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"Somos todos um" = vida e imanência no movimento comunitário alternativo

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Academic year: 2021

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Rodrigo Iamarino Caravita

“Somos todos um”: vida e imanência no movimento

comunitário alternativo

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Rodrigo Iamarino Caravita

“Somos todos um”: vida e imanência no movimento

comunitário alternativo

Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de mestre em Antropologia Social.

Ronaldo Rômulo Machado de Almeida

Este exemplar corresponde à versão final da tese defendida pelo aluno, e orientada pelo Prof. Dr. Ronaldo Rômulo Machado de Almeida.

__________________________

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA POR

CECÍLIA MARIA JORGE NICOLAU – CRB8/3387 – BIBLIOTECA DO IFCH UNICAMP

Informação para Biblioteca Digital

Título em Inglês: “We are one”: life and immanence in the alternative

communities movement Palavras-chave em inglês: Alternatives communities Spirituality Environmentalism Anthropology Environment

Área de concentração: Antropologia Social

Titulação: Mestre em Antropologia Social

Banca examinadora:

Ronaldo Romulo Machado de Almeida [Orientador]

Carlos Alberto Steil

Maria Suely Kofes

Data da defesa: 30-03-2012

Programa de Pós-Graduação: Antropologia Social

Caravita, Rodrigo I., 1983-

C176s “Somos todos um”: vida e imanência no movimento

comunitário alternativo / Rodrigo Iamarino Caravita. - - Campinas, SP : [s. n.], 2012.

Orientador: Ronaldo Romulo Machado de Almeida. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Comunidades alternativas. 2. Espiritualidade. 3. Ambientalismo. 4. Antropologia. 5. Meio ambiente. I. Almeida, Ronald Romulo Machado de,1966- II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas. III.Título.

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A

GRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço às pessoas com as quais me relacionei durante a pesquisa, pessoas que muito me ensinaram e que, sem dúvida, poderiam ser vistas como coautoras desta dissertação. Sem a paciência e a compreensão destes sujeitos nada disso seria possível.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Ronaldo R. M. Almeida, por aceitar o desafio de mergulharmos juntos em um tema pouco explorado, seja pela antropologia da religião, seja pela antropologia social, seja pela antropologia brasileira. Agradeço pelos inúmeros debates, pela orientação intelectual, pelo cuidado teórico e também pelas partidas de futebol de quarta-feira.

A toda a minha turma de mestrado, com a qual pude participar de aulas e debates desafiadores. Em especial, agradeço a amiga Flávia Slompo, pelas horas de conversa, amizade e cumplicidade teórica; ao Rafael Cremonini Barbosa, pela imensa amizade; a Mayra Vergotti Ferrigno, por todo apoio; ao Thiago Novaes, por ter insistido na relevância do pensamento de Gabriel Tarde, e por ter sempre plantado uma semente de inquietação em todos os debates.

Agradeço a outros amigos especiais que foram fundamentais nas horas de descontração. Por todas as cervejas, escaladas, partidas de futebol e conversas: Olivia Janequine, Camila Midori, Natalie Rios, Hugo Ciavatta, Rodrigo Sampaio Primo e Rafael Barreiro Chaves.

Ao CNPq, pelo financiamento da pesquisa.

Aos meus pais, por acreditarem e apoiarem, incondicionalmente.

A todos os professores do departamento de antropologia, pelas aulas e dedicação.

Por fim, a Elisa Costa, companheira fundamental na fase final de elaboração da dissertação, por toda a paciência, amor, carinho e força.

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Num dia excessivamente nítido,

Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito Para nele não trabalhar nada,

Entrevi, como uma estrada por entre as árvores, O que talvez seja o Grande Segredo,

Aquele Grande Mistério do que os poetas falsos falam.

Vi que não há Natureza, Que Natureza não existe, Que há montes, vales, planícies, Que há árvores, flores, ervas, Que há rios e pedras,

Mas que não há um todo a que isso pertença, Que um conjunto real e verdadeiro

É uma doença das nossas ideias.

A Natureza é partes sem um todo. Isto é talvez o tal mistério de que falam.

Foi isto o que sem pensar nem parar, Acertei que devia ser a verdade

Que todos andam a achar e que não acham, E que só eu, porque a não fui achar, achei.

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R

ESUMO

Esta dissertação busca, por meio do estudo etnográfico de uma ecovila na Argentina, de um centro espiritual em Minas Gerais e do Encontro Nacional de Comunidades Alternativas (ENCA), compreender a concepção de vida no chamado movimento comunitário alternativo que se constitui, entre outras coisas, pela diluição da noção de indivíduo. Para tanto, a análise problematiza duas dimensões centrais para compreender tal diluição, o meio ambiente e a espiritualidade. O argumento desta dissertação é que a concepção de vida, imanente a todos os seres (naturais e espirituais), leva não somente à dissolução do indivíduo como também resulta no rompimento dos divisores: natureza e cultura; corpo, mente e espírito; teoria e prática; ciência e espiritualidade.

Palavras-chave: Comunidades alternativas, Espiritualidade, Ambientalismo, Antropologia,

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A

BSTRACT

This thesis is an effort at understanding the notion of “life” in the alternative communities movement through the study of three cases: an ecovillage in Argentina, a spiritual center in Minas Gerais, Brazil and the National Alternative Communities Meeting (Encontro Nacional de Comunidades Alternativas - ENCA), also in Brazil. Our main line of analysis is built around the idea that such notion of life is constituted, among other things, by the dilution of the notion of individual. The study discusses two central aspects of this dilution: the environment and the spirituality. The argument here is that the idea of life as immanent to all beings (natural and spiritual) leads not only to the dilution of the individual, but also to the disruption of divides such as nature and culture; body, mind and spirit; theory and practice; and science and spirituality.

Keywords: Alternative communities, Spirituality, Environmentalism, Anthropology,

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S

UMÁRIO

Capítulo I: O Encontro Nacional de Comunidades Alternativas (ENCA) e sua história...1

1. Antes do encontro...1

2. História do encontro...7

2.1. O Fórum Social Mundial, o ENCA e a Aldeia da Paz...16

2.2. O BusOm Ganesha...19

3. Possíveis mitos de origem...21

4. Distintos tipos de comunidade...31

5. Conexões parciais e multiplicidade ontológica – diversidade e unidade no movimento...39

Capítulo II: Um antropólogo no encontro...59

1. A estrutura do encontro...59

2. Pessoas e preceitos do encontro...71

3. Bases teóricas e metodológicas...87

4. O pós encontro...100

Capítulo III: A questão ambiental...109

1. Política e meio ambiente...109

2. Meio ambiente e conhecimento...126

3. A ecologia da mente no movimento alternativo...138

4. A busca de modelos mais ecológicos...153

Capítulo IV: Espiritualidades pungentes – o devir religioso...171

1. O indivíduo, a comunidade e o mundo que habitam...171

2. Polivíduos, multivíduos e divíduos – processos de individuação ...191

3. Religião e espiritualidades...200

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C

APÍTULO

I: O E

NCONTRO

N

ACIONAL

DE

C

OMUNIDADES

A

LTERNATIVAS

(ENCA)

E

SUA

HISTÓRIA

A grande revolução foi a liberdade. A verdade de Sartre de que somos livres para inventar a nós mesmos foi posta em prática. Houve uma contestação da maneira de viver vigente, uma subversão de valores. E a gente se divertiu muito! Luiz Carlos Maciel

1. Antes do encontro

Quando ouvi falar pela primeira vez do Encontro Nacional de Comunidades Alternativas (ENCA), estava no meu primeiro ano de graduação, começando a me interessar por esta temática. Só viria a conhecer e participar de tais encontros, porém, alguns anos mais tarde, já com a intenção de estudar o assunto para um possível projeto de mestrado. É evidente que todo o pesquisador tem alguma afinidade com os temas pesquisados e não pretendo aqui me aprofundar muito nestas questões. Creio que esta problemática entre pesquisador e pesquisados, sujeito e objeto, etnografia e teoria antropológica já tenha sido suficientemente trabalhada por outros autores (DELEUZE, 2003; FAVRET-SAADA, 2005; LATOUR, 1994, 2000; VIVEIROS DE CASTRO, 2002a; DAMATTA, 1974; PEIRANO, 1999; WAGNER, 2010). Assumindo deste já o meu

interesse por esses temas, interesses que ultrapassam os acadêmicos (ainda que aqui eu pretenda tratar das questões relevantes para a antropologia, e não para a minha trajetória pessoal) sinto-me profundamente identificado com estas palavras de Favret-Saada (2005):

no começo, não parei de oscilar entre esses dois obstáculos: se eu “participasse”, o trabalho de campo se tornaria uma aventura pessoal, isto é, o contrário de um trabalho; mas se tentasse “observar”, quer

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dizer, manter-me à distância, não acharia nada para “observar”. No primeiro caso, meu projeto de conhecimento estava ameaçado, no segundo, arruinado (p. 157).

Ingressei no mestrado com a intenção de estudar Figueira, um centro espiritual fundado em 1987, em Carmo da Cachoeira, pelo líder espiritual Trigueirinho. Fiz uma primeira visita ao local em 2009. Passei apenas três dias em Figueira, depois de pesquisar bastante sobre o local e ler muito sobre Trigueirinho. Conversei com as pessoas responsáveis pelas visitas, sobre o meu desejo de fazer uma pesquisa em antropologia sobre a comunidade1, sobre a

espiritualidade que lá era experienciada, e sobre este movimento espiritual2 mais amplo,

que não se restringe somente a Figueira, mas abarca comunidades em outros países, grupos de estudo que se espalham por muitos lugares na América (Estados Unidos, Argentina, Equador, Peru, Bolívia) e em alguns locais na Europa.

Quando comecei a intensificar os contatos senti alguma resistência para realizar a pesquisa. E, quando finalmente, em fevereiro de 2010, propus passar um tempo maior lá, recebi uma resposta negativa. “Não era de interesse de Figueira que alguém os estudasse com visões científicas” – foi a resposta recebida. O estudo, lá, deveria ser um estudo interno, com fins somente espirituais. Todo o conhecimento sobre Figueira era publicado oficialmente por uma editora própria, a Irdin. Se eu quisesse passar um tempo lá, não na condição de pesquisador, eu seria bem-vindo, mas eles não me queriam como pesquisador, pois, segundo eles, um estudo feito dentro dos padrões científicos nunca poderia chegar a plena compreensão dos ensinamentos de Figueira, e eles preferiam se resguardar destes tipos de estudos e pesquisas. As pessoas deveriam se sentir “profundamente tocadas”, deveriam estar ali somente por “questões espirituais”.

Em um primeiro momento achei que poderia argumentar a favor da antropologia, a favor de um estudo que iria falar dos assuntos abordados em Figueira de uma maneira distinta. Mas, esquecia-me assim das ideias de Roy Wagner (2010, 1986):

1 É bom salientar que eles não se consideram uma comunidade, por motivos que explicarei no decorrer do texto, mas esta era minha primeira visão sobre Figueira.

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“todos somos antropólogos”. A antropologia se dá nesta relação (pesquisador e pesquisados), ou melhor, através da diferença evidenciada pela relação, nos desentendimentos, e na invenção que cada um faz de si próprio e do outro. Como disse Gordon (2004): “não há entendimento antropológico que não seja imediatamente uma relação entre duas 'entidades' equivalentes: a 'cultura' do nativo e a 'cultura' do antropólogo” (sem página). Aceitar esta posição de Figueira seria então aceitar que a antropologia não pode ter uma vantagem sobre os nativos. De acordo com Gordon (s.d.), em outro texto,

o que Wagner e Strathern defendem é, em última instância, a recusa da vantagem epistemológica que a antropologia costuma ter sobre seus nativos, vantagem esta garantida por uma ontologia naturalista que supõe a universalidade da “natureza”, da “matéria” ou do “real” como garantia de uma diversidade da “cultura”, do “espírito” ou do

“símbolo”. Eles recusam a transcendência absoluta da antropologia em relação aos seus “objetos”. Daí sua antropologia ser imanentista (“Manifesto do Nada”, sem página)3.

Ideias semelhantes estão presentes no “Nativo Relativo” de Eduardo Viveiros de Castro, e também na “Invenção da Cultura” de Roy Wagner. O que Gordon faz em seu texto, que é interessante, é aproximar Strathern e Wagner através do conceito de antropologia imanentista: “de fato, acho que a grande diferença disto que chamei de 'antropologia imanentista' (…) em face da antropologia pós-moderna é uma nova elaboração do conceito de relação” (ibidem). No “Nativo Relativo”, por exemplo, podemos encontrar:

assim, o tipo de trabalho que advogo aqui não é, nem um estudo de “mentalidade primitiva” (supondo que tal noção ainda tenha um sentido), nem uma análise dos “processos cognitivos” indígenas (supondo que estes sejam acessíveis, no presente estado do

conhecimento psicológico e etnográfico). Meu objeto é menos o modo de pensar indígena que os objetos desse pensar, o mundo possível que seus conceitos projetam. Não se trata, tampouco, de reduzir a

3 Um trabalho inicialmente autorado por Flávio Gordon, uma página na wiki do projeto Amazone, que é um projeto do Núcleo de Transformações Indígenas, grupo de pesquisa do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenado por Eduardo Viveiros de Castro.

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antropologia a uma série de ensaios etnossociológicos sobre visões de mundo. Primeiro, porque não há mundo pronto para ser visto, um mundo antes da visão, ou antes, da divisão entre o visível (ou pensável) e o invisível (ou pressuposto) que institui o horizonte de um

pensamento. Segundo, porque tomar as ideias como conceitos é recusar sua explicação em termos da noção transcendente de contexto

(ecológico, econômico, político etc.), em favor da noção imanente de problema, de campo problemático onde as ideias estão implicadas. Não se trata, por fim, de propor uma interpretação do pensamento

ameríndio, mas de realizar uma experimentação com ele, e portanto com o nosso (VIVEIROSDE CASTRO, op. cit., p. 123).

ou ainda...

ou, como diria Deleuze: não se trata de afirmar a relatividade do verdadeiro, mas sim a verdade do relativo. É digno de nota que Wagner associe a noção de relação à de ponto de vista (os termos relacionados são pontos de vista), e que essa ideia de uma verdade do relativo defina justamente o que Deleuze chama de "perspectivismo". Pois o

perspectivismo – o de Leibniz e Nietzsche como o dos Tukano ou Juruna – não é um relativismo, isto é, afirmação de uma relatividade do verdadeiro, mas um relacionalismo, pelo qual se afirma que a verdade do relativo é a relação (ibid., p. 129).

E, em Wagner:

a combinação dessas duas implicações da ideia de cultura – o fato de que nós mesmos pertencemos a uma cultura (objetividade relativa), e o de que devemos supor que todas as culturas são equivalentes

(relatividade cultural) – leva a uma proposição geral concernente ao estudo da cultura. Como sugere a repetição da raiz “relativo”, a compreensão de uma outra cultura envolve a relação entre duas variedades do fenômeno humano; ela visa a criação de uma relação intelectual entre elas, uma compreensão que inclua ambas. A ideia de “relação” é importante aqui, pois é mais apropriada à conciliação de duas entidades ou pontos de vista equivalentes do que noções como “análise” ou “exame”, com suas pretensões de objetividade absoluta. (WAGNER, 2010, p. 29).

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Em todos estes autores, portanto, o que está presente é uma anterioridade da relação. Nas palavras de Viveiros de Castro, “a verdade do relativo é a relação”. Wagner, ao defender a ideia de conciliação de pontos de vista distintos mas equivalentes, vai absolutamente contra a ideia de uma objetividade absoluta. Para o antropólogo, a realidade se cria a partir da relação estabelecida entre as partes. A realidade é a relação. No conceito de indivíduo de Strathern (“microcosmo de relações sociais”) há também uma anterioridade da relação frente as partes, e obviamente frente ao todo, se é que se pode dizer que existe um todo. É isto que Gordon define como uma antropologia imanentista, uma antropologia que parte antes da relação, ou até mesmo, nas palavras do próprio autor, “do nada”, já que a relação será construída em pesquisa de campo (ela não existe a priori).

As pessoas de Figueira defendiam, portanto, o direito de se auto representarem, e não apenas serem representadas a partir da visão do antropólogo, que estaria no poder de agenciar estas diferenças. Gordon enfatiza bem este ponto, valendo-se de conceitos de Deleuze e Guattari (1991):

mas se a antropologia tem algum papel a desempenhar , este deve ser o de promover uma política ontológica . Sentemos à mesa de negociação com “nossos” nativos , pois eles estão fartos de representar um mundo pronto para ser representado. Uma política ontológica exige que paremos de nos colocar em posição de conceder aos outros o direito da representação e passemos a traçar “planos de imanência” (cf. Deleuze e Guattari) em conjunto com nossos interlocutores.

Na negociação com os interlocutores em Figueira a sentença estava dada. Apesar do relacionamento e do contato não ser possível em Figueira, a relação (antropólogo – nativo) existia, e por esta razão não abandonei totalmente os estudos sobre o local. Mas, ainda naquela época, pretendia realizar uma pesquisa nos moldes clássicos, com um observação participante. Necessitava encontrar outros lugares para este objetivo, para cumprir uma imersão mais profunda em campo. Passado o momento inicial de angústia por ter “perdido” meu “objeto” de estudo, compreendi o argumento deles, compreendi que eles buscavam este “direito” de representarem o mundo tal qual compreendiam. Poderia estudá-los através dos seus escritos, mas não através de uma experiência de vida no local que tivesse como objetivo

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último promover um estudo do modo de vida de Figueira ao invés de querer viver aquele modelo, que propunha justamente abandonar paradigmas científicos que guiavam o “mundo ocidental moderno”. Existia também, neste discurso nativo, uma crítica a antropologia, ao conhecimento científico objetificado, e a todo o modelo cartesiano de conhecimento. Restava-me aceitar esta condição e entendê-los como produtores de um modelo que poderia ser chamado de “a cultura deles”. Tal qual Roy Wagner, deveria entendê-los também como produtores de modelos de conhecimento: “se assumirmos que todo ser humano é um 'antropólogo', um inventor de cultura, segue-se que todas as pessoas necessitam de um conjunto de convenções compartilhadas (...) para comunicar e compreender suas experiências” (WAGNER, op. cit., p. 76). Sendo assim, deveria buscar

compreender quais eram estas convenções criadas e compartilhadas, que evidentemente não eram as mesmas que as minhas.

Na busca por outros locais, o ENCA apareceu como uma possibilidade para encontrar alguma comunidade, além de se revelar uma excelente maneira para adentrar neste “universo” das comunidades alternativas. São encontros que agrupam pessoas que vivem em comunidades no Brasil, e são geralmente realizados em alguma comunidade, ou alguma terra rural que ainda não se tornou uma comunidade, no qual centenas de pessoas ficam acampadas, por 10, 15 dias, “compartilhando experiências”, trocando conhecimentos, oferecendo oficinas de yoga, culinária, construção, hortas. Uma diversidade de costumes distintos se agrupam: pessoas que “vivem de luz”4, xamãs, daimistas, rastafáris, vegetarianos

e muitos outros. Participei de dois encontros, o de 2009 e o de 2010, que servirão como base empírica para esta dissertação. Além disso, também realizei uma pequena imersão em uma ecovila na argentina, chamada Gaia, que será apresentada e relatada adiante.

4 Um grupo de pessoas que acredita que o ser humano é capaz de viver sem a necessidade do alimento físico, material. Adiante também explorarei mais este e os outros modos de vida.

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2. História do encontro

No início da década de 1970 o movimento hippie chegava com força ao Brasil. Diversas comunidades alternativas, sobretudo no planalto central, começavam a aparecer. Surgiram jornais como o “Comum Unidade” e a “Ordem do Universo”, e ocorriam diversos ciclos de palestras e encontros, como o movimento dos “Médicos Pés Descalços”, liderado pelo doutor Márcio Bontempo. Nas comunidades as pessoas se dedicavam a estudar sobre filosofia oriental, terapias alternativas de cura, artesanato, música e arte. Tudo acompanhado de muito esoterismo e misticismo5, partes essenciais do movimento hippie, sobretudo no Brasil.

As informações sobre o encontro foram recolhidas de depoimentos de pessoas, palestras assistidas por mim durante os encontros, listas de internet e algumas páginas de internet nas quais se pode achar uma ou outra informação. Um trabalho que começou antes mesmo do clássico período de imersão em campo e continuou depois (continua até a escrita desta dissertação e continuará ainda depois dela, provavelmente – o que tem muito a ver com a metodologia AND [actor-network-theory] que será brevemente abordada mais adiante).

Estas comunidades, historicamente, se formataram de diversas maneiras. Algumas estavam voltadas para práticas espirituais, além de ministrarem cursos neste sentido, como é o caso da Ecovila Taoísta Viver Simples, localizada em Itamonte, sul de Minas Gerais; ou então a ecovila Visão Futuro, localizada em Porongaba, interior de São Paulo. Outras estavam ligadas às práticas permaculturais, como é o caso do Instituto Bicho do Mato, localizado em Pernambuco, ou então do IPEMA (Instituto de Permacultura e Ecovilas da Mata Atlântica). Nem todas estas comunidades estão representadas (ou se sentem representadas) no ENCA, ainda que as pessoas que frequentem o ENCA já tenham frequentado muitas destas comunidades. Há algumas divergências no “meio comunitário” no Brasil, mas, mesmo assim, o ENCA é o encontro onde se pode encontrar o maior número

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de comunidades e pessoas envolvidas com o movimento comunitário alternativo6 no Brasil.

Ainda que as diferenças entre uma ou outra comunidade sejam grandes, pode-se dizer que a grande maioria está alinhada com alguns preceitos básicos: vida simples e sustentável, busca de uma cultura de paz, busca de uma realização do ser.

De acordo com as palavras do Oberom7, o ENCA:

tem como objetivo o encontro de uma família, a família do Amor, da Paz, da Luz, da Felicidade, um encontro que visa a cura planetária através de um trabalho de ressonância, de um pulsar da energia libertadora e transmutadora. A família se encontra para trocar suas experiências (físicas, emocionais, mentais e espirituais), manter acesa a chama da esperança e manter mais íntima a vivência do presente.

O primeiro encontro ocorreu em 1978, ainda sem nome, numa sede do movimento antroposófico em Gravataí, Rio grande do Sul. No mesmo ano aconteceu outro encontro, em Minas Gerais. O organizador destes primeiros encontros era Ede Muller, fundador de uma das primeiras comunidades alternativas que se tem conhecimento no Brasil, a Comunicampo, fundada em Nobres, Mato Grosso, no ano de 1975, onde se realizou o terceiro encontro, em 1979.

Em 1980, o encontro ganha um nome, o Encontro de Comunidades Rurais. Ele ocorreu no Rio de Janeiro, e de lá surgiu a ideia do Projeto Rumo ao Sol. As pessoas desejavam montar uma grande comunidade no Planalto Central, para fortalecer o laço entre as pessoas e o movimento comunitário insurgente no Brasil. Conta-se que um casal encontrou uma fazenda de esperantistas no Planalto Central, que estudavam ufologia, e em

6 É importante ressaltar que este é um termo nativo, os agentes se autodenominam também ora como movimento alternativo, e ora como movimento comunitário alternativo. Tentarei colocar os termos êmicos em destaque, itálico, neste texto. Alguns destes conceitos podem aparecer de uma forma analítica também. Preferi o destaque em itálico para evitar o uso das aspas – que já possui um uso amplo e ambíguo, já que ora quer demonstrar o que foi dito por outros e ora quer evidenciar àquilo que não foi dito, um desentendimento entre o signo e o significante. Para evitar tal confusão preferi o uso do itálico. Os itálicos podem aparecer também nos estrangeirismos.

7 Oberom é um dos líderes jovens do Encontro, adepto da alimentação prânica também viaja o Brasil oferecendo palestras e oficinas sobre o processo que ficou conhecido como viver de luz.

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poucos dias 40 pessoas foram morar nesta fazenda, a Bona Espero, um projeto que existia desde 1960, como uma instituição de ensino para crianças carentes. Nascia aí o que viria a ser o maior polo da cultura alternativa no Brasil, a cidade de Alto Paraíso, em Goiás, que hoje agrupa diversas comunidades e pessoas do movimento místico, esotérico e alternativo brasileiro.

Em 1981, Leal Carvalho e Thomas se conheceram no encontro e formaram o grupo Udiyana Bandha, que existe até hoje e faz apresentações em festivais de cultura alternativa (como o FICA), além de participarem, quase todos os anos, dos ENCAs. No encontro de 1982 decidiu-se criar uma instituição legal que representasse as comunidades e as protegesse. Um grupo foi encarregado de fundar a ABRASCA (Associação Brasileira de Comunidades Alternativas), com sede em São Lourenço. O ano de 1983 contou com a presença de Swami Tilak, um mestre hinduísta, inclusive mestre e mentor de Ede Muller. Neste ano foi decidido abandonar as manifestações com álcool nos encontros, que ganhou um novo nome: Encontro Nacional das Comunidades Alternativas, o ENCA, com amparo legal da ABRASCA.

O ENCA de 1984 contou com inúmeras oficinas. As questões em pauta na época eram: medicina alternativa e alimentação natural e integral. Pessoas de renome foram “contratadas” para oferecer palestras e oficinas. Em 1985, houve uma grande divulgação do encontro, que seria realizado numa fazenda bem estruturada do movimento pela consciência de Krishna, a fazenda Nova Gokula, em Pindamonhagaba, São Paulo. Conta-se que 3.000 pessoas participaram daquele encontro, transformando-o em um grande festival, com a participação de alguns famosos, como Fernando Gabeira e o Professor José Hermógenes de Andrade Filho (famoso instrutor e professor de yoga).

Nos anos de 1986 e 1987 o encontro ocorreu mais afastado de grandes centros urbanos, com menos divulgação e a presença de menos pessoas. É comum escutar que estes encontros menores, mais afastados, guardam a verdadeira essência do que deve ser o ENCA: aproximar as pessoas que estão experimentando uma vida em comunidade. Desde o início do encontro há esta ideia de comunidade, como algo superior (sic) a sociedade. Uma tríade interessante para análise se forma: indivíduo-comunidade-sociedade. Os encontros

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começam a revesar momentos de mais e menos introspecção. Em 1988, o encontro voltava para perto de grandes polos urbanos, o 12º encontro contou com cerca de 1.000 participantes, na comunidade Holocósmica, em Pouso Alto, Serra da Mantiqueira, Minas Gerais.

O ano de 1990 foi o ano do primeiro Festival de Cultura Alternativa (FICA). Estes festivais tinham a intenção de ser mais abertos, para divulgar a cultura alternativa àqueles “leigos” no assunto. Já, dos ENCAs deveriam participar pessoas que estavam mais sintonizadas com a proposta do movimento – uma maneira de resguardar o encontro como um lugar mais reservado, ao mesmo tempo que os festivais permitiriam a expansão de um novo tipo de mundo que era proposto.

Em 1991, o encontro foi documentado em um vídeo, o “Tao do Encontro”, e ele começava a ser mais organizado, em especial através dos pré-encas, realizados algum tempo antes (um mês, duas semanas) com menos pessoas, coordenadas por focalizadores, para preparar o local do encontro. Neste ano também começou-se a utilizar o termo Comunidades Aquarianas, comunidades de cunho mais espiritualista e menos político, por assim dizer. As comunidades alternativas, em grande parte oriundas do movimento hippie8, fundadas no

Brasil, em sua maioria, por alguns estrangeiros, guardavam um ar mais político – um desejo de transformação da sociedade atual, através do exemplo prático. Seria possível viver sem o uso de dinheiro, carros, geladeiras e outros luxos da industrialização e da sociedade de consumo. Algumas destas comunidades (as chamadas aquarianas) foram mais a fundo na vocação espiritualista que acompanhava o movimento hippie, espiritualidades orientais (ou uma filosofia oriental, ou religiões orientais, como se preferir – já que estes termos são difíceis de serem delineados9) entravam em cena com grande força. Apostava-se mais na

transformação interna das pessoas do que na transformação política da sociedade.

8 Hippie pode ser visto tanto como um conceito êmico quanto um estrangeirismo, neste e demais casos. 9 Para maiores detalhes sobre esta questão de religião oriental e filosofia oriental, ver o prefácio de Jung

no livro de Evans-Wentz (1968). Esta item também será tratado breve mente no próximo capítulo e seguintes.

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Os anos noventa foram marcados por uma grande expansão do movimento, festivais começavam a ser realizados com mais frequência e no ano de 1993 a emissora SBT tentou se infiltrar para documentar o encontro. Alguns eram a favor da divulgação em meios midiáticos, enquanto outros pensavam existir um grande risco do movimento ser distorcido e mal compreendido pela mídia e pelas pessoas. No final, o encontro não foi gravado. A vocação espiritualista continuava em alta, inclusive Ede Muller, um dos fundadores, teria dito que o ENCA deveria ter esta vocação “mais espiritualista e menos anárquica”. Esta vocação incentivava encontros menores, menos divulgados, “mais reservados”. O ENCA de 1997 foi o último encontro que contou com Ede Muller na organização do encontro, e contou também com a primeira doação de terra para a ABRASCA, uma terra em Pedra Negra, Minas Gerais, doada por Kal Venturi, que até hoje participa dos encontros.

No ano de 1998 surgiu o “kiuni”, uma espécie de ENCA regional, que não tinha um caráter nacional, mas que permitia que o movimento ficasse mais coeso. Com vários pré-encas, uma estrutura muito boa foi montada para o encontro de 1998, na Serra da Mantiqueira. Este ENCA também contou com a presença de uma tribo guarani, semelhantemente ao ENCA de 1996, que contou com a presença de duas tribos guaranis. Em 1999, o encontro se realizou no sul do Brasil. Foi neste encontro que a revista Trip tirou fotos, sem permissão, mostrando os banhos nus e relatando (de forma sensacionalista, ao que parece) o uso de drogas no encontro. Foi também neste ano que o pessoal das Doze Tribos compareceu pela primeira vez ao encontro, além da Caravana Arco-íris. Surgia a ideia de um novo nome para o encontro, o Encontro Nacional da Comunidade Arco-íris10.

10 O íris é também um símbolo constante do movimento, representando a diversidade. O mesmo arco-íris de movimentos a favor da diversidade sexual.

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Figura 1 – fotos do encontro tiradas pela revista Trip Fonte: revista Trip, setembro de 1999.

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Figura 2 – mais fotos do encontro publicadas pela revista Trip Fonte: revista Trip, setembro de 1999.

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Doze Tribos11 é uma comunidade mundial que existe em muitos países do mundo, fundada

em 1970 nos EUA, de caráter cristão. Eles não serão estudados aqui, mas cabe citá-los pra demonstrar as conexões possíveis e até onde a rede do movimento comunitário alternativo pode se estender. Eles se autodenominam a “comunidade de Israel”. De acordo com o site das Doze Tribos do Brasil:

somos membros de uma nova sociedade. Um tipo diferente de

sociedade onde ninguém é desprezado ou pouco importante, ninguém anda na solidão ou é indesejado. Os fortes não são exaltados e os fracos não são explorados. Não há rico nem pobre. O amor mora aqui.

A Caravana do Arco-Íris pela paz foi criada em 1996 pelo mexicano Alberto Ruz, e tinha a intenção de descer até a Terra do Fogo, extremo sul da Patagônia, com a ideia de absorver e apoiar a diversidade cultural, promovendo a arte. Conheci algumas pessoas que integraram a Caravana, pessoas que passavam um, dois anos viajando e depois voltavam para seus afazeres. Apenas Alberto é um integrante que continua na Caravana, desde o início. A caravana é considerada uma “ecovila móvel internacional”. Eles viajam sempre com dois ou até três ônibus e, parando em várias cidades, tentam fazer apresentações voltadas para a arte e oferecendo oficinas de bioconstrução e permacultura. Em 2006, a caravana recebeu um apoio do Ministério da Cultura do Brasil, sendo selecionada para o programa “cultura viva” com o objetivo de visitar, conhecer e registrar as atividades dos “pontos de cultura”12

do Brasil. Nesta longa jornada a Caravana compareceu em diversos ENCAs e permanece na estrada até os dias de hoje.

No início do século XXI, o movimento começou a ganhar ares internacionais. Um encontro internacional deveria ocorrer no Brasil, o 3º Rainbow, fruto de um movimento americano que é considerado o mais antigo encontro de comunidades alternativas do mundo, o Rainbow Gathering. Nesta época, as pessoas, mundialmente, já se chamavam de

11 Um colega de mestrado, Aldo, está fazendo uma pesquisa justamente sobre a comunidade das Doze Tribos no Paraná.

12 Outro programa do Ministério da Cultura, que visa incentivar e descentralizar a produção cultural no país.

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família arco-íris, e reconheciam a origem hippie do movimento, ligado ao movimento contracultural dos EUA da década de 60. Em 2003, aconteceu também o primeiro encontro da Rede de Arte Planetária, na Patagônia Argentina. Este encontro contou também com a participação de muitas regionais da ABRASCA, e o movimento começava a aparecer mais integrado, sobretudo na América Latina. Em 2003, foi realizado o Rainbow no Brasil, na Chapada Diamantina, depois de difíceis acordos com o governo do Brasil para permitir que o encontro acontecesse dentro do Parque. Mais Rainbows regionais na América Latina foram realizados a partir de então. Na mesma época surgia também o Fórum Social Mundial, uma alternativa ao Fórum Econômico que acontecia todo o ano na Suiça, que reunia grandes potências mundiais. Ao contrário do Fórum de Davos, o Fórum Social pretende reunir países “subdesenvolvidos” e diversos movimentos sociais: MST, movimento anti-globalização – e diversos outros da chamada “esquerda” mundial. Uma das maiores “aldeias” do Acampamento da Juventude, a Aldeia da Paz, tem forte influência dos acampamentos realizados nos ENCAs. A estrutura é muito parecida e conta com uma cozinha para servir refeição vegetariana, uma fogueira central, contribuição livre e consciente. As temáticas tratadas nas palestras descentralizadas também são muito semelhantes ao ENCA: cultura de paz, sustentabilidade, saúde integral e espiritualidade ecumênica.

No ano de 2008 ocorreu o fatídico ENCA no Gamarra, sul de Minas Gerais, relembrado quase que mitologicamente nos encontros posteriores. Ao contrário do que acordado em encontros anteriores, o ENCA foi divulgado na internet e cerca de 1.300 pessoas compareceram ao encontro, cerca de 80% pela primeira vez. Conta-se que foi um encontro muito disperso e com diversos problemas. Pessoas bêbadas, uma exploração muito grande do comércio, além de muitas pessoas interessadas em coisas que faziam parte do encontro mas nunca foram o foco principal: as drogas, sobretudo. É importante lembrar que uma das premissas do encontro é a economia solidária, e o comércio é, de certa forma, não incentivado, sendo outras formas de troca preferíveis a tradicional troca com dinheiro. Os ENCAS seguintes contaram com a minha participação direta, e estão detalhados com mais precisão ao longo de todo o texto. Diversas vezes nestes dois encontros que participei ouvi as

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pessoas falarem da experiência traumática que foi o ENCA de 2008. Ao mesmo tempo o encontro foi uma experiência marcante, contribuindo para que os próximos encontros se realizassem de outra forma, e contribuindo, uma vez mais (como já aconteceu em outros encontros, como o caso da revista Trip) para que estas pessoas se resguardassem, e reavaliassem as intenções do movimento.

2.1. O Fórum Social Mundial, o ENCA e a Aldeia da Paz

De acordo com o site do Fórum Social Mundial, o FSM é um

espaço de debate democrático de ideias, aprofundamento da reflexão, formulação de propostas, troca de experiências e articulação de movimentos sociais, redes, ONGs e outras organizações da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo.

O FSM também se define como um processo articulado entre estes agentes que estão nesta luta contra o imperialismo. Estes agentes são movimentos sociais, organizações, indivíduos, redes não partidárias etc.. De acordo com Thomaz Enlazador, um dos líderes do movimento alternativo no Brasil, responsável pelo Ecocentro Bicho do Mato13, localizado em Recife, o

FSM se “caracteriza pela pluralidade e pela diversidade, tendo um caráter não confessional, não governamental e não partidário”. E mais, “ele se propõe a facilitar a articulação, de forma descentralizada e em rede, de entidades e movimentos engajados em ações concretas, do nível local ao internacional, pela construção de um outro mundo”. O slogan superconhecido do encontro é “um outro mundo é possível”.

Um dos movimentos que toma forma durante os fóruns sociais é o movimento hoje conhecido como altermundista. De acordo com Löwy (2007), “el movimiento altermundista es, sin duda, el fenómeno más importante de resistencia antisistémica a comienzos del siglo XXI” (p. 42). O termo altermundismo surge como uma oposição ao termo

13 Uma espécie de ecovila focada em cursos para a educação ambiental, focada principalmente em permacultura e bioconstrução.

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anti-globalização, em voga depois da Ação Global dos Povos, um movimento ocorrido em 1999, com focos em Colônia, Alemanha, durante o encontro do Fundo Monetário Internacional (FMI) e em Seatle, EUA, durante o encontro da Organização Mundial do Comércio (OMC). Este movimento contra o sistema capitalista formou uma espécie mobilização global contracultural, agrupando diversos movimentos que estavam contra o modelo econômico em voga: antimilitaristas, católicos progressistas, ambientalistas, feministas, sindicalistas etc.

Com base no slogan do FSM (“um outro mundo é possível”), anos mais tarde, surgiu o termo altermundismo, proposto pela Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos (Attac), uma das estidades que apoiou a criação do Fórum Social Mundial, desde a primeira edição, em 2001, no Brasil. Ainda de acordo com Löwy,

amplia red descentralizada, el movimiento altermundista es múltiple, diverso y heterogéneo; asocia a sindicatos obreros y movimientos campesinos; ONGs y organizaciones indígenas; movimientos feministas y asociaciones ecologistas; intelectuales y jóvenes activistas. Lejos de constituir una debilidad, su pluralidad es la fuente de su fortaleza, crecimiento y expansión (ibidem).

Segundo o autor, esta luta contra o neoliberalismo, tem influências e ligações com diversos movimentos sociais: o Exército Zapatista de Liberação Nacional, no México, o MST, a rede francesa campesina internacional Via Campesina entre outros. A Bandeira da Paz, um dos símbolos do movimento, propõe justamente a junção desta pluralidade: ela significa a união entre ciência, arte e espiritualidade, dentro do círculo da cultura. É evidente que o Fórum Social Mundial e o movimento altermundista como um todo são movimentos muito mais amplos que os ENCAs e o movimento da cultura alternativa, no Brasil. Porém, desde 2005, as temáticas sobretudo ambientais e espirituais defendidas por estes últimos agentes, tomam corpo e forma também através do FSM. De acordo com Thomaz, a Aldeia da Paz é um

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ponto dinâmico de integração dos movimentos dentro da dinâmica da práxis vivencial orgânica, onde nesse “Espaço-Tempo” uma grande Aldeia emergiu, mostrando as práticas da Reconstrução Biosférica baseadas na Espiritualidade Ecumênica, Auto-gestão Comunitária dos acampados e na Permacultura.

Embora mais amplo, o FSM tem este mesmo caráter do ENCA: temporal e transitório; além de comportar-se de espécie semelhante, como uma ampla “rede descentralizada”, nebulosa, múltipla e heterogênea. Isto demonstra como esta rede está dispersa, encontrando-se em diversos espaços-tempos14, e fazendo parte também de um movimento mais global e

genérico. Estima-se que em 2005 mais de 10.000 pessoas transitaram pela Aldeia da Paz no FSM. Encontrá-la não era difícil, bastava buscar pelas dezenas de Bandeiras da Paz.

Figura 3 – foto da Bandeira de Paz ao lado da Bandeira Arco-íris

Fonte: foto por Mariana Freitas, retirada no Flickr, sobre a licença Creative Commons.

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Outro símbolo marcante daquele FSM foi a Padaria Cooperativa, um ponto de alimentação na Aldeia da Paz, trabalhando sob a política da economia solidária e organizada pela Caravana BusOm Ganesha, que também é uma Caravana “filha” do ENCA.

Por fim, a associação entres estes movimentos de cunho mais político, como o FSM, e o movimento alternativo tem uma intenção muito clara, por parte dos “alternativos”. A ideia é, em termos nativos, como ouvi tantas vezes, “politizar os processos espirituais e espiritualizar os processos políticos”. A Bandeira da Paz é o símbolo por excelência desta ideia. E este misto excêntrico de vários movimentos, cosmologias e culturas (para usar apenas algumas das categorias êmicas utilizadas) trás um complicante a mais para a pesquisa, ao mesmo tempo em que trás à tona a necessidade de “cortar esta rede” (ver

STRATHERN, 1996) – há o risco eminente de se perder na infinidade de termos de um

movimento que pretende manter esta diversidade:

otro valor importante para el altermundismo es la diversidad. El nuevo mundo con el que sueña el movimiento no tiene nada que ver con un universo homogéneo en el que todos se deben a un único modelo. Nosotros queremos, decían los neozapatistas, “un mundo en el que quepan muchos mundos”. La pluralidad de lenguas, de culturas, de músicas, de alimentos y de formas de vida es una riqueza inmensa que hay que saber cultivar. Estos valores no definen un paradigma de sociedad para el futuro. Simplemente dan pistas, aperturas, ventanas hacia lo posible. El camino hacia la utopía aún no ha sido

completamente trazado; sus caminantes lo trazarán (LÖWI, op. cit., p. 47).

2.2. O BusOm Ganesha

O BusOm Ganesha é uma caravana aos moldes da Caravana Arco-Íris pela Paz, de cunho nacional e em proporções menores. Foi criado em 2004 com a intenção de percorrer o Brasil com um projeto social itinerante, atuando nas áreas de educação ambiental e educação artística.

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Tanto a Caravana pela Paz quanto o BusOm Ganesha tiveram participações importantes nos FSM e nos ENCAs, demonstrando como as pessoas estão circulando por diversos ambientes, na tentativa de divulgar a cultura de paz. O BusOm esteve presente, além do FSM de 2005, no Brasil, no Fórum seguinte, realizado na Venezuela, depois de viajar muitos quilômetros. Recebeu inclusive uma ajuda do governo Venezuelano. O Fórum de 2009 contaria com a participação de cinco países latino-americanos interligados: Brasil, Venezuela, Equador, Bolívia e Paraguai. NA época os presidentes dos cinco países se reuniram em um encontro histórico, falando sobre as perspectivas sociais para a América Latina. Estes países, dentro do movimento alternativo, já estavam associados de uma forma menos explícita há muitos anos. A Caravana pela Paz, fundada no México, contava com o apoio do Ministério da Cultura do Brasil, o BusOm Ganesha recebeu ajuda do governo venezuelano em 2006, por exemplo. A ajuda para estes projetos de cunho social e cultural chega de muitos setores, tanto da sociedade civil organizada como do próprio governo, em especial, dos governos com ares mais “democráticos” que surgiram em muitos países da América Latina depois da era das ditaduras militares.

Após o FSM de 2006, o BusOm fez uma parada em um projeto de ecovila no Amazonas, onde foram convidados para permanecer e ajudar por quatro meses. Alguns deixaram a caravana e outros permaneceram, com a ideia de formar uma comunidade itinerante, nômade, viajando pelo Brasil com o intuito de divulgar os ideais e preceitos da cultura alternativa. Foi também em 2006, no Enca, que um acidente ocorreu com o ônibus da Caravana. Um integrante da Caravana adormeceu com uma vela acesa e todo o ônibus foi consumido pelo fogo. Muitos objetos pessoais foram perdidos, materiais como DVDs e instrumentos musicais, além de todo o ônibus ter sido destruído. Por sorte ninguém morreu e anos depois um outro ônibus foi obtido.

No encontro de 2010, o BusOm Ganesha estava presente, oferecendo oficinas sobre bioconstrução e permacultura, além de ser um ponto de encontro e também uma cozinha descentralizada do ENCA. Aldeia da Paz, Caravana Arco-Íris, BusOm Ganesha – todos estes são “espaços-tempos” criados dentro do “movimento alternativo”, não só no Brasil, mas na América Latina, com influências que vão deste o movimento zapatista mexicano até a

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liga campesina francesa, valendo-se de ajudas da sociedade civil, governos e organizações não governamentais, com a intenção de pensar um novo modelo mundial, contra o capitalismo, contra o neo liberalismo e a favor da diversidade cultural. Temas que, desde o início, pareceram-me muito rico para o estudo antropológico, porém, maior do que a capacidade e a possibilidade de pesquisa no mestrado. Como então focar alguns problemas essenciais, tanto para a antropologia como para o movimento, sem perder de vista esta enorme diversidade que é, por todos e a todo momento, enfatizada?

3. Possíveis mitos de origem

Turner (1974) já identificara os movimentos religiosos milenaristas como uma das “mais extraordinárias manifestações de communitas” (p. 136). Outro exemplo de communitas aludido por Turner é o da “geração beat”. Ele cita como Allen Ginsberg influenciou esta geração de hippies, que estavam preocupados em defender a liberdade, sobretudo sexual. Para Turner, “a communitas pertence ao momento atual”, enquanto “a estrutura está enraigada no passado e se estende para o futuro pela linguagem, a lei e os costumes” (ibid., p. 138). Penso, no caso atual, ser possível ir mais além destas definições de Turner. Líderes destes movimentos não concordariam com tais afirmações de temporalidade, e da quase impossibilidade de transformação da estrutura, quando o que quase todos estão buscando é construir um novo modelo de mundo: novo modelo de economia, de relações sociais, de relações sexuais etc15.

Porque há entre as comunidades um desejo de construção de novos modelos de mundo é que uso o termo “movimento” para designar a temática estudada, ainda que, muitas vezes, não seja possível encontrar um movimento político ou social organizado. Este

15 Estou me baseando, aqui, apenas no no livro “O processo ritual” de Victor Turner. Talvez os seus estudos posteriores, em especial, “Dramas, campos e metáforas”, fosse mais propício para estudar este

movimento mais rizomático e menos anti-estrutural, na minha visão. Ao invés disso, preferi ir diretamente a autores como Bateson, Ingold e Deleuze (numa visão mais pós-estruturalista, ou até mesmo pós-social).

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“movimento” se organiza como uma rede, com seus rizomas e linhas de fuga, como pretendo demonstrar. Isto é, diferentemente do Fórum Social Mundial, não há nenhum plano estruturado de transformação da sociedade e dos modelos vigentes. Diz-se, antes, que são mudanças interiores que refletirão, cedo ou tarde, uma grande transformação do mundo – mas também não se pode entender tal afirmação como uma espécie de ascetismo passivo, como também tentarei demonstrar.

Não é sem motivo que muitos citam Canudos como o primeiro exemplo de uma comunidade que inspiraria, mais tarde, as comunidades alternativas e o movimento como um todo. Entre outros exemplos citados pelos nativos pode-se encontrar: comunidades indígenas, missões jesuítas como a República dos Guaranis e outras comunidades messiânicas. Todas estas, de alguma forma, de acordo com o discurso nativo, inspiraram o movimento atual. Muitos citam também as comunidades intencionais como os primeiros exemplos reais de comunidades alternativas. Comunidades rurais fundadas nos anos 60, que sofreram influência da cultura hippie americana, influenciada por sua vez pelo movimento beat. No Brasil, Canudos aparece, no discurso, como um exemplo mais longínquo de primeira comunidade intencional.

O termo “comunidade intencional” vem se popularizando no movimento deste os anos 90, e é designado para rotular diferentes tipos de comunidades, com intenções e objetivos muitas vezes bastante distintos, mas que possuem algumas características em comum, como tomadas de decisões totalmente democráticas (todos votam em todas as decisões que envolvem a comunidade), divisão social do trabalho feita de forma democrática e muitas vezes em um sistema rotativo. De acordo com o site americano “Fellowship for Intentional Community”:

communities come in all shapes and sizes, and share many similar challenges – such as defining membership, succeeding financially, distributing resources, making decisions, raising children, dividing work equitably, and choosing a standard of living. (…) Intentional communities are often aware of themselves as different from mainstream culture, and many choose to highlight these differences. Yet, virtually all communities share a common root value of

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São diversos os tipos de comunidade que podem ser agrupadas segundo este rótulo: ecovilas, comunidades espirituais, comunidades alternativas, co-housing communities16,

entre outros. Este trabalho busca entender não a definição de cada tipo de comunidade, tão pouco fazer a análise comparada de comunidades distintas, mas compreender as “conexões parciais” (cf. STRATHERN, 2004) que unem distintos tipos de comunidades. Conexões não

apenas estatuais e intencionais, mas também do dia a dia das comunidades, do movimento, dos rizomas.

Para além desta definição abrangente das comunidades, há também a definição do movimento. E, especialmente no Brasil, este definição é bastante evidente: trata-se do movimento comunitário alternativo. Ainda que eu esteja chamando tal “grupo” (como eles mesmos se chamam, algumas vezes, porque não há unidade nas denominações) como “movimento alternativo”, muito do que se pode encontrar neste movimento foi estudado por Leila Amaral (2000) sob a temática da Nova Era. Para a autora: “trata-se, assim, de um fenômeno heterogêneo e não se apresenta como um movimento organizado” (p. 15). Ela cita algumas raízes para o movimento: a contracultura americana; filosofias holistas; o ocultismo e o esoterismo do século XIX e o encontro deste com as religiões orientais, populares e indígenas; o discurso ecológico de sacralização da natureza; e a reinterpretação yuppie destes elementos (p. 16). De certa forma, todas estas características são influências diretas de pensadores e escritores da geração beat: Allen Ginsberg, Jack Kerouac influenciado por antigos pensadores naturalistas como Henry Thoreau e também por Jean-Jacques Rousseau. O livro Walden17, de Thoreau, é quase um clássico para “os alternativos”.

Fui para os bosques viver de livre vontade, Para sugar todo o tutano da vida…

Para aniquilar tudo o que não era vida,

E para, quando morrer, não descobrir que não vivi!

16 De acordo com o mesmo site: “cohousing usually refers to communities structured as small

neighborhoods where each household has its own small, fully featured home and the community shares a large common house”.

17 Neste livro, Thoreau conta a experiência de se retirar da sociedade para viver uma vida simples no campo, isolado, sem contar com recursos externos e buscando ser autossuficiente.

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Leila Amaral ressalta algumas origens não remotas do fenômeno da Nova Era. Muitas sociedades, de cunho esotérico e influenciadas por filosofias orientais foram fundadas nos finais do século XIX, nos EUA. Estas sociedades viriam a influenciar a geração beat, e mais tarde, nos anos 70, estas influências foram englobadas pelo termo Nova Era (p. 21 – 24). A autora também considera que a Nova Era é a semente das comunidades alternativas. Naquela época, e ainda hoje: “o movimento não apresentava (…) um líder ou organização central” (ibid., p. 29). A influência de autores de cunho anárquico é central para compreender esta característica – Thoreau (já citado) e muitos outros: Kropotkin, Tolstói, Hakim Bey, entre outros.

Para Turner, as distintas estruturas analisadas como communitas guardam uma semelhança entre si: “são pessoas ou princípios que se situam nos interstícios da estrutura social, estão à margem dela, ou ocupam degraus mais baixos” (TURNER, op. cit., p. 152). Linhas

antes, o antropólogo britânico cita alguns movimentos que podem ser analisados como communitas, como “os vagabundos do dharma” – livro famoso de Jack Kerouac. É provável que, naquela época, as pessoas que se retiravam para as comunidades fossem marginalizados na sociedade. Mas, de uma forma geral, os fenômenos que assistimos nos dias atuais não partem de camadas marginalizadas da sociedade. São, em sua grande maioria, pessoas de classe média, doutores, estudantes universitários, que estão “abandonando” as suas vidas instituídas nos centros urbanos e buscando um modelo de vida quase nos mesmos moldes destas primeiras comunidades.

Há outras diferenças centrais ao pensamento de Turner: não creio que o tipo de communitas hoje desejado seja semelhante ao desejado pelo movimento hippie, um tipo que, de acordo com Turner (p. 169), pretendia colocar as pessoas, mesmo que por um curto período de tempo, para fora da estrutura. Hoje em dia, o que vemos, é muito mais uma tentativa de diálogo entre a sociedade (macro) e a comunidade (micro). Não se pode ver tais comunidades como a anti-estrutura (micro) defendida por Turner, como algo transitório e passageiro e que negaria quase completamente a estrutura (macro). Em geral, as comunidades estão em relação com a comunidade, e não se fala mais em negação, mas sim

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em relação (micro-macro)18 – ainda que o sentido, de cunho político, de transformação seja

muito operante. Por outro lado, pode-se pensar que qualquer relação envolve uma transformação de ambas as partes. Compreender o movimento como relação é distinto de compreendê-lo como o par estrutura e anti-estrutura, que embora guarde o sentido de relação, não mantém as partes como relações constantes (ou devires, ou hecceidades) e acaba, por fim, quase sempre subjugando a anti-estrutura à estrutura.

O “Carnaval da Alma”, de Leila Amaral, tem todo um capítulo dedicado a etnografia do 17º ENCA. Para ela, o encontro

é um ritual que celebra a “transformação” ou a “passagem” como valor. Todavia, o encontro não se configura como um “ritual de passagem” no sentido dado por Van Gennepp ou Victor Turner. Não se objetiva, por meio dele, chegar a um lugar definido, marcar uma transição social de seus participantes, isto é, realizar uma mudança de um estado fixo para outro, seja social ou religioso (p. 185).

Há em aberto “a possibilidade de confrontarem-se com um mundo de ordens múltiplas, através da ritualização dos diversos sentidos de 'transformação' que são ali experimentados” (ibid., p. 186). A autora sugere termos mais elucidativos para pensar o movimento: “porosidade do mundo”, “errância”, “multiperspectivismo religioso”. Todos estes fatores ligados a extrema heterogeneidade do movimento. Sugiro a ideia de um devir religioso para pensar o movimento19.

Voltando a questão das origens do movimento, vamos olhar um pouco para o que os nativos (sic) consideram como origem. São as já enunciadas comunidades alternativas hippies e de influência estado-unidense que surgiram no início dos anos 60, no Brasil. De acordo com Tavares (1984), o movimento das comunidades alternativas tem suas origens na fusão de outros três grandes movimentos oriundos dos EUA: os beatniks, os

18 Ou, ainda mais que a relação sociedade-comunidade, o tripé formado por indivíduo-comunidade-sociedade.

19 Devires, hecceidades, devir religioso: todos estes temas serão tratados mais detalhadamente no quarto capítulo.

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hippies e os hipsters. O autor considera este movimento como uma nova esquerda revolucionária, de origem anárquica, os pais fundantes de várias experiências comunitárias em nível mundial: “os beatniks, os hipsters e os hippies, a nova esquerda, tudo possibilitou colocar em xeque os conceitos tradicionais de sociedade e civilização” (ibid., p. 28).

No Brasil, o autor considera a República dos Guaranis como a primeira experiência de tentativa de formação de uma comunidade intencional. Tendo existido por mais de um século, estas comunidades chegaram a ser consideradas um território economicamente independente, possuindo cidades planejadas. Além disso, não existia o direito de propriedade e os bens pertenciam a todos da comunidade. Na Europa, podemos citar comunidades inspiradas pela “Utopia” de More e também por Campanella. Todas estas experiências comunitárias primeiras iniciam-se a partir do século XVIII: são ashrams na Índia, kibutzim em Israel e comunidades macknovistas na Ucrânia, todas buscando, guardadas as devidas diferenças, modelos de vida mais comunitários e afastadas de um certo controle do Estado.

Um dos livros mais conceituados sobre a história das ecovilas também cita esta origem do movimento, em boa parte anárquica e ligada as mesmas comunidades citadas por Tavares: “life on Kibbutz was a true alternative. Here we were, deciding upon our lives democratically; every week there was a General Meeting. Equality, everyone had the right to speak and vote” (BANG, 2005, p. 16).

Passado este período, um período de derrotas históricas destas várias comunidades (e do movimento social correlato como um todo20), dá-se início um grande

processo de industrialização em toda Europa. Processo que atingiria o Brasil tardiamente, na mesma época em que o país começou a receber muitos imigrantes europeus. São várias as histórias de imigrantes com esta raiz anarquista que fundaram comunidades na América do Sul: a Côlonia Cecília que foi fundada por um grupo de italianos, ou a comunidade Nossa Chácara (cf. TAVARES, op. cit., pp. 44-5). Apesar de ter como inspiração grandes exemplos de

comunidades sempre ligadas à terra, isto é, comunidades formadas por pessoas que não

20 De uma forma bastante sintética, pode-se pensar na derrota do anarco-comunismo makhnoniano na época da revolução russa, entre outras derrotas de movimentos anarco cooperativistas.

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participaram de um processo de êxodo rural, tais como estas comunidades históricas citadas, o processo moderno de formação de comunidades alternativas, sobretudo no Brasil, tem na sua origem o êxodo rural. Não que, necessariamente, as pessoas que fundaram estas comunidades tenham participado de um processo de êxodo rural, mas foi ele, e um futuro discurso de ruralidade, que permitiu a formação destas comunidades. O que estava em pauta era justamente o retorno ao campo.

Não é possível compreender a questão das comunidades alternativas, ecovilas, comunidades intencionais, aquarianas (e outros tantos nomes que serão elucidados adiante) sem compreender a oposição entre campo e cidade, o processo de industrialização e esta ideia de ruralidade. No Brasil, de acordo com Brito (2006) em 1940, cerca de 70% da população vivia em zonas rurais. Após os anos 60 a população urbana tinha quase que quintuplicado. Em 2008, apenas 14% da população possuía moradia no campo. Evidentemente, faz-se necessário, nos dias atuais, uma leitura mais crítica entre o que é considerado campo e o que é considerado cidade. Os limites estão mais tênues e mais fluidos. Mas este inchaço das cidades e o processo de industrialização que o acompanhou são dados inquestionáveis e que afetaram o movimento, ou até possibilitaram a formação das comunidades:

as perspectivas para os próximos encontros serão de um número cada vez maior de pessoas buscando e procurando saídas, pois vivemos um acentuado processo de sufocação nos grandes centros urbanos. Precisamos com urgência criar e montar a estrutura necessária para segurar a grande barra da falência do sistema, consciente de que nós não podemos alterar o quadro socioeconômico brasileiro, que é irreversível e atrelado ao poder econômico internacional, mas cabe a nós lançar as sementes de uma nova forma de viver, e lutar para manter vivos os poucos núcleos existentes, que devem vingar como um farol de orientação para dias futuros (palavras de abertura do ENCA de 82, TAVARES, op. cit., p. 84).

Uma das primeiras comunidades formadas durante este processo que se tem notícias no Brasil é uma comunidade esperantista, fundada por pernambucanos, em 1957, na Chapada dos Veadeiros. Depois de alguns anos, dois europeus se juntaram a comunidade e

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continuaram o projeto, enquanto os fundadores pernambucanos deixaram o local. O projeto da comunidade propunha oferecer educação e saúde para crianças carentes da região. Outras comunidades, de médiuns espíritas, maçons, discípulos de Osho foram se formando, sobretudo na região da Chapada dos Veadeiros, em torno de uma cidade que mais tarde viria a ser considerada como um polo nacional da cultura hippie, Alto Paraíso, em Goiás. A influência de pessoas estrangeiras neste período também se faz evidente – muitos chamados e congressos mundiais foram realizados na região. Vivendo um processo de industrialização já avançado, muitos europeus se juntaram a estes projetos iniciais.

O que estava em pauta, neste início, de acordo com relatos das pessoas que viveram este processo, era “a vontade de deixar a sociedade de consumo industrializada para criar uma comunidade alternativa em convivência harmônica com a natureza”. Desde o início as comunidades alternativas estão, portanto, em oposição a este processo de industrialização. Muitas, inclusive, estavam em oposição às cidades, procurando se estabelecer em locais isolados, sem contato com nada que pudesse ser considerado “civilizado” ou “industrializado”. No início do ENCA de 2009, um dos líderes mais velhos deste movimento questionou esta oposição entre as comunidades e as cidades. Para ele, a integração era necessária, a cidade não poderia viver sem o campo, e vice-versa, mas era necessário uma convivência pacífica, de respeito entre ambos. Uma mudança radical de posicionamento que, provavelmente, vem ocorrendo deste os encontros do final da década de 90, em boa parte por conta da maior força do movimento ambientalista que integrou o discurso de comunidades rurais e tradicionais ao discurso político vigente. A luta destas novas comunidades, ecovilas, e centros urbanos de aprendizagens vai exatamente neste sentido: a busca de uma integração. É comum escutar, atualmente, que o que se busca não é uma independência, mas sim uma inter-dependência. Não seria possível criar algo plenamente autossustentável como era entendido antigamente, mas faz-se necessário criar redes, organismos de dependência mútua. Não há mais uma relação que sugere oposição, entre o indivíduo e a sociedade, mas sim um tripé (ou tríade) de dependência mútua, no qual a comunidade cumpre um papel fundamental na relação, no diálogo entre partes a princípio opostas. A comunidade não existe sem os indivíduos ou sem a sociedade. Mas é

Referências

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