• Nenhum resultado encontrado

Resenha: A Tradução Cultural nos primórdios da Europa Moderna

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Resenha: A Tradução Cultural nos primórdios da Europa Moderna"

Copied!
11
0
0

Texto

(1)Tradução & Comunicação Revista Brasileira de Tradutores Nº. 19, Ano 2009. Nícia Adan Bonatti Universidade Presbiteriana Mackenzie. A TRADUÇÃO CULTURAL NOS PRIMÓRDIOS DA EUROPA MODERNA. PETER BURKE E R. PO-CHIA HSIA (ORGS.), TRADUÇÃO DE ROGER MAIOLI DOS SANTOS. SÃO PAULO: EDITORA UNESP, 2009. Popular Culture in Early Modern Europe. Peter Burke & R. Po-chia Hsia (orgs.). niciabonatti@uol.com.br. Anhanguera Educacional S.A. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 rc.ipade@unianhanguera.edu.br Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Resenha Recebido em: 15/11/2009 Avaliado em: 3/3/2010 Publicação: 27 de abril de 2010 159.

(2) 160. A Tradução Cultural nos primórdios da Europa Moderna. Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.), tradução de Roger Maioli dos Santos. Esta é uma obra composta por ensaios que se originam de uma série de seminários patrocinados pela European Science Foundation sobre a História Cultural da Tradução. Ela defende uma demarcação acadêmica desse campo de estudos que, até então, vinha sendo elaborado parcialmente pelas Histórias Literária e Religiosa; esse ponto de vista propõe, por extensão, uma visão progressivamente específica dos Estudos da Tradução, que desde 1970 adquiriram uma posição mais central na academia. Nestes Estudos, enfatiza-se “o que os tradutores realmente fazem, e não o que deveriam fazer” (p. 8) e considera-se o público, tomando-se as traduções como “‘fato da cultura que as hospeda’ e como agentes da mudança naquela cultura” (idem). Como primeira meta, apesar de mostrar pontualmente vários avanços nos Estudos da Tradução, os organizadores continuam a apontar a necessidade de ainda estudar os contrastes entre culturas, de examinar as tendências de longo prazo e de debruçar-se sobre a história da prática tradutória; assim, esperam encetar o preenchimento desta lacuna com a produção veiculada no presente livro. A segunda meta a que se propõem é “estimular um diálogo entre os profissionais dos Estudos da Tradução e da História Cultural”, daí a composição do título da obra. Essa última vertente é o leit-motif adotado por ao menos quatro dos autores dos ensaios, que examinam a tradução entre culturas e entre línguas, além das adaptações sofridas por idéias e textos, segundo a necessidade experimentada na passagem de uma cultura para a outra. Por último, a abordagem proposta por outros autores busca compensar hiatos na História da Tradução, que sempre se ateve à tradução literária, enfocando desta vez a nãoficção, a transmissão de informações e os conhecimentos de uma língua para a outra; além disso, três dos ensaios detêm-se sobre a importância dos manuscritos na era da imprensa, sobretudo na Europa oriental. O todo do livro é uma apropriação do conhecimento do que já foi feito e uma incitação à reflexão do que ainda resta a ser pensado. Assim, na Parte I, Tradução e Língua, Peter Burke abre o livro tratando de “Culturas da tradução nos primórdios da Europa Moderna”. No ensaio, apresenta uma visão geral da tradução na época a que o título alude e discute “a tradução entre línguas no contexto da tradução entre culturas” (p. 13). Segundo Burke, a expressão “tradução cultural” foi cunhada por antropólogos do círculo de Edward Evans-Pritchard “para descrever o que ocorre em encontros culturais quando cada lado tenta compreender as ações do outro” (p. 14). Burke faz uma incursão em vários problemas que historicamente se apresentaram na história dos tradutores e aponta o fato de que as culturas de tradução na Europa moderna oferecem “respostas provisórias para seis grandes perguntas: quem traduz? Com que intenção? O quê? Para quem? De que maneira? Com que consequências?” (p. 17). Em seguida, ele passa a responder a essas questões trazendo Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 159-169.

(3) Nícia Adan Bonatti. 161. muitos dados históricos em cada uma delas, acompanhado sempre por extensa bibliografia, o que pode sugerir inúmeros assuntos de pesquisa para os estudiosos da tradução. O ensaísta chama a atenção sobre o fato de que “tradutores têm seus próprios fins, que podem diferir daqueles do escritor original” (p. 46) − sobretudo porque se refere a uma dada época em que o termo tradução cobria diferentes tipos de abordagem dos textos − e que “mesmo quando os tradutores tentavam ser neutros, a língua que utilizavam não o era” (idem). Burke finaliza este ensaio refletindo sobre o fato de que “algo é sempre ‘perdido’ na tradução. Todavia, o exame detido do que se perdeu é uma das maneiras mais efetivas de identificar diferenças interculturais. Por essa razão, o estudo da tradução é ou deveria ser central para a prática da história cultural” (idem). No segundo trabalho apresentado, “A missão católica e as traduções na China, 1583-1700”, R. Po-chia Hsia faz um recenseamento de traduções feitas das línguas européias para o chinês e vice-versa. Ele tenta estabelecer limites entre o que chama de tradução em sentido “estrito” e as compilações, sinopses etc., o que se revela uma tarefa hercúlea, devido às infinitas variações que encontra, incluindo-se aí os textos chineses escritos por missionários europeus − nem sempre inéditos ou próprios − e que tornam a classificação problemática. Faz também um levantamento sobre o número de tradutores identificados e os classifica por nacionalidade, buscando identificar as influências culturais que aportaram em terras chinesas. Os indígenas também colaboraram na empreitada, seja ajudando um missionário − dado que os textos comparecem por meio da Igreja Católica −, seja lançando-se sozinho na tarefa. Delineiam-se três cenários possíveis: no primeiro, os jesuítas traduziam dos textos europeus para o chinês. No segundo, o tradutor jesuíta explicava para seu colaborador chinês, de forma oral, os textos europeus; seguia-se então um debate sobre os sentidos até que se chegasse a um acordo sobre o que seria o texto final. Na terceira perspectiva, um tradutor jesuíta esboçava uma tradução que posteriormente recebia uma revisão estilística de um colaborador nativo. Dos três cenários, o que encontrou maior número de experiências foi o segundo, o que permitiu mesclar a interpretação jesuítica à elegância estilística chinesa (pp.55-56). “O sucesso desse projeto de tradução ficou muito evidente pelo consumo textual interno da missão chinesa”, como afirma Hsia (p. 59), “embora a Bíblia não tenha sido traduzida, em agudo contraste com os esforços dos protestantes no século XIX [...]. Os títulos e as coleções existentes permanecem, ainda assim, como um monumento ao intercâmbio cultural cultivado por muitas gerações de pioneiros culturais.” (p. 60). No hermético e difícil capítulo três, “A língua como meio de transferência de valores culturais”, Eva Kowalská faz uma apreciação panorâmica sobre o que ocorreu com algumas línguas eslavas, sobretudo o eslovaco, no período moderno. Ela começa por Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 159-169.

(4) 162. A Tradução Cultural nos primórdios da Europa Moderna. Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.), tradução de Roger Maioli dos Santos. afirmar que “aquilo que não é traduzido para uma determinada língua pode ser tão significativo e tão revelador quanto aquilo que é traduzido” (p. 62) e inclui como ponto central, no caso eslovaco, a não tradução da Bíblia, passando a discorrer sobre os motivos que estão nos bastidores desse evento. Entre os fatores mais relevantes estão as disputas pelos fiéis levadas a cabo pelas Igrejas Luterana (que só pregava no vernáculo) e Católica (que era contra as traduções e privilegiava o latim), com o consequente léxico alternadamente elevado à categoria de língua oficial − dado que durante muito tempo as línguas não estiveram codificadas e a terminologia usada serviu para distinguir os católicos dos “hereges” (p. 71). Foi também a língua que forneceu a consciência da distinção linguística e ética dos eslovacos, permitindo sua separação do emaranhado mais amplo do eslavismo. É indispensável, para ler este ensaio, ter boas fontes de consulta e/ou um sólido conhecimento histórico sobre as várias etnias que compuseram os países envolvidos na questão estudada, sob o risco de não se apreender as diversas nuanças apontadas. Fica evidente, porém, a diferença de efeitos causados pela tradução luterana da Bíblia, que acaba por promover a inseminação daquela que viria a ser a língua eslovaca versus a insistência de Roma em perpetuar seus ensinamentos prescindindo da tradução. No quarto capítulo, “Traduções para o latim na Europa Moderna”, assistimos à volta de Peter Burke, desta vez num ensaio solo. Ele toma para si a tarefa de examinar a tradução feita no sentido “errado”, isto é, de uma língua moderna para o latim, e acaba por localizar não menos que 1.140 traduções publicadas e de autores conhecidos entre a invenção da imprensa e o ano de 1799 − e nem de longe pretende ter sido preciso e/ou exaustivo nas cifras que encontrou. Contudo, elas são, em sua leitura, suficientemente importantes para permitir a colocação de ao menos quatro grandes questões cruciais: 1) O que foi traduzido para o latim nesse período?; 2) De que línguas?; 3) Por quem, para quem, onde e quando? e 4) Quais eram os principais problemas linguísticos que os tradutores enfrentavam? Como havia feito no primeiro capítulo, Burke responde a cada uma delas sempre de modo muito bem fundamentado e semeado de referências bibliográficas, mostrando ainda onde estão atualmente todas essas obras. Ele mostra que as opções tradutórias de Schleimacher − levar o autor “domesticado” até o leitor, ou trazer o estranhamento do original e inseminar a língua de acolhimento − também se fazem presentes no período examinado. Para finalizar, pondera que a opção classicizante − na qual se inclui, em nossos dias, até mesmo um Harrius Potter et philosophi lapis, ou Harry Potter e a pedra filosofal (p. 79) − pode ser vista como:. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 159-169.

(5) Nícia Adan Bonatti. 163. [...] uma espécie de tradução cultural às avessas. [...] A prática de classicizar, precisamente por ser estranha à nossa própria cultura, proporciona um vívido lembrete do fato de que a língua não é neutra, nem flutua livremente. Ela é sempre onerada pela bagagem cultural. Assim, as escolhas feitas por tradutores do período moderno revelam muita coisa sobre sua cultura. (p 92). Na Parte II, Tradução e Cultura, a abertura é feita por Carlos M. N. Eire com o interessantíssimo artigo “A piedade católica moderna em tradução”. Para o autor, “as traduções são tão importantes na história do catolicismo moderno que se poderia facilmente afirmar que, ‘sem traduções, nada de renovação espiritual, e nada de Reforma Católica’” (p. 95). Ele retoma em linhas gerais o percurso conhecido sobre a história da construção intelectual da piedade no período, desde Inácio de Loyola e Erasmo de Roterdã, passando por suas traduções e respectivos tradutores − movidos por diversas intencionalidades −, assim como por Teresa d’Ávila, João da Cruz e outros nomes de destaque na história das religiões, chegando até o laicato, que recebia os textos devocionais sob um determinado viés. Examina também a obsessão genealógica que faz a pesquisa sobre o tema rastrear linhagens por meio de textos e, portanto, por meio das traduções. Sua finalidade é “identificar lacunas, criticar a produção acadêmica [atual a esse respeito] e sugerir novas vias de pesquisa” (p. 98), o que faz na conclusão do ensaio. Antes. disso,. porém,. ele. se. detém. produtivamente. em. análises. de. termos. equivocadamente traduzidos e que determinaram os rumos da penitência cristã, como aquele observado pelo próprio Erasmo e que diz respeito à opção feita na Vulgata em Mateus 4:17, que diz “Fazei penitência, pois que o Reino dos Céus está próximo”. O autor de Elogio da Loucura, contudo, afirma que o sentido correto não seria “Fazei penitência”, mas sim “Arrependei-vos” (poeniteat vos), ou ainda “reformai-vos” (resipiscite). São diferenças sutis, mas significativas. Enquanto Poenitentiam agite legitima o ato de confessar-se com um padre, poeniteat e resipiscite indicam um ato ou uma disposição interiores. Outra tradução equivocada, desta vez no período áureo da influência espanhola no campo espiritual, deu-se com o termo renano Inwerken [ação interior] para designar a maneira pela qual o divino agia interiormente dentro de um indivíduo. Ocorre que a tradução latina optou pelo termo inactio (inação), acentuando inadvertidamente o caráter de passividade. Essa leitura deu origem a um movimento na Espanha tido como herético, os alumbrados ou “iluminados”, (ou ainda, em italiano, Illuminati), o que rendeu aos seus adeptos, além de perseguições, confisco de bens, açoites, prisões e outras penas, três editais da Inquisição espanhola. Entre os acusados (e depois relaxados) mais ilustres estão Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, e Teresa d’Ávila. Eire também aponta o pioneirismo de algumas empreitadas na tradução, tais como a de Jacques Lefèvre d’Étaples, que em 1509 publica o Psaltorium quintuplex, edição comparativa de cinco versões em latim dos Salmos e, em 1512, publica uma edição Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 159-169.

(6) 164. A Tradução Cultural nos primórdios da Europa Moderna. Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.), tradução de Roger Maioli dos Santos. francesa da Epístola aos romanos a partir do grego e a acompanha do texto da Vulgata em latim para comparação, além de adicionar os seus próprios comentários. Foi ele também o primeiro a traduzir para o francês o Novo Testamento (1523), os Salmos (1525) e a Bíblia inteira (1530). Depois de percorrer o trajeto proposto, Eire termina por apontar seis significativas lacunas na historiografia dos textos devocionais, de sua tradução e de sua distribuição, o que sugere fontes inesgotáveis de pesquisa. As lacunas dizem respeito 1) à classificação da literatura devocional; 2) ao impacto da discórdia religiosa; 3) à quase ausência de estudos sobre a identidade dos tradutores e de seu lugar no contexto mais amplo da vida religiosa; 4) à necessidade de examinar o espírito de proselitismo da era, tomando a literatura devocional como parte integrante da formação de identidades culturais e religiosas; 5) à inadiável tarefa de investigar as traduções em si, dado que textos retraduzidos numa língua ou que conhecem traduções para várias línguas podem projetar infinitas luzes sobre várias questões. Há ainda a tarefa de examinar as escolhas feitas pelos tradutores, pois elas podem fazer um mundo de diferenças, tanto literal como figurativamente; e, finalmente, 6) aumentar significativamente as pesquisas bibliográficas, o que contribuirá para compreender “como os europeus cruzaram fronteiras e estabeleceram suas identidades [...] como homens e mulheres cientes de que precisavam se adaptar a um mundo em constante mudança, em constante encolhimento e assolado por conflitos” (p. 113). No capítulo 6 que dá sequência ao livro vemos Geoffrey P. Baldwin explicar como se deu “A tradução da teoria política na Europa Moderna”. Para tanto ele recorre, entre outras, à noção de marginalia, que são as anotações feitas por tradutores e propõe a consideração da tradução com vistas a suprir lacunas apontadas no estudo da extensa gama de idéias políticas que circulavam na Europa moderna. Para defender sua posição, ele afirma que a tradução sempre aparece dentro de um contexto cuja característica principal é a tradição nacional dentro da qual o texto foi criado: “Quando um texto é traduzido, é extraído da cultura que o criou e posto num lugar novo. Isso pode nos mostrar [...] o que as pessoas no período moderno consideravam de valor em outras culturas” (p. 117). Os perigos e as finalidades da busca da tradução dessa época também são considerados: Quando a censura era comum e a autoria podia ser perigosa, traduzir uma obra que de algum modo criticasse aqueles no poder também podia ser extremamente arriscado. Estar do lado errado de uma divisa confessional podia levar alguém a ser queimado em uma estaca. Por isso é importante considerar o que podia ser traduzido de uma cultura para outra, e como o que era traduzido podia ser adaptado e moldado de maneira a se adequar a seu novo contexto, pois isso podia mudar a natureza e o significado do texto. [... textos podiam ser traduzidos por serem interessantes ou atraentes, ou graças a sua relevância para uma situação política em particular, ou em razão de uma significância. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 159-169.

(7) Nícia Adan Bonatti. 165. mais geral. Um texto [também] podia ser traduzido por lucro. (pp. 117 a 119, grifos meus). Com esses parâmetros em vista, Baldwin faz um vôo panorâmico sobre a tradução de leis e constituições, apontando as dificuldades na área da jurisprudência e da jurisprudência natural, assim como o uso do latim como língua franca e como formadora dos operadores do Direito da época. Em seguida, mostra como os monarcas e as repúblicas promoveram opções de cunho ideológico quanto aos autores que seriam ou não traduzidos, sempre objetivando sustentar a posição de governo daquele que estava no poder. O mesmo se dá no quesito “razão de Estado”, usualmente associado à monarquia: “Seus imperativos práticos e morais giravam em torno do Estado como entidade abstrata e da necessidade de mantê-lo vivo, e esse era um imperativo que os monarcas tentavam tornar seu” (p. 130). O ensaio trata também da literatura de resistência, que o autor considera como uma parte muito importante da história das idéias e para ilustrá-la analisa em linhas gerais os efeitos de duas traduções. A primeira é a do rei James I, que escreveu em dialeto escocês (com a devida adaptação mais anglicizada quando assumiu o trono da Grã-Bretanha, o que já constitui uma tradução) o texto Basilikon doron (“A dádiva real”), um livro de conselhos dirigidos ao seu filho Henrique. Esse monarca tinha a pretensão de cruzar fronteiras culturais e confessionais, de tal forma que o livro acaba por ser traduzido para o latim, para que o papa possa lê-lo. Não obstante a divisa confessional, o pontífice emociona-se com o que lê e elogia o teor do livro. Na sequência, ele é traduzido em outras línguas e continua sua trajetória autônoma fora da ilha. A segunda refere-se a Jean Barbeyrac, que estabeleceu um programa de tradução e de publicação de textos apresentados sob uma nova luz. Não por acaso, acaba por assim contribuir enormemente para o progresso do Iluminismo francês. Baldwin enfatiza a circunstância de não ter havido muitas idéias políticas traduzidas entre a Europa oriental e a ocidental, o que a seu ver não se deve a uma incompatibilidade entre elas, mas sim a uma imensa porosidade de fronteiras intelectuais e morais, além da onipresença do latim como língua franca das pessoas cultivadas da época, o que viria em detrimento dos inúmeros vernáculos, sobretudo no Leste. No capítulo 7 temos Peter Burke de volta, desta feita “Traduzindo histórias”. Ele examina aqui as obras que foram objeto de traduções, buscando cernir “o que os leitores em diferentes países achavam particularmente interessante ou estranho em outras culturas no período moderno” (p. 143). Ele começa por questionar o que o próprio termo “história” significa em várias línguas, “do grego historia em diante [e que] constitui um desafio para os tradutores” (idem). Em seguida, inventaria os autores antigos mais traduzidos, as línguas mais traduzidas e seus destinatários, o que não foi traduzido como. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 159-169.

(8) 166. A Tradução Cultural nos primórdios da Europa Moderna. Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.), tradução de Roger Maioli dos Santos. indicador de contingências culturais, os leitores a que os textos se destinavam, quem foram os tradutores, quais bibliotecas guardaram esses textos e, finalmente, como atuaram os ditos tradutores, seja na seleção, seja na forma de traduzir e sustentados por quem. Para exemplificar a abordagem, Burke explora a tradução cultural de histórias por meio de dois estudos de casos: os de Guicciardini e o de Serpi − e, em particular, da acomodação de suas obras ao mundo protestante. Toda sua explanação, com abundantes referências bibliográficas, aponta para o muito que há de ser feito antes que se dê o período por estudado em profundidade. Em seguida, temos Maria Lúcia Pallares-Burke que examina em “The Spectator, ou as metamorfoses do periódico: um estudo em tradução cultural” o impacto do jornal inglês na cultura de origem e, via tradução ou cópia de idéias, seu desdobramento em inúmeros países, marcando mesmo aquilo que se conhece sob o nome de jornalismo atual. As inovações trazidas por tal periódico desencadeiam tal sucesso que ele passa a ser considerado uma leitura cult em inúmeros meios cultivados da Europa. Um de seus primeiros sucessos começa com as resenhas de livros e com as traduções parciais das obras mais significativas. O primeiro tradutor levantou a pertinente questão: “Por que traduzir?” (sobretudo porque havia a sempiterna língua franca, o latim, que permitia a leitura interfronteiras) e, colocando-se como “mediador entre a Grã-Bretanha e os ‘países estrangeiros’”, antecipou a resposta: “Porque a obra podia ser relevante para outros leitores além dos originalmente tencionados” (p. 170). Ora, como sugere a autora, “a tradução entre línguas é uma forma de tradução entre culturas, e as modificações pelas quais um texto passa na tradução não resultam apenas de fatores linguísticos” (idem), o que lhe permitirá apontar as sucessivas “adaptações” por que passam os textos, incluindo-se aí a adição de escravos e de sucos tropicais em alguns deles que foram traduzidos para a cultura brasileira, como forma de “temperar” e “aclimatar” obras estrangeiras. Pallares-Burke examina também os “herdeiros” do Spectator em Zurique, Copenhague e Paris. Nesta última, detém-se na figura de Delacroix que, “corroborando a idéia de Borges da ‘criatividade infiel’ como regra para uma tradução de sucesso, diz que ‘seria contra as regras artísticas empregar a mesma cor para pintar duas nações diferentes’”, mostrando assim suas opções de recriar em terras francesas o jornal “original” inglês. Na Parte III, Tradução e Ciência, a última do livro, Isabelle Pantin lança luzes sobre “O papel das traduções nos intercâmbios científicos europeus nos séculos XVI e XVII”. Ela constata que o fluxo de traduções não era muito intenso e dava-se primordialmente do vernáculo para o latim, o que na época agregava valor e mostrava a relevância internacional da obra. Isso trazia, para os autores, “um meio de se Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 159-169.

(9) Nícia Adan Bonatti. 167. estabelecerem na dignificada República das Letras, e eram muito mais significativas quando se tratava de livros que haviam sido escritos primeiramente no vernáculo por razões especiais e importantes, como o Dialogo, de Galileu, ou o tratado de Lansbergen sobre o movimento da Terra” (p. 202). Nem sempre os autores se resignavam com as transformações por que passavam seus textos, mas este não foi o caso, por exemplo, de Galileu que, em nome de assegurar a sobrevivência de sua obra, tolerou as modificações introduzidas. Como aponta a autora, talvez isso se devesse também à mudança do público que lia os livros: “ele se tornara maior, mais estrangeiro, muitas vezes ignorante das circunstâncias da publicação original, e mais livre em suas interpretações. Doravante, a obra seria uma espécie de bem público (bonum publico) e pertenceria a toda a comunidade dos filósofos e das pessoas letradas” (idem). Em seguida, Efthymios Nicolaïdis analisa os “Intercâmbios científicos entre o helenismo e a Europa: traduções para o grego, 1400-1700”, desde as últimas décadas bizantinas até as comunidades gregas do Império Otomano. Ele indica o caráter político na origem das traduções, ocorrida no século de transição do poder do declinante Império Bizantino para o ascendente Império Otomano. Assim, aquele demandava ajuda da Europa ocidental para deter a expansão otomana e propunha um plano de unificação religiosa; para efetuá-la, debates foram instituídos e como subproduto ocorreu uma intensa troca cultural entre os dois lados, incluindo-se aí o intercâmbio de textos científicos, muitas vezes traduzidos. Durante o período bizantino, as traduções de textos científicos se davam em três vertentes − “uma escola do Oriente e duas do Ocidente: os textos da escola astronômica de Tabriz e Maragha na Pérsia, os da escola astronômica dos judeus caraítas na Provença, e os da escola astronômica ibérica” (p. 204). Em decorrência do fenômeno, o grego tornou-se a língua em que as Ciências oriental e ocidental se encontravam, promovendo o há muito desejado retorno ao helenismo. Por outro lado, com a ascensão otomana, desaparece na Grécia o círculo erudito que promovia o desenvolvimento da Ciência. Frustrados em sua ânsia, doravante esses eruditos apenas participariam da “difusão da Ciência européia em direção à ‘periferia científica’. Mais que tudo, o ensino da Ciência integraria as comunidades gregas à cultura européia no século XVIII” (p. 215). No artigo seguinte, Feza Günergun reflete sobre os “Encontros otomanos com a ciência européia: traduções para o turco nos séculos XVI e XVII”. Assim, indica a introdução de informações de fontes européias efetuadas pelos eruditos otomanos no período mencionado, não obstante o acesso a textos científicos árabes e persas do Islã medieval. As contribuições são feitas principalmente nos campos da Medicina, da Geografia e da cartografia. Por sua vez, europeus também se interessavam pelos textos Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 159-169.

(10) 168. A Tradução Cultural nos primórdios da Europa Moderna. Peter Burke e R. Po-chia Hsia (orgs.), tradução de Roger Maioli dos Santos. científicos islâmicos escritos a partir de meados do século XVI, o que testemunha as trocas produtivamente levadas a cabo. Günergun termina enfatizando que “a tradução de obras de ciência européia aumentou gradualmente no decorrer do século XVIII e atingiu um pico no século XIX, quando as versões do latim e do italiano foram substituídas pelas do francês” (p. 237). No breve capítulo que encerra o livro, S. S. Demidov considera as “Traduções da literatura científica na Rússia dos séculos XV ao XVII”. E começa por observar que “No início do século XV, a Rússia não tinha lugar no mapa da Europa” (p. 239), dado que o Estado russo só é estabelecido sob o reinado de Ivã III (1492-1505). Ele estabelece também os parâmetros dentro dos quais a literatura científica deve ser examinada: a da hostilidade do Estado russo, por essência ortodoxo, dirigida contra as tentativas feitas por Roma de estender sua influência a leste. Assim, quando no final do século XV uma literatura de cunho astrológico aparece naquele país, é rapidamente classificada de “heresia judaica” (p. 241) e colocada na compilação de livros proibidos, lista que perdurou até o século XVII. Apesar disso, e desde o século XVI, é possível traçar uma ascensão russa de atividade intelectual; prova disso é o número de manuscritos que circularam nessa época e que é igual ao número de manuscritos de todos os séculos precedentes. Também é possível apontar que as discussões teológicas ocorreram mais frequentemente no período considerado, e que o olhar dos cientistas russos se voltou para a Europa ocidental, sua ciência e cultura. Demidov fornece indicações sobre várias traduções ocorridas nesse período para esboçar como esses textos eram recebidos e depois aponta para o século XVII, que chama de “uma era turbulenta, finalizada pela ascensão da Casa dos Romanov.” E prossegue: “O século se encerrou com as primeiras reformas de Pedro, o Grande, que transformou a Rússia no Império Russo” (p. 242). O território passa por profundas mudanças e demanda uma mudança nos esforços educacionais do governo. Um deles, talvez o mais significativo, dita os rumos científicos do país: em 1667 dois eruditos gregos estabeleceram a primeira instituição superior russa, a Academia EslavoHelênico-Latina, o que de partida mostra dos dois eixos de sua orientação: “O eslavo e o grego frisam o viés ortodoxo, enquanto o latino frisa o viés da Europa ocidental” (idem). Nessa empreitada intelectual, a parte mais significativa foi a intensa tradução de livros contendo informações científicas. Assim têm entrada livre muitas obras sobre Geometria, arte militar, Matemática, Física e Química, informações geográficas que incluíam o Atlas de G. Mercator, Cosmografia, obras de Anatomia e Medicina (campo no qual se insere, na catalogação da época, obras de autores antigos, tais como... Aristóteles) etc. Como aponta o autor do ensaio, “Foi dessa maneira que o espírito do Renascimento apareceu na distante Moscou” (p. 244). Entretanto, havia ainda muitos indícios de que a Rússia não. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 159-169.

(11) Nícia Adan Bonatti. 169. havia aberto mão de sua cultura medieval. “Para derrubar essa tradição e abrir caminho a reformas radicais, as notáveis habilidades de Pedro, o Grande, eram necessárias” (idem). Mas essa é uma história para o século XVIII... Na apreciação que fazemos, trata-se de uma obra de grande relevância para os Estudos da Tradução e constitui uma fonte inesgotável de linhas de pesquisa. A rica bibliografia dá indicações de lugares onde pesquisar, onde obter os documentos ditos originais, além de fornecer inúmeras inspirações de como constituir um corpo de questionamentos para investigar o campo da tradução. O leque de autores é constituído por uma constelação de pesquisadores de altíssimo nível, o que recomenda fortemente a leitura da obra.. Nícia Adan Bonatti Doutora em Linguística, na área de Tradução, pelo IELUnicamp, com aperfeicoamento em Études Françaises pela Université de Toulouse le Mirail (1981). Atualmente é tradutora da Junta Comercial do Estado de São Paulo JUCESP e Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie.. Tradução & Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 19, Ano 2009 • p. 159-169.

(12)

Referências

Documentos relacionados

• Questionário de escolha múltipla para avaliar os conhecimentos sobre a União Europeia e as suas instituições e políticas.  Os candidatos que tiverem obtido os

Ao observarmos que há um grande desafio por parte da diretora ao lidar com a tradução do texto de Woolf para a tela, já que se trata de um romance com construção narrativa

Pois enquanto o princípio que quer que uma obra não possa envelhecer não morrer nem sofrer nenhuma exceção, o princípio segundo o qual uma tradução envelhece e morre,

Com efeito, o tradutor de imprensa ou de imprensa especializada deve adaptar o seu texto ao seu leitor, tal como o faz o jornalista quando escreve o texto original..

Deste modo, pretende-se com este trabalho analisar a tradução automática, utilizando como ferramenta o Google Tradutor, descrevendo a sua história e evolução ao longo dos

Como transição da literatura clássica ao Modernismo, Márcia Schmaltz traduz o prefácio de O chamado em “Lu Xun e a anatomia de um povo”. Lu Xun, expoente do movimento da

Pelo presente instrumento, o SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM COMERCIAL – SENAC / MA, com sede na Rua do Passeio, 495, Centro – São Luis / MA, neste ato representado pelo

O presente estudo contribui para a afirmação da importância de difusão de diferentes culturas por meio da atividade tradutória, atribuindo a mesma a capacidade de interação,