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Alguma coisa acontece no meu coração.

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Academic year: 2022

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Alguma coisa acontece no meu coração.

Vera Moratta

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Primavera de 2020.

Passou mais um ano e eu continuo vivendo intensamente toda a paulicéia, que tem mesmo que ser desvairada. Desvairada e sutil, meiga, serena. Com um vigor intelectual muito intenso, fervilhando sempre no campo das emoções e também do desamparo. Porque São Paulo é isso!

Não tem mais garoa, tem enchentes monumentais. Ninguém mais passa

assobiando na rua despreocupadamente, mas passa-se com medo da

bala perdida.

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Apesar de todos os pesares é preciso resistir e se apaixonar. É urgente apreciar a paisagem de todas as janelas, buscar os olhares, com ou sem brilho. É preciso visitar o MASP e o TRIANON encharcados de história, poesia e cultura. E é possível se apaixonar ainda mais pelo Bixiga, entendendo o seu canto, pensando se o Arnesto ainda mora no Brás, se encantar pela Liberdade ainda com poucos sobreviventes da bomba de Hiroshima. E Santo Amaro, nos seus 180 anos de imigração alemã, no Bom Retiro, antes bairro judeu, agora apresentando outras feições, como os paraguaios e bolivianos e coreanos e nordestinos. E transitar pela Mooca – orra, meu! Com o seu perfil ainda operário e as inúmeras lojas de calçados... herança de uma São Paulo do tempo dos italianos. E caminhar respirando o Ipiranga, olhar com emoção para o riacho que teima em não morrer... e também as casas operárias, pequenas, semelhantes na arquitetura e sem garagem. Casas construídas num tempo anterior ao governo Juscelino – quando carro era coisa de rico. E andar e andar muito, parando para saborear algum sabor da terra onde a “Rita Lee é a mais completa tradução”.

Existe a beleza do Belém, a peculiaridade dos caminhos da zona leste. Para mim, muito especialmente, destaco o Cambuci, bairro centenário e central, de origem operária e a Vila Sônia, dos imigrantes japoneses. Eu não poderia deixar de citar nenhum bairro, mas isso é obviamente impossível, até porque nasce um bairro por dia nessa que é uma das maiores megalópoles do mundo. E o que eu conheço é muito pouco perto da grandiosidade dessa história, desse povo e de todas as heranças deixadas pelos antepassados. Falar de São Paulo é sempre muito pouco, mas dá um prazer enorme poder relembrar, sonhar, lembrar de tanto aprendizado e de tantas conquistas. As conquistas políticas, desde o século XIX e, no século passado, especialmente a avenida Paulista – a mais paulista das avenidas – foi palco das grandes manifestações pelas eleições diretas, pelo fim da ditadura, pelo impeachment do Collor, pela garantia de todas as formas de liberdade.

Esse exemplar é o resultado de mais um ano de publicações no site São

Paulo Minha Cidade. Na realidade, além desses textos, existem outros

20 que ainda não foram publicados, pois, nesse ano, a SPTurismo

enfrentou alguns problemas técnicos, daí o atraso. E faço questão de

publicar também a opinião de alguns dos meus leitores, visto que são,

como eu, apaixonados memorialistas.

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Esse exemplar será entregue para as pessoas mais importantes da minha vida: para a minha mãe, santa e forte mulher, que fiz sofrer quando nasci e que me agüenta há 51 anos – por extensão, minha irmã – a Pi, que é brabinha e a sobrinha, Maria Luísa – linda e inteligente menina e o tio Dante, que me orientou os primeiros passos na política e me fez apaixonar pelo Érico Veríssimo. Para o meu filho Vinícius, a mais doce criatura que eu conheço, de lindíssimo brilho no olhar e na alma, meu marido Nelson, companheiro de estrada. Para a minha madrinha – a tia Norma – a melhor madrinha do mundo, que me sorriu num momento de extrema dificuldade pelas doenças do meu pai. E para a querida amiga, a professora Maria Luiza, que eu chamo de comadre, dona de uma impecável beleza na alma, nos pensamentos e nas atitudes cotidianas. E, claro, tudo o que faço dedico à minha avó. Todos verdadeiros mestres na arte do encanto.

Vera Moratta.

Primavera de 2009.

Percebendo o mundo

Quando se enxerga pouco, a vida tem um sabor diferente. As

dúvidas são constantes, bem como a insegurança . São coisas

crescentes, que não se vê o fim e, ao mesmo tempo, nasce

alguma coisa especial: a teimosia.

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E então eu nasci enxergando muito pouco, tudo era distante, complicado. Eu me sentia diferente, sem coragem para soltar o corpo, sem jeito de andar na rua sem dar a mão para o pai ou para a mãe. Ah! Nem pensar em andar sem ser de mãos dadas.

Um dia, saindo de casa com o meu pai e o meu irmão, na rua Dom Duarte Leopoldo, não sei a razão, o meu pai dizia : “não quero dar a mão, não quero dar a mão”. Com certeza foi um dos dias mais difíceis da minha infância.

Mas aí resolveram me levar ao oculista. Quanta sabedoria implícita nessa atitude! Um oculista! Confesso que eu não sabia o que era isso, mas achava tudo uma grande babaquice: as observações, as perguntas... Fiquei o tempo todo balançando a perna esquerda prá lá e prá cá e acabei tendo que tomar o meu primeiro calmante que, aliás, tinha gosto de dor de ouvido. Para confortar minha alma, a minha mãe me dava um golinho de soda Antarctica depois. Nunca mais tomei esse refrigerante, porque achei que ele também tinha gosto de dor de ouvido.

Chegou o grande dia – fomos à ótica encomendar os óculos! Foi um verdadeiro cerimonial. O meu pai, todo engravatado, bem barbeado como sempre, a minha mãe, bonita e perfumada, fomos à Ótica Especialista, na rua 24 de maio, no centro da cidade. Foi aí que um intrometido resolveu dar palpite na escolha da cor da armação. O meu pai logo disse que não era para dar palpite. Eu escolhi a armação: era branca, quadradinha. Sendo no início dos anos 60, a armação era pesada, daquelas de fazer feridas atrás das orelhas, pesar no nariz... mas era uma necessidade imperiosa, como o ar, como a comida. Escolhi bem.

Naquele momento, acredito que comecei a escolher as cores com as quais eu passaria a enxergar o mundo, com o meu jeito, mesmo pesando nas orelhas e no nariz.

Chegamos em casa. Lá fui assistir televisão. Era a TV Tupi que

marcava presença nas casas. Sentei e assisti. Foi ali que pude

ver, que comecei a amar e a respeitar o Mário Lago, na sua

infinita sabedoria e postura diante da vida. Mário Lago foi

reprovado várias vezes em Matemática, mas dizia que sabia

mesmo era dividir. Bondoso Mário!

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Até hoje quando vou a São Paulo gosto de passar em frente do prédio da antiga TV Tupi., uma das minhas primeiras possibilidades de ler o mundo à distância.

Mas a grande questão é o que veio depois: eu tinha que fazer os chamados exercícios de vista na Clínica Santa Luzia. A Clínica ficava no centro, atrás do prédio do Mappin e conheci ali o que era tortura psicológica. Aliás, complicado mesmo já era tomar o ônibus elétrico. Para mim, ainda pequena, o ônibus elétrico era uma coisa monstruosa, sempre cheio, com pessoas caladas indo para o trabalho. Um dia eu até vomitei lá dentro, tamanha era a tensão em estar me dirigindo para a clínica.

Era um local escuro, de pouquíssimas janelas, tudo cinza e sem vida. As crianças se adentravam numa sala escura e tínhamos que ficar olhando para um desenho na parede. A luz acendia e apagava interminavelmente. A assistente vinha periodicamente e nos aplicava um flash de luz nos nossos olhos... depois outro...

depois outro... e víamos tudo em círculos concêntricos, mas o centro deveria ser o desenho na parede. Confesso que não foi nada agradável... sem contar a falta de educação daquelas atendentes...

Afinal, eu já estavam ficando grande... pelos menos aos olhos dos meus pais... Fiz cinco anos e ganhei um presente de aniversário: um piano Schwartzmann novinho em folha.

Compreendo o orgulho do meu pai, a satisfação da minha mãe.

Afinal, era um piano que ninguém do nosso meio tinha. Eu, pequena e de óculos ainda novos, ao ver entrar aquela coisa imensa, marrom pela sala senti tanto medo, mas tanto, que precisei discutir o evento com a minha terapeuta trinta anos depois... Nossa Senhora da Acheropita! O que era aquilo? Pela vontade do meu pai, eu deveria tocar como o Pedrinho Mattar.

Naquele tempo eu não sabia quem era o Pedrinho.

Passou o tempo e eu tive a felicidade de acompanhá-lo pela

Rede Vida de Televisão no seu programa Pianíssimo. Em 2007

tive o desprazer de chorar a morte súbita do grande musicista.

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Primeiro dia de aula

Quando a gente se dispõe a viver, a escola passa a ser a janela do mundo mais visível, real, aberta, com uma luminosidade impressionante.

Então eu fui, com a minha mãe, professora da mesma escola do Sesi, no bairro do Cambuci e o meu irmão, o Ruy, um ano mais velho.

Eu não me sentia pequena, nem com medo, nem aflita. Eu me sentia do tamanho do mundo, com a beleza da primavera e com uma garra que sempre me acompanhou, se acoplou à minha alma. Eu tinha certeza que ia aprender, que ia viver e sentir o brilho do novo.

A minha professora era a dona Aurora. Ganhei caderno de capa verde clara, escrito CADERNO SESI, lápis e a minha entrada para o mundo civilizado estava acontecendo, gentil, naquele dia de março de 1965.

Que maravilha viver!

Ia aprendendo o A, o E. A primeira lição "A pata nada". Que pena que a pedagogia moderna inventou que lições como "a pata nada, a macaca é má " - traumatizam. Eu não me senti nem um pouco traumatizada com isso. Cada página, uma lição, a cópia das primeiras letras, a doce alegria da vitória, mais um desafio, depois outro e outro...

Quando aprendi a fazer o "S", enchi a página toda do caderno.

Primeiro, lá no topo da página, lado esquerdo, o carimbo de um

sapo, afinal, íamos aprender a fazer o "S". E então eu aprendi a

escrever "sapo". Quando foi a vez de "a girafa tem o pescoço

comprido" foi a apoteose, nunca havia me sentido tão realizada.

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A vida... ora a vida... a paixão começa pela escola, começou pelos bancos de madeira, em cujos pés estava, em verde impresso no ferro, escrita a palavra "patriota".

E naquele tempo não havia malícia entre os meninos e as meninas, nem palavrões.

A faxineira, a dona Abigail, uma senhora alta, negra e forte, passava antes do recreio, de sala em sala com uma caixa de papelão na mão, parava na porta da sala e dizia "tem lanche hoje?". Assim, quem pudesse levar um lanche a mais poderia doar para aquelas crianças que nem isso tinham. Eu me sentia feliz levando um pão com manteiga ou mortadela a mais, depositava na caixinha... mas poucos levavam. As crianças eram muito pobres.

Num daqueles dias, a minha mãe me comprou no barzinho da escola um pão de mel. Eu me distraí e uma coleguinha pegou, escondeu. Ela devia ter tanta vontade que veio, no meu ouvido esquerdo, e bem baixinho perguntou: "me dá?"... Eu fiquei tão sem graça, tão culpada por ter o pão de mel e ela não, que eu me fiz de desentedida e disse "sei lá"... fui saindo, fingindo não entender, esquecer que o doce estava por ali, para que ela pudesse comer o pão de mel em paz. Tomara que ela tenha gostado! No fundo, eu me senti bem deixando que ela comesse.

Que fim levaram aquelas crianças pobres? Será que sonhavam?

Sonhavam sim, é claro. Eram crianças vivas, que não sustentavam tristeza, não, afinal naquele tempo, apesar das dificuldades, existia o pai e a mãe.

Da mesma forma que o pão de mel, eu desejaria dividir a

esperança com todas as minhas amiguinhas da época, os

meninos, as pessoas que me ensinaram a viver.

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No templo budista

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Final dos anos 70. Sempre à procura de algum conhecimento, minha amiga Ana Isabel e eu fomos a um templo budista, na Rua São Joaquim. Sabíamos do mesmo por informações do meu grande professor de História Heródoto Barbeiro. Então, num sábado à noite, sem ter nada de mais importante para fazer, tomamos o ônibus a partir do Cambuci e lá chegamos. Não sabíamos nada do templo, muito menos da teoria humanista de Sidartha Gautama. Pura curiosidade de gente jovem, que quer

saber de tudo um pouco.

Obviamente não sabíamos nos comportar. Com muita timidez e com um olhar meio safado - o que será que vai acontecer? -, fomos recebidas pelo monge japonês. Mais algumas pessoas já estavam por ali e entramos na sala do templo. Incenso aceso, tudo escuro, a grande imagem do Buda como foco principal e tivemos que nos sentar, pela primeira vez, na posição de Lótus.

E agora? Todos muito bem sentados, entrando em estado de meditação... e nós ali, sem a mínima ideia do que fazer. Em círculos voltado para Buda, passava por trás de nós o monge e, quando percebia que nós duas não aguentávamos de vontade de rir, ele, de maneira austera, só dizia: "concentração." Mas dizia em maiúsculo mesmo, não dando oportunidade para outros pensamentos. E não tinha jeito: já estava dando desespero pela

vontade de rir e não poder.

E o tempo não passava. Ficamos ali uma hora nessa posição.

De canto de olho eu observava uma moça ao meu lado. A vizinha estava toda zen, em outro mundo, quem sabe se resolvendo, fazendo a sua evolução espiritual, mas nós duas, na época, nem sabíamos o que era meditar, ascender, desmembrar.

Teve um momento em que eu não suportava mais a posição de Lótus e coloquei a mão por dentro da barra da calça para poder segurar a perna... pelo menos isso, mas doía tudo. Uma hora nessa situação e dá-lhe cheiro de incenso.

Terminada a sessão, fomos encaminhadas para a sala do chá

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com uma bolachinha de água. Mas a questão é que as minhas pernas estavam em estado de má circulação, quer dizer, as minhas pernas "dormiram" e eu mal conseguia andar enquanto todos caminhavam com muita tranquilidade. Eu nem olhava para a Ana e vice-versa, até porque ela sempre gostou de dar sonoras

risadas por qualquer coisa.

Quando ganhamos a rua, a Liberdade inteira era pouca para tantas gargalhadas e comentários sobre a nossa vã esperança de entender alguma coisa. Pela primeira vez pude rir muito, mas muito mesmo da nossa santa ignorância. Já ouvi dizer que "com Buda a coisa muda", mas para nós não mudou: continuamos ignorantes, curiosas, divertidas e sempre à procura.

Que Buda nos perdoe.

Seu João, na Vila Sônia

Há três anos , passeando durante o dia com o meu filho pelas

ruas da Vila Sônia, conhecemos um senhor negro, franzino, uma

simpatia: seu João. O vigilante de uma rua próxima à nossa

casa, passava a noite toda zelando pelo sono e pela segurança

dos moradores. Percebi que era querido e respeitado pelos

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vizinhos. Mas só poderia ser. Ruas arborizadas, casas grandes e vários carros nas garagens, um espaço agradável para se viver..

e também para os nada ilustres visitantes das madrugadas paulistanas. Eu não sei como a nossa conversa começou, mas ele nos contou que é de Salvador, que vive há muitas décadas em São Paulo, que é militar aposentado e fez questão de mostrar a carteirinha. Continua trabalhando como vigia daquelas casas numa das ruas tranqüilas do bairro.

O seu João nos contou que voltaria para Salvador dentro de pouco tempo, mas que São Paulo é uma cidade abençoada, que o havia acolhido num momento de grande dificuldade e que nunca havia passado falta de coisa alguma.

Eu não me esqueci mais dele.

Nesse ano, lá estávamos de novo: nós e o seu João. Fui conversar com ele, apertamo-nos as mãos. Continuava o mesmo, franzino, sem todos os dentes, com a farda meio amassada e o tecido já bastante puído. No dia 2 de janeiro, de noite, passei com o meu marido, de carro, pela rua em que ele atendia. Ele só gritou: “feliz ano novo”. Na verdade, nem sabia que era eu que passava por ali naquela hora, mas gritou, com muito sorriso e suavidade na voz. Fosse para quem fosse, ele desejava coisas boas, um ano em paz.

Numa das noites seguintes, eu voltava para casa com uma sacolinha com um bom tanto de pernil cortado em cubos para uma janta mais gostosa. De novo nos encontramos e ele comentou que tinha ido comprar um refrigerante no mercadinho da esquina, mas o mesmo estava fechado. Ofereci para ele: eu buscaria um pouco de guaraná em casa para ele, com satisfação. A noite de verão prometia muito suor e incômodo, mas ele agradeceu. Na noite seguinte eu perguntei “conseguiu o refrigerante hoje, seu João?” Ele, sorridente, disse que sim.

Antes de eu voltar para Florianópolis fiz questão de me despedir

dele. De novo, apertamo-nos as mãos e ele me desejou boa

sorte, que Deus me acompanhasse, com um sorriso bom e

macio. Disse a ele que no final do ano voltaria e que

conversaríamos de novo.

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Caminhar com calma pelas ruas mais tranqüilas de São Paulo nos oferece múltiplas oportunidades felizes, como essa, por exemplo. A possibilidade de parar um pouco na rua, perceber que não existe, nesses casos, nenhum interesse a não ser o da boa e rápida conversa nos abre uma imensa e positiva visão dos moradores da cidade. Há quem goste muito de falar de si, mesmo com uma estranha. Aliás, uma necessidade que deve, de alguma forma ser atendida até para se manter melhor durante o dia de trabalho. E senti satisfação de ambas as partes.

Quando eu vivia em São Paulo, eu via o cotidiano de uma forma extremamente cruel.. Eu era muito jovem e pressentia o perigo em tudo, como se todos fossem inimigos prontos para o ataque a qualquer desatenção. Claro que todas as cidades oferecem os grandes riscos, mas é possível e infinitamente bom o desenvolvimento da capacidade de ser uma eterna pesquisadora da vida, ter a sensibilidade de captar esperanças, sonhos embutidos em olhares diversos e não ter a mínima vergonha de conversar sobre esses sonhos e esperanças com pessoas até então desconhecidas.

Assim fica mais realista e de fácil compreensão a música tão brilhantemente cantada por Gonzaguinha anos atrás:”Viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar e cantar a alegria de ser um eterno aprendiz. Dizer que a vida devia ser bem melhor e será, mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita”.

Empório do seu Orlando

Ficava ali, na esquina da av. Lacerda Franco com a Albuquerque

Maranhão o empório do seu Orlando. Nos anos 60 era o lugar

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onde comprávamos o básico para o dia-a-dia. Era o empório em que a família atendida bem a freguesia e morava nos fundos, com uma janelinha de vidro que dava para a rua. No apuro, algumas vezes alguns vizinhos batiam na janelinha e alguém da casa vinha atender: era um quilo de açúcar que faltava, ou café, quem sabe, um pote de margarina... Meio escuro, com os balcões de madeira já gasta pelo tempo. Ali se atendia, vendendo-se mussarela, presunto, mortadela a granel, fatiada na hora com aquele cortador com as bordas vermelhas.

Invariavelmente pela manhã eu ia até lá comprar o nosso pão e leite: dois litros de leite e cinco pãezinhos. O leite ainda vinha em litro mesmo e a gente comprava o Paulista. Ainda hoje tenho um litro guardado aqui em casa, encima de uma radiola dos anos 50, que pertenceu ao meu tio Carlos. Na garrafa vinha escrito: “direto da fazenda para sua casa.” E do outro lado, “Não precisa ferver

“ e estampada uma menininha de franja e com maria-chiquinha, com um copo na mão, feliz, tomando o líquido branco.... e a cara da vaca do outro lado.

Uma vez o meu marido encontrou um litro desses numa escavação que fazia na casa dos meus sogros. A reforma da casa estava em andamento... e aconteceu a grande descoberta.

Orgulhosamente ele me contava o caso

Já adulta levei uma bronca por causa desse litro. Recém- casada, sem dinheiro para nada, fomos almoçar num domingo na casa dos meus pais, no Cambuci. O meu pai sabia que estávamos numa pindaíba danada e, quando nos despedíamos, ele colocou a mão no bolso e meu deu 5 cruzeiros. Íamos de ônibus para a nossa casinha, na Vila Sônia: duas conduções.

Fizemos a troca de ônibus na avenida Paulista e ali estava acontecendo a feirinha de antiguidades do MASP. Comprei o litro de leite, com o dinheiro que o meu pai havia me dado. Quando, orgulhosamente, contei para a mãe a minha façanha, ouvi horrores...

Voltemos ao empório do seu Orlando: Ali tinha de tudo : bolacha

Maria, pão Pullman, óleo de soja, sabão em pedra UFE,

macarrão Galo e de marcas mais populares, detergente... Mas

tinha também gibi. Gibis eram aqueles docinhos Confiança,

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docinhos de leite, amendoim, pé de moleque, paçoquinha Amor, bananada fincada no palito, doce de abóbora de coração. Tinha também drops Dulcora. Eu adorava poder ir até lá para comprar um gibi, mas não era todos os dias. Normalmente eu comprava lá pelas três e meia da tarde, quando eu terminava os meus deveres da escola e a minha avó fazia o café e ouvia na rádio o programa da Hebe Camargo. Ás vezes o Agnaldo Timóteo cantava, mas a vó gostava mesmo era de ouvir o Agnaldo Rayol.

E eu voltava com a minha paçoquinha para o quarto, abria o embrulhinho delicadamente para não se quebrar, E continuava estudando até ver se eu aprendia alguma coisa, porque eu matéria de lentidão de raciocínio eu levava a taça. Aliás, eu ficava pensando, filosofando, fazendo planejamento para a vida futura. Pensava em um dia morar em Santa Catarina...

Teve uma época que a Pepsi fez uma promoção. Na parte interna da tampinha vinha o direito de se buscar outra garrafa igual. Aí me deu vontade de sempre comprar o refrigerante. Até que não tinha mais nenhuma Pepsi na vendinha do seu Orlando.

De repente, da janela da sala eu vi o caminhão passar e fui rapidinho trocar a minha tampinha... e acabei sendo contemplada com outra garrafa. Isso, para mim, era felicidade, a simplicidade tão típica dos anos 60, tendo como referência uma vendinha humilde na esquina de casa.

E se contentar com um doce de abóbora de coração era bom.

Tempos anteriores aos shoppings eram tempos de mais

liberdade e a vida era sentida mais naturalmente, de forma mais

realista, sem preocupações com grifes. Grife coisa nenhuma. A

roupa quem fazia era a vó ou a costureira japonesa. Tênis era o

Conga e pronto. A beleza de tudo se concentrava no cotidiano,

nas pequenas vitórias, nas descobertas que se projetavam em

sonhos, e como era bom sonhar!

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Na Lapa

Desde a minha infância sou apaixonada pela Lapa. Sempre olhei para as ruas com um olhar de encantamento, procurando doçura e vida fecunda pelas avenidas, praças e casas no estilo dos anos 60. Eu não consigo me recordar facilmente dos nomes das ruas, mas, na minha meninice, minha família e eu íamos, preferencialmente aos domingos, visitar o tio Pedro, irmão da

minha avó.

Era uma casa simples. Da rua tínhamos que descer alguns degraus para chegar à casa. Lá embaixo havia uma pequena bica d’água. E não tinha água melhor que aquela, límpida, sempre muito fresca e abundante. Não era qualquer água ou qualquer bica: era água da Lapa. De onde viria aquele líquido tão especial? Eu não sei responder. Só sei dizer que na casa do tio Pedro havia uma água divina, que muito chamava a minha atenção e a do meu irmão. Bebíamos repetidas vezes porque realmente ela era especial. Naquela casa vários casamentos aconteceram. Os noivos sempre vinham chegando sorridentes, de braços enlaçados depois da cerimônia na Igreja São João Vianey. Eu me lembro especialmente de um dos casamentos.

Pela primeira vez eu vi um bolo de noiva de três andares e me deslumbrei. Como estava lindo e poético!

Mas a Lapa sempre me fez pensar e me encantar. Pequena, eu ia no banco de trás do fusca vermelho do meu pai apreciando todas as coisas, todas as cores, as casas e tudo era belo.

Eu percebia que para melhor contemplar o bairro era preciso silêncio, um respeito maior que qualquer curiosidade infantil.

Bairro de forte presença operária, ainda estão presentes essas

marcas pela própria arquitetura do lugar. Os filhos do tio Pedro,

por exemplo, eram quase todos operários e eu via nisso muita

beleza, pois eles representavam o retrato ainda de um Brasil

emigrante, marcado sobretudo pela forte presença italiana,

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daqueles italianos que vieram com a esperança de fazerem a América, Merica, Merica, Merica, cosa sara questa America?

Em janeiro fiz a minha última viagem a São Paulo, visitando por duas vezes esse bairro maravilhoso, poético, de casas que ainda relembram meados do século passado. Muitas sem garagem, dos tempos em que automóvel era coisa de rico. Fotografei com

muito prazer e alegria.

Consegui fazer uma breve visita a uma pequena vila situada na Rua Caio Graco, a última casa do tio Pedro. A vila, hoje, tem um portão, impedindo a entrada de pessoas estranhas. Mas, do seu interior, vinha saindo um senhor já grisalho e eu pedi, gentilmente, que me deixasse entrar para fotografar a casa do tio Pedro. Parece que ele não gostou muito, até desconfiou. Me disse, sem nenhum sorriso: só se for bem rápido. Logicamente concordei. Correndo fui de encontro àquele espaço, onde muita conversa boa acontecia tempos atrás, muitos jogos de canastra entre o tio Pedro, filhos, genros e o meu pai. Fotografei e, novamente, saí correndo para que o senhor não se incomodasse

e não me achasse inoportuna.

A foto está aqui, comigo, guardada como retrato de um tempo de muita união, amizade e consideração de uns pelos outros. No meio daquelas conversas invariavelmente acontecia a pausa para o cafezinho bem quente e o pão com manteiga recém- chegado da padaria mais próxima. E nada mais crocante e

saboroso que o pão da Lapa.

Depois dessa foto, fomos conhecer um sacolão vizinho.

Comemos pastel de frango com requeijão, refrigerante e fomos

muito bem recebidos. É impossível conhecer bem um lugar sem

experimentar o sabor da comida. E, claro, trouxe dali algumas

coisas para a minha casa em Florianópolis, como um pacote de

tâmaras, alguns biscoitinhos de leite condensado... e isso para

esticar ainda mais o sabor da viagem, do lugar, tentando manter

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acesa a luz da saudade e de um dos melhores lugares do mundo... coisas da Lapa.

No Cambuci

Resolvemos sair à procura de saudades. Fomos ao Cambuci. O bairro onde nasci e vivi uma grande parte da minha história. Ali aprendi muito. Tive as minhas primeiras lições, aprendi com a cartilha Caminho Suave, as primeiras contas e os primeiros grandes mestres da minha vida. Impossível deixar esse bairro central fora das minhas emoções. Ele ainda guarda algumas ruas com ares da década de sessenta.

Da janela do nosso apartamento da Avenida Lacerda Franco enxergávamos as torres da catedral. Eu olhava para elas com muita frequência, sobretudo na época da campanha pelas Diretas-já. A Sé, fervilhante, mostrava o rosto de uma sociedade esperançada, depois de tantas dores no corpo e na alma. A Praça da Sé tinha a cara da cidadania, da busca do Estado de Direito, das vontades que afloravam nos nossos rostos, muitos ainda tão ingênuos, outros mais experimentados, outros sofridos, outros com fome de pão e de beleza... mas eram rostos.

Da janela do nosso apartamento era possível se respirar a

cidade, até porque se via a fumaça da antiga fábrica da Brahma,

com aquele cheiro característico, mas, ao mesmo tempo, era

próximo do parque da Aclimação. O Cambuci tem alma doce,

histórias de imigrantes, tem o doce do Shiguero, tem o colégio

Nossa Senhora da Glória, tinha a fábrica de Chapéus

Ramenzoni.

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Então fomos vivenciar saudades. Deixamos o carro numa travessa da Avenida Lins de Vasconcelos e fomos caminhando pela minha antiga rua, a Albuquerque Maranhão. Andar devagar é uma das experiências mais interessantes que se pode ter. A gente vê as casas, até enxerga os antigos moradores, as pessoas que passavam, algumas falas e brincadeiras.

Comprei muitos doces na loja do Shiguero, o japonês simpático que está no mesmo local há mais de trinta anos. Foi trabalhoso convencê-lo a deixar que eu tirasse uma foto. Lá fui eu com a minha cantilena: eu comprava doces aqui há algumas décadas, a maria-mole, o doce de batata-roxa, o doce de abóbora... deixa eu levar uma foto tua. Depois de muitos apelos e interferência a meu favor por parte de alguns frequeses, o Shiguero deixou-se fotografar, simpaticamente risonho, e está aqui, quietinho e de

cabelos brancos, no meu computador.

Na Lacerda Franco, enquanto escondidos da chuva debaixo de uma árvore, passou um caminhão anunciando uvas diretamente do Rio Grande do Sul. Comprei, é claro. Comprar frutas sendo anunciadas em caminhão é muito charme.

O bairro estava quieto, conivente com a nossa vontade de prestar atenção em todas as coisas. Foi a melhor maneira de nos

receber, nos abraçar e nos respeitar.

Caminhar pelas ruas do Cambuci é estar em paz com a memória, é manter vivo um saudosismo sem dor, mas com orgulho de ser paulistana e mantendo a alegria em reinventar a história.

Na Rua dos Italianos

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Janeiro último. Numa tarde de sábado nada ensolarado, após a visita ao Memorial da Resistência, na Estação da Luz, resolvemos passear no Bom Retiro. Há quantos anos eu não caminhava por ali! Foi uma decisão planejada com antecedência, sentida numa dimensão muito grande, afinal a minha avó falava alguma coisa sobre a Rua dos Italianos, mas não consigo me lembrar muito bem, mas ela falava. A minha avó tinha doces recordações sobre os bairros pelos quais havia passado parte da vida desde que veio do interior das Minas Gerais. Sempre falou da Cantareira, do Mercado, da Rua Abílio Soares, no Paraíso... e

também da Barra Funda.

Faz tempo! Eu tinha vinte anos quando descobri a Rua dos Italianos. Eu me sentia importante ao tomar o ônibus a partir do Largo do Cambuci, descer na Estação da Luz e caminhar pela Rua José Paulino e, lá pelas tantas, vira-se à esquerda e depois à primeira direita, e lá está ela, a Rua dos Italianos, com os seus

encantos e muitas histórias.

Assim, há três décadas, eu frequentava a rua uma vez por semana para trabalhar num jornal de oposição à ditadura. No início da minha empreitada como uma simples revisora de Português, eu trabalhava na sede dos Diários Associados, na Rua 7 de abril. Eu gostava dali. Era um trabalho realizado numa grande redação e tudo aquilo me fascinava muitíssimo, aquele barulho, a agitação, a hora a cumprir, quase nenhum tempo para uma pausa para o café. E a vida continuava vibrante com aquela beleza da força da juventude, aquela enorme certeza de que é possível mudar o mundo, romper o autoritarismo, construir um Estado de Direito, fazer o país andar com dignidade e confiança

nos seus filhos.

Mas da 7 de Abril nós fomos enxotados pela Polícia Federal

depois da morte do torturador Sérgio Fleury. Fizemos muita festa

pela passagem do carrasco para o andar de baixo, fizeram

música, uma paródia da "Jardineira" (Ó ditadura, por que estás

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tão triste? Mas o que foi que te aconteceu? Foi o Fleury que caiu do barco, deu dois suspiros e depois morreu"...). Bêbado, ele havia caído de um barco em Bertioga e foi para o além. Batera com as dez, diriam os mineiros... E então, expulsos dali, tivemos que procurar gráficas que nos aceitassem por São Paulo afora.

Na Rua dos Italianos havia uma que nos recebeu bem. Do início do século XX, a gráfica era escura e o barulho ensurdecedor das máquinas jamais consegui esquecer. E não era só. O cheiro do chumbo derretido para que o linotipista pudesse imprimir os nossos textos parece que invadiu as minhas entranhas...

também não pude esquecer. Ali não se conversava, simplesmente porque não podíamos nos ouvir. Era uma daquelas gráficas que cheirava a história do proletariado da região, as lutas por direitos trabalhistas, por melhores salários.

Dali era possível se enxergar com exatidão uma parte da história social de São Paulo, o anarquismo, as greves operárias e a

constante luta por dignidade.

Naquela época, às vezes, saíamos para tomar um café, daquele café de bar mesmo, no balcão, com aquele copinho típico, que até hoje gosto de apreciar. Dali eu saía para dar aulas de História, afinal o que eu queria mesmo era mudar o mundo, o nosso mundo encardido pelo arbítrio, com um cheiro característico de medo e desencontro com a civilização. Muitas vezes eu saía dali literalmente correndo, tal era o medo de estar

sendo perseguida por alguém.

Dessa última vez que caminhei na região eu não consegui

localizar a gráfica. Provavelmente se foi. Mas andei por ali,

olhando com atenção e ternura todos os lugares. Como não

poderia deixar de ser, paramos numa padaria de esquina, em

funcionamento desde meados dos anos 60, e comprei pão de

queijo. Eu queria sair dali com o gosto do lugar, um lugar que

mudou, um Bom Retiro que não é mais propriamente um bairro

judeu. Hoje existem ali coreanos e paraguaios, dividindo o

comércio popular da região. Os judeus já lutaram muito e os

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seus filhos cresceram, estudaram, cursaram universidade e

abandonaram o comércio.

Na padaria, conversei com o proprietário, que me deu algumas orientações sobre o bairro. Saí dali feliz e de olhar brilhante, segurando firmemente o pacotinho do Empório dos Pães, carregando também um rocambole de chocolate para apreciar, lentamente, em casa, fazendo as minhas recordações, realimentando sonhos e esperanças. As esperanças do tempo de juventude, em que tudo é possível, tudo tem cor e beleza, sentimento carregado de uma força aparentemente infinita de que é possível ser responsável pela construção da própria história, pela mudança da história do país, buscando humanismo e doçura e com as imensas saudades das coisas do tempo.

No Memorial da Resistência

E num sábado do início de janeiro nos preparamos. Planejamos a saída e conseguimos chegar a Estação Pinacoteca, na Luz.

Para nós, depois de tantos anos fora de São Paulo e com a revitalização do centro, este era um espaço cultural novo.

Quando morávamos em São Paulo, ali funcionava o misterioso,

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hediondo e maquiavélico DOI-CODI.

Construído no início da I Guerra Mundial - 1914 -, o edifício que hoje abriga a Estação Pinacoteca serviria a questões relacionadas ao crescimento econômico e às transformações vivenciadas por uma São Paulo que se urbanizava com rapidez;

isto é, seria um armazém para os produtos agrícolas

provenientes do interior do Estado.

Com a conclusão da obra, em 1938, o edifício, projetado pelo conceituado arquiteto Ramos de Azevedo, foi colocado à disposição do Poder Público. Era época de ditadura - o Estado Novo de Getúlio Vargas se fazia presente. De um lado, o governo autoritário e centralizador era capaz de promover o desenvolvimento econômico do país, valorizando o nacionalismo com a construção, por exemplo, das indústrias de base. Por outro lado, as oposições eram duramente silenciadas.

Assim, o edifício passou a abrigar o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS) de São Paulo, órgão de repressão política que atingiu o auge de suas funções a partir do golpe militar de 1964. Com as longas lutas pelas liberdades democráticas, movimentos populares de várias ordens, movimentos operários e estudantis amparados pela Associação Brasileira de Imprensa, Ordem dos Advogados do Brasil e pela Igreja, o regime militar entrou em colapso e o edifício mudou, felizmente, de função. Dada sua relevante importância histórica e arquitetônica, o prédio foi tombado como um bem cultural em 1999 pelo CONDEPHAAT - Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo.

No local do extinto DEOPS funciona hoje o Memorial da

Resistência - Rua Mauá, 51.

Bem na entrada, algumas publicações acerca de importância do

assunto para o estudioso do tema. Aliás, o assunto deveria ser

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de interesse nacional sempre, jamais esquecido, sempre mencionado, discutido e contestado. Um material muito bem elaborado e ricamente ilustrado intitulado "A Ditadura no Brasil - 1964-1985 - Direito à memória e à verdade!", incontestavelmente uma obra de alto gabarito, com precisão histórica, elaborada com o intuito de provocar uma pesquisa ainda mais abrangente e, além disso, provocar a forte indignação que a negação do ser em benefício do estado forte impõe. Não se pode esquecer daqueles fatos e tragédias, do sangue que tingiu almas e deixou famílias sem norte e, muitas vezes, sem sonho. Eu conhecia essa obra graças à amizade e consideração de um antigo aluno, hoje estudante de Direito aqui em Florianópolis.

No entanto, fomos informados de que apenas um grande painel de entrada estaria disponível aos visitantes, pois as antigas celas estavam em reformas. Honestamente, senti calafrios ao pensar em entrar naquelas celas. Acredito ser impossível algum coração não estremecer, até duvidar da tragicidade daquele lugar, do que

as paredes mudamente guardam.

Mas no painel pude ver com o coração as fotos de operários anônimos, trabalhadores simples, pessoas comprometidas com buscas sociais, como greves por melhores condições de trabalho e de salário, todos eles com um número e a data da foto grudada ao peito. Olhares vãos, indagadores do que aconteceria dali para a frente, medo, abandono, solidão, mas não senti nada que lembrasse a arrependimento pela sustentação de uma causa.

Pela primeira vez consegui olhar atenta e profundamente para a foto de Patrícia Galvão - a Pagu. Senti constrangimento por vê-la ali, futuramente barbarizada física e moralmente, como uma

pessoa ameaçadora da ordem.

Considero que Pagu tenha sido o primeiro grande símbolo do

feminismo no Brasil, visto que defendia ativamente a participação

da mulher na sociedade e na vida política. Pagu foi a primeira

brasileira do século XX a se tornar prisioneira política.

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Conheceu o líder comunista Luís Carlos Prestes - o Cavaleiro da Esperança, no dizer do baiano Jorge Amado, e se comprometeu com o ideal de construção de uma sociedade mais justa, filiando- se ao Partido Comunista (PCB), junto com Oswald de Andrade,

seu futuro marido.

Em 1931, Pagu foi presa como militante comunista, durante uma

greve dos estivadores em Santos.

"Parque industrial", seu primeiro romance, foi publicado dois anos mais tarde, destacando a realidade social das operárias da cidade de São Paulo, num tempo em que as leis trabalhistas sequer existiam e a exploração era absurda. Comprometida com o ideário socialista, Pagu visitou a União Soviética, símbolo máximo de um projeto teoricamente justo para com os trabalhadores, mas sua decepção foi cruel, percebendo ali uma dura realidade, absolutamente distante das propostas marxistas, uma infância marcada pelo abandono, com a fome estampada nos olhares perdidos e desesperançados.

Como jornalista, Pagu produziu durante mais de três décadas consecutivas, sendo respeitada no meio cultural e artístico. Sua casa era frequentada pelo simpatizante das causas socialistas Jorge Amado, pelo regionalista sul-riograndense Érico Veríssimo, por Sábato Magaldi, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e Antunes Filho. Pagu, além da militância, da crítica e de seu trabalho como jornalista, reconhecia e recebia muito bem os novos talentos de então, como Clarice Lispector e Plínio Marcos.

Obviamente uma pessoa assim seria vista como alguém extremamente perigosa ao regime. Muitas vezes torturada, acabou por morrer de câncer, em Santos, em 1962.

Confesso que entrar no Memorial da Resistência representa uma

possibilidade ímpar de se revisitar o passado com os olhos no

presente. Mas uma visita não com o olhar de um cientista,

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historiador ou pensador, mas com um olhar essencialmente humano, acreditando que devemos agradecer sincera e honestamente a todos aqueles que lutaram pela construção de uma democracia que, mesmo frágil, repleta de problemas, defeitos e senões, é um ensaio de participação popular, de construção de um tempo que pode ser mais digno e fértil no campo das possibilidades de viver.

Mais uma vez na Padaria Santa Tereza

Como não poderia deixar de ser, as minhas últimas férias em São Paulo em dezembro foram agraciadas com uma especial visita à Padaria Santa Tereza, na Praça João Mendes, 150.

Tempos atrás escrevi nesse site sobre ela, mas o encantamento que sinto ao adentrar a loja me faz pensar mais, ter o prazer na escrita e o imenso desejo de valorizar a memória dos nossos conterrâneos, os detalhes de um local tão belo e que cheira a tradição e outros tempos da velha capital.

A padaria Santa Tereza é considerada uma das mais antigas do

Brasil. Foi fundada em 1872, época de prosperidade,

especialmente em São Paulo, em função da grande produção e

exportação do café. Naquele tempo, os grandes proprietários

rurais - os barões do café - tinham consciência da sua

importância política e econômica, afinal o café movimentava a

nossa economia como nunca, provocando grandes modificações

no cenário nacional. Esses grandes proprietários rurais

criticavam abertamente a Monarquia, buscando o ideal

republicano como meio de o país chegar a uma melhor e mais

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rápida condição de progresso.

Nesse tempo, foi criada a padaria, na Rua Santa Tereza, um local que desapareceu com as obras de remodelação da Praça da Sé. Na década de 1940, a mesma foi transferida para a Praça João Mendes, atrás da belíssima e histórica Catedral, felizmente resistindo a mudanças nos hábitos alimentares, mantendo vivas as tradições gastronômicas dos paulistanos. Na sobreloja funciona um restaurante, e, nas paredes, fotos da São Paulo antiga, espaço onde, certamente, muitas lembranças e curiosidades afloram entre os clientes, provocando intermináveis

conversas, muitas acaloradas.

O local onde hoje funciona a padaria era a antiga residência do Dr. João Mendes de Almeida, renomado jurista, político, jornalista e líder abolicionista, um dos redatores da Lei do Ventre Livre, de 1871. Apesar de monarquista ferrenho, o Dr. João Mendes era contrário à escravidão. A Lei do Ventre Livre garantia que todos os filhos de escravos nascidos no Brasil a partir daquela data seriam livres. Embora a realidade social dos negros no Brasil fosse por demais perversa desde o passado colonial, essa lei poderia, na ocasião, se traduzir como uma leve esperança de, um dia, se conquistar a liberdade, afinal, no século XIX, os debates pela causa abolicionista ganhavam corpo, junto da brilhante poesia de Castro Alves e dos debates promovidos pelos estudantes de Direito, sobretudo do Largo São Francisco.

E essa padaria tem a cor da alma paulistana, carregada de uma história repleta de mudanças, nem sempre rápidas como o andar da cidade. Tem uma mistura de leveza, suavidade e poesia indiscutíveis.

E ali trabalha o sr. Pedroza. Foi o segundo ano consecutivo que

fiz questão de ser atendida por ele, lá no fundo do

estabelecimento. Mais uma vez ele cumprimentou a mim e ao

meu filho, pegando a nossa mão e disse que se lembrava de

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nós, da visita do ano anterior. Contei que escrevi sobre ele no site São Paulo Minha Cidade, num texto publicado no ano passado, expliquei o que isso representava e ele, timidamente, chegou a corar. Eu disse que ele tinha ficado importante, pois havia saído num site vinculado a SPTuris. Brincando, ele perguntou se não precisaria mais pagar o IPTU, já que ficara conhecido da prefeitura. Como sempre, fomos muito bem atendidos, com pizza, esfirras e Fanta laranja. Enquanto nos deliciávamos, ele teve que ir atender ao andar de cima e nos deu

satisfação disso.

Ao final da refeição fomos procurar pelo sr. Pedroza. Perguntei a um colega e o mesmo respondeu: "o Pedro está lá em cima".

Esperamos para que pudéssemos nos despedir. Depois de alguns minutos ele desceu de elevador carregado de grossos pedaços de mussarela. Largou o queijo numa bancada. Com um sorriso despretensioso de quem trabalha há 37 anos no mesmo local, conhece bem sua clientela, nos despedimos amigavelmente com um sorridente e cordial "até o ano que vem"

No Embu das Artes

Fazia muitos anos que eu não visitava o Embu das Artes.

Sempre admirei as pessoas que fazem suas exposições, usam da criatividade com muito bom humor, numa festa de luzes, cores, sons e formatos muitas vezes inusitados. Fazer feira de artesanato é uma forma de se manter, de forma muito saudável, a juventude, pelo contato amoroso com as cores, aromas e

reações alegres e vivas dos passantes.

Eu também já tive a felicidade de expor em feiras de artesanato,

há 30 anos, mas não no Embu. Eu era muito jovem, universitária

ainda e estava dando os meus primeiros passos como

professora de História na escola pública. Fiquei direto cinco

meses sem receber salário. Não havia dinheiro para a educação.

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Foi então que tive que entrar no mundo fascinante da produção artesanal. Nota: nesse tempo em que eu não recebia salário, o governador de São Paulo era um senhor simpático, de óculos, que queria se tornar presidente da República a todo custo e que acreditava ser possível encontrar petróleo no Estado, daí o alto investimento numa empreitada: a Petropaulo. Assim, aos professores só caberia o amor à arte e o sacrifício desmedido.

Afinal, dizia o filósofo grego Platão: educar é a arte das artes.

Com certeza o então governador acreditava que poderíamos viver de brisa, apenas com o alimento da alma, artisticamente...

e só.

Então, eu me dividia: um tempo como aluna da USP, outro período como professora, e num terceiro período como artesã.

Eu me dediquei tanto à tarefa de produzir, pois eu tinha que me sustentar, que passava finais de semana craquelando, fazendo bijouterias, pintura em cerâmica, tricô etc., até que, de tanto ficar na antiga máquina de tricô da minha mãe, acabei ficando com uma dor nas costas insuportável. Foi aí que o meu namorado, atual marido, me disse: "perto de casa tem um japonês que faz

acupuntura. Eu vou te levar lá".

E fui. Rapidamente o Sr. Yamamoto me colocou as costas no lugar e eu fiquei fascinada com aquele trabalho da medicina tradicional oriental. Como seria possível o japonês dar conta de tudo aquilo que me incomodava numa única vez e com tamanha precisão? Eu me apaixonei tanto por essa arte de curar que hoje também sou acupunturista, depois de longos anos de estudo e

de muito investimento.

Em outras palavras, sou imensamente grata ao senhor governador, que quase me deu calote em função dos seus altos investimentos à procura do petróleo, pois me forçou a trabalhar dia e noite até eu ficar quase imóvel de dor nas costas.

Voltemos ao Embu.

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Poucos dias antes do Natal estava eu pronta para sair a passeio pela cidade, numa inquietação de saudade de um ano. Recém- chegada de Florianópolis, eu não queria perder tempo no trânsito, sabendo que todos os lugares estariam irremediavelmente lotados pelas confusões das compras de última hora. Resolvemos fazer o caminho contrário, isto é, ao invés de visitarmos o Memorial da América Latina, por exemplo, nos desviamos para a estrada em direção ao sul.

Embu da Artes: há quanto tempo! E como a cidade estava linda!

Extremamente simpática, com as exposições de móveis rústicos, roupas coloridas, peças das mais variadas, enfeites natalinos ou não. Estava tudo ali, organizado e com vivas memórias de um passado em que os jesuítas souberam marcar território, ocupar o espaço dos nativos e esses mesmos indígenas tiveram que

aprender a dizer amém.

Foi então que tivemos o privilégio de almoçar num restaurante típico mineiro. Quem passaria indiferente por um restaurante chamado "Porco à pururuca"? O gosto da comida é essencial para entendermos o lugar, o sentimento e o pensamento de um povo. Eu, ali naquela rua estreita, entendi mais alguma coisa da alma mineira, escondidinha atrás do mágico porco à pururuca.

Chegamos a um memorial fascinante, até então desconhecido para mim: Memorial Sakai de Embu. Muito acertadamente chamado de mestre Sakai, o sr. Tadakiyo Sakai foi um dos mais conceituados representantes da escultura em terracota no Brasil.

Proveniente de Nagasaki (antes da bomba atômica), permaneceu no Brasil desde a adolescência até o seu falecimento, em maio de 1981. No entanto, ele e o pai vieram apenas como visitantes depois da triste perda da mãe. Aqui, o pai também veio a falecer, de tal forma que o sr. Sakai não

retornou mais à distante pátria.

Dedicou-se à agricultura, vendendo os frutos da terra, mas, ao

mesmo tempo, se tornou um grande pesquisador das lendas e

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folclore da região. Sakai passou, então, a produzir a primitiva técnica da cerâmica, valendo-se de um sincretismo sem igual, mesclando a cultura oriental com as lendas e tradições indígenas, caboclas e da tradição cristã. Começou a expor suas obras na capital paulista, sob o olhar do grande escultor Victor Brecheret.

Foi, então, no final dos anos 50, que o mestre passou a dividir seu ofício ensinando a arte da cerâmica em terracota para as crianças da comunidade, daí a grande tradição da cidade em divulgar a boa arte, de forma sempre muito original e que não se

esgota com o tempo.

E hoje existem cursos abertos à comunidade, como era o grande sonho do mestre: trabalhar e divulgar os saberes daquela gente, discutindo valores diversos, destacando a religiosidade de um povo, como atestam suas obras, fazendo da história local a grande matéria-prima para o entendimento daquela gente. Sakai soube ensinar, ou seja, deixar um sinal positivo: a valorização da memória coletiva como ferramenta para a construção de um novo tempo, cabendo aí o espaço para o entendimento das raízes históricas, as novas direções e caminhos de vida.

Agradeço humildemente à gentileza e o carinho da antiga aluna do Mestre Sakai, Tônia do Embu, que nos orientou durante a visita ao Memorial.

O bolo de abacaxi da tia Norma

Eu sempre tive a certeza de que a tia Norma era a melhor

madrinha do mundo. Eu já escrevi sobre ela nesse site, mas

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como a tia Norma é especial demais, volto a falar sobre ela.

A tia Norma é minha madrinha duplamente: de crisma, na catedral e de casamento, na Rua Frei Caneca, há 26 anos. Eu jamais conheci uma pessoa como ela, tão interessada pelos outros, pelas famílias, pelos estudos, pelas atitudes. Muito presente e tem um brilho no olhar que pode até dar inveja a muita gente jovem. Um olhar interessante e interessado.

Sempre participativa na vida da gente, esquenta pouco a cabeça,

simplifica a vida.

Eu me lembro muito bem das festas na casa dela, muitos anos atrás, quando os seus dois filhos eram garotos; o Marco Antônio e o Carlos Alberto. Iam alguns poucos parentes, a minha família, algumas comadres e a festa ia muito bem, e numa das vezes chegou a ter um bailinho na garagem ao som da Jovem Guarda.

Eram tempos de Roberto Carlos, da Ternurinha e do Tremendão.

As festas eram invariavelmente regadas a Coca-Cola. Mas o mais encantador, a sua marca registrada, era o bolo de abacaxi, grande, retangular, imponente e intocável no centro da mesa. Eu achava esse bolo mágico, lindíssimo! A cobertura dele era de um creme especial, elegante e que envolvia suavemente os cubinhos do abacaxi, e eu nunca comi nenhum bolo que parecesse com aquele. Pequena, eu olhava candidamente para ele, enquanto a mesa se mostrava farta de brigadeiros. Os

melhores brigadeiros do mundo!

Num dos aniversários, os docinhos estavam tão bons que cheguei a perder a vergonha e me deleitei mesmo. Nunca mais me esqueci. Estavam lindos, redondamente apetitosos, perfeitos.

Cabe um pequeno relato sobre a história desse maravilhoso

docinho: devemos, antes de tudo, agradecer ao sr. Eduardo

Gomes, que, em 1950, disputou as eleições para a Presidência

da República e foi derrotado pelo gaúcho Getúlio Vargas. Na

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época, o brigadeiro era considerado muito bonito e as moças o admiravam. Era uma paquera à distância, cheia de um romantismo tolo, idílico. As jovens resolveram, então, inventar o doce, pequeno, para consumo individual, vender por aí, na tentativa de arrumar algum dinheiro para engordar a sua campanha. Na capital, algumas moças mais atrevidas para a época chegaram a escrever nos muros: "Vote no brigadeiro. É bonito! É solteiro". E aí as moças, loucas por casar, iam falando dele, fazendo a sua modesta participação na vida política... e

vendendo doces.

Assim, o doce genuinamente nacional, que veio das eleições de 1950, ganhou espaço garantido no nosso paladar. Viva Eduardo Gomes! Não chegou à presidência, mas por sua causa podemos nos deleitar... Voltemos à casa da tia Norma!

Ela sempre soube presentear muito bem. Ia à Praça da Árvore, visitava as lojinhas, fazia suas compras, e lá ia ela, entregando amorosamente um a um: "esse é pra ti, esse pra ti...". Como, numa das vezes, levou apenas uma lembrancinha para a minha irmã, disse: "isso, filha, é pra não ficares de beicinho pendurado!".

Dela, já ganhei de tudo: perfumes, roupas, maiô vermelho, que tenho guardado até hoje, anel e um broche de ouro, muitos livros, bijuterias. Ganhei o chá de cozinha completo,

acompanhado de um fogão.

Adora dividir suas deslumbrantes experiências culinárias. Ela até faz algumas cópias em xerox para dividir as receitas com as afilhadas e comadres. Numa das cópias, ela terminava assim a redação: coloque a massa na forma, asse e depois coma, que é

muito bom.

Nessa minha última viagem a São Paulo, me esperou com um

arroz delicioso. O arroz que o Biro-Biro gosta, segundo ela. Uns

ovos previamente fritos com pouquíssimo óleo divididos um a

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um, e, depois, o arroz já cozido é adicionado à mesma panela.

Comemos em plena 3 da tarde porque foi a hora que pudemos

chegar até a sua casa.

Eu espero ter a tia Norma comigo para muitos anos, mas tenho certeza de que, quando ela resolver ir embora, vai alegrar o céu como ninguém, vai fazer festa com a máxima alegria e oferecer seus quitutes e dar largas gargalhadas, conversar com todos, dando muitos palpites. Ela vai cuidar muito bem do fogão celestial. Até o mais depressivo vai se alegrar com a sua presença, achando a vida mais interessante e criativa. Vai fazer o arroz do Biro-Biro para os mais entristecidos, brigadeiro para os saudosistas que não conseguiram abandonar o paladar infantil, casquinhas de siri para os apaixonados pelo mar, mas o bolo de abacaxi vai diretamente ocupar um lugar de destaque no banquete celestial, celebrando as grandes tomadas de decisão, unindo risos, abraços calorosos, o grande sentido da felicidade, afagando o paladar de anjos, arcanjos, querubins e serafins.

O relógio de parede do sr. José Moratta

Há tempos aquele relógio estava parado. Na parede da casa da Vila Sônia, uma casa construída com suor e lágrimas durante anos.

Nem me lembro quando o relógio parou. Ficou, mesmo assim, uns tempos na parede, até que um dia foi retirado dali. Foi ficando guardado ora numa caixa, ora em outro canto, e o relógio

do sr. José não funcionava.

Era um daqueles relógios do final dos anos 60, que tinha um simpático pêndulo metálico, toda a caixa era moldurada e com

um vidro de proteção.

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Muitas vezes eu cheguei a ver o meu sogro acertando os ponteiros do relógio - quando ainda funcionava. Ele me perguntava as horas, eu respondia e ele tratava de acertá-lo à sua maneira, isto é, adiantando uns quinze minutos mais ou menos. E dizia para mim: "vou adiantar um bocadinho". E vez ou outra ia aumentando "mais um bocadinho". E eu me perdia, quando estava sem o meu, no pulso. Impossível saber as horas

na casa do sr. José.

E eu ia apreciando prazerosamente as atitudes simples e simpáticas do meu sogro, ali, sentada à mesa da sala de jantar.

Uma mesa grande, bonita, de madeira, onde eu sempre tentei ler a Folha de São Paulo e nunca consegui.

Eu não conseguia ler a Folha quando o sr. José era o primeiro a pegar o jornal. Ele abria o primeiro caderno, ia misturando as páginas iniciais com as do segundo caderno... quando eu via, o jornal estava com as folhas todas misturadas: o caderno Cotidiano, por exemplo, se misturava com as do Esporte. As de Informática se misturavam com as do caderno Mais. Do caderno Ilustrada ele gostava mesmo de deixar junto com as folhas do noticiário internacional e assim a coisa andava... E eu nunca conseguia ler porque eu não achava as notícias nos seus

devidos lugares.

Mas ele nem ligava. Gostava de andar calmamente, assobiando

de leve, distraidamente, com o seu bonezinho que lembrava o do

Érico Veríssimo. Conversava com os vizinhos, plantava rosas,

cobria a gaiola para que o passarinho dormisse mesmo em

tempos de horário de verão. Me partia o coração ver aquele

passarinho tendo que dormir às 3 da tarde! Eu falava, mas não

adiantava nada. Lia com muita frequência e interpretava as

notícias de um modo muito peculiar. Em 1985, por exemplo,

quando da agonia de Tancredo Neves, chegou a afirmar que o

problema todo se resumia ao seguinte: "colocaram soda no café

no Tancredo" e mostrava com as pontinhas dos dedos juntas,

em leves movimentos, como se estivesse salgando alguma

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comida.

Os debates políticos corriam soltos também em 1985, quando das primeiras eleições municipais depois do longo horror da ditadura. O eleitorado paulistano estava dividido entre Fernando Henrique Cardoso, Eduardo Suplicy e Jânio Quadros. Fizemos tudo para que o candidato da vassoura perdesse e desaparecesse do mapa. Fizemos boca de urna, falamos com os parentes, colocamos adesivos no carro, participamos de comícios, ajudei a panfletar. Mas quando fui falar com o meu sogro: "e aí, sr. José, em quem o sr. vai votar?". Ele respondeu:

"no meu neto". O pequeno tinha apenas um ano de idade... e

não era candidato a nada.

Voltemos ao relógio. Então eu trouxe o relógio do sr. José para um conserto aqui mesmo em Florianópolis. Andei pela cidade com o aparelho, subi e desci escadas de um centro comercial.

Fiz uma pequena viagem com ele. Eu sabia de um especialista em Santo Amaro da Imperatriz, aqui perto, uma cidade deliciosa e interessantíssima - local da melhor água mineral do mundo... e nada de o relógio ser consertado. Neca e dulcineca!

Aí eu consegui! Quase um mês para ficar pronto e ontem o relojoeiro me telefonou confirmando a minha teimosia: tinha conserto. Na hora me troquei e fui buscar o objeto de grande valor para mim. Está ali, na minha parede da sala, imponente, olhando para a janela, como que querendo ser visto pelos passantes para poder informar a hora certa. E marca também o dia da semana e do mês, com toda a clareza.

Mas que eu estou com vontade de erguer a tampa de vidro e

adiantar "só um bocadinho"... Ah! Isso eu estou mesmo.

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Da janela do Sebo do Messias

Pelo segundo ano consecutivo tive a feliz oportunidade de entrar e me deixar cativar pelo Sebo do Messias. Na Praça João Mendes, bem ao lado da ilustre Padaria Santa Tereza, lá está o

espaço acolhedor e fascinante.

Após um lanche saboroso na tradicional padaria, fomos direto ao nosso destino previamente estabelecido. O meu filho entrou primeiro, feliz e meio apressado, e olhou para o mezanino. Ouvi a sua exclamação: "não é possível!". Ele procurou, rapidamente, o violinista que, no ano passado, estava ali, no mesmíssimo lugar, executando belas músicas, acolhendo simpaticamente os visitantes. Era o mesmo rapaz. Do mesmo jeito, magrinho e compenetrado, lá estava ele cumprindo a sua doce tarefa.

Caminhamos pelos espaços possíveis, deslumbrados, e

lentamente olhávamos tudo.

Na parte dos saudosos discos de vinil, consegui algumas preciosidades de Pedrinho Mattar. Comprei todas. Fui muito bem atendida pelo Carlos, prestativo e atencioso e que me disse o quanto gostava do Pedrinho. Conversamos um pouco sobre a sua vida, a arte e simpatia e também sobre a sua morte.

Conversamos sobre a falta que um musicista daquela grandeza

nos faz.

Ouvindo as considerações sobre o nosso artista, um senhor

negro veio conversar comigo porque me entendeu sendo

professora. Pegou minha mão, em sinal de cumprimento, e me

agradeceu, dizendo que é necessário se agradecer a todas as

professoras do país. Esse senhor tinha um olhar meigo e

acolhedor. Operário, autodidata, conhecia muito bem a história

do Brasil e me contou como, no seu tempo de infância, no

interior da Bahia, chegou a primeira professora e passou a

ensinar os pequenos. Ele jamais se esqueceu da primeira

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professora, sobretudo naquelas condições precárias, e passou a ser eternamente grato pelo esforço e competência despendidos

pela mesma.

Continuei andando, visitando as estantes. Parei para folhear carinhosamente os livros de Mário Lago. Fui subindo e, pela primeira vez, tive a oportunidade de avistar a Praça João Mendes de cima. O movimento, a catedral, as pessoas andando apressadamente, os ônibus. Olhei para a esquerda, onde ficava a antiga Livraria do Povo, onde minha mãe e eu compramos, nos anos 70, a primeira edição do Dicionário Aurélio. Fomos nós duas especialmente ao centro da cidade, de ônibus, para comprar o Aurélio. Na época ficamos orgulhosas e felizes e, à noite, desligávamos a televisão para consultar o dicionário que nunca nos abandonou. Até hoje tenho um exemplar na minha mesa da sala. É como se eu pedisse a presença do ilustre mestre para os meus momentos de dúvidas... que são tantos!

Voltemos ao Sebo:

Do andar de cima, olhando para os fundos da catedral, minha imaginação rapidamente se voltou para a data mais perversa da história recente do país: 13 de dezembro de 1968 - o dia da

imposição do amaldiçoado AI-5.

Naquele final de ano, já em férias escolares, minha mãe e eu fomos ao centro fazer as compras de Natal. Que surpresa amarga e tensa! Chegamos ao centro e percebemos a catedral tomada por militares armados e apontando metralhadoras para os passantes. Ombro a ombro eles se enfileiravam ali, em pleno marco zero da capital, sisudos e mostrando ostensivamente que a ordem era a da violência e do arbítrio. As pessoas corriam aparvalhadas, as lojas iam fechando as suas portas. Não sabíamos o que era aquilo. Quantas dúvidas e sobressaltos! O

que fazer? Voltamos rápido para casa.

Somente à noite, ao assistir o Jornal Nacional, é que soubemos

que o sr. Presidente Artur da Costa e Silva baixara o Ato e que

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as liberdades individuais não eram mais garantidas, a censura aos meios de comunicação estava na ordem do dia e a repressão política passou a ser vista como legal no país. De imediato todos os esforços democráticos não foram ouvidos, sequer considerados pelo poder. O contrário do imposto era sinal de subversão e ponto final. Do AI -5 veio de tudo: a arbitrariedade, prisões políticas, exílio, ameaças, escuta telefônica, assassinatos, tortura física e psicológica, desaparecimento (como é que alguém pode, simplesmente, desaparecer, meu Deus!), humilhações de toda ordem, pavor, pânico, e sobretudo luto, na sua forma mais cruel e crônica. Foi aí que se acabou com a educação pública no país. Foi a partir dali que a alienação criou raízes, se criou e se estabeleceu como

algo dito normal.

Foi da janela do Sebo do Messias, em poucos minutos, que revi as coisas do tempo, de um passado que não pode ser esquecido, tem que ser mostrado, criticado, combatido. Deve ser sempre analisado, explicado, com a amplidão da letra de "O bêbado e a equilibrista", com a abertura impecavelmente sentimental: "caía a tarde feito um viaduto e um bêbado trajando luto me lembrou Carlito". Eu vi essa tarde caindo como um viaduto, o 13 de dezembro. O peso de um viaduto e os estragos

duradouros, que não se apagaram.

Que bom que, antes das minhas amargas recordações, aquele senhor negro, operário e autodidata, sorriu para mim, conversou... e me agradeceu, muito embora eu seja tão pequena. Que bom que, naquele mesmo lugar, onde no passado o medo e as incertezas haviam tomado conta, eu pude comprar discos do Pedrinho com sabor de vida e esperança.

A mesma esperança que, um dia, dos lábios do grande Carlos

Drummond, saiu a preciosidade: é preciso esquecer... para

lembrar.

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