• Nenhum resultado encontrado

O atrativo estranhamento nos simulacros e nas provocações de Cindy Sherman

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O atrativo estranhamento nos simulacros e nas provocações de Cindy Sherman"

Copied!
195
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

LAZARO ELIZEU MOURA

O ATRATIVO ESTRANHAMENTO

NOS SIMULACROS E NAS PROVOCAÇÕES DE CINDY SHERMAN

CAMPINAS 2020

(2)

LAZARO ELIZEU MOURA

O ATRATIVO ESTRANHAMENTO

NOS SIMULACROS E NAS PROVOCAÇÕES DE CINDY SHERMAN

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em ARTES VISUAIS.

Orientador: HAROLDO GALLO

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO LAZARO ELIZEU MOURA, ORIENTADA PELO PROF. DR. HAROLDO GALLO.

CAMPINAS 2020

(3)

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Moura, Lazaro Elizeu,

M865a MouO atrativo estranhamento nos simulacros e nas provocações de Cindy

Sherman / Lazaro Elizeu Moura. – Campinas, SP : [s.n.], 2020.

MouOrientador: Haroldo Gallo.

MouTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Mou1. Sherman, Cindy, 1954-. 2. Artes. 3. Fotografia. 4. Beleza. 5. Feiura. I. Gallo, Haroldo, 1952-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The attractive strangeness in Cindy Sherman's simulations and trials Palavras-chave em inglês: Sherman, Cindy, 1954-Arts Photography Beauty Ugliness

Área de concentração: Artes Visuais

Titulação: Doutor em Artes Visuais

Banca examinadora:

Haroldo Gallo [Orientador] Claudio Lima Ferreira Ernesto Giovanni Boccara Diólia de Carvalho Graziano Nelson José Urssi

Data de defesa: 04-02-2020

Programa de Pós-Graduação: Artes Visuais

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0003-2904-9994 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/2618271753845096

(4)

COMISSÃO EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

LAZARO ELIZEU MOURA

ORIENTADOR: HAROLDO GALLO

MEMBROS:

1. PROF. DR. HAROLDO GALLO

2. PROF. DR. CLAUDIO LIMA FERREIRA

3. PROF. DR. ERNESTO GIOVANNI BOCCARA 4. PROFA. DRA. DIÓLIA DE CARVALHO GRAZIANO 5. PROF. DR. NELSON JOSÉ URSSI

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

(5)
(6)

Obrigado à Universidade Estadual de Campinas por ter aceito meus Projetos de Pesquisas, Mestrado e Doutorado em Artes Visuais.

Agradeço ao Prof. Dr. Haroldo Gallo pela generosidade e competência em me orientar durante este processo.

Eterna gratidão à minha família, em particular, Cândida Moura Toledo e Eurides de Oliveira Maranho, por estarem junto a mim incentivando meus estudos e apoiando meus projetos.

Minha admiração e respeito por Cindy Sherman e sua valiosa contribuição às artes. Baruch Ata Adonai, Eloheinu Melech Haolam, Adonai Echad.

(7)

Esta pesquisa de doutorado em artes visuais apresenta uma investigação que aborda conceitos e interpretações acerca do belo e do feio realçando a presença do estranho em obras artísticas, assim como, atribuindo a ele, em igual valor, o fascínio percebido por apreciadores e observadores de artes. A análise defende a hipótese de que o estranhamento, visto nos desdobramentos artísticos contemporâneos, é tão atrativo e sedutor quanto os atributos sobre a beleza ou a feiura.

O tema proposto traz a obra de Cindy Sherman, enquanto referência artística de apoio e análise, legitimando os questionamentos e justificando a estranheza como atrativa linguagem expressiva. A investigação destaca um período de 20 anos, entre 1980 a 2000, pois esta fase marca um expressivo conjunto de obras e define Sherman enquanto artista madura, questionadora, sensível e provocativa. Sua obra está estruturada na linguagem fotográfica e, ao modelo de outros artistas que se inserem em seus trabalhos, ela utiliza a própria imagem como objeto de representação, motivo de estudo nesta tese.

Alguns autores, historiadores e críticos de arte foram pesquisados, a fim de atestarem as explanações relativas à temática do estranhamento. Os textos auxiliam, quanto ao entendimento acerca da estética e linguagens visuais, enfatizando a contramão das vias de atração e do gosto comuns, porém, a investigação não pretende se aprofundar em questionamentos psicológicos ou filosóficos relativos a este tema. Todavia, pontuais momentos no texto esbarram-se em comentários filosóficos, que trazem conceitos sobre estética e o elemento estranho inserido neles, fundamentando as análises da seleção das obras citadas.

O interesse na hipótese mencionada e no recorte da obra de Cindy Sherman, com temas referentes ao estranhamento, esquisitice, camuflagem, simulacro, ironia, sarcasmo e violência, tem relevância com atitudes e manifestações da arte contemporânea e seus desdobramentos nas inquietações dos artistas visuais, também, a motivação e sedução de observadores por obras que oferecem muito mais do que a mera contemplação plástica.

(8)

This doctoral research presents my investigation on the concepts and interpretations about the beautiful and the ugly, within the realm of the visual arts, highlighting the appearance of strangeness and attributing to it the perceived attraction in artistic expressions by art observers and appreciators. The analysis defends the hypothesis that the strangeness seen in contemporary artistic developments is as attractive and seductive as the attributes about beauty or ugliness.

The proposed theme brings the work of Cindy Sherman, as a supportive artistic reference for analysis, which legitimises the questionings and justify the strangeness as an expressive and attractive language. The investigation highlighted a period of 20 years, from 1980 to 2000, because this phase marks an expressive set of works and defines Sherman as a mature, questioning, sensitive and provocative artist. Her work is structured in the language of photography and, like other artists who include themselves in their own work, she uses her own figure as an object of representation, the main reason of study in this thesis.

To clarify this point of view, several authors, historians and art critics have been studied in order to attest the explanations regarding the thematic of strangeness. The texts assist in understanding the aesthetics and visual languages, emphasizing the opposite path of the course of attraction and the typical common taste, however the investigation does not intend to deepen into psychological or philosophical questions relative to this theme. Nevertheless, at a certain point philosophical comments are drawn, bringing concepts of aesthetics with strangeness element embedded, offering the basis of analysis of the cited selected artwork.

The interest about such hypothesis and in the selected art work of Cindy Sherman, with themes related to the strangeness, oddity, camouflage, mockery, irony, sarcasm, and violence, is relevant to the attitudes and manifestations of the contemporary art and its natural unfolding towards the restlessness characteristics present in visual artists as well as the motivation and seduction of observers towards that, which offers much more than a mere plastic contemplation.

(9)

Figura 1: Peter Paul Rubens. As Três Graças, 1639... 36

Figura 2: Cindy Sherman. Untitled #193, 1989……… 37

Figura 3: Vincent Van Gogh. Autorretrato, 1889... 43

Figura 4: Kathe Kollwitz. Mother and the dead child, 1903……….... 51

Figura 5: Jeff Koons. Ushering in Banality, 1988……….. 54

Figura 6: Jake and Dinos Chapman, Fuck Face, 1994……… 63

Figura 7: Orlan. Medusa talks back. 2013………... 65

Figura 8: Cindy Sherman. Untitled #155, 1985………. 66

Figura 9: Cindy Sherman. Untitled #2, 1977………... 72

Figura 10: Cindy Sherman. Untitled #466, 2008……….. 72

Figura 11: Cindy Sherman. Untitled #353, 2000……….. 75

Figura 12: John Coplans. Self Portrait (Body Language n 5), 1986……….. 79

Figura 13: Cindy Sherman. Untitled #261, 1992... 82

Figura 14: Waltercio Caldas. Velazquez, 1996...90

Figura 15: Frida Kahlo. A coluna partina, 1944 ... 95

Figura 16: Marcel Duchamp. A fonte, 1917... 100

Figura 17: Cindy Sherman. Untitled #305, 1994……… 108

Figura 18: Nan Goldin. Nan One Month after Being Battered,1984……… 109

Figura 19: Cindy Sherman. Untitled #369, 1976/2005……….. 112

Figura 20: Cindy Sherman. Untitled #430, 1976/ 2001………. 112

Figura 21: Cindy Sherman. Untitled #90, 1981……….. 113

Figura 22: MoMA. Marina Abramovic, 1981... 114

Figura 23: Michelangelo. Davi, 1524... 149

Figura 24: Salvador Dali. A ascensão de Cristo, 1958... 149

Figura 25: Leonardo da Vinci. La Gioconda, 1503/1506………... 161

Figura 26: Cindy Sherman. Untitled #418, 2004……… 161

Figura 27: Cindy Sherman. Untitled #96, 1981………... 184

(10)

Introdução ... 11

Capítulo 1 – Beleza e feiura. O estranho enquanto linguagem artística... 23

1.1. Reflexões sobre o belo ... 33

1.2. O feio nas artes ... 45

1.3. Estranheza que atrai ... 57

Capítulo 2 – Cindy Sherman, a artista dentro de sua obra ... 69

2.1. Autorretrato no corpo do outro ... 78

2.2. Narrativa feminina ... 86

2.3. Camuflagem e simulacro ... 97

2.4. Violência ... 106

Capítulo 3 – Cindy Sherman: Dez obras - 1980 a 2000 ... 116

3.1. Untitled Film Stills ...120

3.2. History Portraits ... 131 3.3. Broken Dolls ... 141 3.4. Clowns ... 152 3.5. Stereotypes ... 165 Considerações Finais ... 175 Referências Bibliográficas ... 190

(11)

INTRODUÇĀO

Esta pesquisa aborda a questão da estranheza nas artes visuais, observada entre o entendimento do que se caracteriza enquanto belo e feio, tomando como parâmetro aspectos bizarros percebidos em obras da artista americana Cindy Sherman. A análise fundamenta-se na busca de um entendimento sobre o assunto levantado, bem como, em um recorte na produção da artista, no período entre 1980 a 2000, o qual apresenta fotografias inspiradas na História da humanidade, narrativas ou relatos de cenas extraídas em modelos de vidas, também, interpretações acerca do comportamento da sociedade contemporânea. Esse período de vinte anos foi entendido como suficiente para auxiliar à compreensão do assunto proposto, mostrando a esquisitice, que transita no repertório da fotógrafa, provocando polêmicas, incômodos ou desconfortos visuais. A essência deste texto é mostrar que a arte, reconhecida como estranha ou perturbadora, estimula e amplia a atratividade destacando-se a obras que exibem linguagens inseridas na ótica da beleza tradicional. No transcorrer dos três capítulos e suas subdivisões, o assunto central do texto é mostrar que o encanto percebido em obras artísticas, neste estudo especificamente trazendo o trabalho de Cindy Sherman, aflora em linguagens que mostram o belo e o feio na condição de elementos questionáveis. Atribuições, tais como, diferente, estranho, ininteligível, perturbador, incomodativo, agressivo, grotesco e feio, são termos responsáveis por seduzirem os espectadores de arte que se surpreendem diante de obras às quais estes adjetivos estão contidos e apresentados em formas de expressões plásticas. É neste território que a pesquisa vai adentrar.

A análise da beleza ou da feiura pode ser realizada seguindo alguns caminhos, dentre eles, utilizando a filosofia como ponto de partida. Se assim for, a pesquisa deve beber nas fontes de autores que explanam este tema antagônico, todavia, a proposta escolhida aqui, abordando este mesmo assunto, não se configura a partir de um aprofundamento filosófico. O texto traz uma liberdade reflexiva restrita a leituras de imagens que apresentam o belo e/ou o feio, particularmente no que entende-se enquanto estranho, ora em conteúdos estéticos, poéticos e visuais, ora em propostas temáticas, apoiando-se no recorte de fotografias de Cindy Sherman, afim de mostrar

(12)

que a condição de atração e sedução emerge, potencialmente, em trabalhos cuja anomalia é percebida, justificando o interesse pela obra de arte.

Embora a pesquisa não manifeste o desejo em mergulhar nas reflexões da filosofia ou nos estudos psicológicos, associados à temática em questão, o texto aponta alguns autores, entre eles Umberto Eco, no intuito da compreensão deste propósito. Logo na introdução do livro História da Beleza, Eco vai dizer:

Belo – junto com gracioso, bonito ou sublime, maravilhoso, soberbo e expressões similares – são adjetivos que usamos frequentemente para indicar algo que nos agrada. Parece que, nesse sentido, aquilo que é belo é igual àquilo que é bom e, de fato, em diversas épocas históricas criou-se um laço estreito entre o Belo e o Bom. Se, no entanto, julgarmos com base em nossa experiência cotidiana, tendemos a definir como bom aquilo que não somente nos agrada, mas que também gostaríamos de ter. (ECO, 2007).

Curiosamente e refletindo sobre esta citação, percebe-se uma condição nas artes visuais que esbarra nesse conceito sobre o que se classifica enquanto “bom”, onde este termo é utilizado incontáveis vezes quando pretende-se dizer que a obra de arte é atrativa ou encontra-se no plano do interesse. Dizer que a obra é “boa” seria, desta maneira, uma afirmação de que ela é valiosa no aspecto qualitativo e artístico, independente se reconhecida como bela ou feia, perante os conceitos estéticos e harmônicos. Mais adiante, na mesma introdução da História da Beleza, o autor continua em outra citação que se aproxima do intuito desta tese:

A relação entre Beleza e Arte colocou-se muitas vezes de modo ambíguo, pois, mesmo privilegiando a beleza da natureza, admitia-se que a arte poderia representá-la de modo belo, inclusive quando esta natureza representada fosse em si perigosa ou repugnante. (ECO, 2007).

Esta afirmação de Eco contribui para o objetivo desta pesquisa, no sentido em que, a abordagem sobre o conceito de beleza e feiura são postos em combate, particularmente, quando a estranheza é apontada e exposta na condição de repugnância ou aversão, embora sejam estes aspectos que se atribui, nesta investigação acadêmica, seu valor enquanto movimento a ser estudado.

O interesse por este tema é decorrente do assunto similar, concluído pelo autor desta pesquisa, no Mestrado em Artes Visuais, no ano de 2002, sob o título “Atração e Repulsa” nesta mesma Universidade. Na ocasião a investigação foi relacionada ao

(13)

processo de criação, enquanto artista plástico, assim sendo os trabalhos que haviam sido realizados ou mesmo desenvolvidos durante o Mestrado, foram suportes para a compreensão da pesquisa apresentada. Essa problemática, de relevância nas artes visuais, sobre aspectos que estão associados ao avesso da estética do belo sempre esteve presente em suas inquietações artísticas.

A partir da expansão cultural, das rupturas com os modelos artísticos, das novas mídias e das novidades tecnológicas, dentro do cenário das artes visuais, o autor percebeu que o conceito de beleza e feiura havia passado por metamorfoses significativas: os valores da arte romperam-se, a exemplo dos movimentos artísticos contraditórios de outrora, com a estética tradicional e clássica. A arte minimizou a condição de aceitável e harmônica, expondo suas vísceras em outro padrão de linguagem visual. A beleza e a feiura tornaram-se relativas e nessa “babel” de novas formas expressivas, emergiu o que não era compreendido. Nem belo, nem feio, as obras mostraram a sedução do enigmático “o que é isto?”.

Considerando o entusiasmo, no amadurecimento deste objeto de estudo, neste momento foi escolhido outro ponto de observação e reflexão, para pesquisar o tema correlato, de forma que a análise auxilie e fundamente os questionamentos acerca da linguagem artística à qual se propõe, seja ela descomprometida com o estado de conforto visual ou esteticamente agradável. Por assim dizer o foco, para referenciar esta tese, foi a escolha de uma seleção de fotografias de Cindy Sherman as quais atribui-se aspectos relevantes ao argumento sinalizado.

O trabalho de Sherman foi descoberto pelo autor, ainda enquanto estudante na graduação em artes, época à qual a artista era referência para jovens criadores, por sua atuação de destaque no cenário da arte contemporânea. Ousada, destemida e irônica, suas fotografias mostravam os costumes de um estilo de vida representados por diversas cenas. Sua autoimagem foi retratada como personagens que ilustravam estórias ou releituras de obras anteriormente realizadas por outros artistas visuais. Cindy Sherman travestiu-se e incorporou figuras além de si mesma. A artista exerceu um fascínio ao articular com composições, indumentárias de vestimentas, maquiagens e cenários, todos agrupados, bem como, meticulosamente organizados, afim de revelar ideias sobre diversos assuntos que oscilavam entre retratos, críticas

(14)

aos modos e costumes de uma sociedade, resgastes culturais de outros povos, revelações sobre intimidades de vidas domésticas, engajamento no combate aos preconceitos e posicionamento político.

O texto avança com algumas reflexões pontuais sobre obras que se alimentam de fatos da existência humana para expor um modo interpretativo e crítico utilizado por artistas enquanto meio condutor e gerador do fazer arte. Cindy Sherman destaca-se, nesta categoria de artistas, ao se perceber um expoente indagador presente em seu modo de ver o mundo, os seres viventes e a si própria como parte desse território. Diversas fotografias no conjunto de sua obra apontam para temas que transcendem aos efeitos técnicos e estéticos da arte. Ela toca em feridas abertas do comportamento humano, distanciando-se da calmaria harmônica da imagem, para assumir o retrato da figura que incomoda, que critica e que esbarra na agressividade ao mostrar elementos tais como: violências, doenças, distúrbios psicológicos, amoralidades, preconceitos, abusos e discriminações. As imagens ironizam e ilustram aquilo que, em épocas passadas, procurou ser camuflado, como se a arte tivesse o papel de purificar os excrementos existentes no cotidiano da humanidade.

A arte questionadora e crítica recorre às modalidades de sua natureza expressiva enquanto manifesto potencialmente capaz de aproximar o observador para si própria. Independente dos aspectos visuais, sejam agradáveis ou não, no estranhamento reside o interesse e a atratividade sobre o que se observa. A partir desse momento a conclusão e a aceitação pela obra, tornam-se responsabilidades mútuas. Autor e apreciador estabelecem um relacionamento que pode ser pela discordância ou pelo fascínio.

De maneira depreendida da beleza convencional as imagens criadas por Sherman são dramáticas, satíricas, beirando ao afrontoso. Entre cenas do cotidiano doméstico, retratos e reconstruções de períodos históricos, desfilam personagens que escondem, intencionalmente, a identidade da artista. Utilizando e camuflando seu próprio corpo, ela apresenta sua percepção acerca do comportamento humano por meio de fotografias que retratam o avesso da ordem e do conforto da aparência. O enfoque extraordinário das figuras, quando retratadas pelas câmeras de Cindy Sherman, mostra a essência da aparência física e emocional, a despeito do texto, como

(15)

mencionado acima, não pretender adentrar ao estudo do universo psicológico dos retratos. O assunto aqui fica restrito a leituras sobre plasticidade e personificação na imagem do outro, propondo transmitir uma nova forma de contar estórias de pessoas nas mais diversas conjunturas, bem como, apresentar os argumentos de que a sedução na arte se faz por meio de demais predicados rumando na contramão da beleza convencional. Em meio a esse emaranhado de informações visuais revelou-se o aspecto responsável pela apreciação e constatação daquilo que atrai nas obras de Sherman: o estranhamento, o que não era entendido, o bizarro, o desconfortável, o grotesco, a imagem que se reconhecia mas não se enxergava pertencente à beleza atrativa comumente apresentada em trabalhos artísticos. Desde então o olhar do pesquisador procurou obras onde notava-se que a característica do esquisito transformava a arte em algo mais envolvente. Com esse foco adotado e direcionado percebeu-se que havia um expressivo número de apreciadores das artes interessados nas mesmas reflexões. A partir desta constatação decidiu-se analisar o aspecto da estranheza enquanto característica atrativa em obras artísticas.

Do mesmo autor Umberto Eco, no livro a História da Feiura, enquanto contraponto ao conceito de beleza:

Se examinarmos os sinônimos de belo e feio, veremos que, enquanto se considera belo aquilo que é bonito, gracioso, prazenteiro, atraente, agradável, garboso, delicioso, fascinante, harmônico, maravilhoso, delicado, leve, encantador, magnífico, estupendo, excelso, excepcional, fabuloso, legendário, fantástico, mágico, admirável, apreciável, espetacular, esplêndido, sublime, soberbo; é feio aquilo que é repelente, horrendo, asqueroso, desagradável, grotesco, abominável, vomitante, odioso, indecente, imundo, sujo, obsceno, repugnante, assustador, abjeto, monstruoso, horrível, horripilante, nojento, terrível, terrificante, tremendo, revoltante, repulsivo, desgostante, aflitivo, nauseabundo, fétido, apavorante, ignóbil, desgracioso, desprezível, pesado, deformado, disforme e desfigurado... Daí a prudência com que devemos nos preparar em suas variedades, em suas múltiplas declinações, na diversidade de reações que suas várias formas estimulam, nas nuanças comportamentais com que se reage a elas. Considerando, a cada vez, se e quando tinham razão as bruxas que, no primeiro ato de Macbeth, gritam – Belo é feio, feio é Belo. (ECO, 2007, p.16-20).

No processo analítico sobre os elementos contrastantes, entre o belo e o feio, o bom e o ruim, o atrativo e o repulsivo, a hipótese pretendida é de que o anômalo, aquilo considerado estranho, diferente, esquisito e indecifrável, sobressai e aponta a outros

(16)

valores que podem estar relacionados a diferentes culturas, crenças, padrões étnicos, comportamentos e conceitos estéticos. Nesta perspectiva o apelo e defesa do conceito de gosto se assentaria numa categoria seguramente circunstancial, pois, para o seu entendimento e concordância, seria necessário compreender o que é exibido na condição de beleza ou feiura. A compreensão ou mesmo o entendimento acerca das escolhas, por um aspecto que não se firma no belo ou no feio, seria a chave para estabelecer-se um pensamento reflexivo, questionador e crítico.

A metodologia utilizada enquanto meio para o desenvolvimento deste texto, bem como, trazer a hipótese de que o estranhamento, aspecto percebido na transição entre a beleza e a feiura é demasiadamente atrativo e fascinante em obras de arte, particularmente no trabalho de Cindy Sherman, desenvolve-se à partir da análise de um recorte, no conjunto de trabalhos da artista, dividindo este estudo em três capítulos conforme aponta o sumário.

Capítulo 1: O estranho enquanto linguagem artística, apresenta um estudo sobre os conceitos de beleza e feiura nas artes visuais destacando o estranhamento, como elemento forte dentro da obra, mostrando que este aspecto provoca e atrai a atenção dos observadores acima dos pressupostos visuais da atratividade tradicional. Esta condição é visível no trabalho de Cindy Sherman e em outras obras de artistas com linguagens afins, tais como, Jan Saudek, Jake & Dinos Chapman, Jeff Koons, Damien Hirst, Louise Bourgeois, Matthew Barney e David LaChapelle. Na obra de Sherman foram identificados elementos possíveis, no apoio ao estudo e à investigação da temática desta tese, bem como, argumentos competentes para justificar a hipótese de que a esquisitice, ultrapassando o critério do gosto, atrai sobremaneira o apreciador da obra de arte.

O capítulo inicial também se divide em três partes: Reflexões sobre o belo, mostra uma análise acerca dos conceitos de beleza e seus desdobramentos na História da Arte. A sequência, O feio nas artes, ao modelo do estudo sobre o belo, aponta a feiura enquanto linguagem possível e real dentro do universo artístico. A terceira parte desse capítulo, A estranheza que atrai, justifica o propósito desta investigação, ao revelar que a percepção do que não se compreende ou o que reside na condição do estrambólico, exerce um papel de sedução aos olhos do observador.

(17)

Capítulo 2: Cindy Sherman, a artista dentro de sua obra, traz a fotógrafa americana enquanto um dos expoentes da arte contemporânea, criadora de obras inquietantes e surpreendentes, que apresenta um trabalho na bifurcação entre a dúvida do real e do imaginário. Sherman empresta seu corpo à serviço de camuflagens e simulacros com o objetivo em representar personagens distintos, seja em um contexto visual narrativo ou em outro contexto, mais sutil e poético. Ela utiliza sua autoimagem para representar momentos onde os observadores visualizam, por associação entre o retrato e a cena ilustrada, o assunto almejado.

Uma característica marcante na obra da artista revela-se pelo seu posicionamento social e sua visão em relação à figura feminina. Cindy Sherman apresenta uma série de situações retratando a mulher sob sua ótica particular, ora onde figuras femininas surgem com aparências fortes e determinadas, ora em cenas as quais outras mulheres são vistas, enquanto objetos manipuláveis, expondo suas fragilidades e inseguranças. A riqueza da obra revela-se por meio das sutilezas contidas nas imagens. Como poucas artistas, que utilizam a linguagem do autorretrato, ela apropria-se do recurso da camuflagem para incorporar, ao modelo de atores que travestem-se em diversos personagens, tantas e tantas figuras que espelham, aos olhos dos espectadores, suas particularidades e suas vidas.

Irônica, por vezes sarcástica, Cindy Sherman vai desfilando sua percepção perante os problemas que reconhece numa sociedade. Atenta e observadora ela traduz, por meio da fotografia de arte, os sentimentos e as características de pessoas e costumes que lhe despertam a atenção. Notadamente voltada à cultura americana, seus retratos desfilam personagens que ilustram esse segmento, muito embora, enquanto espectadores, nos identificamos e percebemos similaridades entre suas fotografias e aquilo que nos conecta com elas.

Por vezes o trabalho de Sherman beira ao cômico, muito embora o tom sarcástico é predominante em fotografias que retratam os hábitos de uma sociedade, aparentemente, em desequilíbrio. Estas abordagens parecem agradar a artista, haja visto a quantidade de obras que permeiam este tema, todavia, outra parte dos trabalhos percorre caminhos mais tortuosos e, assim sendo, erguem-se imagens as quais estariam enterradas, submersas numa condição de isolamento. Este texto

(18)

pretende citar e analisar fotografias de Sherman, inclusive, obras dramáticas, violentas ou agressivas, mostrando um conjunto de imagens que retratam traumas e distúrbios humanos distanciando-se da qualidade de arte agradável, ou mesmo, apreciável. As exposições dos excrementos e das consequências provenientes da violência física e moral, que atingem um significativo número de pessoas, incorporam-se ao conjunto de fotos subversivas oriundas do universo da artista. Por meio das fotografias de espancamentos, acidentes premeditados, desonra, ou violação da fragilidade do outro, Cindy Sherman exibe-se enquanto um ser caído. Ela incorpora vítimas da brutalidade retratando-as, em imagens cênicas, contextos dramáticos que conduzem os expectadores à reflexão sobre o sentido da arte que aponta para os problemas reais existentes no mundo. Nessa imensidão de acidentes e situações nauseantes percebe-se o desejo, talvez a necessidade, em se encontrar uma fresta de alívio, um momento que justifique a apreciação por uma linguagem de arte tão dura, ainda que, essa linguagem não amenize a exposição de suas dores.

Este capítulo se divide em quatro partes: Autorretrato no corpo do outro, aborda as intenções de Sherman ao utilizar sua imagem para ilustrar figuras que nos remetem à diferentes culturas, assim como, suas características e seus problemas sociais.

Narrativa feminina, analisa o comportamento de mulheres dentro de uma visão

questionadora e crítica, à qual, a artista debruça sobre esse tema com acidez e protestos. Em Camuflagem e simulacro, a pesquisa exibe o ato em se utilizar o próprio corpo para contar estórias sobre o outro. Cindy Sherman busca recursos visuais e utensílios para criar efeitos transformadores em suas fotografias. Violência é a parte final deste capítulo, a qual percebe-se a maior indignação de Sherman. O assunto foca no comportamento alheio causador das perturbações que influenciam os personagens retratados pela artista. As imagens revelam um segmento social violento, por meio das aparências explícitas ou pela subjetividade que permite múltiplas leituras acerca da temática sugerida nas fotografias.

Capítulo 3: A pesquisa ancora-se na obra de Cindy Sherman, assim sendo, foram selecionados alguns trabalhos que exemplificam o assunto desta tese. Para um melhor entendimento acerca do tema, o recorte abrange um período de 20 anos, iniciando com obras realizadas em 1980, se estendendo até os anos 2000. Foram escolhidas dez obras, neste recorte citado, cujas imagens ilustram o discurso acerca

(19)

das experimentações e transformações da fotógrafa. O conjunto de personagens criados pela artista altera-se, sobremaneira no decorrer de sua carreira, porém a pesquisa fixou a análise nas dez obras contidas no capítulo 3, compreendendo uma amostra expressiva de uma fase potencialmente criativa: Untitled Films Stills, mostra cenas cotidianas e um esbarramento em filmes noir com um apelo nostálgico. History

Portraits, traz interpretações da artista sobre tradicionais pinturas clássicas às quais

percebe-se um questionamento acerca da concepção do belo. Broken Dolls, enfatiza um momento onde a fotógrafa recorre a linguagens polêmicas como perversidade, violência sexual e abusos. Em Clowns, nota-se a dualidade entre a alegria e o medo como pertencentes ao mesmo cenário. As imagens expõem figuras que evocam o universo infantil, assim como, os traumas decorrentes desse tempo. Stereotypes, encerra este núcleo de fotografias mostrando personagens femininos em contextos que discutem o gosto. Cindy Sherman toca no delicado e frágil território da beleza, na busca inglória pela juventude, nos modelos padronizados e na aparência passageira de uma realidade social igualmente efêmera.

Dentro de um processo metodológico, as dez obras foram analisadas seguindo alguns critérios atribuídos em todas as imagens:

- Tema: Análise do assunto, do aspecto comportamental e cultural;

- Composição: Estudo técnico relacionando imagem, enquadramento, estruturas formais e pontos de tensões no conjunto;

- Espaço: Observação do campo espacial utilizado na fotografia, bem como a cenografia e seus detalhes dentro do ambiente;

- Produção: Análise dos utensílios e objetos transformadores incorporados por Cindy Sherman afim de compor as personagens e suas épocas ilustradas;

- Figura: Item que ressalta as diferentes formas em que a artista recorre para criar múltiplas identidades;

- Cor: Aponta o cromatismo compreendendo a construção de um contexto histórico, ambiental ou retratista, ancorado por uma cartela de cores que contribui para a narrativa das imagens.

(20)

As subdivisões desse capítulo abordam determinados questionamentos, presentes na obra da fotógrafa, de maneira que, a compreensão acerca de seu processo criativo torna-se mais linear considerando que ela permeia diversas temáticas. Sherman recorre a cenas do cotidiano afim de abordar assuntos que estão além de sua vida. Ela vai emprestar sua autoimagem para representar momentos onde os observadores visualizam, por associação entre o retrato e a cena ilustrada, o assunto almejado. Sobre aos autores citados, nas referências bibliográficas, alguns completam a hipótese desta pesquisa, outros contribuem para a reflexão acerca do tema enriquecendo os argumentos de que a estranheza é fascinante em obras de arte. Umberto Eco, recorrente no desenvolvimento desta investigação acadêmica, possui um estudo aprofundado a respeito da História da Feiura, bem como, uma busca explicativa sobre a beleza. Os textos de Eco são essenciais para a fundamentação deste texto. A específica bibliografia sobre a artista Cindy Sherman traz um conjunto de livros que discutem sua obra em diversas vertentes. São autores que também estudaram suas fotografias, apresentando seus pontos de vista, consequentemente confirmando os questionamentos sobre a arte provocativa, instigante e extraordinária. O texto, amparado pelos autores estudados, mostra que os valores artísticos ultrapassam os limites da estética harmônica, clássica, imaculável. A força que emerge de obras, visualmente desconfortáveis, pode residir às sombras de elementos por vezes incomodativos. O crítico e historiador de arte, Hal Foster, em seu livro O

Retorno do Real, analisa a obra de Sherman ao comentar sobre a apropriação do

outro enquanto repertório de representações da artista.

Sherman foi levada pelo impulso de corroer o sujeito e rasgar o anteparo, desde as primeiras obras, em que o sujeito é pego no olhar, passando pelo trabalho intermediário, em que ele é invadido pelo olhar, até a obra recente, em que ele é obliterado pelo olhar, para voltar como partes desconjuntadas de uma boneca. Mas esse duplo ataque ao sujeito e ao anteparo não se dá apenas em Sherman; ocorre em várias frentes da arte contemporânea, em que o ataque é travado, quase que abertamente, a serviço do real. (FOSTER, 2014, p.142).

Por meio do discurso deste autor é possível compreender as questões do simulacro e das circunstâncias relacionadas ao estranhamento. Ele fala sobre o ideal perverso da beleza e a presença do grotesco, recorrentes nas artes, à medida que que essas

(21)

adequações intensificam o modo pensante dos artistas no momento de exporem suas inquietações criativas.

Em um sistema comandado pelo consumo e pela majestade proveniente da linguagem visual, há uma forte tendência no imperialismo dos padrões que determinam modelos sobre os hábitos estanques e estáticos que, embora despercebidos, são absorvidos sem contestação. Por negação ou falta de interesse, emerge uma sociedade submetida ao jugo da falsa noção de realidade. As verdades pronunciadas necessitam de comprovações e fundamentações acerca do objeto visto, assim sendo, a arte situa-se na bifurcação do que se entende enquanto mundo real e mundo imaginário. Neste cenário de incertezas e simulacros, Cindy Sherman desfila seus personagens ilusórios no limite das bases das evidências, dos relativismos e das realidades. Suas ideias extrapolam a noção da certeza e as situações encenadas transferem para outro patamar os limites da compreensão do complexo existencialismo humano. Os vestígios de sua obra sobrevivem inseridos em um deserto sem orientações do que seria verdadeiro ou falso, neste contexto, o estranho e o simulacro vêm preceder a nova forma de apreciação. Em substituição ao deserto árido e sem limites edifica-se a arte que modifica os sentidos da compreensão; a operatividade do simulacro realiza o milagre do engano visual que ressurge sobre o mundo real circulante. A fotografia de Sherman é semelhante aos modelos de que procedem estendendo-se em um ciclo generalizável, também, interminável em possibilidades e interpretações.

A parte final do texto conclui sobre a hipótese, trazida nesta investigação acadêmica, mostrando as características atrativas advindas do estranhamento percebido em obras de arte contemporâneas, particularmente no trabalho de Cindy Sherman. Ela aparenta, em especial na fase final dos anos 90, por meio da introdução do repugnante, do horrível e do cínico, os aspectos contidos na destruição do próprio efeito estético e sua inerente “atração”. A artista destroça toda e qualquer possibilidade de efeito estetizante, rompendo com a representação, fazendo com que o “real” nos envolva literalmente, atingindo diretamente na retina e avançando para dentro do corpo.

(22)

Nem tudo que a imagem mostra é suficiente para revelar a essência de sua existência. Perceber a obra de Cindy Sherman demanda este princípio. Como uma música dodecafônica, sua arte possui uma melodia por detrás da partitura. Se faz necessário compreender o som que vem de instrumentos desconhecidos, estar atento aos ruídos, aos murmúrios e outros imprevisíveis barulhos que, surpreendentemente, possam soar durante o tempo de apreciação.

Nem feio, nem belo. A pesquisa mostra o olhar estranho como o extraordinário que fascina.

(23)

CAPÍTULO

1

Beleza e feiura.

O

estranho

enquanto

linguagem artística.

Uma obra de arte transita por outras linguagens artísticas para chegar em si própria. Por assim dizer, onde estaria a originalidade tão desejada pelos autores? Para ser consistente e estar presente no mundo, é preciso olhar lá atrás, bem antes dos bizantinos.

A história da humanidade pode ser revelada por meio de diversos recursos e veículos, seja pela antropologia, sociologia, religião, ciência, crendices, também, pela narrativa dos povos, poesia, cultura e pelas artes. No modo como o homem tem sido reconhecido, a partir de suas especificidades, distinções, inteligência e evolução, entende-se o seu comportamento, seu modo de agir e de pensar. Nota-se que a capacidade de entendimento e amadurecimento, sobre a própria existência humana, desenvolve-se na busca de uma satisfação sobre os anseios em se encontrar o sentido da vida. Neste caminho, o autoconhecimento e a percepção do outro sempre estiveram presentes nas inquietações do homem, mesmo porque ele precisa viver em sociedade, relacionar-se com outros seres, dividir espaços, conquistar seu lugar, estar presente, se comunicar e se expressar. Na travessia desse mar turbulento, onde os mistérios e a força da natureza provocam medos, inseguranças e incertezas, e movimentam as águas que levam à inteligência, muitos outros sentidos vêm à tona apontando novos horizontes a serem explorados e incorporados ao sistema de compreensão, bem como novas formas de desenvolvimento da sensibilidade às artes. Distanciando desse território, entre o certo o incerto, firma-se a importância em apreciações que exigem um tempo maior de observação, pesquisa e reflexão, justificando a indispensabilidade do conhecimento mais aprofundado, mirando a compreensão de um propósito artístico. Ainda que a conclusão divida-se nos lados de uma balança, ora no aceitável, ora no questionável, e pressupondo este último termo enquanto condição essencial para a multiplicidade das interpretações sobre a arte posta em questão, a obra deverá perdurar com mais riqueza e relevância a partir de sua contextualização e sua importância ao acréscimo do repertório intelectual, expressivo e cultural.

(24)

O termo arte, entendendo a designação conforme a tradução de uma atitude expressiva, é a dimensão que influi sobre o sentimento e a compreensão do homem de acordo com a História e a cultura. O nome arte deriva do latim ars (artis), que agrupa diversas categorias interpretativas, entre elas, “o saber fazer bem feito”. Na evolução sensível da humanidade, seja diante das constantes mudanças sociais, seja a partir do aumento das possibilidades expressivas e representativas, o termo arte ampliou suas notas e a ressonância desmembrou-se em múltiplas conceituações. Os significados e simbologias artísticas ultrapassaram os movimentos classificatórios, de forma que os estilos clássicos, modernos ou vanguardistas cederam espaço para linguagens díspares e os artistas se libertaram das amarras. A arte contemporânea se tornou a terra do desconhecido, o território das dicotomias, onde a lógica deixou de existir, abrindo novos caminhos para discordâncias e conflitos. Ela se transfigurou e os objetos artísticos despertaram emoções em situações nas quais os apreciadores atuam como coautores, na condição de provocados e provocativos. Encontra-se, na arte, um conjunto de complexidades capazes de alcançar a sensibilidade e o homem recorre a esta expressão, exatamente pelo prazer que nele imprime, alterando sobremaneira sua relação com o mundo no qual está inserido.

Umberto Eco elucida a condição da arte no livro A definição da arte ao falar sobre o papel do criador e do observador, quando trata da problemática sobre a obra aberta.

Em geral, dois aspectos estão implícitos na noção de ‘obra de arte’: a) o autor realiza um objeto completo e definido, segundo uma intenção bem precisa, aspirando uma fruição que o reinterprete assim como o autor o pensou e quis; b) o objeto, no entanto, é desfrutado por uma pluralidade de fruidores e cada um deles levará ao ato de fruição as próprias características psicológicas e fisiológicas, a própria formação ambiental e cultural e as especificações da sensibilidade que as contingências imediatas e a situação histórica comportam; portanto, por mais honesto e total que seja o empenho de fidelidade à obra a ser apreciada, cada fruição será inevitavelmente pessoal e restituirá a obra num de seus aspectos possíveis. (ECO, 2016, p.153-4).

A arte tem um livre desenvolvimento e apresenta sua versão ao contar a história da existência, da natureza e da humanidade quando representa, em formas inusitadas e por vezes extraordinárias, aquilo que se entende por possibilidades de interpretações, experimentações e poesia. Pactuando com a citação de Eco, ao artista, resume-se a capacidade de sintetizar experiências vividas ou sensações almejadas para conduzir,

(25)

tal qual um maestro conhecedor de múltiplos instrumentos sonoros, um conjunto de informações e elementos os quais, agrupados entre si, constroem plasticamente o que se entende como um jeito de se manifestar artisticamente. O autor carrega a liberdade e a autossuficiência em articular com formas, figuras, espaços, cores, técnicas, mecanismos e conceitos, visando transformar estas referências em linguagens que não poderiam ser expressas de maneira mais coerente. A partir da obra realizada, sua independência aflora e as relações com os observadores multiplicam suas transmutações. Nesse processo, entre a feitura do objeto de arte e sua entrega à esfera da apreciação, o artista percebe as diferentes interpretações e compreende seu repertório criador.

Ao observar a trajetória de um processo de criação, pode-se compreender as inclinações e as escolhas de um artista, seja por meio do percurso mais aberto e claro, pelo qual percebe-se a real intenção das ideias e dos propósitos, seja pelo caminho mais fechado e obscuro, sucedendo notadamente na distância da clareza do pensamento do autor. De uma forma ou de outra, a arte vem se apresentando em diversas situações, espaços e contextos os quais, por este modo de estar presente, embora sem impor regras de isolamento, resulta na formação de grupos de apreciadores que são segregados em conformidade com seus modos de entendimento e apreciação.

Linguagens complexas, das quais a absorção não acontece imediatamente, demandam reforços que as auxiliem na tentativa de se fazerem compreendidas. Arte, não necessariamente, está nesta categoria de absorvimento, ou seja, a realidade daquilo que se vê nem sempre foi almejada enquanto resultado compreensível quando executada pelo autor, que ao fazer a obra, preocupa-se com sua temática, seu jeito expressivo e técnico. Senão em acordo com os quereres do artista, juntam-se, a este processo, outras interpretações que vão atribuir novas leituras para a obra, permitindo que ela ganhe independência e cresça em simbologias e significações. Na trajetória do criar e executar a obra, instalam-se as questões estéticas, sejam elas construídas e pensadas em acordo com os princípios da beleza, da harmonia, ou mesmo realizadas sem essas preocupações corporizadas às condições de embelezamento e de gosto.

(26)

Roger Scruton, em seu livro Beleza, comenta a questão do gosto:

Numa cultura democrática, as pessoas tendem a julgar presunçosa a pessoa que afirma ter um gosto melhor que seu próximo. Ao fazê-lo, você estaria negando implicitamente o direito que ele tem de ser o que é... Cada qual se encontra encerrado em um mundo estético próprio e, enquanto nenhum fizer mal ao outro e todos desejarem seus bons-dias por sobre a cerca, nada mais há a ser dito. No entanto, como o próprio raciocínio democrático pressupõe, as coisas não são tão simples assim. Se é ofensivo menosprezar o gosto alheio, é porque o gosto, segundo o democrata, está intimamente associado à nossa vida pessoal e identidade moral. É parte de nossa natureza racional buscar uma comunhão de juízos, isto é, uma concepção comum de valor, porque é precisamente isso o que exigem a razão e a vida moral. E esse desejo de um consenso ponderado acaba transbordando para o senso da beleza. (SCRUTON, 2013, p.145-6).

Atribuir noções sobre o “bom ou mau gosto” implica em diversos aspectos, segundo o autor acima e segundo o consenso global. Não são aceitáveis leis acerca do quão bom ou mau poderia ser considerado o gosto alheio, em especial no que se refere à arte. Em contrapartida, existe uma porcentagem estética e, neste caso em particular sobre a beleza ou a feiura, contidas na obra, que rege alguns pontos a serem considerados no momento da análise e quando se investiga a dimensão do gosto para esta ou aquela expressão artística. Uma maneira adequada a se considerar nesse propósito seria examinar o objeto de arte enquanto objeto de estudo, tomando como parâmetro referências que justificam sua feitura, tais como materiais, estruturas formais, cromatismos, e a pertinência da obra em acordo com suas associações de cultura e linguagens. O gosto, seja alheio, seja atribuído pela História da Arte, distancia-se da opinião particular e entra no território do coletivo. A obra é interpretada por diversos ângulos e contextualizada a partir de especificidades que esbarram numa análise por meio de uma visão técnica e normativa. Por outro lado, para um segmento de artistas, o conceito de beleza ou feiura pode ser percebido de outro jeito, implícito ou explícito na obra, distante da clássica e metódica forma que podemos enxergar. Eles criam e executam peças de arte utilizando elementos que vão além da matéria, forma, cor e temática. Consideram, portanto, os projetos enquanto experimentos e incorporam condições de ousadia, atemporalidade, manifesto e poesia.

Por ousadia, no plano das artes, entende-se a independência que os criadores se permitem trazendo, de uma maneira destemida e sem comprometimento com os

(27)

acertos, linguagens que atestam seus modos em enxergar o sistema organizado dos seres humanos, estando ele em consonância com a ordem ou não. Para tanto não há limites no que tange o jeito em se pensar arte. Artistas criam, realizam e expõem trabalhos que traduzem seus anseios, seus traços em se mostrarem indivíduos, recorrendo à força bruta de suas capacidades expressivas.

Atemporalidade remete à linguagem artística num momento indefinido e sem localização precisa. O tempo se esconde, no contexto do assunto abordado na obra, prevalecendo a imagem de uma época não sabida, de uma era inexistente. O propósito do artista estrutura-se na condição de construir ou reproduzir cenas, figuras, espaços, formas, objetos, gestos, texturas, cores, considerando as sensações que a obra promove frente aos apreciadores da arte, portanto, o tempo torna-se irrelevante à luz da riqueza de significados introduzidos na obra, tomando a qualidade do objeto de arte enquanto extensão de um pensamento criativo.

Atribui-se, à atitude de manifesto, o comportamento e o posicionamento escolhido pelo artista a fim de transparecer seu modo de se ver e querer ser no ambiente onde está presente. A expressão artística também é resposta de uma manifestação oriunda do pensamento humano. Em regra geral, manifesto caracteriza-se por uma ação sócio-político-cultural, com o objetivo de expor, publicamente ou para um determinado grupo de indivíduos, um específico ponto de vista. Na esfera da arte, o manifesto foi uma forma encontrada por artistas engajados e críticos, mirando na direção da atenção do outro. Também é conhecida como arte protesto a atitude manifestada pelos artistas que, incomodados com um sistema de controle e de imposição, configura-se a partir da quebra dos padrões estabelecidos, portanto, a escolha pelo rumo na direção contrária ao fluxo comum.

A poesia é o modo de se expressar utilizando diferentes caminhos e linguagens, de maneira que o entendimento e a apreciação afloram em absorções não lineares. Artistas recorrem a formas poéticas para exporem seus sentidos que, por intermédio de veredas inusuais, clamam pela pureza, pela graça e a beleza emana dominando os sentimentos, as sensações de prazer. O rumo da poesia leva apreciadores ao lugar da compreensão do espírito, à vista disso, o arrebatamento artístico raia no estado sensível e não no discurso cerebral.

(28)

O belo, assim como o feio, correspondem a conceitos que os seres apreciadores das artes entendem ao depararem com algo percebido pelos sentidos, a saber, a natureza virgem, o objeto criado pelo homem, o som que altera a sensibilidade, o toque sobre uma matéria sensual, o cheiro que agrada e provoca reações prazerosas, bem como a visão de imagens extraordinárias. Se não captada pela presença física, a imagem também é capaz de remeter ao estado original do que é observado, de forma que, uma vez conhecedor do elemento visto, o ser humano transporta suas sensações, advindas de experiências vividas, associando-as ao argumento apresentado numa determinada reprodução imagética. As artes visuais tratam deste estado perceptivo. As obras carregam informações de outros contextos, sejam elas identificadas de acordo com suas configurações e semblantes, sejam estranhas e não claras, gerando novas sensações nos observadores. Analisando a questão da leitura visual, Alberto Manguel vai dizer, em Lendo Imagens:

As imagens, assim como as histórias, nos informam. Aristóteles sugeriu que todo processo de pensamento requeria imagens. ‘Ora, no que concerne à alma pensante, as imagens tomam o lugar das percepções diretas; e quando a alma afirma ou nega que essas imagens são boas ou más, ela igualmente as evita ou as persegue. Portanto a alma nunca pensa sem uma imagem mental’. Sem dúvida, para o cego, outras formas de percepção, sobretudo por meio do som e do tato, suprem a imagem mental a ser decifrada. Mas, para aqueles que podem ver, a existência se passa em um rolo de imagens que se desdobra continuamente, imagens capturadas pela visão e realçadas ou moderadas pelos outros sentidos, imagens cujo significado (ou suposição de significado) varia constantemente, configurando uma linguagem feita de imagens traduzidas em palavras e de palavras traduzidas em imagens, por meio das quais tentamos abarcar e compreender nossa própria existência. As imagens que formam nosso mundo são símbolos, sinais, mensagens e alegorias. Ou talvez sejam apenas presenças vazias que completamos com o nosso desejo, experiência, questionamento e remorso. Qualquer que seja o caso, as imagens, assim como as palavras, são a matéria de que somos feitos. (MANGUEL, 2001, p. 21).

A arte se constrói sobre o alicerce do repertório cultural e das experimentações, no entanto, a imagem, também construída pelos artistas, reproduz com fidelidade técnica e poética o que se pretende ilustrar. O belo e o feio estão presentes nas atitudes expressivas de seus autores, permitindo que seus modos de se manifestar estejam em consonância com os sentidos e os sentimentos de quem os contemplam. Beleza está associada ao aspecto das sensações prazerosas e sobre o que se entende

(29)

enquanto sublime e bom, ao passo que feiura remete ao que causa desconforto, perturba, assusta e traz o questionamento sobre o bem feito.

A beleza ou a feiura deixam seus postos de relevância na obra consentindo um avanço na leitura, ao mesmo tempo, conduzindo e contemplando o objeto de arte dentro de outro panorama de apreciação. Antecedendo as características estéticas, artistas visuais vão trabalhar com assuntos que aprofundam o valor da obra, logo, o objeto artístico existe por uma necessidade acima dos desejos plásticos, bem como os objetivos de se produzir algo que encante. Não se enquadrando nos aspectos da beleza ou da feiura, a obra de arte é rotulada como não clara, ou mesmo, incerta em seus valores obscuros. Neste dilema, sobre prismas do bom e do ruim, do sagrado e do profano, do aceitável e do rejeitável, entre a atração e a repulsa, surge o terceiro elemento que se localiza na bifurcação dos dois conceitos polares: o estranho.

Estranho, palavra originaria do Latim, extraneus, que exemplifica o que não é reconhecido, algo misterioso, excêntrico, incomum, diferente e bizarro, refere-se ao modo de se classificar aquilo que foge ao entendimento ou identificação. Diante de um embaraço na compreensão sobre um objeto, um texto, uma imagem, um som ou nesta linguagem corrente, a arte, elege-se esta denominação para restringir as explanações alusivas ao elemento percebido. Seja por insuficiência na habilidade de se traduzir o corpo esquisito, mediante palavras que o descrevam, seja pelo não encontro de um conceito que exprima seu ambiente dentro de códigos e simbologias, o termo estranho reduz as incertezas ao plano do cabível; assim sendo, estranho torna-se o que não se aproxima da familiaridade do entendimento, do aceitável, do crível e do gosto.

Estranho pode fazer parte de um segmento específico de acordo com a cultura e o comportamento de classes e povos. O que aparenta esquisito para um quadro social, não necessariamente recebe a mesma leitura por outros circuitos. Um desenho marcado na pele de um corpo humano, criando figuras ou formas decorrentes da genética e dos relevos das escarificações, poderá causar estranheza aos olhos de uma sociedade, todavia, enaltecer a beleza de um gênero. Pode ser apenas alguns detalhes sutis no rosto, no peito ou nos braços. Por outro lado, como sinal compartilhado de beleza e força, pode haver padrões intrincados de pontos e linhas

(30)

formando um conjunto elaborado. O importante, nesta esfera cultural, não é apenas o reconhecimento ou a estética, mas sim, o processo ritualístico de suma importância em diversas tribos africanas. Do mesmo modo, outras referências interpretativas sobre o conceito de estranheza, em um âmbito cultural, apresentam-se incertas, porém, costumeiras são, quando percebidas em sociedades com características diversas.

A beleza tem seu lugar no plano da estética estando em constantes debates, bem como submete-se a diversas contradições, exatamente por estar sob a cúpula das referências que protegem sua permanência na natureza vista. Por assim ser, ela perdura na mira dos olhares de consentimento e aprovação, entrementes, fragiliza-se ao se perceber algo que supere seu reino, sua soberania. A feiura, na outra extremidade dessa discussão, invariavelmente é reconhecida como tal, de acordo com os atributos que a condenam ao posto de indesejável, de preterida. Sendo feia, na feiura se enraíza e nessa condição, torna-se imutável, insolúvel, incapaz de mudar sua aparência, fracassando diante das tentativas de transfiguração.

A estranheza não se explica por meio da beleza, tampouco pela feiura, portanto, situa-se na esfera da incompreensão. O objeto visto não transparece situa-seu situa-semblante de forma que se perceba seus atributos reais, edificando-se em um terreno arenoso, portanto, impreciso.

O universo da arte contempla um mergulhar em incertezas permitindo, ao artista inquieto, uma profunda imersão rumo ao desconhecido. Desta forma, o que parece estranho aos olhos de observadores despreparados para a absorção de um modo distinto em se compreender, pode ser o alimento gerador de projetos e objetos artísticos ricos em múltiplas interpretações. A obra que requer uma contemplação prolongada, um estado de atenção e um comportamento analítico flexível, atua no campo da atração ampliando seu espaço, de um ponto de vista reduzido ou específico, para a dimensão de múltiplos valores, diversificados horizontes. Neste sentido o estranhamento na arte coloca o pensamento do espectador para além da lógica e do raciocínio linear. No solo desse terreno infértil o que se planta é a dúvida acerca da intenção do artista criador. A obra não se completa no círculo do entendimento, tampouco, floresce no envolvimento de quem a visita. O estranho sobressai à

(31)

capacidade da absorção e do querer ter, abrindo frestas para a entrada da desconfiança e do repúdio. O artista, debruçando-se no contrapeso desta situação, não se preocupa com a repulsa do apreciador da arte isolando-se no restrito campo de sua imaginação e impulso criativo. Para ele, a necessidade da expressão é superior à resposta de aceitação ou absorção do outro. Estranha ou não, para o criador, a obra de arte deve continuar viva, embora enigmática e indecifrável, mesmo porque, por vezes essa condição de esquisitice também lhe cerca os sentidos da sensatez e do gosto. No livro O belo autônomo, organizado por Rodrigo Duarte, David Hume escreve o capítulo ‘Do padrão do gosto’ e diz:

Quando qualquer objeto se apresenta ao olhar ou à imaginação pela primeira vez, o sentimento que ele provoca é obscuro e confuso, e o espírito se sente em grande medida incapaz de se pronunciar em relação às suas qualidades e defeitos. O gosto não consegue distinguir as várias excelências do objeto, e muito menos identificar o caráter particular de cada excelência, determinando o seu grau e sua qualidade. O máximo que se pode esperar é que se declare de uma maneira geral que o conjunto é belo ou disforme, e é natural que até mesmo essa opinião seja formulada por uma pessoa com bastante prática com a maior hesitação ou reserva. Mas se essa pessoa puder adquirir experiência desses objetos, o seu sentimento se tornará mais exato e sutil. Ela não apenas perceberá as belezas e defeitos de cada parte, como também assinalará o caráter distinto de cada qualidade, proferindo a aprovação ou a censura adequada. (HUME, 2013, p.101-2).

A dificuldade em se compreender uma obra pode estar relacionada à falta de informação sobre a obra vista. A linguagem da arte não se aplica na linearidade de uma fala, mas na complexidade de um pensamento desmembrado em fragmentos de sentimentos, sensações e subjetividades. A obra estranha, resultante do pensamento do artista criador, não se pretende alcançar o lugar do gosto de quem irá observá-la, ao contrário, ela se estrutura na incompreensão ou, no mínimo, no descomprometimento em ser clara, objetiva ou narrativa. Tal estranheza pode ser amenizada, aproximando-se do aceite, a partir da contemplação e de informações que sejam pertinentes à existência do objeto criado. A prática da contemplação e o interesse pela obra conduzem a apreciação para outro lugar na categoria do entendimento sobre a obra de arte. Mais adiante, David Hume completa seu trecho sobre o gosto, no rumo à beleza, mencionando que...

Tão importante é a prática para o discernimento da beleza que, para sermos capazes de julgar qualquer obra importante, é necessário

(32)

examinarmos mais de uma vez cada produção individual, estudando os seus diversos aspectos com a máxima atenção e deliberação. A primeira visão de qualquer obra vem sempre acompanhada de uma palpitação ou confusão do pensamento, que interfere entre as partes, nem se identificam os verdadeiros caracteres do estilo; e os diversos defeitos e imperfeições parecem envolvidos numa espécie de névoa confusa, apresentando-se de uma maneira distinta à imaginação. E isso sem lembrar que existe um determinado tipo de beleza, florida e superficial, que inicialmente agrada, porém, mais tarde, quando se descobre a sua incompatibilidade com a expressão justa da razão ou da paixão, logo torna o gosto insensível, passando a ser rejeitada com desprezo, ou ao menos passando a ser considerada de um valor muito inferior. (HUME, 2013, p.102).

Atribuir uma sentença sobre um objeto de arte que não se firma nos conceitos da beleza ou da feiura, sem se conhecer seus valores implícitos e em decorrência dessa ignorância de informações, o condenar à bizarrice, pode ser uma atitude impulsiva e imprecisa, rumando ao equívoco de uma apreciação mais competente no momento da observação da obra. O estranhamento atrai justamente por não ser explícito em expor a arte nas extremidades interpretativas. Não se classificando a obra artística pertencente ao território do belo ou do feio, atribui-se a ela o termo estranho referindo-se ao referindo-seu aspecto formal ou conceitual. Exige-referindo-se, dessa maneira, um aprofundamento nas intimidades da obra em questão para decifrá-la, para compreendê-la. A obra de arte que se mantém restrita ao embelezamento técnico e estético, sem um questionamento social ou cultural, torna-se meramente decorativa. Sua contemplação não necessita de um pensamento intelectual para ser absorvida. Ela ocupa e enfeita o espaço sem conter conteúdos que se estendem ao alimento da alma. O gosto torna-se questionável exatamente pelo aspecto raso e superficial que o objeto exposto torna-se pretende. Na dúvida acerca das condições estéticas da obra, há de se considerar os propósitos intencionais do artista criador, assim sendo, a atratividade inicial poderá caminhar, ainda que em passos lentos, para a constatação da importância artística dentro de um ambiente coletivo.

(33)

1.1 Reflexões sobre o

belo

O belo, em seu conceito clássico, caracteriza-se a partir da contemplação, pelo seu aspecto agradável e harmônico e, no entanto, sua força na condição de arte fica atrás do braço que carrega o peso atrativo na dianteira das manifestações artísticas, o que se entende pelo avesso da beleza. Neste sentido, a sedução, em obras de arte da atualidade, se manifesta por meio de outros predicados e não requer a aparência da beleza clássica como condição essencial para a apreciação dos observadores. Na outra ponta desta linha interpretativa encontra-se o entendimento de feiura, o que em arte, torna-se relativo e dúbio. Para compreender esta condição, seja estética, conceitual ou mesmo filosófica, há de se considerar os parâmetros procedentes da cultura e da história. A evolução da humanidade e de nossa existência nos mostra que estamos em constantes conflitos e mudanças de paradigmas. O que outrora fora considerado belo ou feio pode ter sofrido alterações em décadas posteriores. Os movimentos artísticos, inclusive a cultura, provam os rompimentos com valores que foram quebrados no decorrer dos tempos.

Criticar ou determinar padrões de beleza ou feiura, no território das artes visuais, pode ser arriscado considerando o trânsito entre a obra concebida e executada pelo artista, até a apreciação e contemplação dos espectadores. Discorrendo sobre esta condição contemplativa, no livro A definição da arte, Umberto Eco afirma:

A contemplação resulta justamente da conclusão da interpretação, e o interpretar consiste em colocar-se do ponto de vista do produtor, em repercorrer seu trabalho de tentativas e interrogações do material, de acolhida e escolha de pontos de partida, de previsões daquilo que a obra quer ser por coerência interna. E como o artista, a partir dos pontos de partida ainda inorganizados, advinha o resultado que ele mesmo postula, assim também o intérprete não se deixa dominar pela obra tal como lhe aparece fisicamente ao final do processo e, transportando-se para seu início, tenta captar a obra como devia ser, comparando essa forma ideal (a forma formante) que vai se delineando pouco a pouco, com a obra tal como efetivamente é (a forma formada), para então julgar as coincidências e divergências. (ECO, 2016, p.27).

A contemplação acentua o estado de assimilação da obra vista projetando o observador para dentro do universo sensível apresentado pelo artista criador. A beleza, resultante do ato contemplativo, manifesta-se em decorrência do tempo

(34)

silencioso diante do objeto presenciado. Ao autor da obra, esse flagrante apreciativo completa o sentido de se fazer arte, considerando que a expressão artística nasce na intenção de quem a concebe, mas se conclui no instante em que essa se mostra para o outro. Naturalmente que o “fazer arte” para os criadores não depende, necessariamente, do aceite dos estudiosos ou mesmo do público apreciador e consumidor. O artista cria e produz obras por uma necessidade que situa em um plano além do comprometimento em agradar ou suprir os desejos de quem vê, ou seja, seu trabalho artístico emerge de uma esfera que contempla o desconhecido, assim como suas explorações, isento do compromisso em ser pertencente a categorias preestabelecidas. Isto pode acontecer nas artes visuais, na música, na poesia ou em qualquer outra modalidade que demande sensibilidade para ser apreciada.

Antes de aprofundar o assunto sobre a beleza, vale ressaltar alguns posicionamentos acerca dessa temática. Em seu livro "Convite à estética", no capítulo “Rumo a uma definição real do belo”, Adolfo Sanchez Vazquez diz:

No Renascimento deixa-se para trás a prática artística medieval na qual os produtos são considerados belos por servir a Deus. Agora se pensa que são belos de um modo essencial e constitutivo. O artista deixa de ser o artesão que produz artefatos belamente e se converte no criador de obras belas ou, como são conhecidas modernamente, ‘obras de arte’. Os artistas aspiram a criar objetos que tenham a qualidade do belo que encontram na natureza. E quando deparam com uma realidade que não é bela por si mesma procuram embelezá-la ao representá-la, embora isso implique desrealizá-la ou idealizá-la. (VAZQUEZ, 1999, p.196).

A menção acima, que auxilia na fundamentação do conceito de beleza, vai sofrer alterações ao longo do tempo. O que fora atribuído como beleza no período Renascentista, assim como nos demais movimentos posteriores, serão questionados pela própria existência mutante da natureza e da apreciação do público. A beleza será percebida em outros aspectos que farão artistas e apreciadores repensarem os conceitos remotos ou restritos a alguns critérios, tais como a simetria, a harmonia e o equilíbrio. Atentando à evolução do gosto, bem como às determinações sobre a estética do belo, percebe-se que esses padrões sofreram mudanças expressivas no decorrer das décadas. A história mostrou que os modelos se moveram de uma cultura para outra estabelecendo, desta forma, contrastes e discordâncias a respeito do que antes eram estatutos. Adiante, o autor revelará que a beleza é mutável, em particular, quando menciona a representação do corpo humano enquanto objeto de arte.

Referências

Documentos relacionados

devidamente assinadas, não sendo aceito, em hipótese alguma, inscrições após o Congresso Técnico; b) os atestados médicos dos alunos participantes; c) uma lista geral

A prova do ENADE/2011, aplicada aos estudantes da Área de Tecnologia em Redes de Computadores, com duração total de 4 horas, apresentou questões discursivas e de múltipla

• Comentários do presidente da comissão sobre a reunião da Comissão Especial para Desenvolvimento de Seguros de Danos da Susep;. • Comentários do vice-presidente sobre o IV

Declaro meu voto contrário ao Parecer referente à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apresentado pelos Conselheiros Relatores da Comissão Bicameral da BNCC,

A elaboração das atividades pautou-se em quatro pontos importantes enumerados por Sasseron (2011) para fundamentar o planejamento de Sequências de Ensino

O kit Canine Leptospira foi projetado para determinar em soros de caninos, títulos de anticorpos séricos de diferentes sorovares patogênicos de Leptospira interrogans,

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

Tal será possível através do fornecimento de evidências de que a relação entre educação inclusiva e inclusão social é pertinente para a qualidade dos recursos de