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PAPERS 3
Éditorial
por Angelina Harari
Ordem simbólica inconsistente e clínica criacionista do nome
por Pascal Pernot
O pragmatismo no século XXI e o da psicanálise
por Juan Fernando Pérez
Comité de Acción
de la Escuela Una- Scilicet
François Ansermet Susana Amado Domenico Cosenza
Angelina Harari (coordinadora) Juan Fernando Pérez
Antoni Vicens
Rose-Paule Vinciguerra
Responsable de la edición:
Marta Davidovich
Éditorial
Angelina Harari
Retomamos a publicação dos Papers com vigor renovado. Embora os colegas do hemisfério norte estejam em época de verão e, portanto, gozando de suas férias,
enquanto aguardam a retomada do trabalho, poderão apreciar até mais a leitura dos dois textos deste terceiro número.
São dois textos que dialogam sobre a questão da pragmática analítica, um de Pascal Pernot, colega da França, e o outro de Juan Fernando Pérez, da Colômbia. Ambos, de ângulos distintos, abordam uma mesma pergunta: há um pragmatismo lacaniano?
Segundo Pérez a pragmática lacaniana fundamenta-se na fórmula „saber se virar (savoir y faire: arreglárselas) com o sintoma‟, mas sempre que se a distinga do saber fazer (savoir faire: saber hacer) com o sintoma.
Por seu lado, Pernot comenta em sua
contribuição ao tema do próximo Congresso da AMP, que é necessário inventar uma pragmática dos entornos do real, apoiada em lalíngua e no semblante.
Juan Fernando Pérez também evoca, na sua abordagem dos entornos do pragmatismo analítico, um trabalho de Leonardo
Gorostiza intitulado “Um Pragmatisto Real”, texto em que diferencia a nomeação
segundo a entendemos na psicanálise da nomeação tributária do nominalismo contemporâneo, que é outro nome do neopragmatismo de Rorty.
Finalmente, reiteramos nosso convite às contribuições que nos cheguem vindas de você, leitor. Assim poderemos prosseguir o debate. Ao mesmo tempo, agradecemos à Marta Davidovich que, no meio de suas férias não hesitou em assegurar a edição deste número de Papers.
Angelina Harari
p/ Comitê de Ação da Escola Una Scilicet
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Ordem simbólica inconsistente e clínica criacionista do nome
P. Pernot
A psicanálise leva em conta simultaneamente e no mesmo movimento a incompletude, a inconsistência da ordem simbólica e a maneira que o corpo é assim afetado com o gozo que nenhuma ordem poderia absorver. Nas consequências que tira disso, a psicanálise objeta as pretensões de classificação e de disposição de uma “ordem de ferro” da qual o século XX deu exemplos de realização.
Levando em conta os limites do simbólico, o que é que o analista chama de “nomeações”? As relações do sujeito com o furo do simbólico, ou seja, os nomes do sintoma, da fantasia, do sinthoma na sucessão do desenvolvimento de um tratamento. O Homem dos Ratos, o Homem dos Lobos... essas nomeações freudianas necessitavam acrescentar, ao nome, o de um animal, de um ser vivo que escapasse à falta a ser. Sintoma, fantasia, sinthoma nomeiam experimentações sucessivas do fato
de que “a metáfora do Nome-do- Pai não anula o gozo”.
1Jakobson, Lévi-Strauss e diferentemente Lacan inventam o simbólico e novos usos do significante devidos à sua prevalência sobre o significado. O simbólico introduz a ficção da linguagem e se articula segundo a metonímia e a metáfora. Trata-se do simbólico estrutural, da nomeação classificatória. Mas este não é o inconsciente da psicanálise.
Desde 1953, fazendo do simbólico
o toro da linguagem, Lacan
esclarece de que maneira o ponto
crucial do Outro do simbólico é seu
vazio central, o furo da pulsão em
torno do qual gira o sujeito. Lacan
acrescenta uma função à nomeação
classificatória: a da articulação do
sujeito ao seu singular regime de
gozo de falasser, ao mesmo tempo
constitutivo do gozo e dele
distanciando o sujeito. A relação do
sujeito com o pulsional se articula
em função da significação fálica ou
de sua ausência. Essa significação é
produzida, no primeiro ensino de
Lacan, pela substituição do desejo
da mãe pelo significante do Nome-
do-Pai. Ela é então linguística e
logicamente construída a partir do
furo que a metáfora do Nome-do-
Pai introduz na sequência dos
significantes.
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O sinthoma, que também é defesa contra o gozo (participando dele, como compromisso), não é então abordado sob o ângulo da significação. Pelo contrário, Lacan insiste no fato de que o sintoma é a nomeação da relação singular do sujeito com o gozo. Assim, o nome Homem dos Ratos nomeia ao mesmo tempo a relação com o significante mestre, os ratos, e com o gozo forçado que eles impõem.
Mas onde Freud opõe representação verbal e satisfação naquilo que nomeia, Lacan vai juntar semblante e gozo.
Construção singular do incurável
O ensino de Lacan evolui para um questionamento da lógica como ciência do real e da linguística como ciência da linguagem. A partir do momento em que Lacan leva em conta a inclusão do gozo no fato de se falar ele se confronta com este limite: um real no saber permanece inacessível. Isso implica a necessidade de inventar uma pragmática dos entornos desse real.
Essa pragmática se apoia não mais na linguagem, mas em lalíngua, não mais no significante, mas no semblante.
Duas consequências: a primeira é que, como semblante, o Nome-do- Pai se pluraliza. Os Nomes-do-Pai
não articulam mais pela metáfora, o significante e um gozo que ele viria barrar: eles amarram juntos os três registros ─ do simbólico como furo, do imaginário do corpo e do real que ex-siste a eles. Segunda consequência: a mudança de perspectiva quando o falo passa a ter o estatuto de semblante. Não denotando mais nenhum objeto na articulação significante, ele tem como único referente o próprio poder de significação. A significação fálica que na lógica da cadeia significante só era “evocada pela (...) metáfora paterna”
2é produzida pelo efeito topológico de pinçamento na amarração de RSI.
Essa nova articulação do nome permite que Nomes-do-Pai e sintomas sejam colocados em série, como aponta J-A Miller em Arcachon, e que se inaugure o campo de uma nova clínica: a das soluções não estandardizadas, singulares. Uma amarração e um efeito de significação podem constituir um sintoma sem o apoio do Nome-do-Pai e manter o sujeito a certa distância da intrusão do gozo de lalíngua.
Lacan se apoia no artigo de Frege,
Sinn und Bedeutung. Sinn, o sentido, é
dado pela definição lógica do
objeto. Bedeutung, a significação, é o
próprio objeto que é designado. A
Bedeutung se constitui fazendo um
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furo no sentido, é o furo que faz, no eixo sintagmático, o nome que aparece no eixo paradigmático. É necessário mostrar empiricamente essa operação.
A solução lacaniana é a topologia dos nós. Ela mostra como o real ex-siste ao simbólico que nele faz furo, os dois se amarrando ao imaginário do corpo. Cada corda pede emprestado o furo das outras dimensões para nelas se amarrar.
Segundo a fórmula de É. Laurent,
“os nomes fazem furo no sentido e o tecem ao mesmo tempo. Eles indicam o lugar do gozo e da defesa do sujeito contra ele”.
3Entretanto, a amarração de RSI não esgota a questão do nome. O simbólico, mesmo ligado ao imaginário do corpo e ao real impossível, não poderia batizar o gozo. “O nome próprio não é suficiente, precisa J-A Miller, sempre alguma coisa pede um complemento. Lacan, diz ele, pensa dar, com Joyce-o sinthoma, o verdadeiro nome próprio (...). Em relação ao sintoma, o sinthoma é o esforço para escrever com um só traço ao mesmo tempo o significante e o gozo”.
4Tradução: Inês Autran Dourado Barbosa
1 MILLER J-A. De la nature des semblants, 27, XI,1991.
2 LACAN J. Escritos. Rio de Janeiro :Jorge Zahar Editor, 1998, p. 561..
3 LAURENT, É. “Le nun de jouissance et la repetition”. In: La Cause freudienne.
Revue de psychanalyse, n. 49, nov. 201, p.
30.
4 MILLER J-A. “Lacan avec Joyce. Le Séminaire de la Section clinique de Barcelone”. In: La cause freudienne. Revue de psychanalyse, n. 38, 1998, pp. 10, 12.
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O pragmatismo no século XXI e o da
psicanálise
Juan Fernando Pérez
Que a psicanálise seja mais uma
prática que uma teoria não quer
dizer que ela seja uma prática cega,
que não esteja confrontada,
constantemente, com seus
fundamentos teóricos, nem que
privilegie os resultados de seus atos
a qualquer preço (tentação corrente
daqueles que exercem uma prática
que Freud soube questionar desde
o início, com notável clareza ética e
epistêmica, apesar de seus êxitos
iniciais; dessa maneira, ele definiu
os fundamentos inaugurais da
psicanálise relativos ao êxito
terapêutico). A cegueira teórica, por
conseguinte o dogmatismo nas
afirmações e a exaltação de seus
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resultados, como sustentação única do sentido de uma prática, são precisamente as características primordiais que caracterizam o pragmatismo que tende a dominar, no século XXI, nas mais diversas esferas das ocupações da época.
O extenso uso e a valorização contemporânea do conceito de pragmatismo têm conduzido a múltiplos equívocos, apesar de suas sólidas origens4 que lhe permitiram ganhar, em certo momento, uma ampla respeitabilidade que, no entanto, tem sido perdida parcialmente, ao ponto de ser surpreendente para setores advertidos da opinião ilustrada contemporânea que a psicanálise de Orientação Lacaniana se assuma como um pragmatismo. Isso convida a perguntarmos sobre a natureza do pragmatismo que ela que reclama como seu.
É preciso dizer que, em diversas declarações sobre o valor do pragmatismo lacaniano, subjazem algumas confusões, ou até um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que é exaltado se reconhece que se trata de uma prática clínica que
“exclui a noção de êxito”,4 que se trata de uma prática obrigada a aceitar o fracasso inexorável que está presente no esforço para tornar a relação sexual possível.
Portanto, que é uma clínica definida pela exigência de distinguir os modos de fracassar ante o sintoma.
Assim, sabemos que, muitas vezes, são propostas fórmulas de Lacan como as de “saber fazer” (savoir faire) e “saber se virar” (savoir y faire) com o sintoma, como se com elas se assinalasse indistintamente o fundamento do pragmatismo lacaniano.4 É preciso lembrar que Miller tem demonstrado a inconveniência para a psicanálise de se apelar à expressão “saber fazer”
para fundar sua pragmática; ao contrário, ele tem sustentado a pertinência de invocar o “saber se virar” com o sintoma. Em que consiste essa diferença?
Segundo a argumentação de Miller,
o “saber fazer” se define por sua
estirpe eminentemente técnica e,
como tal, constitui uma forma de
atuar que supõe a posse de antemão
do saber sobre a coisa. Ao
contrário, o “saber se virar” admite
a significação do singular para
quem faz e, consequentemente, não
pode tomar a coisa como conceito
(para diferenciar os dois termos,
Miller tem sublinhado essa ideia
como a base da tese de Lacan). Isso
fornece sentido à pragmática
lacaniana, e se for ignorado poderá
desembocar, simplesmente, numa
solução que, antes tudo, buscaria
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justificar o ato a qualquer preço. O
“saber se virar”, que implica para o sujeito a ausência de toda captura conceitual do fazer, é o efeito de uma construção que tem despojado a técnica da crença, na qual a solução da dificuldade nasce do mero respeito pelo procedimento e da inscrição na dogmática em que este se apoia, para instalar, pelo contrário, no seu lugar uma espécie de bricolagem. Por isso, com o
“saber se virar”, se atribui uma significação eminente ao contingente, que significa simultaneamente uma disposição ao possível e não somente ao necessário. Porém, tudo isso está condicionado no caso do ser falante ao reconhecimento do fracasso inapelável presente em todo esforço para fazer a relação sexual real.
Dessa maneira, fica claro o radical antagonismo que existe entre o pragmatismo lacaniano e o “vale tudo”, uma premissa da época;
também que o “saber se virar” com o sintoma, em Lacan, é alheio a qualquer convite à resignação, forma do pragmatismo cristão.
Cabe então lembrar a tese de Nietzsche, invocada por Agamben,4 segundo a qual há duas formas de ser contemporâneo: uma marcada pela a fascinação com os
brilhos da época e a outra caracterizada por ser “aquele que não coincide perfeitamente com ele [com seu tempo] nem se adapta a suas pretensões, e é por isso, nesse sentido, não atual; porém, justamente por isso, justamente por meio dessa diferença e desse anacronismo, ele é capaz mais que os demais de perceber e entender seu tempo”.
Tradução: Maria Angela Maia
4 Para reconhecer elementos centrais da genealogía do conceito de pragmatismo, assim como, de outros aspectos da relação psicanálise-pragmatismo, ver “Un pragmatismo real” de Leonardo Gorostiza, em Dispar nº 3, Revista de Filosofía y Psicoanálisis del Instituto Clínico de Buenos Aires, ano 2001; na revista Opção Lacaniana nº 38, dezembro de 2003; ou na web de NEL-Medellín, http://www.nel- medellin.org/template.php?sec=Textos- online&file=Textos-online/Textos/Un- pragmatismo-real.html
4 Miller, J.-A., “Uma fantasia”.
Comandatuba, 2004. Cf.
http://www.congresoamp.com/es/template.p hp?file=Textos/Conferencia-de-Jacques- Alain-Miller-en-Comandatuba.html
4 Miller diz que, como Lacan sublinhou, se trata de uma “delicada diferença”, e para mostrar a perspectiva divergente desses termos, em Lacan, ele esclarece que trata de dois termos janos. Cf. Miller, J.-A. y Laurent, E. El Otro que no existe y sus comités de ética, lição XXI de 11 de junho de 1997 (na edição em espanhol de Paidós, Argentina, 2005, pp. 440-445, capítulo “El modelo y la excepción”).
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4 Agamben, G. “¿Qué es lo
contemporáneo?”. Em
http://salonkritik.net/08-
09/2008/12/que_es_lo_contemporaneo_gi orgi.php