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PALAVRAS E COISAS SOBRE UM PRIMEIRO CINEMA

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Academic year: 2021

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MISCELÁNEOS | MISCELÂNEOS | DIVERS

Fermentario N. 9, Vol. 2 (2015)

ISSN 1688 6151

Instituto de Educación, Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad de la República. www.fhuce.edu.uy

Faculdade de Educação, UNICAMP. www.fe.unicamp.br

Centre d'Études sur l'Actuel et le Quotidien, Sorbonne. www.ceaq-sorbonne.org

PALAVRAS E COISAS SOBRE UM PRIMEIRO CINEMA

Marcelo Vicentin1

Resumo: Foucault em As palavras e as coisas (1966/2007) se propôs a problematizar as rupturas no modo de pensar e na produção de saberes da cultura ocidental e europeia a partir do século XVI. Para tanto, não recorreu à história das ideias ou das ciências, mas ao conceito de episteme: uma procura pelas condições e configurações das possibilidades que permitiram determinados saberes se sobreporem e se validarem em relação a outros, a fim de observar como se instituiu o sujeito moderno. Por similitudes, procurei contrapor as epistemes Clássica e Moderna com os primeiros anos daquilo que hoje chamamos de Cinema, de seu nascimento oficial, em 1895, até o final das duas primeiras décadas do século XX, objetivando observar circunstâncias de uma episteme presente no discurso cinematográfico.

Palavras-chave: cinema, episteme, representação.

Abstract: Foucault in The order of things: an archaeology of the human sciences (1966/2007) set out to discuss disruptions in thinking and in the production of knowledge of Western and European culture from the sixteenth century. To do so, did not appeal to the history of ideas or of science, but the concept of episteme: a search for the conditions and settings of the possibilities that allowed certain knowledge overlap and validate in relation to others, in order to observe how instituted the subject modern. By similarities, tried to counter the Classical and Modern epistemes with the early years of what we now call Cinema, its official birth in 1895 until the end of the first two decades of the twentieth century, aiming to observe circumstances present of episteme in speech movie.

Keywords: cinema, episteme, representation.

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PALAVRAS E COISAS SOBRE UM PRIMEIRO CINEMA

O cinema implantou-se de tal modo em nossos costumes, em nossa existência, que já não sabemos se as dores são verdadeiras e as alegrias reais ou se elas não são apenas uma encenação espreitada pela objetiva (anônimo, Fantasio, 1914). O cinema é um ladrão e um fazedor de truques: ele nos rouba nossas emoções verdadeiras e as substitui por seus afetos artificiais, que ele faz passar tão bem por verídicos que nossa própria vida é atingida e transformada.

(AUMONT, 2008, p. 18)

ARGUMENTO

O cinema emerge na Modernidade e em seus primeiros movimentos ainda não é compreendido como arte; é apenas uma tecnologia do seu tempo, uma máquina, tal qual a outras máquinas surgidas com a Revolução Industrial. Para Foucault, a emergência de uma nova episteme, com novas positividades e possibilidades de saber, está ligada a condições que desenvolvam, que propiciem um solo epistemológico fértil para novas ciências. Assim, por analogias entre o pensamento foucaultiano presente em As palavras e as coisas e os primeiros anos do que conhecemos hoje como Cinema, aproximando por similitudes o conceito de representação da episteme clássica ao cinema de Edison, Lumiére, Meliés, Porter. Em outros fotogramas, procuro por similitudes entre a episteme moderna e o cinema dos anos 10 e 20 do século XX: da linearidade de Griffith à sua oposição pelas vanguardas europeias e russa; a consolidação da linguagem cinematográfica, plausível de compreensão pelo público, bem como a compreensão da obra cinematográfica como arte - a sétima como se convencionou chamar.

Nessa película, do aparecimento da máquina cinematográfica ao seu aprimoramento tecnológico e da construção de uma linguagem própria, o cinema proporcionou mudanças a si e a própria Modernidade, e, desse modo, esse roteiro de As palavras e as coisas cruzará com os primeiros trinta, trinta e cinco anos do cinema: de sua emergência até o início do ocaso daquilo que se convencionou chamar de cinema mudo.

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PRIMEIROS QUADROS

Em As palavras e as coisas, Foucault observa rupturas no modo de pensar e na produção de saberes da cultura ocidental e europeia a partir do século XVI, reconstruindo “o percurso da linguagem tal como foi falada; dos seres naturais, tais como foram percebidos e reunidos; das trocas, tais como foram praticadas” (FOUCAULT, 2007, p. XVIII), indicando a emergência de saberes produzidos pela sociedade da época. Para tanto, não recorrerá à história das ideias ou das ciências, mas sim ao conceito de episteme.

A epistémê onde os conhecimentos encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou as suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade; (...) o que deve parecer são, no espaço do saber, as configurações que deram lugar às formas diversas do conhecimento empírico. Mais que uma história no sentido tradicional da palavra, trata-se de uma arqueologia. (FOUCAULT, 2007, p. XVIII-XIX)

O cinema não emergiu como hoje o conhecemos; apareceu como uma curiosidade científica, produto de um momento da civilização ocidental moderna, que criou condições para sua emergência por meio de um conjunto de manifestações científicas muito anteriores ao seu aparecimento. Da lanterna chinesa aos estudos de Newton sobre a persistência da retina, as experiências de Reynaud, Niepce, Dagerre, Maddox, Muybridge, Marey, Demeny; a patente do kinestoscópio por Edison (1891); estão presentes no cinematógrafo dos Irmãos Lumièré (1894).

Esse solo científico produziu possibilidades técnicas para outro solo, o artístico, emergisse, visto que, de acordo Salles Gomes, “o aparecimento do cinema na Europa Ocidental e na América do Norte na segunda metade dos anos 90 (século XIX) foi o sinal de que a Primeira Revolução Industrial estava na véspera de se estender ao campo do entretenimento” (apud MOURA, 1987, p. 12). Esse saber científico possibilitou condições de fazer brotar aquilo que hoje conhecemos como Cinema.

O cinema surgiu fora da arte, como uma curiosidade científica, uma diversão popular e também como uma mídia (um meio de exploração do mundo); entretanto foi rapidamente reivindicado como arte (e até mesmo, de modo notável, a primeira arte inventada) e como medium (um meio de criação). (AUMONT, 2008, p. 13)

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CENAS CLÁSSICAS

Para Foucault, a episteme clássica emerge como contraponto à episteme renascentista, ao barroco (século XVII). Nesse momento, as palavras, assim como as ciências naturais e a história da riqueza assumiram a mise-en-scène de um novo sistema de saber, que emergiu de um solo epistemológico que Foucault denominou de clássico. Essa episteme percorrerá parte do século XVII e todo o século XVIII, e não mais as semelhanças e similitudes organizarão as positividades e os saberes, mas as noções de representação, medida e ordem.

(...) a epistémê da cultura ocidental se acha modificada em suas disposições fundamentais. E em particular o domínio empírico em que o homem do século XVI via ainda estabelecerem-se os parentescos, as semelhanças e as afinidades e em que se entrecruzavam sem fim a linguagem e as coisas – todo esse campo imenso vai assumir uma configuração nova. Podemos se quisermos, designá-lo pelo nome de “racionalismo”; podemos se não tivermos na cabeça senão conceitos prontos, dizer que o século XVII marca o desaparecimento das velhas crenças supersticiosas ou mágicas e a entrada, enfim, da natureza na ordem científica. (FOUCAULT, 2007, p. 75)

Os estudos de Marey (cronofotógrafo) e Muybridge (pioneiro em instantâneos separados, no movimento de homens e animais) auxiliaram no surgimento daquilo que hoje conhecemos como Cinema, porém eram estudos que observavam imagens congeladas, imagens fixas, gerando uma sequência de registros que permitiam estudar, a partir da imobilização, detalhes do movimento. Esse “enquadrar” do movimento para estudá-lo, compreendê-lo e nomeá-lo nas suas menores partes, aproxima-se aos princípios taxionômicos propostos por Lineu para a história natural, uma herborização do pensamento e do método rousseriano, positivo e racional. Um método de classificações, a taxionomia consiste em “enquadrar” e “imobilizar” a natureza.

Em contraponto aos saberes e histórias presentes até o século XVII, na episteme renascentista a história natural pôde - pelas transformações da linguagem e dos signos, e pela representação - se dizer, se nomear e ordenar a natureza. Desse modo, passou a narrar o que observava e não o que já estava posto; a palavra descrevia e representava o observado: “a idade clássica confere à história um sentido totalmente diferente: o de pousar pela primeira vez um olhar minucioso sobre as coisas e de transcrever, em seguida, o que ele recolhe em palavras lisas, neutralizadas e fiéis” (FOUCAULT, 2007, p. 179). Nesse momento, a linguagem se rearticulou para comportar a história natural; sem espaço para uma afirmação da

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linguagem sobre o observado, ela apenas, e, irrefutavelmente, serviu de orientação e significação à representação.

A fotografia não mais comportava todos os desejos do homem do século XIX, pois a imagem imóvel não comportava o movimento. A isso a ciência respondeu com a busca pela reprodução do movimento, talvez como mais um meio para comportar a vida. A data de 28 de dezembro de 1895 marca simbolicamente essa possibilidade. Simbólica, porque alguns historiadores indicam projeções públicas na Alemanha e nos Estados Unidos anteriores as projeções individuais do kinestoscópio de Edison – patenteado em 1891 – e do cinematógrafo dos Irmãos Lumière, aceito como o marco inicial. As primeiras imagens em movimento, capturadas e projetadas pelos Lumière - da saída dos operários da fábrica (La Sortier des Usines Lumière à Lyon, 1985), à comédia L’Arrouser Arrosé (1895), passando pela chegada de um trem a estação (L”Arrivée d’Un Train à La Ciotat, 1985) - foram filmes curtos, nada mais que um minuto, que se esgotavam em um único “plano” ou “quadro”.

Nesse primeiro momento/movimento do cinema, que alguns historiadores denominam de primeiro cinema, tudo acontece em frente ao dispositivo inventado pelos Lumière, sempre parado, fixo, posicionado para captar, enquadrar o que se mover dentro do espaço de campo da lente. Ao reproduzi-los nas salas escuras, temos as representações desses quadros. Em A Chegada de um trem à estação, sequência de 50 segundos, o público tinha a sensação de que o trem sairia pela tela sobre eles. A representação da representação presente na episteme clássica, que segundo Foucault (2007, p. 89):

(...) o signo é uma representação duplicada e reduplicada sobre si mesma. Uma ideia pode ser signo de outra não somente porque entre elas pode estabelecer-se um liame de representação, mas porque essa representação pode sempre se representar no interior da ideia que representa. Ou ainda porque, em sua essência própria, a representação é sempre perpendicular a si mesma: é, ao mesmo tempo, indicação e aparecer; relação a um objeto e manifestação de si. A partir da idade clássica, o signo é a representatividade da representação enquanto ela é representável.

Em contraponto a esses primeiros filmes “documentais”, emergem filmes que adaptaram conhecidas obras literárias e teatrais para o cinema. Essas filmagens eram parecidas com quadros teatrais, pois a câmera, em posição fixa, nunca se movia, apenas enquadrando o que acontecia à sua frente, com os atores e objetos movimentando-se, deslocando-se como em um teatro: uma perspectiva natural para um espectador sentado na plateia, com o olho apenas percebendo as imagens que se movimentam à sua frente, igualmente ao olhar da câmera.

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Essa câmera ainda se mantém estática, enquadrando apenas ao que está ao alcance do campo da lente, como um espectador na plateia, conquanto o cinema começa a desenvolver-se e modificar-se à procura de sua própria linguagem: o uso da montagem de cenas, os filmes de George Méliès, com trucagens e movimentos de aproximação e distanciamento (travellings), de Edwin S. Porter, com a entrada e saída de cena dos atores, o uso de imagens em “primeiro plano”, como no filme O Grande Roubo do Trem (The Great Train Robbery, 1903) que termina com a imagem de um bandido, em primeiro plano, apontando uma arma e atirando em direção à plateia. Essa imagem pode ser comparada ao quadro As Meninas, analisado por Foucault.

Talvez haja, neste quadro de Velásquez, como que a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa dispersão que ela reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial e imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que funda – daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ele não passa de semelhança. Esse sujeito mesmo – que é o mesmo – foi elidido. E livre, enfim dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação. (2007, p.12)

Durante os anos 10 e 20 do século XX, o Cinema não parou de evoluir. Desenvolveu-se como linguagem, como técnica e como negócio. Os primeiros cinemas fixos (nickelodeons) substituíram as feiras como locais de exibição; a burguesia começou a frequentar as salas de exibição e histórias que atendessem a esse público começaram a surgir. Estava preparado o terreno para que brotasse uma nova arte, a sétima, com uma linguagem autônoma e particular. A idade clássica do cinema, assim como a episteme foucaultiana, é um contínuo do ser, uma extensão das representações humanas. Representar é a necessidade de nomear os signos e sobre eles manter um controle e ordenação.

Para Foucault, a episteme clássica “se aloja nas relações entre o nome e a ordem: descobrir uma nomenclatura que fosse uma taxionomia, ou ainda instaurar um sistema de signos que fosse transparente à continuidade do ser” (2007, p. 287). O momento clássico procurou observar àquilo que lhe fora permitido, iluminado, clarificado. A Modernidade, que o sucedeu, constituiu sua episteme em brechas e buracos à sombra da luz: a interpretação.

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UM FILME MODERNO

O cinema é mais que uma máquina, mas traz em sua natureza um maquinismo intrínseco que a maior parte das artes ignora. A evolução desse maquinismo, o dispositivo cinematográfico propriamente, é estruturalmente limitada, avançando através dos tempos dentro de um leque fechado. Gira em torno de uma máquina central, em sua amplitude essencialmente mesma: a câmera. Mais do que máquina condenada pela visão evolucionista, o cinema é estilo que vária em máquinas de tecnologia diversa. Entre as variáveis históricas desse estilo, encontramos aquilo que torna o cinema singular, a sua mise-en-scène: articulação de imagens e sons em planos, sequências, unidades-filmes; articulação do movimento de objetos/corpos (expressão e encenação) em imagem; recorte desse quadro imagem, e de seu espaço fora-de-campo, pelo olho da câmera (enquadramento e luz). (AUMONT, 2008, p. 8.)

O final do século XVIII marca o surgimento de uma nova episteme, a Modernidade, que reorganizou o pensamento e os saberes humanos, e contrariamente à clássica, instaurou-se não por uma nova ciência ou por uma nova manifestação literária, visto que a isso antecedem situações das quais são frutos. A episteme clássica esteve na ordem da representação das coisas através de regras que ordenavam, passo a passo, uma sequência lógica para sua existência; agora, na nova ordem que se instaura, cabe à interpretação substituir a representação: “O ser mesmo do que é representado vai cair agora, cair fora da própria representação” (FOUCAULT, 2007, p. 330).

A episteme moderna baseia-se na tríade: vida, trabalho e linguagem, em oposição à história natural, à análise das riquezas e à gramática geral. O pensamento moderno, “uma claridade, ainda pálida” (FOUCAULT, 2007, p. 344), aprofunda-se por regiões cobertas de sombras, porões em que a luz clássica nunca alcançara. A luz da representação clássica foi substituída por outras relações de saber. Essa nova tríade trata “de modos fundamentais do saber que suportam em sua unidade, sem fissura, a correlação segunda e derivada de ciências e de técnicas novas com objetos inéditos” (FOUCAULT, 2007, p. 347).

Uma episteme moderna do cinema emerge quando esse se torna um meio de expressão dotado de linguagem própria, logo arte. No cinema, a linguagem começa pelo plano, como observa Merten (1995, p. 6), um plano é:

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Determinado pela distância da câmera daquilo que está sendo filmado. Um plano pode ser próximo, muito próximo, ou pode ser distante, muito distante. O espectador não se dá conta, mas essas diferentes distâncias é que fazem evoluir a história que está sendo contada. E o movimento é fundamental: sem a sucessão rítmica das imagens, o movimento coordenado que se baseia na montagem, não teríamos o fenômeno chamado cinema. O filme seria uma sucessão de quadros fixos, de fotografias.

O desenvolvimento da linguagem, por meio do uso de planos diferenciados e da montagem, aqui representado pelos filmes de D. W. Griffith e das vanguardas europeias e russa, são marcos que possibilitaram a categorização do cinema como arte, e, como tal, permitiram visionar esse momento como outro momento do cinema, sua modernidade; momento em que se submerge a clássica representação pela representação para tornar-se, segundo Aumont (2007), espelho do mundo e do espírito humano (pois o espelho não tem interesse e quase não têm existência sem uma corpo que se mire nele).

É a linguagem que encerra determinantemente o ciclo clássico do qual irrompe a Modernidade, pois as palavras “só existiam pelo valor representativo que detinham, bem como pelo poder de análise, de reduplicação, de composição e de ordenação que se lhes reconhecia em relação às coisas representadas” (FOUCAULT, 2008. p. 386). A linguagem não mais será dada à representação das coisas, mas a uma forma até hoje dispersa, pela sua multiplicidade. A Modernidade colocou a linguagem no centro da cena, da discussão, em um retorno a si mesma, tendo como foco a própria linguagem.

Esse jogo permitiu que ela questionasse a si própria e ao homem, e ao fazê-lo surgiu o homem no pensamento moderno, visto que no pensamento clássico o homem ainda não existia, era uma peça no jogo das representações, mera imagem ou reflexo, tratado como gênero ou espécie, pelas necessidades ou desejos, memória e invenção, não produto de uma “consciência epistemológica do homem como tal” (FOUCAULT, 2008, p. 425).

A linguagem clássica foi a do discurso da representação, do nomear, do ordenar em quadros e sequências, gerando marcas de identificação “que nomeia, que recorta, que combina, que articula e desarticula as coisas, tornando-as visíveis na transparência da palavra” (Op. cit., p. 428). Como consequência dessa disposição da linguagem “como discurso comum da representação e das coisas, como lugar em cujo interior natureza e natureza humana se entrecruzam” (Op. cit., p. 429), havia a impossibilidade da existência de uma ciência de questionamento do homem por ela própria.

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Nas duas primeiras décadas do século XX, o cinema encontrou sua linguagem particular, possibilitando a libertação e o distanciamento da rigidez da representação e de quadros anteriores. Segundo Fernão Pessoa Ramos (apud AUMONT, p. 9), “para ser moderno, o cinema [precisou] (como é próprio de todo ser moderno) ter densidade para olhar a si mesmo, e não ao lado”. Para contar uma história por meio de técnicas cinematográficas, o cinema precisava olhar e discutir a si próprio, fato possibilitado pela assimilação do espectador a determinadas circunstâncias próprias ao cinema, um processo de descoberta lento e cheio de contradições. Primeiramente por Griffith, em filmes como O Nascimento de Uma Nação, 1914, e Intolerância, 1915, que condensam todo o trabalho desenvolvido pelo diretor a partir de 1908, na busca de um melhor modelo de linearização: a superação de um “quadro fixo primitivo”, em que a ação se desenrola somente dentro dos seus limites, não incorporando o espaço fora do campo de visão do espectador, logo da câmera como significante; o uso do “plano americano” trazendo as emoções das personagens para mais próxima dos espectadores, proporcionando ao cinema a textura dos dramas humanos. O trabalho de Griffith, segundo Machado:

Conduzira à instituição dos princípios fundamentais da continuidade, responsáveis pela codificação dos sinais de orientação (direção de olhares que se cruzam de um plano a outro, identidade de direção entre a saída de um campo e a entrada em outro etc.) que permitirão aos fragmentos colarem-se uns aos outros da forma menos ruidosa possível, sugerindo um fluir contínuo e natural da ação. (1997, p. 45)

Para além de Griffith, as vanguardas ao se apresentarem como contraponto ao processo linear griffithiano, investiram na inserção da representação da própria Modernidade e do progresso humano, transpondo para a linguagem cinematográfica o movimento, a velocidade dos grandes centros urbanos com seus automóveis e indústrias; as descobertas científicas do século, como o inconsciente; os processos políticos para uma nova sociedade: seja socialista, capitalista ou fascista. O trabalho de Sergei Eisenstein foi representativo desse momento, em filmes como A Greve, 1924, O Encouraçado Potemkin, 1925, Outubro, 1927, por apresentar uma proposta de ruptura com a linearidade através dos recursos da montagem cinematográfica, relativizando as normas proposta por Griffith, que para Machado (1997) irromperam com o fluxo “natural” dos acontecimentos, introduzindo novos elementos à narrativa, desarticulando sua continuidade, produzindo novos sentidos no espectador pela produção de metáforas, tornando-o ativo na interpretação do filme. Segundo Aumont:

É nos anos de 1910 e 1920, depois de uma breve fase de “primitivismo” que o cinema toma realmente forma: um “primeiro” cinema, mudo depois falado,

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procurando em várias vias seus próprios meios de expressão. Ora, do futurismo ao surrealismo, é precisamente a época daquilo que atualmente só chamamos de vanguardas históricas. As vanguardas cinematográficas, sejam elas pictóricas (...), ideológicas (...), cinegráficas (...), cenográficas (...) ou outras (...), não são evidentemente, a margem do cinema (...). Elas são o sintoma maciço da adaptação, brutal, difícil e caótica às condições da Modernidade (p. 27-8).

Para Foucault as contraciências – psicanálise, etnologia e linguística –, estão sempre a lembrar-nos que os limites do homem se constroem na representação da Modernidade, pelo indivíduo ou pelo grupo, na simetria de significações de uma cultura. A psicanálise e a etnologia por meio do inconsciente dos indivíduos, das culturas e da própria história, possibilitam observar “os problemas mais gerais que se podem levantar a propósito do homem” (FOUCAULT, 2007, p. 526); a linguística fez surgir através do discurso “as formas-limites das ciências humanas” (Op. cit., p. 528) e, ao lado psicanálise e da etnologia, o fez pelo inconsciente e pela historicidade. De modo particular, a linguística permitiu a estruturação dos próprios discursos, a ascensão das coisas à existência na medida em que pode formar os elementos de um sistema significante, restabelecendo as relações das ciências humanas com a questão do ser da linguagem.

(...) este “retorno” da linguagem não tem em nossa cultura valor de interrupção súbita; não é a descoberta irruptiva de uma evidência há muito escondida; não é a marca de uma dobra do pensamento sobre si mesmo, no movimento pelo qual ele se liberta de todo conteúdo, nem de narcisismo da literatura, liberando-se enfim do que ela teria a dizer para não mais falar senão do fato de que ela é linguagem posta a nu. De fato trata-se aí do desdobramento rigoroso da cultura ocidental, segundo a necessidade que ela atribuiu a si própria no início do século XIX. (FOUCAULT, 2007. p. 532)

Ao saber humano são colocadas diversas positividades e o homem objeto de saber “não é o mais velho problema nem o mais constante que se tenha colocado ao saber humano.” (Op. cit., p. 536). O que a episteme moderna trouxe, em um movimento arqueológico, foi o aparecimento, na Modernidade, de um homem, duplo, consciente e inconsciente, finito, que da mesma forma que surgiu pode vir a desaparecer.

Não seria antes preciso renunciar a pensar o homem, ou, para ser mais rigoroso, pensar mais de perto este desaparecimento do homem – e o solo de possibilidades de todas as ciências do homem – na sua correlação com nossa preocupação com a linguagem? Não se deve admitir que, estando a linguagem novamente aí, o homem retornará àquela inexistência serena em que outrora mantivera a unidade imperiosa do discurso? (FOUCAULT, 2007, p. 535)

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Um primeiro cinema, um modo de fazer e ser do cinema, como o homem na episteme moderna, desapareceu tragado pelo redemoinho da técnica do cinema sonoro, que não foi uma novidade, visto que desde o “primeiro cinema” se procurava ajustar som e imagem, sem contanto conseguir a perfeição almejada. Esse momento, o sonoro, serviu para consolidar o sistema hollywoodiano, baseado na linearidade de Griffith em detrimento às vanguardas. O cinema mudo pouco duraria após a incorporação definitiva do som à imagem. Muitos diretores e atores importantes do cinema mudo se opuseram ao uso do som, mas foram sobrepujados por algo característico à Modernidade, em que as máquinas estão destinadas a envelhecerem e serem suplantadas por novas máquinas.

Cabe lembrar que seus criadores, não lhe davam uma vida longa: “se tivesse dependido do juízo crítico a seu respeito, o cinema não teria sobrevivido por muito tempo” (RÉMY DE GOURMONT apud AUMONT, 2008, p. 16). Mas o cinema, como o homem é regido por duplos: indústria-arte, consciente-inconsciente. Parte resistiu e se reinventou; a máquina continua a mesma, apenas a arte se reinventa e permanece viva. “Do cinematógrafo ao cinema, o que se atualiza é, portanto, a passagem de uma técnica a uma arte moderna, imediata e inteiramente moderna” (AUMONT, 2008, p. 23).

REFERÊNCIAS

AUMONT, Jacques. Moderno? Porque o cinema se tornou a mais singular das artes. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. Campinas, SP: Papirus, 2008.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. 9ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 2007.

MACHADO, Arlindo. Os primórdios do cinema 1895-1926. São Paulo, Agência Observatório, 1997.

MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: um zapping de Lumière a Tarantino. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.

MOURA, Roberto. A bela época (primórdios-1912). in: História do cinema brasileiro. Org. Fernão Ramos. São Paulo, Art Editora, 1987.

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