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Academic year: 2022

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por Rica Oliveira Lima

por Rica Oliv eir a Lima

Attilio Baschera e Gregório Kramer são um dos maiores expoentes históricos da decoração nacional, pelo pioneirismo de sua extraordinária obra de estampa- ria. Muito além disso, são personalidades que sintetizam o espírito de uma épo- ca de revoluções comportamentais e gênese do mercado de luxo no país, com sua loja de tecidos decorativos, a Larmod, fundada em 1971 no país do “milagre econômico”, recém-fechado às importações.

A Larmod e seus proprietários se tornaram figuras de referência do design brasileiro no último terço do século XX, através da combinação de talento ar- tístico, faro para negócios e a posição prestigiosa que galgaram junto à mídia especializada e à alta sociedade brasileira. São apontados como dois dos primei- ros formadores de opinião do país, proponentes de um elegante estilo de vida, divulgado à exaustão pela imprensa. E foram responsáveis pela introdução das atuais práticas do Mercado de decoração, protagonistas e testemunhas de tudo que aconteceu na área: o surgimento das revistas dedicadas à casa, o boom dos decoradores, a gênese da Casa Cor, a expansão gigantesca das lojas do ramo.

São, ainda, apontados como o primeiro casal gay a ser recebido pela sociedade paulistana, mecenas das artes, catalisadores da agitada vida noturna dos anos 80. A “mais completa tradução” de uma certa São Paulo, um certo jeito que ain- da é uma das melhores coisas da cidade: uma convergência de culturas, artes, festas, negócios, glamour, novidades, deliciosas futilidades e desafetadas inte- lectualidades.

O autor Rica Oliveira Lima, jovem arquiteto que se dedicou à obra dos designers em pesquisa de mestrado na USP, transformou quatro anos de depoimentos em um livro narrado em primeira pessoa do plural, no qual Attilio e Gregório pa- peiam sem embaraços sobre sua visão de mundo, relacionamento e obra, com centenas de fotografias, desenhos, estampas e divertidas matérias de decoração dos anos 70 e 80. Como em uma festa animada, os “anfitriões” são interrompi- dos e complementados por treze entrevistas com amigos e profissionais desta- cados do campo, além de prefácios de Maria Cecília Loschiavo dos Santos, pro- fessora titular de design da FAUUSP, e Raul Juste Lores, jornalista, pesquisador e amigo da dupla.

Sem a ambição de exaurir a extensa obra dos designers, o livro não é uma ver- são “enxugada” da dissertação de mestrado. É uma obra completamente diver- sa, que transita entre o viés biográfico, estudo histórico do design brasileiro, catalogue raisonné, álbum de memórias e, por que não, literatura de fofoca. Sem nunca perder de vista a valorização da história dos interiores brasileiros, é uma obra feita para aguçar a curiosidade de leigos e profissionais, de estudiosos e estudantes, daqueles que privaram com Attilio e Gregório e aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de conhecê-los.

A grande coisa do nosso trabalho era uma vontade de dar vazão à origem nossa. Dar vazão a tudo aquilo de que a América do Sul não queria saber: nossa origem portuguesa, nossa origem africana. Mas não foi algo pensado para ser revolucionário.

Attilio Baschera

Nada disso do nosso trabalho foi feito de caso pensado. Foi um grito! A gente queria o verde das folhas, o amarelo do sol, o laranja do fim de tarde em Copacabana – não o verde-cocô e o amarelo-diarreia das casas da época.

Gregório Kramer

Em São Paulo, os ricos ainda circulavam visivelmente pelas mesmas zonas que os menos abastados, no circuito entre seus casarões suburbanos e o comércio no centro da cidade.

Não tinham pudor de ver seu estilo de vida glamouroso ser escancarado pelas revistas da época – ao contrário de hoje, em que fazem de tudo para passarem despercebidos, circulando apenas entre os condomínios e os shopping centers, visíveis somente nas redes sociais. Era uma miragem sedutora para a nova classe média alta: caso acertassem na escolha de suas compras, de colégio dos filhos, de clube e de endereço, estariam vivendo, virtualmente, a mesma vida que os milionários. Seriam como milionários – seriam milionários!

Rica Oliveira Lima

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São Paulo, 2020

por Rica Oliveira Lima

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Este livro é dedicado à memória do arquiteto Lucas Fernando Ciciliato, quem primeiro me incentivou a fazê-lo.

E à memória de Gregório Kramer, o homem

extraordinário homenageado a seguir.

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Este livro revela um rico capítulo da história do design têxtil brasileiro, colabo- rando para minimizar a pouca atenção atribuída ao tema pela historiografia de design no país. Tive o prazer de acompanhar a fascinante trajetória de Gre- gório Kramer e Attilio Baschera a partir de dimensões profissionais e pessoais.

Essas experiências marcam minha observação sobre o design e o seu papel transformador na sociedade.

Quando a Larmod iniciou suas atividades, em 1971, o país tinha acabado de entrar nos tempos do “milagre brasileiro”. O clima geral era de perplexida- de: atentados, repressão e bocas silenciadas pela ditadura. Nesse ambiente de fechamento político, visitar a loja de Attilio e Gregório era uma experiência surpreendente. Lá havia uma explosão de cores, fibras, texturas e uma extraor- dinária profusão de artefatos têxteis absolutamente geniais – um contraponto criativo às supressões das liberdades civis vividas diariamente na cidade.

Aquele casarão da Rua Bahia exercia um fascínio e transmitia ideias, lingua- gens e ideais do design que impactaram o interior doméstico da casa dos brasi- leiros. Mas Gregório e Attilio relembram sobre as dificuldades na aceitação das padronagens de temáticas nacionais – afinal, ninguém queria comprar tecidos de abacaxi e banana, o que muito esclarece sobre o julgamento dos motivos, padrões e extravagância de suas criações.

Tecidos com padronagens tropicais reproduziam a metro aspectos da flora bra- sileira, uma das mais biodiversas do mundo, e despertavam no imaginário de seus consumidores a importância do respeito ao meio ambiente ecologicamen- te equilibrado. Lado a lado estavam também tecidos baseados na obra de Joan Miró e tantos outros artistas consagrados. A arte de suas estampas era inteira- mente desenhada à mão, na largura do tecido. Levava tempo para ficar pronta.

Por mais de quatro anos, Rica Oliveira Lima mergulhou nos arquivos da Lar- mod e capturou histórias e imagens tão familiares para muitos de nós. Reali- zou extensa investigação para sua dissertação de mestrado, orientado por dois

jovens e talentosos professores doutores, Tatiana Sakurai (FAUUSP) e Antônio Takao Kanamaru (EACH-USP). Tive a oportunidade de participar da defesa da pesquisa, que obteve destaque no programa de pós-graduação de Têxtil e Moda da EACH-USP e serviu como base para este livro, uma referência para estudio- sos e amantes do design têxtil brasileiro.

O critério que guia a sequência de textos e imagens deste volume permite ao leitor reconstituir as aventuras de Attilio e Gregório, em suas próprias pala- vras ou no discurso de profissionais que com eles conviveram. O livro também resgata sua ligação com a sociedade, as relações que eles estabeleceram com o sistema social no qual os tecidos eram produzidos e utilizados.

Gostaria, por fim, de registrar que tive a sorte de frequentar a loja da Rua Bahia, nos tempos em que escrevi como jornalista colaboradora nos jornais Shopping News e Jornal da Tarde. Naquela época era completamente proibitivo para mim, uma estudante, fazer compras ali! Anos mais tarde, conheci uma exímia artesã que fazia patchwork com retalhos da Larmod e adquiri uma colcha para cober- tura de cama extraordinária e colorida, que me acompanhou até se desfazer.

Os tecidos nos aquecem e confortam, mas também simbolizam formas de vida e relações.

Em tempos em que os consumidores ainda insistiam em tecidos de gorgurão e veludo, a obra da Larmod propôs o design têxtil em algodão, celebrando a nossa identidade cultural e o respeito ao meio ambiente. Este livro trata desta e de outras identidades, profissionais, pessoais, afetivas, que nos fazem entender nossas relações com o mundo.

Dra. Maria Cecilia Loschiavo dos Santos

Professora titular de design da FAUUSP

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17 O Brasil tem cor 20 Los gauchos judios 22 A arte é que é liberdade!

25 Bem-criado e malcriado 29 Perche mi piace

34 Hotel Claridge 37 Attilinho

THOMAZ SOUTO CORRÊA

40 Ship Shop 43 Atrás do boi

46 Sylvia, Germano e Lucia 53 Ele sempre foi diferente

SÉRGIO KRYMER

59 Fim de semana 62 Um país em boom

ANDREA MORONI

67 Vogue

74 Para sempre

PATRICIA CARTA

81 A raíz do negócio 86 Vamos ser brasileiros!

94 House of Larmod

100 Donos de uma linguagem

CELSO LIMA

104 Por instinto 108 Uma marca

GLÓRIA KALIL

111 O jeito de São Paulo 116 Um pupilo deles

SIG BERGAMIN

119 Um jeito diferente

125 Um refinamento necessário

VÂNIA TOLEDO

128 Não sei se você sabe

134 O casal que nos representa

JORGE TAKLA

141 Anos 1980 150 Não tem preço

DADO CASTELLO BRANCO

152 Semana de design 154 Aves raras

FABRIZIO ROLLO

157 Sabático

161 A segunda Larmod e AGain 166 Uma amizade de verdade

LU PIMENTA

169 Amigos

172 A caneta certa 176 A vida é para sonhar 182 Os velhinhos

SANDRA E HÉLIO BORK

187 Galeria de estampas 209 Posfácio

237 Bibliografia

238 Agradecimentos

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Gregório_ Nós todos somos iguais do pescoço para baixo. É do pescoço para cima que existe uma diferença, que é o que se traduz nas diferentes culturas.

Tudo é regido pelos olhares das pessoas – e cada olhar é diferente.

Quando vim da Argentina para o Brasil, no final da década de 1960, meus olhos ficaram cheios de cor. Os olhares de Buenos Aires e São Paulo são diferentes: lá se olha para trás, para tudo o que foi – não se olha nada para o que vai ser. Não é que Buenos Aires seja antiquada, ela é, digamos, “menos contemporânea” que São Paulo.

Attilio_ Eles têm uma influência cultural muito diferente da nossa. Veja, o que é o Brasil, o que é a nossa cultura? É um país muito mais influenciado pelos africanos. A Argentina tem uma influência mais europeia.

É uma visão antiga do que é ser europeu. A Europa, hoje, é muito diferente des- sa imagem que os argentinos reproduzem.

Não importa que seja uma visão antiga, importa que eles são diferentes de nós!

Eu acho que são mais estáticos. Sempre que vou a Buenos Aires, só vejo gente velha em lugares velhos. Eu tento ver tudo que está acontecendo e sinto falta de ver gente jovem e as coisas da gente jovem nos museus, falta o grafite, a dan- ça de rua. Tudo é como sempre foi, como “tem que ser” – e, quando não é, eles ficam desesperados.

Em São Paulo, tivemos, há pouco tempo, uma exposição do Toulouse-Lautrec no Masp. Se essa exposição tivesse ocorrido em Buenos Aires, eles teriam fica- do em êxtase! Já aqui, os paulistas acham até interessante ver a arte de outra época, mas, no fundo, estão pensando “o que isso acrescenta hoje e daqui para a frente?”. Essa é a diferença.

Eu sou brasileiro e me sinto muito diferente dos argentinos. O argentino é mais straight, rígido, o brasileiro é mais aberto. Ou era mais aberto, não sei, hoje esta- mos vivendo uma fase horrível.

O Brasil tem cor

Desenhos produzidos à mão por Attilio Baschera como base para criação de estampas.

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Gregório_ A Argentina tem uma riqueza muito maior que milho, trigo, aveia e vaca. É um país agrícola, sim, mas que fez erguer seus grandes edifícios. Essa riqueza do campo fez Buenos Aires florescer: os escritores tinham bolsas para escrever, os músicos tinham lugares onde tocar. Fiz o ensino secundário e a universidade sem gastar nada. Cada matéria da escola tinha uma bibliografia de cinco ou seis livros para estudar: eu os lia nas bibliotecas públicas, onde se podia ficar até durante a noite. Essa é a riqueza que o milho e a vaca deixaram para a Argentina.

Quando fiz meu Bar Mitzvá, aos treze anos de idade, meu pai me presenteou com um abonamento para as tardes de sábado no Teatro Colón. O primeiro es- petáculo que assisti foi dança concreta, com a bailarina alemã Dora Hoyer. Eu não entendi nada e achei um saco. Mas passei a gostar muito de música e come- cei a estudar piano no ano seguinte. De manhã, estudava no Colégio Nacional Sarmiento; à tarde, ia ao Conservatório Nacional de Música, na Calle Callao.

Por sorte – ou azar – estudei na mesma turma que dois gênios argentinos, Mar- tha Argerich e Daniel Barenboim. Martita é, decididamente, a maior pianista argentina – talvez a mulher pianista mais famosa do mundo. Só se falava neles no conservatório e, em vez de querermos nos mirar no exemplo deles, quería- mos ser diferentes. Resultado: toda essa turma se espatifou! Eu continuei estu- dando, mas percebi que não tinha o necessário para seguir carreira, acho que não era muito talentoso. Depois, sofri um acidente de carro que me machucou a mão e fiquei bastante tempo fora do Conservatório. Minha mão é prejudica- da até hoje, consigo brincar, mas não tocar.

Eu gostava muito da ideia de ser regente, porque você manda em todos – e eu ado- ro mandar –, mas não tinha condição nenhuma. Dos meus amigos, uns foram estudar teatro, outros foram estudar outros tipos de música, e eu entrei para o circuito de bater palma para os outros. Nunca perdi a vontade de ser um artista de alguma forma e quando tive um pouco mais de idade e dinheiro, já no Brasil, me tornei produtor de alguns espetáculos junto de amigos que eram diretores. In- sucessos, todos eles, mas me diverti muito. Sigo sendo da turma que bate palma!

A arte é

que é liberdade!

Gregório assiste a uma palestra em Buenos Aires.

Attilio_ Do que você teria gostado mesmo, seria atuar, não é?

Eu queria ser o Marlon Brando – mas um que também cantasse, porque eu achava pouco só atuar. O Vittorio Gassman disse uma vez, quando lhe per- guntaram acerca da vida e da morte, que os atores não deveriam ter uma vida, como todo mundo: deveriam ter duas, uma para ensaiar e outra para represen- tar. Isso é de uma sabedoria maravilhosa.

Deve ser fantástico, ser ator e não viver apenas uma realidade. Quando o ator troca de papel, troca de personalidade. Tem o privilégio de escapar da vida real.

A verdade é que o ser humano nasceu para representar, para disfarçar – se você encara a realidade, vê que ela é uma merda.

A minha formação foi uma panela. Sabe uma panela, onde se faz o cozido? Pri- meiro se cozinha uma parte, daí acrescenta outras coisas… e então você come.

Não que eu tenha me proposto a ser assim: uma hora, conhecia uma turma da

pintura e me deixava levar. Outra hora, conhecia uma turma mais legal da lite-

ratura. Depois cinema, teatro. Eu tinha vários grupos de amigos, sempre mais

velhos, e gostava de tudo que me mostravam, sempre aprendi muito com todos.

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Attilio_ Quando tinha dezessete anos, meu pai disse que gostaria que eu fosse dentista. Isso porque não existiam tantos como hoje, e ele tinha um amigo que fazia muito sucesso, então eu tinha que ser dentista como ele para ser famoso e ganhar dinheiro. Eu disse que não queria nada disso, que queria fazer coisas, colorir, desenhar. Ele respondeu:

– Tu vuoi disegnare alora?

–Si.

– Perche? Per morire di fame?

– No, perche mi piace.

Isso foi uma coisa total na minha vida. Imagine, ter coragem de dizer isso a meu pai! Eu teria me matado se tivesse de estudar para ser dentista. Fiz um curso de desenho do Masp, que ainda ficava no centro, na Rua Sete de Abril.

Esse curso não me marcou muito. Um tempo depois, meu pai decidiu que, se eu queria ser artista, tinha de estudar na Itália. E me mandou para Roma, onde estudei em uma escola perto de Porta Pinciana. A gente estudava todos os princípios do desenho, da decoração, aperfeiçoava as tendências de cada aluno.

Quem não tinha interesse por desenho, nem pensava em cursar. Era, realmen- te, uma formação acadêmica voltada tanto para a teoria quanto para a prática.

Quando me formei, meu pai queria que eu voltasse, mas resolvi ficar. Eu adora- va viver lá, era uma cidade maravilhosa. Já tinha feito amigos e me juntei a eles na Piazza Navona para vender quadros aos fins de semana. Todos os pintores da praça se conheciam e se frequentavam, discutiam seus trabalhos.

Foi um período fundamental para mim, me deu uma visão do passado da arte que não sei se os estudantes ainda têm. Foi somente em Roma que tive conta- to com os grandes pintores do Renascimento, quattrocento e cinquecento, como Michelangelo. Estudávamos seu desenvolvimento, suas técnicas e influências temáticas. O passado é fundamental na formação dos italianos, dava-se muito mais ênfase à história. Hoje em dia, quem quer se desenvolver em arte (ou qual- quer campo) tem outra visão da coisa.

Perche mi piace

Attilio posa de modelo na capa da segunda edição de Quatro Rodas, revista em que assina a direção de arte original, setembro de 1960.

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O mundo se tornou algo totalmente diferente, a adolescência naquela época era outro universo, o adolescente de hoje tem acesso a muito mais informação. Não guardei nenhum trabalho dessa época – também, já faz quase setenta anos.

Eventualmente, o dinheiro acabou. Meu pai mandou uma passagem para vol- tar para o Brasil, e fui trabalhar no departamento de arte de uma agência de publicidade, a Petinatti. Eu já tinha então vinte anos de idade. Meu chefe era o belga Jacqui, Jacques Lebois. Ficou amicíssimo meu, sou padrinho do filho dele.

Aos 26 anos, fiquei de saco cheio de trabalhar com publicidade e comentei isso com meu amigo Luis Carta, que era diretor na editora Abril. Foi quando ele me disse que estavam procurando um diretor de arte para criar o projeto gráfico das novas revistas. Eu saí da Petinatti na hora.

Sabe a arvorezinha do logo da Abril? Foi criada por mim, há 60 anos. A minha função como diretor de arte era a diagramação e o projeto gráfico das revis- tas, nós determinávamos a aparência de cada matéria. Até ali, as revistas deles eram muito simples, somente fotonovelas e histórias em quadrinhos, publica- ções em que o projeto gráfico não era importante. De repente, quando entrei, lançamos Quatro Rodas e Claudia.

A gente não tinha a formação que existe hoje. Não tínhamos técnicas, diga- mos, “eloquentes”, era tudo muito rudimentar. Aprendi muitas coisas novas:

fazíamos o nosso trabalho olhando para as revistas estrangeiras, herdamos os projetos gráficos das revistas italianas. Não tinha outra coisa para nos basear-

a matéria “Graça risonha em tempo de sonho”. Claudia, dezembro de 1965.

Lucia Curia de azul e amarelo, no publieditorial da coleção Brazilian Look da Rhodia, dirigido por Attilio em Roma.

Claudia, setembro de 1963.

Ilustrações que Attilio fez de sua própria casa no Morumbi para a matéria

“A casa colonial de Claudia”. Claudia, novembro de 1961.

mos e fomos evoluindo dali. Meus conhecimentos de arte foram cruciais nesse momento: usavam-se ilustrações feitas à mão, foi só depois que começamos a usar mais fotografias.

Aos poucos, formamos uma equipe fenomenal de fotógrafos: Maureen Bi- silliat, Otto Stupakoff, Claudia Andujar… a editora tinha um ambiente eferves- cente, passavam por lá grandes nomes. O Zaragoza já tinha um certo renome, e fui procurá-lo para fazer a ilustração de um conto, aí começou nossa amizade.

Enfim, toda essa turma tinha muito contato e saía muito – São Paulo era uma cidade pequena, “sair muito” era ir ao cinema e jantar fora.

Eu também cuidava de Manequim, uma revista feminina de moda – um mun- do com o qual eu não tinha nenhum contato até então. De repente, eu estava cuidando de criação e produção de moda, escolhendo as modelos! A moda de hoje é importantíssima, mas naquela época ainda era um negócio menor. Nós viajávamos muito, fomos à Itália com tudo pago pela Rhodia. Ficamos em bons hotéis e faziam festas para nós por onde passávamos. A Embaixada do Brasil em Roma, na Piazza Navona, organizou um desfile seguido de coquetel e jan- tar, uma coisa maravilhosa. Depois, viajamos pelo interior do país, ficamos lá mais de um mês. E fizemos tantas outras viagens para outros lugares, foi uma época ótima na editora Abril. Esse foi o meu começo.

Lá conheci uma das maiores amigas que Gregório e eu tivemos, Lucia Curia.

Certa noite, eu ainda estava trabalhando no fechamento da revista, quando al-

guém bateu à porta de meu escritório. Pedi que entrasse sem nem ver quem era.

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Lucia tinha muita classe, era magra e alta para a época, 1,75 m. Ela causava um frisson, uma sensação fenomenal! Veja se você me entende: Lucia mandava fazer todas suas roupas, tudo era de alta-costura. Ela usava manequim 6, então pedia que as peças fossem feitas em manequim 6 e meio – assim, a roupa ficava rente ao corpo, mas reagia com um movimento bonito a todos os gestos dela.

Mesmo quando era novinha e sem grana, ela fazia suas roupas com uma costu- reira e ficava sempre fantástica.

Suas saias não tinham cortes na lateral ou atrás, eram sempre em um lugar que você nem conseguia encontrar. Na primavera e no verão, ela vestia azul-ma- rinho e branco; no outono e no inverno, camelo e couro. Usava preto apenas à noite e nunca, nunca, usou um vestido bordado. Ela não tinha muitas roupas, mas tudo era de uma qualidade estupenda e conversava entre si, então podia sempre inventar novos looks.

Ela já era alta, então usava salto baixo e largo. Salto alto, apenas à noite. As meias-calças, ela usava na cor da sua pele ou ligeiramente mais brancas. E di- zia: “nenê, brasileira não pode usar meia escura, nós já somos moreninhas”

– ela nos chamava de “nenê”. Nunca usou esmalte, apenas brilho; seu corpo tinha o cheiro mais delicioso que já senti, que não era de perfume, mas de bons cremes e talcos; o cabelo, ela apenas lavava e prendia com dois pentes Cartier.

É isso. Tudo era elegante e nada era vulgar. Sylvia e Germano eram assim tam- bém. Foram outros tempos – muito diferentes de hoje, em que as mulheres usam roupas apertadas demais. No Brasil, temos um toque de Los Angeles e Miami, uma coisa meio cinematográfica e meio Disney: as mulheres se vestem das formas mais inacreditáveis, pintam os cabelos e as unhas de mil cores.

Desde sempre, Lucia soube se posicionar na Europa como uma mulher ele- gante. Ela tinha seus truques: além de bela, divertida e culta, levava consigo Benedita, uma senhora brasileira bem distinta, que era sua secretária e em- pregada doméstica. Na Europa daquela época, andar para cima e para baixo acompanhada de uma empregada era uma coisa do passado e uma marca de distinção, coisa dos muito ricos e muito nobres. Como ninguém sabia nada do Brasil, achavam que Lucia era de uma família brasileira milionária, tipo os Matarazzo, que às vezes viravam notícia na Europa.

Lucia Curia, Attilio e Gregório retratados por Vânia Toledo, década de 1980.

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Gregório_ São Paulo sempre foi uma cidade de turmas, e nós passamos a cir- cular em várias delas. Junto de Sylvia, Germano e Lucia, nós formávamos uma turma mais artística – que, às vezes, frequentava a roda dos quatrocentões, onde apareciam também Aparício Basílio da Silva, Patsy Scarpa e Andrea Moroni.

Parênteses: Patsy e Andrea foram duas das mulheres mais lindas que vi na vida. Sempre pensei em Patsy como uma diva antiga do cinema, sabe por quê?

As cores dela eram tão lindas que ela parecia um filme em Technicolor: olhos azuis, cabelos vermelhos, maquiagem bonita, joias esplêndidas.

Attilio_ E Andrea era a cara de Brigitte Bardot, só que mais bonita. Nos anos 1960, quando ela passava pela Rua Barão de Itapetininga, perto da Abril, lem- bro das pessoas pararem na rua para vê-la passar.

Andrea é lindíssima até hoje. Uma mulher culta, inteligente, com uma opinião – uma boa opinião – sobre tudo. Sempre admirei que ela não se senta no ban- co de trás enquanto o chofer dirige, como fazem os que querem parecer finos.

Pode parecer uma bobagem, mas explica a franqueza e a simplicidade dela em seus relacionamentos, uma coisa que a sociedade paulistana ainda tem muito que aprender. Também sempre gostei que nas festas em sua casa ela ficava des- calça – e se desse vontade de nadar, tirava a roupa e pulava na piscina. Andrea veio da Europa, onde isso é muito normal. Também éramos da turma da edito- ra Abril, que cresceu e se tornou diversas turmas, uma turma dos fotógrafos, outra das meninas da moda e assim por diante. Com Maria Henriqueta Gomes, esposa do ministro Severo Gomes, frequentávamos a roda dos políticos.

Fim de

semana

Attilio, Gregório, Sérgio Krymer e amiga no barco de Silvano e Pierella Dalle Molle em Angra dos Reis, 1977.

Attilio, Gregório e sua mãe, Ida Krymer em Buenos Aires.

Attilio, Gregório e seus irmãos, Duchy e Sérgio, em Buenos Aires.

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Toda a vida, desde a infância na Hungria, eu vivi em um ambiente veramente fa- buloso. Meus pais e eu escapamos de lá quando os russos entraram – pensáva- mos que depois voltaríamos, mas nunca mais voltamos, então fomos para a Ar- gentina. Meu pai tinha formação de arquiteto e durante a guerra trabalhou com um famoso ferro chamado Torstahl, que significa “ferro torcido”, um produto que implicava 40% menos material do que o ferro normal na construção em con- creto armado. Então ele conseguiu a permissão de ter uma usina na Argentina.

Eu me casei em 1949, meu marido era um italiano que imigrou para a Argen- tina depois da guerra. Ele se associou ao meu pai e eles tinham o intuito de es- tabelecer negócios no Brasil. Por isso, meu marido veio algumas vezes para cá, até que conheceu Juscelino, que começou o governo em 1956. O presidente se entusiasmou com nosso ferro, nos mudamos para o Rio e abrimos uma fábrica em Brasília, em 1957. Quase tudo na capital foi feito com nosso produto – você sabe aquela estátua dos dois rapazes que têm um ferro nas mãos? Era nosso, meu marido pôs ali e assim ficou. Eu vi Brasília nascer, fui três vezes para lá quando só havia terra vermelha, nada mais.

Essa época do governo Juscelino é interessantíssima e fabulosa: até então, o mundo todo achava que o Brasil era o país das bananas e dos macacos. Quan- do chegamos, encontramos um Brasil muito diferente dessa ideia, um país em boom. Você não sabe a maravilha que era o Rio de Janeiro! Um glamour que você não pode imaginar! Através de Juscelino, conhecemos todo mundo do Rio de Janeiro – você sabe como é: eu era jovem e linda, meu marido era good- -looking, todas as noites tínhamos festas nas embaixadas estrangeiras, saíamos para bailes, com as mulheres de vestidos longos e os homens de black-tie. Gra- ças a Deus, conheci essa época gloriosa do Brasil.

Um país em

boom Em 1959, nós abrimos uma fábrica em São Paulo e nos mudamos para cá. Era

um lugar agradável, mas completamente provinciano; uma cidadezinha, com um grupinho brasileiro, um grupinho judeu, um grupinho italiano… Logo en- tramos no grupinho dos brasileiros, que olhavam os outros imigrantes como se fossem nada. Por exemplo, tinha um clube chamado Samambaia no Gua- rujá, onde não entravam judeus, sírios e libaneses – e eles já tinham muito dinheiro nessa época, não eram apenas vendedores da Rua 25 de Março. São Paulo era assim!

Nós morávamos na Avenida São Luís, que era o lugar elegante para se morar, como uma Avenue Montaigne daqui, onde tinha apartamentos muito bons, grandes e bonitos. Muita gente também morava na Praça da República, e os arredores das ruas Sete de Abril e Barão de Itapetininga eram um lugar chic, onde tinha lojas finas. Todos ficamos maravilhados quando os primeiros gran- des edifícios foram construídos, Itália, Copan, Conjunto Nacional! No entan- to, a grande maioria dos paulistas morava em casas afastadas, os que tinham mais dinheiro moravam ali pela Avenida Brasil – não tinha nada no Morum- bi, a gente ia lá para andar a cavalo. Isso só foi mudar nos anos 1970, quando Lindenberg começou a fazer essas casas de apartamentos diferentes, sólidas e boas. Morar nos edifícios Lindenberg era mais sofisticado que morar nos ou- tros. Hoje, São Paulo é cheia de edifícios luxuosos, mas nada disso existia antes!

Não tinha ainda o comércio da Rua Augusta, os supermercados também não, e havia pouquíssimos restaurantes: o Baiuca, o famoso restaurante do Hotel Ca D’Oro, uns três na ruazinha onde hoje é o Edifício Itália e o Casserole, que é o único dessa época que existe ainda hoje. A vida noturna era na Boate Oásis, na Praça da República, e no Stardust, na Praça Roosevelt.

A decoração e a moda no Rio eram mais chic que em São Paulo. As casas eram veramente lindas: grande parte das antiguidades do Rio veio através dos embai- xadores, que muitas vezes iam embora e deixavam seus móveis bons e autênti- cos. Já aqui, com algumas exceções, era um desastre: vivia-se em casas em estilo francês, com projetos do Bailly, muitas cópias e móveis da Maison Jansen, pou- cos móveis originais. Tudo muito vieux-jeu. Todos viviam assim, tanto o grupo vieux-riche brasileiro quanto os estrangeiros nouveau-riche, gente com muito di- nheiro como os Matarazzo e suas 400 indústrias. O dinheiro do grupinho dos brasileiros não vinha das fábricas, vinha do campo. A vida nas fazendas era com- pletamente diferente da vida na cidade: as casas eram lindas, tinham os móveis brasileiros antigos, espetaculares, e os grandes quadros peruanos que tinham sido moda. No entanto, era impossível qualquer um deles ter móveis brasileiros na casa de São Paulo, só era permitido usar as cópias francesas. A exceção era Beatriz Pimenta Camargo, que tinha uma coleção brasileira maravilhosa.

ENTREVISTA COM ANDREA MORONI,

DECORADORA.

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Sem querer me gabar, mas eu era um colaborador importante para a Vogue. E isso funcionava como uma forma de publicidade minha. Ele nunca pedia coi- sas absurdas e eram trabalhos prazerosos, grandes matérias com novidades ou muitos desenhos, que eu tinha liberdade para desenvolver. Além disso, a Lar- mod recebeu muita ênfase da Vogue, éramos sempre sujeitos de matérias, o que era muito prestigioso.

Nós éramos artesãos de luxo, o que, naquele momento, era o que interessava a Vogue, entende? Era uma revista diferente das que existiam no mercado. Nós não éramos anunciantes na Abril, porque a circulação era o triplo da Vogue e saía muito mais caro – mesmo assim, os Civita nos deram muita colher de chá, saímos muito na Claudia, com todo cuidado para que não ficasse parecendo um favor para Attilio.

Com seus ensaios em locações, Vogue proporcionou o descobrimento da cidade, o que se tornou também uma forma de divulgação das lojas e outros estabele- cimentos. Tudo tem sua razão: eles não tinham estúdio próprio, e o aluguel de um estúdio era muito caro, então era mais fácil e barato fotografar as matérias nos lugares “bem” da cidade. Eventualmente, todas as editoras perceberam que era custoso manter essa infraestrutura e também mudaram, o que complicou a vida das produtoras. Sabendo dessa dificuldade para conseguir boas fotos, a gente sempre avisava as revistas quando tínhamos novidades (Attilio sempre mandava as dicas primeiro para Claudia, que era sua “queridinha”). Tínhamos pelo menos três ambientes decorados na Larmod, que mudávamos constante- mente. Tomávamos o cuidado de dividir os ambientes entre as revistas, assim todas davam conteúdo exclusivo e ficavam felizes. Isso não foi feito como algo estratégico para a empresa, era uma camaradagem com os jornalistas: eles sempre tinham o que fotografar na loja – e ainda almoçavam conosco no res- taurante da esquina.

A partir daí, as produtoras começaram a nos perguntar: “e não tem uma casa que tenha usado esses tecidos?”. Era raro as pessoas atenderem o pedido da im- prensa de fotografar suas residências. Mas nós tínhamos coisas nossas em mui- tas casas de gente importante, que tinham sido feitas pelos amigos decoradores – que tinham mais facilidade para pedir que as casas fossem fotografadas. Esse foi o começo de uma mudança no mercado: nós demos canja para os decora- dores, que se tornaram as novas estrelas, a atração principal. Foi quando os lojistas deixaram de ser o foco das revistas para serem apenas os fornecedores.

Placa original da loja da Larmod na Rua Bahia.

Tecido da coleção chinesa. Larmod, 1975.

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Eu participava, às vezes, das reuniões de criação, e o tópico sempre era “falta flor na coleção” – por isso, tenho ódio de flores. Flor pequena, flor grande, flor isso, flor aquilo, flor o caralho! No processo de criação, meu trabalho eram as cores: não existia colorista no Brasil e minha formação em química permitia algum conhecimento técnico para essa função. Tenho meu próprio processo:

parto da premissa de imitar o verdadeiro, recriar a realidade – se o desenho é de folhas, procurar mimetizar seu colorido. A partir disso, tento a “mentira”, a dis- torção da realidade através das cores, que pode criar um resultado ainda mais bonito. Uma flor azul-marinho, por exemplo. Quando o bege e o cru voltam à moda – e eles sempre voltam! –, é necessário fazer coleções com cores apagadas, que ficam bem com a paleta neutra.

Como o processo é artesanal, muita coisa sai errada. Erramos muito! Às vezes você gasta dezenas de metros de tecido para acertar a cor da amostra. A tinta rosa, por exemplo, tem pigmento vermelho, que oxida e muda de cor quando seca. Quer dizer, não adianta apenas fazer a prova, precisa esperar o fim da oxi- dação para ver se ficou bom. Às vezes, ficávamos o dia inteiro na estamparia e nada funcionava, especialmente os desenhos com muitas cores. Você não pode imaginar o nó que dá na cabeça até acertar todas elas!

Já não se estampa como naquela época. É um processo preciso e trabalhoso, para não ter falhas. Primeiro, se fabrica e prepara o tecido – se pegar o tecido de qualquer jeito e sair estampando, sai uma merda. O tecido molhado é passado pela rama para secar e ganhar comprimento, de 50 metros com 1,60 metros de largura ele passa a 59 metros com 1,40 metros de largura. Depois, você coloca o tecido bem preso em uma mesa acolchoada e, só então, começa o processo de estamparia. Os quadros eram quadrados com 1,40 metros de lado, e os caras da fábrica os aplicavam sucessivamente até completar os 59 metros de extensão da mesa. Cada cor precisa de um quadro individual e, às vezes, o tecido tem mais de 20 cores. Isso significa que os técnicos de estamparia percorrem quilô- metros para estampar poucas dezenas de metros de tecido.

O tecido seca sob secadores e, por fim, é lavado novamente e manipulado para ficar com a gramagem que você estipula, mais ou menos leve, duro ou mole.

Somente então ele está pronto. Por isso que se pede quarenta dias para entregar tecido estampado em quadro – a não ser que você tenha estoque, e ninguém quer ter. Fazíamos tecidos incríveis, mas por que mais gente não continua a estampar com esse processo? Os custos são absurdos, é difícil encontrar quem ainda tenha os equipamentos antigos para estampar assim.

Estudos de Attilio para estampa com paisagem de Veneza.

Tecido estampado com paisagem de Veneza. AGain, 2004

Hoje em dia, os tecidos costumam ter até cinco cores, para baratear o proces- so. Antigamente, você podia testar uma nova estampa em diferentes versões, trabalhar em cima delas, corrigir e só então produzir a versão definitiva. Essa é a origem das bandeiras de tecido em diferentes cores que existem nas lojas até hoje.

Mas as empresas não querem mais estampar 40 metros de teste, eles só querem

estampar de 400 metros para cima, para que esse processo seja rentável. Nisso

se perde algo muito importante do processo artesanal, que tem tudo a ver com

a qualidade e sucesso dos nossos tecidos. Detesto a estamparia digital, não co-

nheço ainda um bom resultado.

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desenho em branco e azul, a cestaria indígena, os toiles de jouy com os desenhos do Brasil colonial de Debret e Rugendas, muitas flores brasileiras, até abacaxi, que eles fizeram ser chiques, ninguém gostava antes deles!

Ao mesmo tempo que Attilio domina o estilo supertradicional, ele também fez coleções com borrões de tinta, bem contemporâneas. Para mim, ele sempre foi moderno. O desenho dele da década de 1970 continua atual, você vê muitos hoje com um traço parecido, como o David Downton e o próprio Lagerfeld. Ele não é apenas um designer, é um criador com grande domínio sobre o seu processo!

Foi um dos primeiros diretores de arte do Brasil, um grande pesquisador que colecionou não apenas uma montanha de livros, mas também coisas como a cestaria indígena. É uma pessoa capaz de enxergar sintonias que ninguém en- xerga, como a mistura da arte indígena brasileira com os panos de Bali – uma mistura que vai muito bem!

Tudo que eles criaram em termos de divulgação é feito pelas lojas até hoje. As publicidades, os editoriais e as capas da Vogue que criaram em parceria com Luis Carta eram excepcionais, isso na época em que a revista era o máximo. Muitas lojas surgiram após a Larmod, mas eles sempre produziram seus próprios dese- nhos, nunca copiavam tecido de fora como todos os outros fizeram. É uma pena que hoje a indústria têxtil brasileira mal existe, não tem mais linho, algodão está escasso, tudo se exporta. Não sobra nada para o empresário nacional, que ficou de mãos atadas.

Eu fui, praticamente, um pupilo deles. Eles me deram a maior força e aprendi muito, muito, muito. Duas vezes por ano, viajavam para fora por um mês. Eu não tinha um tostão, não podia sair do país, tinha que pagar a faculdade e o meu apartamento, só fui para Nova York pela primeira vez aos 23 anos. Por causa disso, eles é que eram a minha inspiração, a fonte da minha criação. Eu nun- ca tinha ido para Índia, Marrocos, Turquia, Capri, todos esses lugares exóticos que eles já conheciam. Eles voltavam e traziam presentes para mim, e ensina- vam tudo com os livros que compravam. Attilio se tornou o meu ídolo – e é até hoje. Ele era a pessoa do ramo de interiores, de decoração, de bom gosto: muito elegante, estava sempre de terno ou blazer, comprava todas as roupas na Ma- dison Avenue e sempre era o primeiro a usar as novidades. Eles não nasceram em berço esplêndido, nada disso: eles têm o olho atento, uma coisa com a qual você nasce e desenvolve. Costuma ser assim entre os criadores! É o caso do Jean Cocteau, do Cecil Beaton, da Madeleine Castaing.

Eu ainda não tinha saído do armário, e eles me mostraram o caminho deles.

Antigamente, não era chique ser gay, éramos os “afetados”, mas Attilio e Gregó- rio eram diferentes. Recém-chegado do interior, eu me chocava que as pessoas conviviam normalmente com eles, que eram chamados para todos os jantares das grã-finas. Os gays da alta sociedade não eram assumidos, eram homens que viviam sozinhos. Attilio e Gregório enfrentaram isso e quebraram o tabu, pula- ram muitas etapas para nós.

Gregório_ No início, a empresa era composta por nós e quatro funcionários.

Depois de um tempo, chegamos a ter setenta pessoas! Em 1977, alugamos ou- tras duas casas, ficamos com três sobrados enfileirados. Em uma das novas ca- sas, a do meio, fizemos o showroom de tecidos, que ficou com uma atmosfera muito bonita e envolvente, com os ambientes decorados. A antiga casa virou um pequeno estoque e a outra nova casa virou uma boutique de objetos e aces- sórios. Ainda tínhamos nos fundos das casas e nos andares de cima o refeitó- rio e o vestiário dos funcionários, os escritórios do Attilio e meu, o escritório da contabilidade e o ateliê de estamparia. O estoque principal foi para o Bom Retiro e era um caos para controlar: tínhamos fichas da quantidade de cada tecido que eram atualizadas ao fim do dia, mas nunca nada coincidia. Imagi- ne, na época não existia fax, computador, nada! Era lápis para cá, caneta para lá, nota aqui, nota ali, muito papel; tínhamos uma linha de telefone somente para comunicar-nos com o estoque. Hoje em dia não é assim: com a internet, sabe-se até em que lugar da estrada o caminhão da transportadora está. A par- te do negócio que menos nos interessava era a boutique de objetos para casa, com toda a louça, etc. Esse é um universo muito feminino, dominado pelo olhar das mulheres – apesar de eu ter um lado feminino, como todo mundo,

Um jeito

diferente

Publicidade da Larmod. Casa Vogue, julho de 1977.

Ambiente do novo show-room da Larmod com tecidos da coleção Liberty na capa da Casa Vogue, julho de 1977.

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120 121 Ambiente do novo show-room da Larmod em editorial de lançamento da coleção Liberty. Casa Vogue, julho de 1977.

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138 139 Attilio e Gregório retratados por

Tuca Reinés no Theatro Municipal, 1991.

Jorge Takla e Attilio supervisionando a execução do projeto luminotécnico da loja da Larmod no Shopping Iguatemi, década de 1980.

peça de teatro Vanya e Sonia e Masha e Spike, dirigida por Jorge Takla em 2015.

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Quando você frequenta, lida e convive com a classe mais alta, a única coisa que você não pode deixar de lado é o bom gosto. Mesmo na subversão, você precisa de estética e harmonia. A impetuosidade de romper com o estabelecido é uma coisa que ficou na história, lá na época do modernismo. Attilio e Gregório inse- riram suas personalidades nas suas obras, mas sem esquecer de nada disso. Por isso é uma obra tão rica e impossível de ser descrita com apenas um adjetivo:

o trabalho deles é “clássico atualizado”, “tradicional contemporâneo”. Além de tudo, foram eles que criaram um look brasileiro, que difundiram em grande escala o design com referência nacional.

Eles foram os responsáveis pela disseminação dos tecidos nos interiores, uma coisa que não existia no Brasil – e que as pessoas não sabem usar até hoje. O tecido tinha um papel gigantesco na decoração, era um elemento importante;

na década de 1970, as pessoas revestiam todas as paredes e até o teto! Gostava-se do exagero na decoração, do look dos milionários. Uma vez, passei uma sema- na com Carmen Mayrink Veiga para fazer uma matéria da Vogue. A decoração do apartamento era dos anos 1970 e a sala de TV era inteira revestida de tecido:

o mesmo padrão no teto, nos sofás e nas paredes com cortinas de fora a fora.

Fiquei pensando, “esse ambiente não tem janela?”, e mexi atrás das cortinas.

Tinha uma janela que dava para os fundos do prédio. Além disso, as cortinas escondiam pilhas e pilhas de malas, porque ela viajava muito e sempre com muita roupa, não tinha armário suficiente para tanta bagagem.

Isso mudou de repente nos anos 1990: fosse velho-rico ou novo-rico, a osten- tação não era mais o gosto. Começou a época dos lofts e de uma classe de pro- fissionais menos tradicionais, como os publicitários. Ninguém mais queria estampas – o tecido deixou de ser protagonista. Foram os anos do básico, dos sofás de capa branca. As revistas não davam mais tecido estampado e somente o público fiel das lojas ainda comprava. Quando se usam tecidos neutros na decoração, não é possível dizer de onde são, a questão da autoralidade não im- porta muito. “Tanto faz” se comprou no exterior, na Larmod ou na 25 de Mar- ço – mas tem gente que sabe dizer de longe se um linho é puro ou mesclado com fibra sintética. Enfim, o look não permitia mais identificar a marca dos tecidos, então as pessoas não viam sentido em gastar fortunas com linhos e se- das caríssimos se existiam opções baratas que “faziam o mesmo efeito”. Foram anos bacanas, mas que não tinham nada a ver com o universo estampado e co- lorido de Attilio e Gregório. Eles, inclusive, perceberam e guinaram a produção para estampas limpas, listrados, neutros. A nova loja da Larmod na Alameda Gabriel Monteiro da Silva tinha bem esse look dos 1990. Mas os tecidos tinham perdido irreversivelmente a importância: tanto é que a Formatex, uma gigante desse setor, faliu poucos anos depois. Hoje, poucas pessoas revestem as pare- des, talvez no quarto e só. Além disso, também preferem o papel de parede, que é mais prático, barato e fácil de aplicar. Eu prefiro o resultado do tecido.

Festa no apartamento do Morumbi de Casa Vogue, março de 1992.

Attilio_ Todos os anos, fazíamos liquidações de queima de estoque, quando vendíamos tudo com grandes descontos. Era uma loucura: quando chegáva- mos de manhã à loja, tinha fila dando a volta no quarteirão. A gente precisava controlar com senha o acesso das clientes, se não, a loja virava um pandemô- nio. A Larmod era, havia muito tempo, a principal empresa do segmento de tecidos, mas a gente não aguentava mais aquele ritmo de trabalho.

Gregório_ A criação é um vômito. Chega um momento em que, depois de tan- to vomitar, você precisa ficar um pouco só descansando e tomando sol. Em 1992, Attilio e eu encerramos a Larmod para um período sabático de tempo indeterminado. Aproveitamos bem: ficamos morando em Buenos Aires, onde compramos um novo apartamento, viajamos muito pelo mundo todo, voltan- do todos os anos à Itália para a temporada de ópera. Nessa época, Attilio vol- tou a trabalhar com revistas, dessa vez como assessor de estilo da Casa Vogue, durante a direção de Andrea Carta. Essa foi a época em que fez suas matérias mais lindas (na minha opinião), sobretudo “Diário de uma interior design vic- tim”. Já eu, junto de um grupo de amigos, comecei uma instituição de apoio às crianças soropositivas chamada Anima. É estranho: eu achava horrível se um homossexual contraía aids, mas estava acostumado à ideia. Já com a questão das crianças eu me espantava muito mais, vai entender.

Sabático

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Gregório_ Quando você bola uma coleção, tem que ter um denominador co- mum – claro, não é uma regra absoluta, mas é difícil fazer um tecido de pe- riquito ao lado de outro de verduras. Estamos sempre fazendo novas coisas e vivemos o tempo todo com a pergunta: “o que vamos fazer?”. Eu gostaria de fazer uma coleção geométrica a partir de elementos da nossa arquitetura, os arcos da Lapa, por exemplo, são um motivo maravilhoso para uma abstração geométrica. Mas paramos um pouco de fazer coisas “brasileiras” porque as lo- jas não querem mais, pedem para fazermos outras coisas. Ficamos pensando,

“poxa, somos daqui; além disso, temos que dar evolução ao nosso trabalho”.

Enfim, estamos então fazendo uma coleção com padronagem masculina ao fundo, como uma marca d’água, e flores no primeiro plano. Geométrico em- baixo, orgânico em cima. Na verdade, a geometria é indígena, faz lembrar os fundos geométricos clássicos como o pied de poule – não podemos falar para ninguém que a inspiração é dos índios brasileiros, senão não compram. Deixa- mos alguns vazios na padronagem, que é uma brincadeira nossa com os velhos panos de teares manuais, que costumam ter buracos. Os lojistas não vão enten- der nada, nem adianta explicar. Por mim, encheria o padrão de flora brasileira, mas eles vão pedir crisântemos ou orquídeas. Como vivo de comissão da venda deles, não tenho escolha, senão obedecer.

Faz três semanas que Attilio está procurando a caneta certa para essa estampa nova. Com uma caneta, a linha sai fina; com outra, sai grossa. Toca ir à Casa do Artista, tentar achar uma caneta boa. Você acha que as pessoas vão perce- ber? Não. Mas você tem que dar o seu melhor quando cria algo. Tem que per- seguir a harmonia, achar que ficou bem-feito, estar contente com o resultado.

Me alegro até hoje quando vejo tudo que produzi, desde a época do começo da Larmod, em que chamavam o Brasil de “cu do mundo”, nós já estávamos traba- lhando com carinho e procurando nos superarmos.

A caneta

certa

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É engraçado que o Attilio desenhista é totalmente oposto ao Attilio de música, teatro e tudo mais. O Attilio desenhista é mais “loucão”. Isso não custa para ele, pois sua mão é feita para isso. Já para mim custa muito fazer os desenhos.

Não te dá vontade de explorar um pouco? O desconhecido para mim é um misté- rio muito grande. Eu acho que o Attilio tem um pouco de medo do desconhecido.

Eu não tenho medo, ele só não me emociona! É como o ballet contemporâneo:

para mim, é como se fosse ginástica. Falta o enredo emocional do ballet clássico.

Já eu, acho o clássico um saco, aquela mulher magérrima, sofrendo e dançando e dançando… Tem coisas maravilhosas, claro: em Londres, vi o Lago dos cisnes todo encenado por bailarinos homens e achei incrível.

“Espetáculo” se chama assim porque não é a realidade. É algo que você assiste para sonhar, para viver algo que não é a sua vida. Tudo que o ser humano faz é para sonhar: arte, pintura, música, teatro, o que for, é tudo sonho e fantasia. O design também é assim.

O lindo é uma coisa, o feio é outra. Eu sou terminantemente contra o feio. O feio existe nas artes, na música, nos gestos, nas atitudes, nas opiniões. Em seu estado natural, o ser humano tende ao feio. A realidade é um horror, o mundo me choca demais. Nós fomos feitos para sonhar, a vida é para sonhar!

Está vendo, Ricardo? Depois de cinquenta anos juntos, a gente tem papos assim!

Acho muito engraçado que tenha gente que se interesse pela nossa vida e pela nossa obra! Acho que a maioria das pessoas não se interessa por dois velhos

como nós!

Attilio e Gregório em

Buenos Aires.

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