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Multiculturalismo, interculturalismo e pluriculturalismo: debates e horizontes políticos e epistemológicos

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Academic year: 2021

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MULTICULTURALISMO, INTERCULTURALISMO E PLURICULTURALISMO:

DEBATES E HORIZONTES POLÍTICOS E EPISTEMOLÓGICOS

Vanda A. de Araújo1

Thiago Batista Costa2

Manuel Tavares3

RESUMO

Este estudo teve por objetivo promover o diálogo entre autores contemporâneos e suas pertinentes críticas a um universalismo cultural hegemônico e o desafio para a construção de um novo projeto epistemológico, apresentando como proposta um projeto alternativo denominado interculturalidade crítica, entendida como diálogo entre as culturas diversas. Consideramos ressaltar que tal projeto nasce como alternativa a uma sociedade capitalista e colonial construída a partir de relações de dominação e identidades subalternizadas. Nessa perspectiva, pretendemos, neste artigo, apontar por meio dos autores, quais as condições, limites e potencialidades para inserção ao projeto inter-cultural, que corresponde a dois terrenos teóricos distintos, porém convergentes: a epistemologia das ciências sociais e uma vertente da sociologia crítica. Assim como procuraremos retratar como se constituí o pluralismo jurídico no Estado da Bolívia.

PALAVRAS-CHAVE: INTERCULTURALIDADE CRÍTICA; UNIVERSALISMO CULTURAL;

DIVERSIDADE CULTURAL; EPISTEMOLOGIA CONTRA-HEGEMÔ-NICA.

MULTICULTURALISMO, INTERCULTURALISMO Y

PLURICULTURALISMO: DEBATES Y HORIZONTES POLÍTICOS Y

EPISTEMOLÓGICOS

RESUMEN

Este estudio tuvo por objetivo promover el diálogo entre autores contemporáneos y sus pertinentes críticas a un universalismo cultural hegemónico y el desafío para la construcción de un nuevo proyec-to epistemológico, presentando como propuesta un proyecproyec-to alternativo denominado interculturalidad crítica, entendida como diálogo entre las culturas diversas. Consideramos resaltar que tal proyecto nace como alternativa a una sociedad capitalista y colonial construida a partir de relaciones de domi-nación e identidades subalternizadas. En esta perspectiva pretendemos en este artículo apuntar por medio de los autores, cuáles son las condiciones, límites y potencialidades para inserción al proyecto intercultural, que corresponde a dos terrenos teóricos distintos, pero convergentes: la epistemología de las ciencias sociales y una vertiente de la sociología crítica. Así como procuraremos retratar cómo se constituye el pluralismo jurídico en el Estado de Bolivia.

PALABRAS CLAVE: INTERCULTURALIDAD CRÍTICA; UNIVERSALISMO CULTURAL;

DI-VERSIDAD CULTURAL; EPISTEMOLOGÍA CONTRAHEGEMÓNICA 1 Universidade Nove de Julho – (UNINOVE)

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MULTICULTURALISM, INTERCULTURALISM AND

PLURICULTURALISM: POLITICAL AND EPISTEMOLOGICAL

DISCUSSION AND HORIZONS

ABSTRACT

This study aimed to promote the dialogue between contemporary authors and their pertinent criti-cisms of a hegemonic cultural universalism and of the challenge for the construction of a new epis-temological project, presenting as an alternative project called critical interculturality, understood as a dialogue between diverse cultures. We consider that such a project is born as an alternative to a capitalist and colonial society built on relations of domination and subalternized identities. In this perspective, we intend in this article to point out, through the authors, the conditions, limits and po-tentialities for insertion into the intercultural project, which corresponds two distinct but convergent theoretical fields: the epistemology of the social sciences and a critical sociology. Just as we will try to portray how legal pluralism was constituted in the State of Bolivia.

KEY WORDS: CRITICAL INTERCULTURALITY; CULTURAL UNIVERSALISM; CULTURAL

DIVERSITY; COUNTER-HEGEMONIC EPISTEMOLOGY

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por finalidade fazer uma reflexão sobre os debates intelectuais acerca dos conceitos multiculturalismo, interculturalidade e pluriculturalismo e suas pertinentes críticas a um universalismo cultural hegemônico e ao desafio para a construção de um novo projeto epistemológico, resultante dos desafios colocados pela interculturalidade como diálogo entre saberes.. Nesta perspectiva pretendemos apontar por meio dos autores, quais as condições, limites e potencialidades para a vitalização e operacionalização de um projeto intercultural.

Neste artigo procuraremos apreender os debates e ideias de diferentes intelectuais para inferir como as mais recentes discussões sobre interculturalidade vêm assumindo um papel significativo para a construção de uma convivência de respeito entre diferentes culturas, a partir do reconhecimento dos diversos saberes e da sua dignidade epistemológica. O interculturalismo apresenta-se, sem dúvida, como um projeto político, cultural, social, epistemológico e ético. Considerada a América Latina, é um projeto que assume uma dimensão política e educativa, para a construção de uma democracia participativa conveniente a uma sociedade que congrega uma cidadania multicultural e intercultural. Como projeto que nasce nas comunidades indígenas e não no âmbito dos espaços acadêmicos de construção de uma geopolítica do conhecimento, o conceito de interculturalismo e a respectiva proposta político-social situam-se numa linha de resistência e insurgência em relação aos modelos tradicionais de Estado, de sociedade e de governo. Por esse motivo, o texto incide, também, sobre a construção do Estado plurinacional na Bolívia.

PROBLEMATIZANDO OS CONCEITOS DE MULTICULTURALISMO E

INTERCULTURALIDADE

O conceito de interculturalidade é um derivante do multiculturalismo que, originalmente, designa a coexistência de formas culturais ou de grupos com culturas diferentes no seio das sociedades

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modernas. Contudo, o termo se tornou um modo de descrever as diferenças culturais num contexto transnacional e global.

Segundo Tavares (2014), o conceito de multiculturalismo, tal como tem vindo a ser utilizado e praticado, é um conceito eurocêntrico, que visa descrever a diversidade cultural no quadro dos Estados-nação do hemisfério Norte e para responder aos fluxos migratórios vindos do Sul (África, América Latina) para o espaço europeu; e também um modo de descrever a diversidade étnica existente nos Estados Unidos e a existência de comunidades linguísticas ou étnicas territorialmente diferenciadas, como é o caso do Canadá (SANTOS 2006, apud TAVARES, 2014, p.181). “É, pois, um conceito que não aponta para o horizonte de inclusão da diversidade cultural no mesmo espaço geográfico e para a construção de projetos políticos e sociais que tenham em consideração essa diversidade.” (Id. Ibid.). No entendimento de Santos (1997) o multiculturalismo, é precondição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos da uma política contra-hegemônica de direitos humanos no nosso tempo.

Tavares (2014) destaca que o interculturalismo parte, pois, do pressuposto da multiculturalidade, mas os seus horizontes são mais amplos e mais dinâmicos dado que aponta para “um diálogo frutífero e crítico entre as diferentes tradições culturais e paradigmas civilizatórios” (ESTERMANN, 2013, p. 207 apud TAVARES, 2014, p.185).

O projeto de interculturalidade nasce a partir das pertinentes críticas de autores contemporâneos a um universalismo cultural hegemônico ocidental que, na visão de

Santos (1987), consiste numa visão epistemológica unidimensional imposta e “aceite” social e historicamente como suporte das diversas formas de exploração e dominação, e impediu que possibilidades emancipatórias se realizassem, que outros modelos sociais se afirmassem e que outras epistemologias se tornassem visíveis.

Nessa perspectiva, o projeto de interculturalidade não representa apenas uma crítica radical a uma ordem dominante em uma sociedade capitalista e colonial, construída a partir de relações de dominação e identidades subalternas, mas provoca reflexões e apresenta argumentos que, por definição, entendemos como uma luta contra- hegemônica.

Claros e Viaña (2009) reconhecem que o problema em implantar o projeto de interculturalidade parte da ideia de que as culturas são totalidades estruturantes que determinam os comportamentos dos sujeitos, que são parte delas e o próprio conceito de cultura tem raízes e consequências conservadoras e reacionárias. E por essas preocupações esses autores realizaram análises sobre o conceito de cultura, para encontrar alternativas que permitam uma nova concepção de uma verdade que esteja além do relativismo e do universalismo cultural.

Segundo Claros (2009, p. 82):

No se debe olvidar que la filosofía intercultural es un proyecto naciente, proyecto que debe ser encarado con mucha seriedad, tanto por las pretensiones de gran alcance que se plantean como por la urgencia con la que se presenta.

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filosofia intercultural se dará numa transformação mais radical não na forma de entendê-la, mas de conhecê-la e reconhecê-la, sem temê-la, mas elucidá-la, redefini-la e/ou mesmo reformulá-la, como sugere Viaña (2009):

La necesidad de definir y de replantearse la “Interculturalidad” en su noción y uso dominante, se ha vuelto una urgencia... . La noción de interculturalidad, en su acepción dominante, pretende ser el sustituto de la noción de multiculturalidad, manteniendo el mismo horizonte u fundamentos conservadores.

Dessa feita, a interculturalidade se traduz como um projeto alternativo que critica o denominado universalismo cultural, sem cair na armadilha do relativismo paralisante; é justamente na tensão que existe entre universalismo e o relativismo que, de certa maneira, se caracteriza esse projeto. Por um lado, se manifesta na existência de diferentes formas legítimas de ver o mundo, mas, por outro, se evidencia e assegura que o reconhecimento implica um problema de comunicação entre as diferentes formas de ver o mundo. Boaventura de Sousa Santos (2002, p.09) propõe uma sociologia das emergências que tem como objetivo “transformar as ausências em presenças.” Isto é, trata da superação da monocultura do saber científico, do tempo linear, da naturalização das diferenças, da escola dominante, centrada hoje no universalismo e na globalização, além da produtividade mercantil do trabalho e da natureza. O caminho proposto pelo autor baseia-se na ideia de uma contraposição por intermédio da ecologia dos saberes, que clama por um diálogo do saber científico com o saber popular e laico.

Sintetizando, os autores aqui apresentados argumentam que o projeto de interculturalidade parte das seguintes concepções gerais: os contextos onde se produzem visões de mundo são conjuntos holísticos e, portanto, não existem critérios universais supraculturais que possam atuar como juízes e validar os diferentes conhecimentos.

Nessa perspectiva, a interculturalidade não pode definir-se previamente como um diálogo entre culturas, uma constatação, mas seguramente uma intenção, um projeto em construção. “Lo intercultural como proyecto cultural compartido que busca la recreación de las culturas a partir de la puesta en práctica del principio del reconocimiento recíproco. (FORNET-BETANCOURT, 2004:9

apud CLAROS y VIAÑA, 2009, p. 86).

Boaventura Santos (1987), em Um discurso sobre as ciências, afirmava: “estamos no fim de um ciclo de hegemonia de certa ordem científica”. Referia-se naturalmente ao paradigma dominante que teve início ao final do século XVI, se consolidou entre os finais do século XVIII e meados do século XIX: o Norte seria hierarquicamente superior ao Sul e este, pela mesma razão, inferior ao Norte.

Nessa perspectiva, Santos (2010) traz, em sua obra Epistemologias do Sul, uma metáfora do sofrimento, da exclusão e do silenciamento de povos e culturas que, ao longo da História, foram dominados pelo capitalista e colonialismo, isto é, povos que foram colonizados, participaram da modernidade pela violência, exclusão e discriminação. A modernidade impôs que as culturas desses povos e as respectivas experiências locais fossem consideradas tradicionais, exóticas e nunca constituíram polos de comparação com a cultura eurocêntrica.

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cultural, na condução de uma epistemologia dominante, gerando uma relação bastante perversa, fazendo com que os saberes peculiares dos povos e nações colonizadas, bem como diversas outras formas de saberes, fossem suprimidas e inferiorizadas, gerando uma vulnerável descontextualização social, política e institucional, fruto de um quadro teórico legitimador de todas as formas de dominação e exclusão.

Entendemos que essa dominação sobre os povos do Sul se traduz pelo colonialismo, cujos tentáculos se estendem a outros domínios e esferas, tais como a dominação epistemológica, paradigmas impostos e transmitidos pela modernidade capitalista. Segundo Tavares (2009), o colonialismo imprimiu uma dinâmica histórica de dominação política e cultural submetida a uma visão eurocêntrica do conhecimento, do mundo, do sentido da vida e das práticas sociais.

Desse modo, Santos (2010) aponta as epistemologias do Sul, saberes que poderão estabelecer um diálogo intercultural (ecologia dos saberes), valorizando os conhecimentos e saberes tradicionais dos povos colonizados. (...) Um pluralismo epistemológico que reconheça a existência de múltiplas visões que contribuam para o alargamento dos horizontes da mundaneidade, de experiências e práticas sociais e políticas alternativas. (TAVARES, 2009).

DEBATE HISTÓRICO ACERCA DA INTERCULTURALIDADE

A sensibilidade para com o tema das diferenças culturais é uma conquista recente. Mas o problema do encontro e do conflito entre culturas é antigo e tem sido enfrentado e resolvido, geralmente, valendo-se de perspectivas etnocêntricas, que pretendem impor o próprio ponto de vista como o único válido. De modo particular, no mundo ocidental a cultura europeia tem sido considerada natural e racional, exigindo-se como único modelo da cultura universal.

Dado que concebem a diferença cultural fora de um contexto histórico, cultural e de poder, trivializam as vivas realidades de seu exótico próximo e o relegam a um submundo de isolamento político. Um multiculturalismo que atue dentro destes limites pluralistas servirá sempre ao status quão como uma estrutura inofensiva [...]. Em muitos aspectos o pluralismo multiculturalista extirpa a diferença transformando-a numa diversidade inócua. (KINCHELOE; STEIMBERG, 1999, p. 42-43).

Desse ponto de vista, todas as outras culturas são consideradas inferiores, menos evoluídas, justificando-se, assim, o processo de colonização cultural. A doutrinação, nessa perspectiva, era interpretada como uma forma de ajuda que os povos “desenvolvidos” dirigem aos “subdesenvolvidos” para favorecer o seu crescimento.

Da mesma forma, considerava-se necessário combater todas as formas “erradas” de pensamento mítico, religioso, popular, consideradas contrárias ao pensamento científico-racional: a superstição deveria ser eliminada para ceder lugar a verdades racionais e objetivas.

[…] a educação se define como o conjunto dos processos envolvidos na socialização dos indivíduos, correspondendo, portanto, a uma parte constitutiva de qualquer sistema cultural de um povo, englobando mecanismos que visam à sua reprodução, perpetuação e/ou mudança (LUCIANO, 2006, p.129).

Entretanto, o eixo conceitual em torno do qual se situam as questões e as reflexões emergentes nesse campo, e que caracteriza os mais espinhosos problemas do nosso tempo, é o da possibilidade

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de respeitar as diferenças e de integrá-las em uma unidade que não as anule. Isso vale, de fato, tanto para o discurso das diferenças étnicas e culturais, de gênero e de gerações, a ser acolhidas na escola e na sociedade, quanto para a distinção entre os povos, a ser considerada nos equilíbrios internacionais e planetários.

[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). (JULIA, 2001, p 10).

Vale também para a diversidade das propostas metodológicas, assim como para a possibilidade da articulação em rede das informações e dos novos saberes nas formas do pensamento complexo. (TERRANOVA 1997).

Nos processos de colonização em países da América Latina, assim como em países de outros continentes, tal concepção etnocêntrica justificava a escravização e o genocídio dos povos nativos. Os imigrantes invasores trataram o continente americano como terra de conquista e não reconheceram a culturas dos indígenas, que foram obrigados a aceitar a cultura dos conquistadores. Nessa esteira, Josef Estermann (2003, p.91) nos diz que “até agora a filosofia dominante só se interpretou como filosofia dos dominadores, porém, chega o momento em que lhe toca a urgência de colocar- se a serviço dos dominados e a mudar o mundo desde baixo”.

Considerando-se civilizadores e colocando em questão até mesmo a humanidade dos interlocutores, os primeiros colonizadores empreenderam uma ação de extermínio e de escravização, geralmente justificada por uma teorização pseudocientífica baseada em uma concepção evolucionista-biológica da diferença racial.

O processo de “colonização” envolve sempre um aspecto da assimetria e da hegemonia, tanto física e econômica, quanto cultural e civilizacional. Poder “colonizar” não só ocupa território estrangeiro e “cultivada”, mas transporta e impõe a sua própria “cultura” e “civilização” incluindo a língua, a religião e as leis. Embora já houvesse muitas ondas de “colonização” antes mesmo da conquista das Américas (Abya Yala), em contextos não europeus, esta “colonização moderna” do século XVI formou o paradigma que se torna no ocidentocentrismo e aprofunda a assimetria persistente entre o “colonizador” (também chamado de “primeiro Mundo”) e o mundo dos “colonizados” (“Terceiro Mundo”), entre o Norte e o Sul. (ESTERMANN, 2010, p. 350).

Em nome de uma visão iluminista do progresso, proclamaram a inferioridade daqueles povos e destruíram suas diferentes culturas, impondo a própria civilização com o poder das armas (TERRANOVA, 1997).

O enfoque da educação intercultural na Europa tem enfatizado a relação entre culturas diferentes como fator pedagógico importante. Mas, tal como o multiculturalismo e o antirracismo, sua elaboração manteve estreita relação com a presença de imigrantes que, em quantidade cada vez mais maciça, vêm buscando inserir-se no mercado de trabalho e na vida social de vários países, inclusive aqueles - como a Itália - que, não tendo um passado de poderio colonial, não tinham até recentemente conhecido a imigração proveniente do terceiro mundo.

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e sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato de amor àqueles. Quando, para ele, os oprimidos deixam de ser uma designação abstrata e passam a ser os homens concretos, injustiçados e roubados. Roubados na sua palavra, por isto no seu trabalho comprado, que significa a sua pessoa vendida. Só na plenitude deste ato de amar, na sua existenciação, na sua práxis, se constitui a solidariedade verdadeira. Dizer que es homens são pessoas e, como pessoas, são livres, e nada concretamente fazer para que esta afirmação se objetive, é uma farsa. (FREIRE, 1977, p. 20) Pela própria natureza de sua origem, a educação intercultural assumiu a finalidade de promover a integração entre culturas, a superação de velhos e novos racismos, o acolhimento dos estrangeiros e, particularmente, dos filhos dos imigrantes na escola.

Mas vêm se acirrando na Europa também dramáticas situações de conflito interétnico (valendo como exemplo extremo o que aconteceu na Iugoslávia), em gritante contraste com o projeto de construção da União Europeia.

Um multiculturalismo (e “diálogo intercultural”) que não toma nota desta situação de poder e assimetria será rapidamente cooptado e manipulado pelo poder hegemônico e “cultura” dominante, como o resultado da “integração” do discurso dominante. Hoje, fala-se também de “multiculturalismo” nos escritórios do Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o G8, mas também nos círculos de yuppies pós-modernas. É preciso ter muito cuidado para não se tornar o “inclusivo” e “inclusivo” em um discurso que realmente exclui instrumento. (ESTERMANN, 2010, p. 357).

O movimento de educação antirracista foi acusado de se constituir de maneira exageradamente ideológica, como expressão de minorias étnicas orientadas principalmente numa perspectiva de

oposição sectária, contra o poder oficial e as desigualdades raciais, ao invés de se dirigir a todos

os cidadãos e cidadãs numa perspectiva de construção de abertura e acolhimento dos diferentes. A própria categorização racial, como todas as categorizações, não é neutra e representa a opção por evidenciar algumas características (físicas, somáticas, culturais, étnicas...) e de considerá-las como elementos caracterizadores de um sujeito. Racializar e biologizar as diferenças, portanto, produzem uma fossilização e obscurecem todos os outros aspectos da relação social que contribuem para definir a identidade do sujeito.

Consequentemente, são colocados em xeque tanto o racismo quanto o antirracismo que, denunciando os preconceitos assumidos por outros, correm o risco de, eles mesmos, consolidarem estereótipos e representações indenitárias étnicas, alimentando uma forma de “metarracismo”, legitimando as categorias que sustentam justamente o que se quer combater (TERRANOVA,1997). No período 1980-1985 surgiu a proposta do antirracismo. O objetivo da educação antirracista é o de promover atividades educativas para aprofundar a consciência de cada um, de modo a saber identificar e desmontar práticas racistas, implícitas ou explícitas, pessoais ou institucionais.

[…] forma nova e sutil de reafirmar que a barbárie se encontra no povo na dimensão da ‘incultura’ e da ‘ignorância’, imagem preciosa para o dominante sob dois aspectos: de um lado, a suposta universalidade do saber dá-lhe neutralidade e disfarça seu caráter opressor; de outro lado, a ‘ignorância’ do povo serve para justificar a necessidade de dirigi-lo do alto e, sobretudo, para identificar a possível consciência da dominação com o irracional, visto que lutar contra ela seria lutar contra a verdade (o racional) fornecida pelo conhecimento (CHAUÍ,1990, p. 51).

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Critica a abordagem multicultural, na medida em que esta poderia evitar o problema do racismo e, concentrando-se somente na compreensão e na aceitação da diferença, correria o risco de avalizar mais ou menos intencionalmente o racismo, deixando intactos todos os aspectos discriminatórios e as hierarquias que a sociedade impõe nas relações entre culturas e grupos étnicos.

[…] como evitar a dicotomia entre esses saberes, o popular e o erudito ou o de como compreender e experimentar a dialética entre o que Snyders chama ‘cultura primeira’ e ‘cultura elaborada’” e que, “o respeito a esses saberes” se insere no horizonte maior em que eles se geram – o horizonte do contexto cultural, que não pode ser entendido fora do seu corte de classe […] O respeito, então, ao saber popular implica necessariamente o respeito ao contexto cultural. (FREIRE, 1977, p. 86). O debate relativo à interculturalidade tem vários campos de reflexão e de intervenção que ultrapassaram o caráter emergencial do problema da imigração que acabou sendo pauta de um debate sobre as temáticas ligadas à formação da identidade, com a valorização das diferenças, assumindo um papel de coletividade, em sociedades mais complexas.

Todos os produtos que resultam da atividade do homem [e das mulheres], todo o conjunto de suas obras, materiais ou espirituais, por serem produtos humanos que se desprendem do homem [e das mulheres], volta-se para ele [ela] e o [a] marcam, impondo-lhe formas de ser e de se comportar também culturais. Sob este aspecto, evidentemente, a maneira de andar, de falar, de cumprimentar, de se vestir, os gestos são culturais. Cultural também é a visão que tem ou estão tendo os homens [e as mulheres] da sua própria cultura, da sua realidade. (FREIRE, 1977, p. 57).

No plano da atividade formativa e didática ressaltam-se, portanto, as formas e os conteúdos da cultura interiorizada pelos indivíduos na vida cotidiana, a variedade dos canais e das experiências com que estabelecem contato de acordo com sua posição social, as sínteses de modelos - frequentemente contraditórios - que vão elaborando no decurso da própria vida. Nesse aspecto, aparece a questão social como questão central nas práticas pedagógicas, a visão de mundo dos sujeitos em formação, avaliação e transmissão de conhecimento.

INTERCULTURALIDADE E IDENTIDADE

O Brasil se constitui historicamente como uma sociedade multiétnica, tomando-se por base uma imensa diversidade de culturas. Reconhecer nossa diversidade étnica implica ter clareza de que os fatores constitutivos de nossas identidades sociais não se caracterizam por uma estabilidade e fixidez naturais. Num contexto cada vez mais pluricultural, exige-se que a escola seja radicalmente democrática, assumindo e respeitando as diferenças que a constituem. Como refere Freire (1993, p. 100),

A escola democrática não apenas deve estar permanentemente aberta à realidade contextual de seus alunos, para melhor compreendê-los, para melhor exercer a sua prática docente, mas também disposta a aprender em suas relações com o contexto concreto.

As identidades culturais - aqueles aspectos de nossas especificidades que surgem de nosso pertencimento a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas, nacionais - sofrem contínuos deslocamentos ou descontinuidades. Segundo Hall (1997), as sociedades modernas não têm nenhum núcleoindenitário supostamente fixo coerente e estável. Nesse sentido, no brasileiro, seja ele nordestino ou do sul, branco, negro, índio, homem, mulher, criança ou adulto, seja ele quem

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for, cada uma dessas identidades assume significados específicos conforme os sujeitos e suas relações sociais e seus contextos históricos, exigindo-se que as instituições educativas levem em consideração toda essa amplitude. A educação é um processo emancipatório dos seres humanos, a busca e aprofundamento da sua humanização, tendo em vista a sua assunção como cidadãos participantes, críticos e atuantes que contribuem para a transformação social. De acordo com o pensamento de Freire (1980, p. 102),

Os movimentos populares, ao correlacionarem educação e transformação, possibilitaram a ampliação do entendimento sobre cultura. Educação popular, cultura e mudança social andam juntas, com o objetivo de transformar pessoas, as práticas de educar e a sociedade. Esta compreensão da relação da educação com a mudança social perpassa além do conceito de cultura, pelo conceito de história. O ser humano é “criador da cultura” e “fazedor da história.”

Para Stuart Hall (1997, p. 12-13), por sua vez, “o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas”. Assim, a identidade, sendo definida historicamente, é formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Nas dinâmicas sociais e culturais da atualidade, em que as culturas metaforicamente se entrelaçam, o acontecer histórico é um conjunto de possibilidades, problematização do presente e do futuro, abertura permanente à inovação. A história não é determinista, nem o futuro é inexorável: “O ser humano, face à sua consciência de inacabamento, intervém no mundo, “[…] faz a história em que socialmente se faz e se refaz.” Por isso, “[…] a razão de ser da vida está se dando. E não está dada, nem terminada.” (FREIRE, 1989, p. 43).

À medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao menos temporariamente.

Pesquisando a rede pública de ensino de Porto Alegre, Gilberto Silva verifica que a escola é apontada pelos estudantes como um território de vivência de situações discriminatórias em maior grau que o espaço da rua, do trabalho e da própria comunidade. A escola constitui-se em território de enfrentamentos invisíveis, onde as diferenças são marcadas por aspectos visíveis como a deficiência física, o vestuário (indicador de pertencimento a uma classe social), as práticas religiosas, o sexo e a cor da pele.

[…] pela primeira vez surge a proposta de uma educação que é popular não porque o seu trabalho se dirige a operários e camponeses excluídos prematuramente da escola seriada, mas por que o que ela “ensina” vincula-se organicamente com a possibilidade de criação de um saber popular, através da conquista de uma educação de classe, instrumento de uma nova hegemonia. (BRANDÃO, 1984, p. 70).

Alunos e professores vivenciam tais conflitos e encaminham soluções, na maioria das vezes, sem a busca por uma compreensão de âmbito maior. Nesse sentido, o autor propõe a perspectiva da educação intercultural como estratégia para potencializar a própria ação desencadeada pelo conflito, mediante o diálogo e o encontro, de modo que constitua espaços alternativos produtores de outras formas de identidades, marcadas pela fluidez, pela interação e pela acolhida do diferente.

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Tais considerações perturbam e deslocam o eixo das tendências estáveis e unificantes que muitas vezes perpassam as nossas conversas ou os nossos estudos. Quando as diferenças culturais são consideradas numa perspectiva estereotipada, focalizam-se apenas as manifestações externas e particulares dos fenômenos culturais. Deixa-se de valorizar devidamente os sujeitos sociais que produzem tais manifestações culturais, ou não se consegue compreender a densidade, a dinamicidade e a complexidade dos significados que eles tecem. Mesmo concepções críticas das relações interculturais podem ser assimiladas a entendimentos redutivos e imobilizastes. Assim, o conceito de dominação cultural, se enredado numa lógica binária e bipolar, pode levar a supor que os significados produzidos por um sujeito social são determinados unidirecionalmente pela referência cultural de outro sujeito.

INTERCULTURALIDADE: UMA CRÍTICA AO UNIVERSALISMO

CULTURAL

A definição do conceito de interculturalidade levando em consideração o prefixo “inter” significa necessariamente uma mútua relação entre culturas inicialmente separadas e que poderão iniciar um processo de intercâmbio, de comunicação, partindo dos padrões estruturantes de cada cultura.

Claros e Viaña (2009) declaram que o projeto de interculturalidade busca o diálogo e uma comunicação entre culturas para construir um espaço comum de convivência harmônica entre e com as diferenças, sobretudo numa proposta que faz uma séria crítica à denominada superculturalidade. Entendemos que interculturalidade se traduz numa tomada de consciência contra um pensamento limitado e reducionista da modernidade que não reconheceu que nenhuma cultura pode superar a outra.

Num primeiro momento, a interculturalidade, para Salas (2006, apud CLAROS Y VIANÃ, 2009, p.88), “es una nueva toma de consciencia cada vez más nítida de que todas las culturas están en un proceso de gestación de sus propios universos de sentido, y que no existe la posibilidad teórica de subsumir completamente al otro en mi sistema de interpretación”.

No entanto, para Malo, (2000, apud CLAROS Y VIANÃ, 2009, p.88):

La interculturalidad no puede limitarse a reconocimiento, respeto y eliminación de discriminaciones, la interculturalidad implica un proceso de intercambio y comunicación partiendo de los patrones estructuradores de cada cultura superando el prepotente prejuicio de que la verdad es patrimonio de tal o cual cultura y que, como poseedora, tiene la “carga” de transmitirla a las otras.

Nessa perspectiva, a interculturalidade representa uma construção de um novo espaço comum entre universos culturais inicialmente separados. Mas um questionamento preocupa os interculturalistas, como propiciar o entendimento e diálogo, práticas e sentidos entre sujeitos situados em universos culturais diferentes?

Conforme Tavares (2014), o reconhecimento da diversidade cultural, não numa perspectiva descritiva, mas de projeto, pressupõe que as diversas culturas são tratadas como iguais na sua diferença. Esse passo terá, pois, de ser dado para a possibilidade de um interculturalismo.

Segundo Fornet-Betancourt (2003b: 41-42 apud CLAROS y VIAÑA, 2009, p.90), “(...) aquel ámbito indefinido, más exactamente indefinible desde (su) posición originaria ... el otro, precisamente

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por ser sujeto histórico de vida y de pensamiento, no es nunca constituíble ni re construible desde la posición del otro sujeto”. O autor ainda propõe “un pensar respectivo”. Assim para dar início a este “pensamento respectivo”, devemos começar a dialogar com outros grupos culturais que enxergam o mundo por outras lentes, diferentes das nossas, e esse exercício se dá a partir do que temos a dizer sobre o nosso próprio universo cultural.

Nessa perspectiva, Santos (2007), em produção ou reprodução da sociologia crítica, declara que, na tradição ocidental, a racionalidade metonímica tem a ideia de que há uma escala dominante nas coisas, e essa escala dominante tem tido, historicamente, dois nomes: universalismo e agora, na contemporaneidade, globalização. E complementa sua argumentação, fazendo um questionamento: “O que é universalismo? (...) simplesmente é toda ideia ou entidade válida independente do contexto no qual ocorre. (...) O global e universal é hegemônico; o particular e local não conta, é invisível, descartável, desprezível.” (SANTOS, 2007, p. 31).

Nesse sentido, a racionalidade que domina no Norte tem tido, ao longo dos anos, uma influência enorme na maneira de pensar dos povos que sofreram a colonização, isto é, nas ciências, nas convicções e leitura de mundo, numa política hegemônica que, prisioneira dos seus conceitos abstratos e universalizantes, não reconhece outras culturas como pertencentes a uma ordem civilizacional.

Nessa perspectiva, Boaventura de Sousa Santos (2010) propõe o desafio de criar uma Epistemologia do Sul como uma vereda para suplantar a matriz colonizadora. A matriz colonizadora do saber apresenta-se de um modo totalitário, não reconhecendo as suas insuficiências e incompletudes. Santos (2009, p.41) considera que:

Não há nenhuma cultura que seja completa, e então é preciso fazer a tradução para a diversidade sem relativismo. (...) Esse procedimento de tradução é um processo pelo qual vamos criando e dando sentido a um mundo que não tem realmente um sentido que seja distribuído, criado, desenhado, concebido no Norte e imposto ao restante do mundo, onde estão três quartos de pessoas. É um processo distinto, e por isso o chamo a Epistemologia do Sul. (idem, p. 41).

O mesmo autor propõe o desafio da ecologia dos saberes, que postula um diálogo do saber científico com o saber laico, como um caminho em contraposição a um universalismo cultural, cujo espaço e tempos situam-se nas sociedades marginalizadas pelos centros hegemônicos colonizadores nas lutas, experiências e saberes dos povos colonizados.

Não se trata de “descredibilizar” as ciências nem de um fundamentalismo essencialista “anticiência”, como cientistas sociais, não podemos fazer isso. O que vamos tentar fazer é um uso contra-hegemônico da ciência hegemônica. Ou seja, a possibilidade de que a ciência entre não como monocultura, mas como parte de uma ecologia mais ampla de saberes, em que o saber cientifico possa dialogar com o saber laico. (Idem, p.32).

No desdobramento da construção deste texto, interpretamos que, entre os interculturalistas, encontra-se uma necessidade de transcender uma visão totalizante e conservadora do termo cultura, para uma concepção mais tolerante, que pode ser interpretada como uma luta contra as formas dominantes de determinada ordem social. A esse respeito Catherine Walsh (2002: 127 apud Claros y Viaña, 2009, p.90) declara:

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Dentro de la noción y del manejo de la diversidad en el Ecuador, “las culturas” aparecen como totalidades, cada una con su contenido, con su tradición y costumbre identificables, mantenidos en un tiempo mítico y utópico, bajo el supuesto actual de la tolerancia e igualdad. Pero, mientras que el Estado reconoce la diversidad étnica y otorga derechos específicos, el hecho de reducirlo a una salida sólo para los grupos étnicos limita la esfera del cambio a la particularidad étnica (promoviendo así un cierto tipo de relativismo cultural.

Nessa perspectiva, a efetivação de um projeto intercultural interpretado como uma luta contra-hegemônica se faz necessária para desertar a ideia de totalidade como fundamento da interculturalidade e passar por uma profunda problematização do conceito de cultura, tido como uma ferramenta fundamental para impulsionar o projeto como crítica a uma superculturalidade.

Os interculturalistas procuram ir além do conceito do denominado multiculturalismo conservador com pigmentos relativistas. O projeto de interculturalidade consiste na construção de uma nova hegemonia que se desvie de uma hegemonia da ordem social dominante. Walsh (2002, p. 175 apud CLAROS; VIAÑA, 2009, p.90) apresenta uma definição que supera uma visão reducionista de um diálogo harmônico entre culturas:

Más que un simple concepto de interrelación, la interculturalidad señala y significa procesos de construcción de conocimientos “otros”, de una práctica política “otra”, de un poder social “otro”, y de una sociedad “otra”; formas distintas de pensar y actuar con relación a y en contra de la modernidad / colonialidad, un paradigma que es pensado a través de la praxis política.

Dessa forma, entendemos que o projeto de interculturalidade supera o princípio de diálogo entre culturas diferentes, mas caracteriza-se como um espaço de sentimentos e atitudes que se venha a contrapor a uma ordem hegemônica dominante, na busca da construção de um espaço onde os diálogos seriam possíveis. Por conseguinte, tal projeto se revela como um imaginário social, uma alternativa radical, que alguns autores intitulam como um projeto utópico, crítico e desorganizador da ordem dominante colonialista e capitalista.

UMA EXPERIÊNCIA INTERCULTURAL: A EMERGÊNCIA DO ESTADO

PLURINACIONAL NA BOLÍVIA

Um Estado é fundamentalmente uma ideia e alguns teóricos defenderiam que “no hay nada mas idealista que el Estado” (citação de García Linera, 2010), porque o Estado monopoliza representações de mundo, define o que é desejável e indesejável e quais são as expectativas de uma determinada sociedade. Desse modo, a força motriz que impulsionou a criação do novo Estado na Bolívia se define por uma força oriunda da representatividade dos movimentos sociais, especialmente indígenas, centrada no princípio da pluralidade, baseado em uma nova construção de um Estado Plurinacional.

A plurinacionalidade, em sua definição original, se traduz como uma forma de Estado que rompe com o antigo modelo monocultural hegemônico e se expressa como uma realidade concreta e vigente em alguns países espalhados pelos cinco continentes.

Como diría García Linera: “El Estado Plurinacional es una solución virtuosa de esa articulación histórica de vida, de idiomas, de culturas”.

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Para Tavares (2014) a plurinacionalidade é, assim, uma perspectiva político-jurídica de defesa da diversidade cultural, de reorganização territorial e de democracia intercultural que não põe em causa a unidade nacional, antes a reforça dado que, em nome dela, se reconhece a plurinacionalidade.

Entendemos que, institucionalmente, o Estado Plurinacional propõe um novo modelo de poder e efetivamente novas experiências e não somente dá um novo significado aos múltiplos idiomas, várias culturas, outras referências geográficas, como também oferta uma diversidade de práticas diferentes numa ordem socioeconômica e política. Por exemplo, no campo político existem diferentes maneiras de praticar a democracia participativa na seara coletiva e nas individualidades.

Nessa perspectiva, segundo Raquel Yrigoyen (2003, p.80), a pluralidade jurídica na Bolívia se traduz como:

La existencia simultánea – dentro del mismo espacio de un Estado-de diversos sistemas de regulación social y resolución de conflictos, basados en cuestiones culturales, étnicas, raciales, ocupacionales, históricas, económicas, ideológicas, geográficas, políticas, o por la diversa ubicación en la conformación de la estructura social que ocupan los actores sociales.

Desse modo, o pluralismo jurídico boliviano significa a incorporação de várias jurisdições, no âmbito de um único sistema judicial, ressaltando assim a jurisdição ordinária e a indígena originária em condições de igualdade. Entretanto, o pluralismo jurídico significa o reconhecimento de jurisdições diferenciadas articuladas entre si, através da aplicação do respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, dos direitos humanos, que se efetivou através da cooperação, coordenação e controle constitucional exercido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Santos (1997) declara que o multiculturalismo é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica de direitos humanos, no nosso tempo.

Assim, o projeto de interculturalidade procura superar a definição primária de “diálogos entre culturas diferentes”, mas caracteriza-se como um espaço de sentimentos e atitudes que se venha a contrapor a uma ordem hegemônica dominante. Por conseguinte, tal projeto se revela como um imaginário social, uma alternativa radical, um projeto utópico, crítico e desorganizador da ordem dominante colonialista e capitalista.

Interpretamos que a interculturalidade refere-se a um campo complexo em que se entretecem múltiplos sujeitos sociais, diferentes perspectivas epistemológicas e políticas, diversas práticas e variados contextos sociais. Enfatizar o caráter relacional e contextual dos processos sociais permite reconhecer a complexidade, a polissemia, a fluidez e a racionalidade dos fenômenos humanos e culturais. E traz implicações importantes para o campo da educação.

A mais importante implicação constitui-se na própria concepção de educação. A educação, na perspectiva intercultural, deixa de ser assumida como um processo de formação de conceitos, valores, atitudes, baseando-se numa relação unidirecional, unidimensional e unifocal, conduzida por procedimentos lineares e hierarquizantes.

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Stephen Stoer e Luiza Cortesão (1999) indicam que, em Portugal, se tem utilizado o termo educação inter/multicultural para indicar o conjunto de propostas educacionais que visam promover a relação e o respeito entre grupos socioculturais, mediante processos democráticos e dialógicos.

Contudo, a educação passa a ser entendida como o processo construído pela relação tensa e intensa entre diferentes sujeitos, criando contextos interativos que, justamente por se conectarem dinamicamente com os diferentes contextos culturais em relação aos quais os diferentes sujeitos desenvolvem suas respectivas identidades, tornam-se um ambiente criativo e propriamente formativo, ou seja, estruturante de movimentos de identificação subjetivos e socioculturais.

Nessa perspectiva, o conceito de interculturalidade, entendido como um derivante do multiculturalismo, não representa apenas uma crítica radical a uma ordem dominante em uma sociedade capitalista e colonial, construída a partir de relações de dominação e identidades subalternizadas, mas, por definição, deve ser entendido como uma luta contra-hegemônica.

Walsh (2002), por sua vez, defende que o projeto de interculturalidade consiste na construção de uma nova hegemonia que se desvia de uma hegemonia da ordem social dominante, além de apresentar uma nova definição que pretende superar a visão reducionista de interculturalidade, enquanto um diálogo harmônico entre culturas, mas na busca da construção de um espaço onde os diálogos seriam possíveis.

Assim, o nascimento do Estado Plurinacional na Bolívia, além de romper com o modelo antigo monocultural hegemônico, representa uma diversidade de práticas diferentes numa ordem socioeconômica e política inovadora.

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REFERÊNCIAS

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RECEBIMENTO: 16/08/2017 APROVAÇÃO: 21/09/2017

SOBRE OS AUTORES:

Vanda A. de Araújo, Mestre e Doutoranda em Educação – Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), Universidade Nove de Julho – (UNINOVE) araujo.vanda.ap@gmail.com

Thiago Batista Costa, Mestre em Educação – Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), Universidade Nove de Julho – (UNINOVE) thiagocosta5@hotmail.com

Manuel Tavares, PhD- Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), tavares.lusofona@gmail.com

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