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Gestão do Desenvolvimento Territorial

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Academic year: 2021

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Gestão do

Desenvolvimento Territorial

Cultura e Identidade

Marcelo Dantas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO

GESTÃO DO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL

Salvador, 2018

Cultura e identidade

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Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social Tânia Maria Diederichs Fischer

Superintendência de Educação a Distância -SEAD

Superintendente

Márcia Tereza Rebouças Rangel

Coordenação de Tecnologias Educacionais Haenz Gutierrez Quintana

Coordenação de Design Educacional Lanara Souza

CAIXA ECONÔMICA FEDERAL

Presidente da Caixa Nelson Antônio de Souza

Vice-Presidente Interino/ Diretor de Habitação: Paulo Antunes de Siqueira Superintendente Nacional SUHEN Henrique Marra de Souza

Gerente Nacional GEHPA André de Souza Fonseca

Profa. Tânia Maria Diederichs Fischer Design Educacional: Agnes Bezerra Freire de Carvalho; Coordenação Executiva: Rodrigo Maurício Freire Soares; Supervisão Acadêmica: Renata Lara Fonseca ; Supervisão de Tutoria: Gizele Amorim Conceição

Produção de Material Didático

Coordenação de Tecnologias Educacionais CTE-SEAD

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Coordenação

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Gerente de AVA: Jose Renato Oliveira Design de Interfaces: Raissa Bomtempo Equipe Audiovisual

Direção:

Haenz Gutierrez Quintana Produção:

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Deniere Silva; Flávia Braga; Irlan Nascimento; Jeferson Ferreira; Jorge Farias; Michaela Janson; Raquel Campos; Victor dos Santos

Bianca Silva; Eduarda Gomes; Marcela de Almeida; Dominique Andrade; Roberval Lacerda; Milena Ferreira

Edição de Áudio:

Cícero Batista Filho; Greice Silva; Pedro Henrique Barreto; Mateus Aragão

Esta obra está sob licença Creative Commons CC BY-NC-SA 4.0: esta licença permite que outros remixem, adaptem e criem a partir do seu trabalho para fins não comerciais, desde que atribuam o devido

Sistema de Bibliotecas da UFBA D192 DANTAS, Marcelo.

Cultura e identidade / José Marcelo Dantas dos Reis. - Salvador: UFBA, Escola de Administração; Superintendência de Educação a Distância, 2018.

61 p. : il.

ISBN: 978-85-8292-187-6

1. Cultura – estudo e ensino. 2. Identidade Social. 3. Identidade étnica - Brasil. 4. Sociologia. I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Administração. II. Universidade Federal da Bahia. Superintendência de Educação a Distância. III. Título.

CDU 316.7

Apresentação ...07

Unidade 1 - Cultura e identidade ...09

Atividade introdutória ... 09 Identidade e Cultura – Pluralidade de olhares ... 12 Conceitos de Cultura ...12

Conceito de Identidade ...15

Etnicidade ...19

Interculturalidade ...20

Identidade Intercultural ...21

Identidade, Cultura, Território, Organizações ...23

Unidade 2 - Identidade Brasileira ...27

Atividade introdutória ... 27 Identidade Brasileira ... 30 Contribuições Contemporâneas ...49

Darcy Ribeiro ...49

Florestan Fernandes ...50

Unidade 3 - Aplicações Interdisciplinares dos conceitos de ...53

introdução ... 53 Identidade, cultura, organizações, economia da cultura, sociedade ... 54 Referências ...60

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Atividade Introdutória

Para começar a unidade, e entrar no clima de um modo mais sensível,

abrindo canais de percepção e sensibilidade, antes de requerer de si

a racionalidade necessária para esse percurso de desenvolvimento de

conteúdo, vamos fazer a seguinte experiência de aproximação, numa

sequência proposta a seguir:

1. Convido vocês a escutarem uma música que disponibilizamos no ambiente

virtual da nossa disciplina. É importante que nesse primeiro momento vocês não saibam qual é essa música. Quem a reconhecer, já usará a memória para trazer as emoções e significados que a música lhe traz. Quem nunca a ouviu, deverá se deixar impregnar pelo ineditismo das emoções e imagens que a música provocar.

2. Agora que já ouviram a música, gostaria que a escutassem novamente, só que

dessa vez lendo a letra ao mesmo tempo. Agora, vocês saberão qual ‘a música, qual o seu título e sua letra e quem é o autor. Com isso, a nova escuta abrirá ou-tros canais de percepção e descoberta de significados, enriquecendo a experiên-cia de fruição de uma obra de arte assoexperiên-ciada às suas mensagens mais explícitas e mais sutis:

Unidade I

Cultura e Identidade

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postar no ambiente virtual.

4. Vocês terão acesso a um vídeo em que eu comento a música, fazendo uma

in-terpretação da letra, analisando a sua importância histórica e sua relação com a disciplina.

Tropicália

(Caetano Veloso)

Sobre a cabeça os aviões Sob os meus pés, os caminhões

Aponta contra os chapadões, meu nariz Eu organizo o movimento

Eu oriento o carnaval Eu inauguro o monumento No planalto central do país Viva a bossa, sa, sa

Viva a palhoça, ça, ça, ça, ça

O monumento é de papel crepom e prata

Os olhos verdes da mulata

A cabeleira esconde atrás da verde mata O luar do sertão

O monumento não tem porta A entrada é uma rua antiga, Estreita e torta

E no joelho uma criança sorridente, Feia e morta,

Estende a mão Viva a mata, ta, ta

Viva a mulata, ta, ta, ta, ta No pátio interno há uma piscina Com água azul de Amaralina Coqueiro, brisa e fala nordestina E faróis

Na mão direita tem uma roseira

Autenticando eterna primavera E no jardim os urubus passeiam A tarde inteira entre os girassóis Viva Maria, ia, ia

Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia

No pulso esquerdo o bang-bang

Em suas veias corre muito pouco sangue Mas seu coração

Balança a um samba de tamborim Emite acordes dissonantes

Pelos cinco mil alto-falantes Senhoras e senhores

Ele pões os olhos grandes sobre mim Viva Iracema, ma, ma

Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma Domingo é o fino-da-bossa Segunda-feira está na fossa Terça-feira vai à roça Porém, o monumento É bem moderno

Não disse nada do modelo Do meu terno

Que tudo mais vá pro inferno, meu bem Que tudo mais vá pro inferno, meu bem Viva a banda, da, da

Carmen Miranda, da, da, da da.

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Cultura e Identidade Conceitos de Cultura e Identidade

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Identidade e Cultura – Pluralidade de olhares

Antes de iniciar um percurso de conhecimento sobre os conceitos básicos, é importante ter em conta algumas premissas aqui discutidas. Dessa forma, você vai se preparar para absorver com mais liberdade as múltiplas visões trazidas com esses conceitos:

O conceito de identidade, historicamente, tem interessado aos mais diversos ramos das ciências humanas e sociais e, como tal, tem se desdobrado em múltiplos caminhos complementares ou díspares, por um lado sendo enriquecido pelo olhar particular de cada área, e, por outro, se dispersando em conteúdos que, no fim das contas impedem qualquer garantia de precisão na sua aplicação. A sociologia, a antropologia, a história, assim como a psicologia se empenham em dar-lhe contornos e nitidez, mas os sucessivos esforços acabam por acrescentar-lhe camadas enriquecedoras, mas também pouco abrangentes. A própria diversidade de correntes de cada uma dessas disciplinas leva a uma pluralidade, muitas vezes contraditória, de olhares: na psicologia, por exemplo, desde Freud, passando por Lacan, incluindo a psicologia social, a diversidade de olhares está na própria disciplina. Quando pensamos os caminhos interdisciplinares ou multidisciplinares, essas possibilidades se multiplicam.

Esse mesmo fenômeno acontece com o conceito de cultura. Assim, podemos dizer que tanto um como outro, os conceitos de identidade de cultura são um oceano de possibilidades dispersas que aqui e ali, encontram nitidez a partir de determinado olhar. Mas essa provisória nitidez pode ser sempre embasada à luz de novos olhares. Desse modo, vamos tentar percorrer não apenas um, mas alguns caminhos que possam contribuir para a compreensão desses conceitos.

Conceitos de Cultura

As primeiras tentativas de conceituar cultura, ainda no século XIX, já expressavam uma necessidade para as abordagens das ciências sociais, fato que continua desafiando os cientistas contemporâneos. Esse conceito tão perseguido pela sociologia, antropologia, história, psicologia, continua sendo reinventado numa busca impossível, até agora, de síntese. O fato é que nós temos um fenômeno de acumulação em que os conceitos pioneiros nunca foram abandonados e a eles se juntam novas interpretações que buscam marcar um olhar contemporâneo.

O primeiro a tentar decifrar essa “esfinge” foi Tylor, com seu conceito abrangente e insuficiente: “Cultura é este todo complexo que inclui os saberes, as crenças, a arte, as leis, a moral, os costumes e todas as outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade.” (EDWARD TYLOR, Primitive

Culture, 1871)1

A esses hábitos, costumes e modos de viver, Durkheim vai acrescentar o que chamou de consciência coletiva: “O conjunto de crenças e de sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem sua vida própria; podemos falar de consciência coletiva ou comum”. (Émile DURKHEIM, A divisão do trabalho social, 1893).

O marxismo não vai ignorar a questão e produzirá uma versão do conceito de cultura que inclui o conceito marxista de sistemas de produção:

“Toda sociedade humana é submetida, na sua constituição como sociedade, a uma dialética fundamental que se estabelece entre três níveis ou sistemas: o sistema de produção de bens materiais (economia, trocas, bens e mercadorias, técnicas, ciências, etc.), o sistema de produção de bens sociais (regulamentos, leis, costumes, normas, etc.) e o sistema de produção de bens imateriais (magia, religiões, símbolos, crenças, etc.)” (MARX, ENGELS, 1968,)

Já no século XX, o desafio continua, e Rocher vai a ele acrescentar a relação entre o real e o simbólico:

“Cultura é um conjunto de modos de pensar, de sentir e de agir mais ou menos formalizados, os quais, tendo sido aprendidos e sendo partilhados por uma pluralidade de pessoas, servem, de maneira ao mesmo tempo objetiva e simbólica, para integrar estas pessoas em uma coletividade, distinta de outras”. (ROCHER, ,1968)

Entre os estudiosos da Administração, será Omar Aktouf, o responsável por uma das propostas mais sintéticas para o conceito de cultura: “A cultura é um conjunto de elementos em relações dialéticas constantes: relações concreto-econômicas, sociais e simbólicas”. (AKTOUF, 1988, p. 50)

Para Ortiz (1994, p. 21 - 22), que defende o conceito de mundialização da

cultura, o processo de globalização que marca o mundo contemporâneo, amplia

a relação que historicamente se fez entre cultura e território: “Cada “povo” é uma entidade, um “mundo” diverso dos outros. Decifradores de uma linguagem oculta, os antropólogos se veem como estudiosos das diferenças. A categoria cultura

1 Este trecho citado de Tylor (1871) é considerado um clássico da área, com diversas traduções e edições, assim como Durkheim (1893), Marx e Engels (1968) e Rocher (1968) citados na sequência. Por esta razão, não se pôde localizar com precisão a página dos excertos aqui apresentados.

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Evidentemente, uma análise que se abre para o entendimento da mundialização da cultura se choca com boa parte da tradição intelectual existente. O que se propõe estudar é justamente um conjunto de valores, estilos, formas de pensar, que se estende a uma diversidade de grupos sociais vistos até então como senhores de seus próprios destinos”. E completa; “Uma cultura mundializada corresponde a mudanças de ordem estrutural. Tomar seriamente a proposta de se pensar o mundo como especificidade implica, pois, deslocar o olhar analítico para um outro patamar”. E deixa no ar a questão: “Como integrá-la a um horizonte que busca conferir à cultura uma envergadura tão ampla? “

No século XXI, os estudiosos parecem já se terem conformado que não se consegue um conceito que abranja todas as possibilidades da cultura e passam a definí-lo como um conceito plural, em sua origem e significados.

Jean Fleury2 (2008, p.13-14) chama a atenção para as várias utilizações da

palavra cultura, dentro das ciências sociais e humanas, organizados por Michel de Certeau (1980), na obra A Cultura no Plural:

a) as características do homem “cultivado”, conforme modelo elaborado nas so-ciedades estratificadas por uma categoria que define as normas e impõe seu poder;

b) um patrimônio das “obras” a preservar, difundir ou ter como referência. Po-de-se acrescentar aí as “criações” e os “criadores” visando a renovação do patrimônio;

c) a imagem, a percepção ou a compreensão do mundo própria a um meio (ru-ral, urbano, indígena, etc.) ou a um tempo (medieval, contemporâneo, etc.); d) dos comportamentos, instituições, ideologias e mitos que compõem os

qua-dros de referências e dentre o conjunto, coerente ou não, caracteriza uma so-ciedade diferentemente de outras;

e) o adquirido distinto do inato. A cultura está aqui ao lado da criação numa dialética que a opõe e a combina com a natureza.

2 Do livro original em francês, La Culture (2008), tradução dessa citação para o português por Marcelo Dantas.

Desde as primeiras tentativas das ciências humanas e sociais de conceituar identidade, ainda no século XIX, e sua evolução até a contemporaneidade de século XXI, vamos ter uma sucessão de autores tentando contribuir para uma melhor elucidação, sem que praticamente ninguém tenha conseguido o que poderíamos chamar de uma conceituação definitiva.

Num esforço epistemológico para entender a evolução do conceito com a histórica agregação de camadas, sem que se alcance uma definição clara, abrangente e definitiva, Stuart Hall (2011, p.10-13) vai tentar uma síntese, a partir de três concepções:

Evolução do conceito de identidade

SUJEITO DO ILUMINISMO

O sujeito do Iluminismo estava baseado na concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, desde o seu nascimento e por toda a sua existência. O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa. Trata-se de uma concepção individualista do sujeito;

SUJEITO SOCIOLÓGICO

O sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que esse núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real” mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem. De acordo com essa visão, que se tornou a questão sociológica clássica da questão, a identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade;

objeto 3 objeto 3

O sujeito pós-moderno parte da visão de que o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. O sujeito pós-moderno não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma celebração “móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (HALL, 1987). É definida historicamente e não biologicamente.

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Cultura e Identidade Conceitos de Cultura e Identidade

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Uma concepção dinâmica de identidade

Ainda entre os autores contemporâneos, Hatch & Schultz (2002) vão defender o lado positivo dessa aparente incapacidade de fechar um conceito aceito por todos, pois, segundo a dupla de autores, é preciso entender a concepção dinâmica da identidade, explicada a partir dos seguintes aspectos:

• Identidade revela uma dinâmica constante entre a cultura e a imagem • A identidade exprime as compreensões culturais;

• A identidade reflete a imagem dos outros; • A identidade expressa marca os outros;

• A identidade é enraizada na cultura por um processo de reflexão.

Identidade e contemporaneidade

No mundo contemporâneo, a identidade tende a se apresentar mais fluida, mais mutante, mais múltipla, o que leva a busca do conceito ideal a um paradoxo praticamente irrealizável. Quem explica bem esse impasse é Hall (2011, p. 87);

“A globalização tem o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e “fe-chadas” de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identi-dades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identifi-cação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas”.

Sobre essa característica fragmentação das identidades no mundo contemporâneo - ou pós-moderno, para alguns – já em 1989, quando publicou o seu livro célebre, Canclini (2013, p. XXIII - XXIV) propõe uma análise a partir do conceito de cultura híbrida, que conteria essas identidades múltiplas:

“Já não basta dizer que não há identidades caracterizadas por essências autocon-tidas e a-históricas, nem entendê-las como as formas em que as comunidades se imaginam e constroem relatos sobre sua origem e desenvolvimento. Em um mun-do tão fluidamente interconectamun-do, as sedimentações identitárias organizadas em conjuntos históricos mais ou menos estáveis (etnias, nações, classes) se rees-truturam em meio a conjuntos inter-étnicos, transclassistas e transnacionais. As diversas formas em que os membros de cada grupo se apropriam dos repertórios heterogêneos de bens e mensagens disponíveis nos circuitos transnacionais geram novos modos de segmentação: dentro de uma sociedade nacional, por exemplo, o

México, há milhões de indígenas mestiçados com os colonizadores brancos, mas alguns se “chicanizaram” ao viajar aos Estados Unidos; outros remodelam seus hábitos no tocante às ofertas comunicacionais de massa; outros adquiriram alto nível educacional e enriqueceram seu patrimônio tradicional com saberes e re-cursos estéticos de vários países; outros se incorporam a empresas coreanas ou ja-ponesas e fundem seu capital étnico com os conhecimentos e as disciplinas desses sistemas produtivos. Estudar processos culturais, por isso, mais do que levar-nos a afirmar identidades autossuficientes, serve para conhecer formas de situar-se em meio à heterogeneidade e entender como se produzem as hibridações”.

Identidade cultural

Os conceitos de identidade, expressos em múltiplas visões, já é complexo em si, devido às suas diversas camadas. Quando procuramos compreender o conceito derivado, Identidade Cultural, percebemos que ele extrapola as outras esferas – no eu, o coletivo. Aqui não se trata do indivíduo em si, mas em como a cultura compartilhada por ele em seu território, no seu grupo e sociedade, o impregna de maneira geral e de forma imperceptível. Por isso, essa percepção pressupõe a compreensão da alteridade. O que em mim é similar ao outro, não por afinidade pessoal, mas pelo fato de compartilharmos a mesma cultura? E essa cultura, ainda, o que é evidente no caso baiano, está relacionada com a etnicidade, o que leva a questão da identidade para o campo das singularidades e diferenças dentro da mesma população e do mesmo território.

Além disso, as dimensões espaciais e temporais que variam de acordo com o território em suas dimensões mais humanas e sociais e o tempo histórico em seus ciclos de evolução e contrastes, impregnam a identidade cultural, que pode ser percebida em dimensões espaço-temporais as mais diversas: um bairro, como por exemplo, o Bixiga, de São Paulo, o Greenwich Village, de Nova York, o Pelourinho, de Salvador. Quem contesta que esses relativamente pequenos espaços de grandes cidades têm uma espécie de identidade cultural própria? Da mesma forma, cidades, regiões, países e até continentes. Essas dimensões espaço- temporais são de diferentes grandezas, assim como a identidade cultural pode ter escalas múltiplas de pertencimento.

A identidade cultural que mais interessa às ciências humanas e sociais é o que chamamos de identidade nacional. Para Hall (2011. p. 47) as culturas nacionais são vistas como culturas imaginadas.

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uma das principais fontes de identidade cultural. (...) as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação. Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural”.

Essa identidade cultural, sinônimo de identidade nacional, também entra em crise na contemporaneidade, segundo a lógica da pós-modernidade. Ortiz (2000, p. 212) vai se dedicar a desvendar o que ele chama de identidade cultural globalizada: “A modernidade-mundo, consubstanciada no consumo, tem uma dinâmica própria. O processo de globalização das sociedades e de desterritorialização da cultura rompe o vínculo entre a memória nacional e os objetos”.

Etnicidade

Etnia envolve os conceitos de identidade e de padrões culturais. O conceito de grupo étnico leva, historicamente, a tratar de grupos minoritários em sociedades dominantes. No caso da Bahia é diferente, porque os negros são a maioria da população, desde o século XVIII, segundo Mattoso (1988), até, se considerados os mestiços (há cerca de 80% de negros-mestiços em Salvador). A questão da etnicidade será determinada pelo padrão de inter-relações entre os grupos étnicos e a sociedade dominante- de origem branca-mestiça portuguesa. No caso de Salvador, essas relações são socialmente dominantes, com influências recíprocas a tal ponto que o conceito de etnicidade adquire uma conotação histórica de identidade cultural compartilhada que extrapola os componentes mais propriamente raciais. Por isso, quando falamos de baianidade, estamos falando não de negritude, mas de uma identidade cultural compartilhada por brancos, negros e mestiços que têm como elementos dominantes as características oriundas dos negros, ou das várias culturas negras de origem africana diversificada.

Para Bacelar (1989, p. 32), a etnicidade é uma construção social:

“A etnicidade apresenta-se como uma forma de construção social, um marco de classificação operando por meio de uma lógica de diferença/semelhança. Entre-tanto, esta dupla possibilidade não se mantém estanque, do ponto de vista dos indivíduos, sendo sempre marcada por alternativas ou probabilidades – maiores ou menores – de superação ou reconstrução da específica distinção social ou, por que já não dizer, étnica”.

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Cultura e Identidade Conceitos de Cultura e Identidade

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Figura 4: Integração cultural. Imagem: Rawpixel Figura 5: Migração de executivos. Imagem: Rawpixel

Interculturalidade

A intensificação dos processos migratórios em praticamente todas as regiões do planeta, a multiplicidade de guerras localizadas que geram milhões de refugiados, além da próprio crescimento exponencial das viagens aéreas, fazem com que essa grande circulação de indivíduos portadores de uma identidade cultural que passam a conviver em outros territórios e entrar em contato com outras identidades culturais, trazem à tona mais um conceito: o da interculturalidade. Da sociologia para a administração e a economia, o conceito vai crescer de importância desde o final do século XX, prosseguindo pelas primeiras décadas do século XXI: a globalização da economia afeta as empresas que passam a ter uma migração de executivos por diversos continentes, num processo muito mais intenso do que aquele produzido nas primeiras décadas do século XX com a multiplicação das empresas multinacionais, que evoluem para o que chamamos hoje de empresas globais.

Canclini (2013, p. XXXI) vai chamar a atenção para o imperativo contemporâneo da interculturalidade, seja a partir dos efeitos das novas e múltiplas relações entre os países, a abertura das populações a produtos e culturas de outros países e ainda a grande ampliação dos fluxos migratórios:

“Os processos globalizadores acentuam a interculturalidade moderna quando criam mercados mundiais de bens materiais e dinheiro, mensagens e migrantes. Os fluxos e as interações que ocorrem nesses processos diminuíram fronteiras e alfândegas, assim como a autonomia das tradições locais; propiciam mais formas de hibridação produtiva, comunicacional e nos estilos de consumo do que no passado. Às modalidades clássicas de fusão, derivadas de migrações, intercâmbios comerciais e das políticas de integração educacional impulsionadas por Estados nacionais, acrescentam-se as misturas geradas pelas indústrias culturais.”

Identidade Intercultural

Freitas (2005, p. 07), faz uma das mais aprofundadas análises sobre a presença e impacto da interculturalidade na sociedade e nas organizações contemporâneas:

“Cada vez mais o mundo profissional exige um acordo apaixonado e desejável com a mudança, com a mobilidade em todos os sentidos. O profissional altamente qualificado entende como sendo uma necessidade intrínseca à sua sobrevivência e à sua valorização profissional ter algumas experiências internacionais ou estar disponíveis para elas; ele hoje é solicitado a correr o mundo, a desterritorializar-se, a adaptar-se cada vez mais rapidamente às novas exigências de uma realidade econômica mais global e integrada, a reciclar o seu saber constantemente, a incorporar diferentes experiências na sua biografia e a apresentar performances cada vez mais elevadas independente do cenário cultural onde esteja inserido. O convite ao nomadismo profissional começou como um diferencial e uma opção, mas parece tornar-se rapidamente em obrigatório em alguns círculos, em alguns setores e algumas atividades empresariais”.

A intensificação dos fenômenos migratórios contemporâneos, além da crescente estratégia de expatriação de executivos utilizada pelas organizações, traz os desafios da integração a outra cultura:

“Porém, como dissemos antes, não existe um ser humano destituído de cultura; somos produzidos também pela nossa cultura materna e interagir com outra cultura, ou renunciar à nossa cultura de origem para assumir uma outra, não é um processo fácil nem simples. Mudar de país e mudar de cultura significa construir uma nova vida, fazer novas representações e dar significados diferentes a coisas que já nos eram familiares; atentar para comportamentos comuns e

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é buscar ver o outro através de seus próprios olhos para enxergar de que forma se é visto por ele; é reassociar emoções com fatos e gestos, ler nas entrelinhas, silêncios e olhares até então desconhecidos”.

Freitas (2005. P. 10) chama a atenção para as contradições, conflitos e paradoxos da interculturalidade:

“O que para os membros de um grupo é visto como segurança, para o estrangeiro é aventura e risco, que ele deve investigar, questionar, buscar entender. Este papel de investigador dá-lhe um traço de objetividade, ele discerne e pode perceber limites, mas isto gera uma lealdade ambígua ao novo grupo na medida em que ele é reticente ou incapaz de substituir integralmente o seu modelo pelo do grupo que o acolhe, ele será um “híbrido cultural”, que pode ser visto como um ingrato que não aceita incondicionalmente aquilo que os outros assumem com naturalidade. A estranheza e a familiaridade representam categorias gerais de nossa interpretação do mundo, definindo o novo, buscando entender o sentido, compatibilizando o novo com o que já conhecemos e tentando amarrar uma coerência. O ajustamento cultural consiste em transformar o estranho no familiar, ocorrendo quase sempre com sobressaltos, com dores, com arranhões, mas também com surpresas e alegrias”.

A autora traz para a construção da identidade intercultural, a noção da identidade transnacional e seus impactos:

“Cremos que o sentimento de estrangeiridade ou a identidade transicional pode emergir sempre que o indivíduo mudar de cultura e tiver necessidade de reconstruir o seu quotidiano, ou seja, a sua vida concreta no dia-a-dia, em que os saberes mais primários e elementares são uma questão de sobrevivência e tecem sentidos à experiência vivida. A construção do quotidiano é a medida mais urgente quando se chega a um novo local e ela não se faz sem dores, sem perdas de referências, sem confusões, sem inseguranças e medos, sem bloqueios e sem muitas estórias. A descoberta progressiva do que é “normal” ou “aceitável” em uma outra cultura não se dá sem vários sustos, frustrações e interrogações. Muito dessa aprendizagem é feita através de imitações; uma nova forma de interação vai se estabelecendo entre o estrangeiro e o grupo que o acolhe e as novas convenções vão aos poucos tomando o lugar daquelas da cultura de base do estrangeiro”.

O status de ser estrangeiro e seu impacto na própria identidade cultural do indivíduo:

“Cremos fortemente que nem todos os indivíduos querem ou conseguem viver fora de suas origens familiares, sociais e culturais. Também entendemos que o nível de dificuldade para a adaptação a um novo contexto cultural e a uma nova vida, varia de indivíduo para indivíduo. Porém, supomos que o impacto sobre a

maior do que no caso do profissional que parte para uma missão específica e em seguida retorna ao lar. Nesse caso, cremos ser legitimo supor que o indivíduo que muda constantemente de referências e de contextos pode naturalizar um sentimento de estrangeiridade como parte de sua própria identidade, ou seja, ele pode sentir-se confortável em ser um estrangeiro e não ter mais um local como a sua casa. Aceitar a sua estrangeiridade como uma parte de si pode ser um mecanismo de defesa contra a angústia, a ansiedade, a insegurança e a ambigüidade do desconhecido; pode ser uma forma de lidar com as pressões psíquicas derivadas das escolhas, das não-escolhas, da acomodação ao inevitável, ao inegociável e ao meramente suportável em alguns momentos. Pode ser também apenas a descoberta profunda de que a terra estranha é a sua própria alma.”

Identidade, Cultura, Território, Organizações

As características da identidade cultural de cada lugar se expressam nas organizações em graus variados. Desde os anos 80 do século XX, o campo da Administração passou a estudar a cultura organizacional, desenvolvida internamente, mas depois passou também a buscar entender em que as culturas locais e nacionais influenciavam essa cultura organizacional. A partir do processo contemporâneo da globalização, uma das questões fundamentais passou a ser a Interculturalidade Organizacional: a intensificação das expatriações de executivos entre os países, a migração intensa de empresas para outras nações, trazem a questão: até que ponto as organizações “estrangeiras” ao local vão pressionar e impactar a cultura organizacional interna e influenciar esse novo território?

A toda essa complexidade, acrescentamos a interdependência do processo de produção que deixou de se dar, em muitos casos, em apenas um local, para acontecer através de um fluxo de peças, tecnologias e inteligência entre vários países, a exemplo da indústria automobilística, onde os carros são montados em um país, a partir de componentes e peças produzidos nos mais diversos estágios e em várias nacionalidades. Assim, a interculturalidade organizacional passa a afetar as dimensões local, regional, nacional e internacional.

O impacto da cultura local, da mesma forma que os graus de conflitos da interculturalidade, variam de acordo com a origem da organização e a cultura organizacional que precede a instalação no local. As dimensões de conflito e impacto dessas organizações vão variar também em relação ao seu local de

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Território

A configuração territorial é dada pelo conjunto formado pelos sistemas naturais existentes em um dado país ou numa dada área e pelos acréscimos que os homens superimpuseram a esses sistemas naturais. A configuração territorial não é o espaço, já que sua realidade vem de sua materialidade, enquanto o espaço reúne a materialidade e a vida que a anima.

SANTOS, M. A natureza do espaço – Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996. P. 51 Figura 6: Mapa mundi. Imagem: Pixabay

instalação, sendo diferente o impacto cultural causado por uma empresa instalada, por exemplo, num enclave industrial – como a Dow Química no Polo Petroquímico de Camaçari - com outra que se localiza numa grande cidade, ou outra ainda, como o caso de empresas gaúchas e chinesas instaladas em cidades do interior da Bahia. Em cada uma dessas dimensões, a variação do grau de conflito vai determinar as sínteses de interculturalidade que cada uma vai produzir.

Por outro lado, nas organizacionais fundadas no próprio território, a identidade cultural vai ser determinante da formação da sua própria cultura organizacional. No caso mais específico das organizações culturais sua imbricação com a cultura local tende ao grau máximo a ponto de elas poderem se tornar expressões legítimas dessa mesma identidade cultural local, a exemplo dos blocos afro, empresas de produção cultural, comércio e serviços, organizações associativas, cooperativas, etc.

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Atividade Introdutória

Para começar a unidade, e entrar no clima de um modo mais sensível,

abrindo canais de percepção, antes de requerer de si a racionalidade

necessária para esse percurso de desenvolvimento de conteúdo, vamos fazer

a seguinte experiência de aproximação, numa sequência proposta a seguir:

1. Convido vocês a escutarem uma música que disponibilizamos no ambiente

virtual da nossa disciplina. É importante que nesse primeiro momento vocês não saibam qual é essa música. Quem a reconhecer, já usará a memória para trazer as emoções e significados que a música lhe traz. Quem nunca a ouviu, deverá se deixar impregnar pelo ineditismo das emoções e imagens que a música provocar.

2. Agora que já ouviram a música, gostaria que a escutassem novamente, só que

dessa vez lendo a letra ao mesmo tempo. Agora, vocês saberão qual ‘a música, qual o seu título e sua letra e quem é o autor. Com isso, a nova escuta abrirá outros canais de percepção e descoberta de significados, enriquecendo a experiência de fruição de uma obra de arte associada às suas mensagens mais explícitas e mais sutis:

Identidade Brasileira

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Cultura e Identidade Identidade Brasileira

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1. Agora você vai escrever um comentário interpretativo analítico da canção e

postar no ambiente virtual.

Milagre do povo

Caetano Veloso

Quem é ateu

E viu milagres como eu Sabe que os deuses sem Deus Não cessam de brotar

Não cansam de esperar E o coração

Que é soberano e que é senhor Não cabe na escravidão

Não cabe no seu não

Não cabe em si de tanto sim É pura dança e sexo e glória E paira para além da história Oju Obá ia lá e via

Oju Obá ia

Xangô manda chamar Obatalá guia

Mamãe Oxum chora Lágrima alegria Pétala de Iemanjá Iansã Oiá ria Oju Obá ia lá e via Oju Obá ia

Obá É no xaréu

Que brilha a prata luz do céu E o povo negro entendeu Que o grande vencedor Se ergue além da dor Tudo chegou

Sobrevivente num navio Quem descobriu o Brasil Foi o negro que viu

A crueldade bem de frente E ainda produziu milagres De fé no Extremo Ocidente Oju Obá ia lá e via

Oju Obá ia...

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A identidade brasileira é uma entidade complexa que envolve noções de raça, etnia, história, cultura, processo histórico1. Mas na formação do povo brasileiro, a chegada dos portugueses, do seu contato com os índios, e, mais tarde, da importação das levas de negros africanos como escravos vão gerar um processo civilizatório particular e transformar o Brasil no único país mestiço, de língua portuguesa nas Américas.

No primeiro momento da colonização, o contato amistoso com as tribos indígenas do litoral da Bahia vai fascinar o colonizador português que imagina ter encontrado um paraíso na terra. O fascínio pela primitiva sexualidade dos índios em relação aos pecados que impregnavam a alma dos católicos portugueses, que vai gerar um contato cotidiano, íntimo e depois sexual entre aqueles dois povos, infelizmente não permaneceu na esfera da boa convivência. O colonizador português mais tarde deixou de lado a sua fantasia de paraíso para se dedicar a uma realista e hostil exploração das riquezas do território brasileiro. Logo, muitos grupos indígenas – principalmente aqueles mais belicosos ou insubmissos – passaram a ser atacados e até exterminados pelos colonizadores.

E a colonização brasileira vai se dar, inicialmente com os índios, e depois com os escravos africanos numa eterna dualidade entre autoritarismo do colonizador e sua fraqueza diante do desejo. No primeiro contato com a sensualidade indígena, o português vai mostrar a sua própria natureza voluptuosa. Escrevendo sobre os índios tupinambás, Gabriel Soares de Souza, citado por Paulo Prado (1997, p.77) em Retratos do Brasil, vai dizer:

“São tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam; os quais sendo de muito pouca idade têm conta com mulheres. (...) É este gentio tão luxurioso que poucas vezes têm respeito às irmãs e tias, e porque este pecado é contra seus costumes, dormem com elas pelos matos, e alguns com suas próprias filhas; (...) E em conversação. Não sabem falar senão dessas sujidades, que cometem a cada hora. E não contentes estes selvagens de andarem tão encarniçados neste pecado, naturalmente cometido, são muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não tem por afronta; e o que serve de macho se tem por valente, e contam esta bestialidade por proeza; e nas suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas.”

1 Essa parte, referente à Identidade Brasileira, está baseado num capítulo da tese do autor, Marcelo Dantas (2001), não publicada em português.

conquistador europeu surgiram as nossas primitivas populações mestiças. Terra de todos os vícios e de todos os crimes (principalmente contra os mandamentos católicos). O gosto pela diferença, se não se fazia ideológico e liberador, se fazia concreto e integrador. Já na aurora da formação do Brasil terá lugar o primeiro casamento inter-racial, entre o português Diogo Álvares Corrêa e a índia Paraguaçu.

Nos primeiros anos do século XVI, esse aventureiro português será aprisionado por uma tribo indígena tupi, nas imediações do atual estado da Bahia e graças aos seus recursos técnicos (no caso o uso da pólvora) será poupado da morte. Logo ele e a filha do cacique se apaixonam, se casam (segundo os rituais indígenas), mais tarde vão à Europa, onde Paraguaçu é batizada de Catarina, pela própria Catarina di Medicis, vindo a brilhar nos salões da nobreza parisiense, tornando-se uma refinada dama da sociedade. Voltam mais tarde ao Brasil e tornando-seus filhos, simbolicamente, são os primeiros brasileiros e, como tais, mestiços.

É emblemático que nos primórdios da formação do povo brasileiro esteja um casamento inter-racial. Essa tendência do colonizador português de marcar o seu território também nos domínios do desejo e do sexo farão dos portugueses colonizadores muito singulares na história do Brasil.

Gilberto Freyre (1996a) defende em sua obra a distinção do povo brasileiro daqueles que o formaram. Ainda que reconheça e valorize a contribuição dos portugueses, dos negros e dos índios, ele destaca que desde os primeiros momentos da colonização, o brasileiro é, eminentemente, o mestiço. Primeiramente, a mestiçagem é resultante das relações entre homens portuguesas e mulheres indígenas e, mais tarde, entre portugueses e mulheres negras escravas.

Segundo Freire (1996a), o português que chega ao Brasil no descobrimento e nos primeiros anos da colonização era chamado pelos seus vizinhos europeus de loiro provisório, devido ao fato de que já era mestiço nas suas origens, graças às sucessivas invasões dos árabes, seguidas sempre, mais tarde, de expulsão do invasor. A cada vez que os portugueses pensavam se livrar dos invasores mouros, estes já haviam marcado a sua presença no sangue que corria nas veias dos portugueses.

Tantos períodos seguidos de invasões vão dar ao tipo português características raciais mestiças, com visível presença da influência norte africana. O termo loiro provisório, que é justíssimo – e até hoje se aplica a uma parte dos brancos brasileiros – explica o fato de que muitas crianças portuguesas nasciam loiras e

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Cultura e Identidade Identidade Brasileira

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iam se amorenando no processo de crescimento até possuir cabelos pretos na idade adulta.

Parece que, assim, os portugueses repetiam no Brasil a estratégia de permanência que os mouros praticaram em seu território. É possível que inconscientemente, já que não há nenhum registro histórico de uma estratégia deliberada de miscigenação para garantir a posse do território. Assim, ainda que europeus, o sangue quente do Hemisfério Sul (o norte da África) determinava características culturais nos invasores portugueses.

A essa altura, segundo ainda Gilberto Freire (1996a), por influência dos mouros, os portugueses se diferenciavam dos seus vizinhos europeus pelo grau de mestiçagem, mas, também, por gostar um pouco mais de banho do que os outros povos do continente. Daí que as águas tropicais do Brasil, onde os índios se banhavam por prazer e por asseio, foram mais um elemento a seduzir o invasor português para aquela visão de paraíso que lhes parecera o Brasil de 1500.

A tendência portuguesa ao sexo inter-racial é reafirmada também por Caio Prado Júnior (1996. p.102):

“A mestiçagem, signo sob o qual se formou a etnia brasileira, resulta da excepcional capacidade do português em se cruzar com outras raças. É a uma tal aptidão que o Brasil deveu a sua unidade, a sua própria existência com os característicos que são os seus. Graças a ela, o número relativamente pequeno de colonos brancos que veio povoar o território pôde absorver as massas consideráveis de negros e índios que para ele afluíram ou nele já se encontravam; pôde impor seus padrões e cultura à colônia, que mais tarde, embora separada da mãe-pátria, conservará os caracteres essenciais da sua civilização”.

Para Sérgio Buarque de Holanda (1998. P.33) esse comportamento está ligado à valorização entre os povos ibéricos, da individualidade em detrimento de certos arranjos sociais:

“No fundo, o próprio princípio de hierarquia nunca chegou a importar de modo cabal entre nós. Toda hierarquia funda-se necessariamente em privilégios. E a verdade é que, bem antes de triunfarem no mundo as chamadas ideias revolucionárias, portugueses e espanhóis parecem ter sentido vivamente a irracionalidade específica, a injustiça social de certos privilégios, sobretudo dos privilégios hereditários. O prestígio pessoal, independente do nome herdado, manteve-se continuamente nas épocas mais gloriosas das nações ibéricas. Nesse ponto, ao menos, elas podem considerar-se legítimas pioneiras da mentalidade moderna”.

Muitos historiadores brasileiros atribuem aos portugueses a falta de uma visão estratégica e de talento administrativo para conduzir a colônia, o que explicaria a sanha exploratória de extrair das novas terras toda a riqueza, seja o pau-brasil – cuja exploração iria devastar quilômetros de florestas em poucas décadas – seja no cultivo da cana-de açúcar, seja no garimpo de ouro e pedras preciosas. Mas segundo Caio Prado Júnior (1996), as dificuldades favoreciam certa “desorganização”:

“A colonização não se faz senão excepcionalmente por grupos familiares constituídos, mas quase sempre por indivíduos isolados que vêm tentar uma aventura, e que mesmo tendo família, deixam-na atrás à espera de uma situação mais definida e segura do chefe que emigrou. Espera que se prolonga e não raro se eterniza, porque o novo colono, mesmo estabilizado, acabará preferindo a facilidade de costumes que lhe proporcionam mulheres submissas de raças dominadas que encontra aqui, às restrições que a família lhe trará.

Entretanto, como bem afirma Câmara Cascudo (1983):

“os portugueses com o tempo foram trazendo suas famílias, seus animais de estimação, suas mudas de plantas, e se estabelecendo no Brasil de maneira nada provisória, buscando explorar as riquezas e viabilizar uma nova vida. Ainda no século XVIII, segundo esse autor, Portugal vivia um processo perigoso de despovoamento e de falta de mão-de-obra no campo devido às levas de emigração para o Brasil”.

Essa incapacidade portuguesa de povoar o Brasil apenas com sua própria população é confirmada por Sérgio Buarque de Holanda (1998. P.64):

“Ao contrário do que sucedeu com os holandeses, o português entrou em contato íntimo e profundo com a população de cor. Mais do que nenhum outro povo da Europa, cedia com docilidade ao prestígio comunicativo dos costumes, da linguagem e das seitas dos indígenas e negros. Americanizava-se ou africanizava-se, conforme fosse preciso. Tornava-se negro, segundo expressão consagrada da costa da África. (...) Em resultado de tudo isso, a mestiçagem que representou, certamente, notável elemento de fixação ao meio tropical não constituiu, na América portuguesa, fenômeno esporádico, mas, ao contrário, processo normal”.

Essa colonização sexualmente integradora, vai se desenvolver por todo o período colonial e deixar suas marcas inclusive no período imperial do século XIX, como esclarece Caio Prado Júnior (1996. P.105):

“Podemos resumir aqui o panorama étnico do Brasil em princípios do século passado: um fundo preponderante de mestiços, mais ou menos carregados conforme o nível social a que pertencem os indivíduos, e em que domina em geral

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raças, alimentados continuamente pelo influxo de novos contingentes. Estes são pequenos no caso dos índios, e por isso o seu grupo se reduz e vai desaparecendo; consideráveis no do negro, sobretudo a partir do momento que ora nos ocupa. Esses novos contingentes, brancos, pretos, ou índios, não contribuem para transformar fundamentalmente a feição étnica predominante. Modificarão as dosagens, que penderão para o negro, o maior contribuinte. Mas não alterarão o aspecto mestiçado do conjunto. Os elementos puros vão sendo rapidamente eliminados pelo cruzamento.”

Mas é ainda no período inicial da colonização que as relações econômicas entre a utilização do negro num modo de produção escravagista e a exploração agrícola de grandes extensões de terras destinadas à monocultura, vão marcar os primeiros esboços da identidade brasileira, pela escravidão, pela economia agrária, pela miscigenação racial e por um comportamento singular, mestiço, tropical e lânguido, segundo Sérgio Buarque de Holanda (1998. p.61),

“À influência dos negros, não apenas como negros, mas como escravos, essa população não tinha como oferecer obstáculos sérios. Uma suavidade dengosa e açucarada invade, desde cedo, todas as esferas da vida colonial. Nos próprios domínios da arte e da literatura ela encontra meios de exprimir-se, principalmente a partir do Setecentos e do rococó. O gosto do exótico, da sensualidade brejeira, do chichisbeísmo, dos caprichos sentimentais, parece fornecer-lhe um providencial terreno de eleição, e permite que, atravessando o oceano, vá exibir-se em Lisboa, com os lundus e modinhas do mulato Caldas Barbosa:

Nós lá do Brasil A nossa ternura A açúcar nos sabe, Tem muita doçura Oh! Se tem! tem. Tem um mel mui saboroso É bem bom, é bem gostoso ... Ah nhanhã, venha escutar Amor puro e verdadeiro Com preguiçosa doçura Que é Amor de Brasileiro”

comportamento e cultura brasileira tem a importância de um elemento fundador de identidade social. É justamente quando decidem se estabelecer no Brasil ainda no século XVI que os portugueses começam a criar as raízes da brasilidade na troca de influências com os índios e logo em seguida, com os negros. No desenvolvimento da primeira cultura agrícola brasileira, a cana-de-açúcar, os portugueses vão mostrar muito da sua própria cultura. Em pouco tempo, esse expediente econômico iria marcar para sempre as relações entre o colonizador e a sociedade brasileira em formação.

A alternativa de desenvolvimento econômico através das grandes propriedades rurais e da exploração da monocultura extensiva vai acabar se tornando, de certo modo, mais uma contribuição brasileira à economia mundial. Sob o comando dos portugueses, é em terras brasileiras onde esse tipo de atividade econômica vai desenvolver técnicas específicas, alcançar uma produtividade inédita e render lucros extravagantes. Em poucas décadas, ou pouco mais de um século o Brasil vai se tornar mais rico do que Portugal, que, no entanto, é quem se apropria e beneficia dessa riqueza.

Esse modelo econômico, que vai marcar a formação da sociedade brasileira e determinar hábitos, costumes e especificidades da nossa identidade foi bem sintetizada por Gilberto Freyre (1996) sob a expressão “Casa Grande & Senzala”: a Casa Grande sendo a moradia e de certa forma a sede do poder patriarcal e agrário brasileiro e a Senzala, a habitação coletiva dos negros escravos que também será o centro de intercâmbios culturais entre negros de várias nações africanas, o lugar da tristeza, da dor, do desengano, mas também da sociabilidade e da resistência.

Tão profundamente marcante, a estrutura social e econômica do período colonial não vai ser, entretanto, toda a fonte da formação da identidade brasileira. Antes, como um dos lados de uma moeda, o Brasil colonial vai se associar a um Brasil urbano, cuja definição vai acontecer durante o século XIX. É o que Gilberto Freyre (1996b) vai chamar de a transposição da sociedade da “Casa Grande & Senzala” para um novo arranjo social, uma nova paisagem, uma nova arquitetura uma nova configuração de classes, a que ele vai chamar de sociedade dos “Sobrados & Mucambos”, sendo os sobrados a habitação das elites, ainda originárias do patriarcalismo rural e cuja arquitetura, ainda que encolhida em razão da lógica urbana, tentará reproduzir os símbolos de poder dos seus moradores, enquanto os mocambos são casebres feitos de taipa (varas de madeira e barro), onde vão morar os mestiços e os negros libertos, que continuam a sua

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situação de inferioridade social, mas com um horizonte de esperanças construído sobre a liberdade conquistada, primeiro individualmente e somente no final do século XIX estendida a todos os negros com a Abolição da Escravatura:

“Com a urbanização do país, ganham tais antagonismos uma intensidade nova; o equilíbrio entre brancos de sobrados e pretos, caboclos e pardos livres dos mucambos não seria o mesmo que entre os brancos das velhas casas-grandes e os negros das senzalas. É verdade que ao mesmo tempo que se acentuavam os antagonismos, tornavam-se maiores as oportunidades de ascensão social, nas cidades, para os escravos e para os filhos de escravos, que fossem indivíduos dotados de aptidão artística ou intelectual extraordinária ou de qualidades especiais de atração sexual. E a miscigenação, tão grande nas cidades como nas fazendas, amaciou, a seu modo, antagonismos entre os extremos”. (Freyre, 1996b)

A cidade, na verdade, vai intensificar a diferença que desde o primeiro momento se estabeleceu entre os negros que trabalhavam na Casa Grande e que, com isso, acabavam estabelecendo formas de relacionamento mais pessoais, mais íntimos, e de outro lado os negros da senzala, que trabalhavam na agricultura, sob as ordem dos feitores (espécies de capatazes que comandavam o trabalho escravo em nome do proprietário e senhor), sofrendo violências de todos os tipos, além da exploração forçada da sua força de trabalho e que não estabeleciam nenhum tipo de vínculo com as elites brancas, nem tinham oportunidade de estabelecer nenhum pacto de convivialidade que lhes diminuísse os sofrimentos e a exclusão. Agora, o negro escravo e trabalhador agrário vai ficar ainda mais distante do negro e do mestiço da cidade, lugar onde se multiplicam as possibilidades de relacionamento e onde as estratégias de sobrevivência e de ascensão social também vão ser potencializadas.

É justamente nesse período que o mulato (mistura de negro e branco) vai se tornar o brasileiro por excelência. Mestiço, como a maioria dos nascidos no Brasil, com uma capacidade de adaptação extrema, relacionada à sua interseção entre raças e culturas e entre classes sociais, o mulato vai ser a grande presença na urbanização brasileira. Num momento em que era irreversível a decadência do modelo econômico sustentado apenas na grande propriedade rural dedicada à monocultura por uma economia ampliada e modernizada pela introdução de máquinas e técnicas modernas inventadas e desenvolvidas pelos ingleses, o Brasil começava a migrar para o urbano.

Aliada a essa tendência, a descoberta de novas fontes de riqueza através das minas de ouro e diamantes, concentradas na região de Minas Gerais, e, portanto, fora do domínio da sociedade agrária patriarcal que se localiza principalmente

no Nordeste do Brasil, vão gerar a demanda de trabalhadores com recursos técnicos superiores ao braço de trabalho escravo que havia caracterizado o país até então. A nova economia assim, vai marcar a decadência dos senhores da Casa Grande e a ascensão de estrangeiros (principalmente ingleses) sem nenhuma nobreza, mas detentores de conhecimentos técnicos fundamentais e negros livres e principalmente mestiços que serão os trabalhadores da nova fase de exploração econômica.

Enquanto os brancos tinham passado praticamente três séculos a comandar a economia de suas redes nas salas ou pátios das casas-grandes e com isso desenvolveram uma certa ojeriza ao trabalho e ao esforço físico – esses característicos primeiros dos índios e depois, principalmente dos negros escravos – restando aos mestiços e libertos a capacidade de servir de mão de obra para o novo padrão tecnológico que a economia passava a determinar. Esse processo de transformação é resumido por Gilberto Freyre (1996b. p.529) como:

“Referimo-nos já ao fato de negro e do mulato livres terem sido auxiliares po-derosos de técnicos e mecânicos ingleses, franceses e de outros países da Europa, na obra de mecanização da técnica de produção e de transporte entre nós; e também na de saneamento dos sobrados ou das casas urbanas. E atribuímos o papel desempenhado por esses negros e mulatos livres na revolução técnica por que passou o nosso País desde os primeiros anos do século XIX à circunstância de oferecer o domínio da máquina a homens como os livres, de cor, que eram então a parte mais inquieta da população, oportunidades de se elevarem socialmente por meio do exercício de artes mecânicas diferentes das antigas”.

Em meios aos antagonismos de raça e classe – que no caso do Brasil colonial significavam a mesma coisa – o mulato vai fazer a conciliação social, mas também uma espécie de síntese étnica, num país que vai se misturar tanto, a ponto de praticamente ver desaparecer os brancos puros, dos senhores e os negros puros, escravos, numa descrição de Gilberto Freyre (1996b):

“Como convém não nos esquecermos que passa por negro, no Brasil, muito mulato escuro, sendo hoje quase impossível encontrarem-se, entre nós, africanos ou pretos em sua pureza antropológica. Muitos dos assim considerados, são mestiços: dão a falsa impressão de negros pela maior riqueza da pele em melanina. Mas, levantado seu perfil antropológico, identifica-se o mestiço. Descobre-se o mulato. Mulato escuro, mas mulato”.

E assim como o branco puro, o negro puro teria se desfeito nas sucessivas misturas raciais, Freyre (1996) agora citando Roquete Pinto “é quase certo que não existem hoje negros puros no Brasil”.

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do Brasil. Dos portugueses do tempo da conquista aos negros importados como escravos, se acrescentaram em média mais de cinco milhões de pessoas vindas depois da independência. O fluxo de imigração, reduzido durante a primeira parte do século 19 até a abolição da escravatura (1888), foi estimulada logo depois, como uma alternativa de importação de mão-de-obra barata, que substituiria os escravos na economia agrária. Milhões de alemães e italianos vieram e receberam lotes de terra para se instalar na região sul do Brasil, até nova limitação à imigração, a partir de 1934 por uma lei de cotas, reforçada em 1937, destinada a lutar contra os efeitos da crise e a paralisar a infiltração japonesa. As restrições nunca se estenderam à imigração portuguesa até a entrada de Portugal na comunidade europeia, nos anos 90 do século passado, o que obrigou os portugueses a restringir a imigração de brasileiros conforme as regras da CEE, e que levou o Brasil a praticar as mesmas restrições, já que as leis brasileiras exigem reciprocidade nas relações com os outros países.

Na evolução da história brasileira, as relações inter-raciais vão se tornar preponderantes e o povo brasileiro, majoritariamente um povo mestiço. Tais relações originam-se no âmbito racial, mas desembocam em relações envolvendo aspectos culturais, mentais, subjetivos e políticos. Mas, o próprio Gilberto Freyre (1996) aponta para um aspecto de integridade étnica dos negros, mantido mesmo com o processo intenso de miscigenação: a identidade cultural:

“Mas as tradições religiosas, como outras formas de cultura, ou de culturas negras, para cá transportadas, junto com a sombra das próprias árvores sagradas, com o cheiro das próprias plantas místicas – a maconha ou a diamba, por exemplo – é que vêm resistindo mais profundamente, no Brasil, à desafricanização. Muito mais que o sangue, a cor e a forma dos homens. A Europa não as vencerá. A interpenetração é que lhes dará formas novas, através de novas combinações dos seus valores com os valores europeus e indígenas”.

E não é noutro lugar do Brasil, senão na Bahia, que a tendência a essa reafricanização após a abolição da escravatura, vai se dar de forma mais hegemônica nas características regionais que distinguem os baianos de brasileiros de outras regiões. A hegemonia da cultura negra vai se dar na religião – inicialmente através da estratégia do sincretismo religioso e depois pela valorização do candomblé na sociedade como um todo – na música, na dança, na culinária, na estética, nos costumes. A cultura baiana é, visivelmente, alicerçada na ancestralidade africana e na história construída com a forte presença dos negros e mestiços, o que se constata até os tempos contemporâneos.

Gregório de Matos (Século XVII) Triste Bahia! Oh quão dessemelhante Estás, e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.

A ti tocou-te a máquina mercante, Que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando, e tem trocado

Tanto negócio, e tanto negociante Deste em dar tanto açúcar excelente

Pelas drogas inúteis, que abelhuda Simples aceitas do sangaz Brichote. Oh se quisera Deus, que de repente

Um dia amanheceras tão sisuda Que fôra de algodão o teu capote!

Soneto

A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar cabana, e vinha;

Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um frequentado olheiro

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Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha Para a levar à Praça e ao Terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos pelos pés os homens nobres,

Posta nas palmas toda a picardia Estupendas usuras nos mercados, Todos, os que não furtam, muito pobres,

E eis aqui a cidade da Bahia.

Glosa

Mote:

De dous ff se compõe esta cidade a meu ver um furtar, outro foder

1

Recopilou-se o direito, e que o recopilou Com dous ff o explicou por estar feito, e bem feito: por bem Digesto, e Colheito

só com dous ff o expõe, e assim quem os olhos põe no trato, que aqui se encerra,

há de dizer, que esta terra De dous ff se compõe

2

Se de dous ff composta está a nossa Bahia errada a ortografia a grande da no está posta: eu quero fazer uma aposta,

e quero um tostão perder, que isso a há de perverter, se o furtar e o foder bem

não são os ff que tem Esta cidade a meu ver.

3

Provo a conjetura já prontamente como um brinco

Bahia tem letras cinco que são BAHIA logo ninguém me dirá que dous ff chega a ter, pois nenhum contém sequer,

salvo se em boa verdade são os ff da cidade Um furtar, outro foder.

A Bahia é talvez a primeira síntese do Brasil. Nela estão fincadas as bases da identidade brasileira e é fundada numa utopia de representação da terra original, que encontra, entretanto, ressonância em significações possíveis e prováveis. Começa com o mapa: a Bahia é, entre os 27 estados da nossa república federativa, aquele cujo território é visivelmente uma versão menor do mapa do país. A Bahia se sente a mãe do Brasil e já foi o pai. Era o centro do governo nos primeiros tempos da colonização, marcados pelo patriarcalismo da estrutura econômica agrária. Salvador foi a primeira capital do país por quase três séculos. A cidade foi construída para sediar o governo colonial. Foi até o século XVIII

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estratégica transformou-a numa espécie de entreposto por onde passavam todas as mercadorias entre a Europa e a América. Nos seus tempos áureos, e já com uma população de negros e mestiços maior do que a de brancos e europeus, era chamada de a Rainha do Atlântico Sul.

Metrópole de tempos idos a cidade da Bahia cresceu por entre morros e ladeiras, desde o início completamente diferente das cidades europeias. Aqui, a ação do homem se adequava à conformação e aos contornos da natureza, como fala Sérgio Buarque de Holanda (1998. p.109):

“A fantasia com que em nossas cidades, comparadas às da América espanhola, se dispunham muitas vezes as ruas e habitações é, sem dúvida, um reflexo de tais circunstâncias. Na própria Bahia, o maior centro urbano da colônia, um viajante do princípio do século XVIII notava que as casas se achavam dispostas segundo o capricho dos moradores. Tudo ali era irregular, de modo que a praça principal, onde se erguia o Palácio dos Vice-Reis, parecia estar só por acaso no seu lugar. A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra “desleixo”...”

Essa liberdade espacial de construção era coerente com o modo como as relações se davam e como a moral se alargava através das intensas trocas de influências inter-raciais, conforme Paulo Prado (1997. p.84 ):

“Em 1591 (...) era a cidade de Salvador um extravagante caravançarai, pitoresco e tropical. Aí, dizia o padre Fernão Cardim, “os encargos de consciência são muitos, os pecados que se cometem neles não têm conto; quase todos andam amance-bados por causa das muitas ocasiões”. Acrescentava, referindo-se ao açúcar dos engenhos: “bem cheio de pecados vai esse doce...”

Nessa Salvador original, a arquitetura e a dinâmica social criavam uma atmosfera única para os olhares moralistas dos cristãos europeus, como descreve Paulo Prado (1997) :

“Na primeira (a Bahia) uma população de 80 mil almas, só uma terça parte era de brancos e índios; o resto compunha-se de negros e mulatos. A cidade, sob o sol radioso dos trópicos, era um horrível monturo que devia empestar até o mar alto, como a Lisboa de Byron. Pela escarpa abrupta coleavam 38 ladeiras, ruas e vielas, estreitíssimas, por onde dificilmente passava uma sege. Casas agaioladas de quatro e cinco andares, em geral do século XVII, forradas de urupema, en-sombreavam e abafavam as ruas com os longos beirais e as saliências das rótulas:

mercados da cidade, as negras vendiam peixe, carne moqueada, baleia no tempo da pesca, e uma infindável coleção de carurus, vatapás, mingaus, pamonhas, aca-çás, acarajés, abarás, arroz de coco e as infinitas qualidades de quitutes baianos...” (PAULO PRADO, 1997. P. 152-153)

A Bahia foi privilegiada, segundo alguns estudiosos afirmam pela importação de escravos negros retirados de algumas das regiões de povos mais desenvolvidos da África negra. Gilberto Freyre (1996) atribui a esse fato a razão pela qual os negros africanos influenciavam tanto a sociedade baiana da época:

“A verdade é que importaram-se para o Brasil, da área mais penetrada pelo Isla-mismo, negros maometanos de cultura superior não só à dos indígenas como à da grande maioria dos colonos brancos – portugueses e filhos de portugueses quase sem instrução nenhuma, analfabetos uns, semianalfabetos na maior parte. (...) É que nas senzalas da Bahia de 1835 havia talvez maior número de gente sabendo ler e escrever do que no alto das casas-grandes”.

A contribuição desses escravos, não se resumiam, então, a servir de mãos para o trabalho agrícola, como explica Gilberto Freyre (1996)

“Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram um ele-mento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos. Longe de terem sido apenas animais de tração e operários da enxada, a serviço da agricultura, desem-penharam uma função civilizadora. (...) E não só da formação agrária. Eschwege salienta que a mineração do ferro no Brasil foi aprendida dos africanos. E Max Schmidt destaca dois aspectos da colonização africana que deixam entrever su-perioridade técnica do negro sobre o indígena e até sobre o branco: o trabalho de metais e a criação de gado. Poderia acrescentar -se um terceiro: a culinária, que no Brasil enriqueceu-se e refinou-se com a contribuição africana”.

E completa:

“Referimo-nos já ao fato de negro e do mulato livres terem sido auxiliares po-derosos de técnicos e mecânicos ingleses, franceses e de outros países da Europa, na obra de mecanização da técnica de produção e de transporte entre nós; e também na de saneamento dos sobrados ou das casas urbanas. E atribuímos o papel desempenhado por esses negros e mulatos livres na revolução técnica por que passou o nosso País desde os primeiros anos do século XIX à circunstância de oferecer o domínio da máquina a homens como os livres, de cor, que eram então a parte mais inquieta da população, oportunidades de se elevarem socialmente por meio do exercício de artes mecânicas diferentes das antiga”.

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