge em funçáo da conotaçáo absoluta deum
poder,um território,
uma religiáo (eius regio cuius religio).Mas, na Península Ibérica, ir-se-á ainda mais além. De facto, a qaestão mourisca cruzará. o
tempo'
nas
discussóes teológicas sobre estes cristáos-novos,em teoria
inassimifuíueis,perspectiva
panilhada
por
muitos
discursos e agenresdo
poder,como também
o
era asua conotaçáo com uma
quinta-coluna
doimpério
otomano. Maisdo
que a postura dosgrupos mouriscos, Parece ser a da sociedade
dominante
a que verdadeiramente resiste àintegraçáo da diferença. Finalmente,
enrre
1609e
1614, a monarquia ibérica deFilipe
III
consuma os seus próprios medos numa expulsáo efectiva desses grupos, embarcados àforça e literalmente
abandonadosna
costa norte-africana. Expulsáo destafeita
no
seu sentidoliteral,
organizadapelo
Estado e, reireremo-lo, envolvendó cristáos cuja origemmuçulmana nunca
será,
como
o
referimos,
olvidada, mas
antes
conscientemente perpetuada através de mecanismos institucionais.2-
Língua
ecultura:
enrreo
árabe e oportuguês
Este esboço geral da narratividade histórica da
minoria
muçulmanoem
Portugal,contextualiza
a
temáticaintroduzida
nestetexto.
Retome-se a problemática da lusofonia destas comunidades, focada na questáocultural,
e, mais particularmente, na linguística.Um
episódio relatado
por
Bernardo Rodrigues, português
de
Arzila,
num
períodorelativamente
tardio
(referente
a
1516), ilustra
cabalmentea
situaçáo
que
aqui
sepretende analisar.
Conta
o
cronistao
seu encontrocom um
muçulmano que havia sidocapturado pelos portugueses de
Arzila,
e
que, nas próprias palavrasdo autor, "eÍa
táo português como eu,por
ser nascido naMouraria
dessa cidade de Lisboa". Esta afirmaçáorePete-se
no
discurso directo dessa personagem, â quem é atribuída a seguinte frase:"Eu
sou Português e nascido naMouraria
de Lisboa e ei nome Bençude" (Rodrigues,l9l5:
Os muçulmanos de Porrugal: alusot'onia como metafora
(sécs' XII-XV)
'
105Aenunciaçáodaportugalidadedestemuçulmano(fixadoemMarrocosporforça
das vicissitudes
do
religiocídio
decretadopor
D'
Manuel)'
remete
Parauma
dupla
adscriçáo,tantoaumaculturacomoaumesPaço.Comefeito,ocronistaÚansmitesem
ambiguidade a sua percepçáo desse
fenómeno'
nesselongínquo
séc.
XW,
que veicula, náo em funçáod.
,rln"
identidade religiosa, masdo sítio
de nascimentoe'
pela boca dopróprio
muçulmano,
do
seuidioma matricial'
fupecto
reiterado mais adianteno
texto'
quandoafirmaqueBençudefalavaoPortuguêscomoqualquernascidoemLisboa
(Rodrigues,1915z468).Percepçáonomínimocuriosaadessehomem,nascidoe
morador
emArzila,
que Provavelmente se deve auma
efectiva vivência dalusofonia,
e
que se reflecte
na imediata
identificaçáoe
reconhecimentode
um
longínquo
Portugalem alguém, nascido no reino e que se expressa
no
mesmoidioma'
A
religiáo diferenciadanáo entra nesta equaçáo'
A
situaçáo desseentáo
morador na
cidade
de
Fez, Bençude,
ilustra
um
dosfenómenos
que'
a
partir
dos
finais
do
séc.XV,
projecta' de facto,
violentamente
alusofonia
(no
sentido em que hoje a entendemos) pelas diferentes Partesdo
mundo'
fu
diásporasdosmuçulmanosedosjudeusdoreino,apósoéditodeD.Manuel,
ffânsportam
consigo
uma língua
e
uma cultura próprias
que'
necessariamente' se
adaptaráo aos novos contextos vivenciais'
como
Bernardo Rodrigues o testemunha'essas
minorias
aculturaram-se
ao
longo
da
medievalidade'
náo
apenas
num
sentidoestritamentelinguísticocornotambémnumsentidocultural,maisamplo.
Comportamentos'valores,esPaço,língua_adscriçóescomunsatodaasociedade
porruguesa, enrraram decisivamente na psicologia social destes
gfuPo'
enformando a sua identidade.lJmaoutracrónicadoséc.XVIdá,igualmente,contadesteprocesso.Referea
morte'
emLoulé,
d'o..último mouro
do
Algarve,,,o
quâl,
depoisdo
édito
de
1496, se
teria
exilad.o parao Norte
deÁfrica
mas,"náo podendo lá
viver"'
regressâraao
reino'
convertendo-se
à fe
cristá (Guerreiro
e
Magarháes,19g3: 161).
o
périplo
individual
deste muçulmano encerra-se, pois, como
o
demuitos outros' no
regresso ao seu
próprio
espaço matricial.A
incapacidade de se ad'aptar aum
outfo
contexto
cultural
remete paraumaopçáo,indubitavelmenteangustiante,adtconversáoforçadaaocristianismo'A
mutaçáoreligiosarevela-se,noentanto'menosPrementedoqueaadscriçáoaumespaço
vivencial e
familiar,
a umalíngua, enfim,
auma cultura,
que modelara (e, Para os queregressaram, continuará a modelar) a percepçao de geraçóes
de muçulmânos portugueses'
A
inumaçáodo
seu corPo' se bem quecom
um outlo ritual'
persPediva a reivindicaçáo
106
.
Topicos Transatlânticos: Emergência da LusoJonia num Mundo PluralCom
efeito,
a
lusofonia destaminoria
(conceito também
aplicável,no
sentidoresuiro
que
acima
enunciámos,
igualmente
à
judaica)
constrói-se
em
paralelo
àafirmaçáo
do
reino.
O
idioma do
poder,
o
ponuguês, configuraum
registo discursivoindispensável
à praxis política, em que
as comunas muçulmanas, legitimadas
pelos poderes cristáos, logicamente se inserem. E, nesse sentido, a inerente capacidade negocial apenas se pode expressar na línguado
poder dominante.O
contexto comunicativo que,entreranro
se
redimensiona, potencializa logicamente
esse processo,pela
necessáriasociabilizaçáo
entre os
membrosdos
três credos, manifestanuma
complementaridadeeconómica, sobretudo evidente em meios urbanos.
Nesse
senrido,
a
produçáo
escritaem
português
por
membros
dessaminoria
cabalmente testemunha
a
apreensáoe
interiorizaçáo destecódigo linguístico.
Emboraesta
produçáo
se devamaioritariamente, como
acima referimos,à
relaçáotributária
efiscal que une
o
rei
aos seusmourol
e sejalimitada
aos legistas e autoridades da comunalisboeta, alguns
outros
aspectoscabem
destacarneste
processo.Um
primeiro,
nacontinuidade
da
aplicaçáo
do
direito
islâmico
e,
portanto,
da
formaçáo
nessajurisprudência,
que
transversalmente caracterizatodo
o
período
considerado.
Um
segundo,
no
desaparecimento dos arquivos comunais, que nospermitiriam
uma análisebem
mais completa
de
ambas asminorias.
É
fundamentalmente atravésdos
registosrégios
ou
das publicaçóesnormativas
que
nos
chegam testemunhos desta produçáo,revelando
uma
acentuada assimetria das fontes, que necessariamente resvala para uma visáo mediada das vivênciasminoritáriar.
É, rro entanto de referir alguma outra produçáo escritaem
português que se afasta destes pressupostos, nomeadamenteum
contÍato
de casamentoentre
muçulmanosde
Lisboa,da
segunda metadedo
séc.XV
e umâ
cartaparticular
do último
imam
dessa mesmacomuna,
Mafamede Látparc,já
posterior
aoédito de 1496 (Barcos2012).
Seria,
no
entanto,
redutor,
remetera
identidade
cultural
destaminoria
a
uma lusofonia absoluta. Todas as identidades se constroem em funçáo de diferentes adscriçóes.E,
nestesentido,
estaminoria,
como uma
sociedadede fronteira,
estrutura-se também em funçáo deum
vector religioso que a une a uma comunidade mais ampla,a'Ltrnmt.
lJm
outro
código linguístico
decorre
desta circunstância,o
árabe,enquanto
língualitúrgica,
capital
identitário e
veículo
de
comunicaçáocom
essa mesma comunidade transterritorial.De
resto,
esta
dupla
percepçáo materializa-senos
diferentes vocábulos
queapreendem
a
definiçáo
do
muçulmano.
O
primeiro,
o
de
mourofouo,
expressa um esrâruroreligioso-jurídico,
numa
semânticadefinida
pelos
agentese pelo idioma
doosmuçulmattosdePortugal:olusoJoniacomometâJora(sêcs.xil-r\/).107
poder e
incorporado
no
discurso auto-referencial destaminoria'
o
segundo
'
o
de garib(literalmente "esffangeiro",
em
árabe),decorre
da
percepçáoda
'u'rnrnL Sobre todos
muçulmanos em
território
cristáo, sendo apenas emPreguenuma
PersPecdva relacional'ou
sejaquando
sáo enviadas missivas,em
árabe,por
elementos dessaminoria
aos seuscongéneres em
território
muçulmano {Barro s' 2012) 'Estaduplaadscriçáolinguísticanáoépercepcionadacomoumaameaçâmasantes
comoumamais-valiaaoserviçodoreiportuguês.EmAbrildel:5:,:T-"."',"escrita,
em
árabe, pelos muçulmanosde Lisboa
ao
sultáo mameluco
do Egipto'
Ìnâl'
traduzcabalmente esta relaçáo. Apresentando-se como gurabâ" (p1' de
garíb) de Lisboa'
d^
terra'de Portugal, referem uma queixa enviada ao rei de
Portugal' no
casoD'
AfonsoV'
pelosmongesdalgrejadoSantoSepulcrodeJerusalém'aquem,Pretensamente'osultáo
impediriadereconstruirpartesdestruídasdoedifício.Invocandooparalelismoda
situaçáo das duas minorias, anunciam
o
envio de dois embaixadores apedido
do
seu rei'ambos da mesma cidade, para interceder nesta situaçáo
(cotin
1935-1940:202-203)'
um
desses emissários será ofoqíh
Ahmad
b'
Muhammad al-Ru'ayni'
lJm
outro
Ru,ayni, também de Lisboa,
surge,á.
,.r.o,
em
período mais
ardio'
ao
serviço dos monarcasD.
JoáoII
eD.
Manuel,
se bem que numa prestaçáodiferente'
Muhammad b'
Qâsimal-Ru,aynitraduzparaárabe'resPectivamenteem1436eem|504,cartas
endereçad,as
por
esses rnonarcas aos habitantes deAzamor'
Identificando-se como khatíb
(pregador) da comuna de Lisboa e
garíb,na primeira
missiva enviada' na segundaos seus
parâmetros de
identift
caçâorestlmem-se aPenas a"humilde
escravo de
Deus' Ru'aynl"'
Defacto,ocontextodoreinohaviamudadosubstancialmente'comoéditode1496'e
este personagem deveria ter-se
sujeito à
conversáo forçada'A
admissáoimplícita
desta situaçáo esrrutura-seem funçáo
dos silêncios^ÍoÍa
introduzidos
no
discurso
-
na
náoidentificaçáo como
garib,Posto
a Sua nova situaçáo de cristáo-novo,e na omissáo
do
seunomepróprioepatronímico(nasab),q'u.deveriatersidojásubstituídoporuma
comPonente cristá, em funçáo do baptismo'
lJmanovadefiniçáo,pois,dasociologiadomuçulmanodoravantetransformado
emmourisco'numaoutraconcepçáodelusofoniaquesedesenvolveránosséculos
108
.
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