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O posicionamento discursivo de internautas nos comentários sobre a animação bíblica "The Book of Job" : um encontro entre literatura, multimodalidade e discurso

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MARIANA JUNIA GOUVEA DOS SANTOS

O POSICIONAMENTO DISCURSIVO DE INTERNAUTAS NOS

COMENTÁRIOS SOBRE A ANIMAÇÃO BÍBLICA THE BOOK OF JOB:

UM ENCONTRO ENTRE LITERATURA, MULTIMODALIDADES E

DISCURSO

CAMPINAS

2019

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O POSICIONAMENTO DISCURSIVO DE INTERNAUTAS NOS

COMENTÁRIOS SOBRE A ANIMAÇÃO BÍBLICA THE BOOK OF JOB:

UM ENCONTRO ENTRE LITERATURA, MULTIMODALIDADES E

DISCURSO

Dissertação apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Mestra em Linguística Aplicada, na área de Linguagem e Educação

Orientadora: Prof. Dra. Cynthia Agra de Brito Neves

Este exemplar corresponde à versão

final da Dissertação defendida pela aluna Mariana Junia Gouvea dos Santos e orientada pela Profa. Dra.

Cynthia Agra de Brito Neves

.

CAMPINAS

2019

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Leandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343

Santos, Mariana Junia Gouvea dos,

Sa59p SanO posicionamento discursivo de internautas nos comentários sobre a animação bíblica "The Book of Job" : um encontro entre literatura,

multimodalidade e discurso / Mariana Junia Gouvea dos Santos. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

SanOrientador: Cynthia Agra de Brito Neves.

SanDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

San1. Multimodalidade (Linguística). 2. Leitura subjetiva. 3. Literatura. 4. Análise do discurso. 5. Bíblia. I. Neves, Cynthia Agra de Brito. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The discursive positioning of internet users in the comments on the biblical animation "The Book of Job": : an encounter between literature, multimodality, and discourse Palavras-chave em inglês: Multimodality (Linguistics) Subjective reading Literature Discourse analysis Bible

Área de concentração: Linguagem e Educação Titulação: Mestra em Linguística Aplicada Banca examinadora:

Cynthia Agra de Brito Neves [Orientador] Claudia Hilsdorf Rocha

Eiane Fernandes Azzari Data de defesa: 16-08-2019

Programa de Pós-Graduação: Linguística Aplicada

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-0848-6135 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/0104932357515171

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Cynthia Agra de Brito Neves Cláudia Hilsdorf Rocha

Eliane Fernandes Azzari

IEL/UNICAMP 2019

Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria de Pós Graduação do IEL.

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Eu te conhecia só de ouvir, mas agora meus olhos te veem.

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Agradeço aos meus pais porque sonharam, choraram e se alegraram juntamente comigo.

Agradeço à Cynthia Agra de Brito Neves por acreditar, investir, possibilitar e orientar minha jornada. Sua dedicação sempre me inspirará.

Agradeço ao Instituto de Estudos da Linguagem, à equipe de Pós-Graduação a ao Departamento de Linguística Aplicada pela excelência e acolhimento que sempre

demonstraram.

Agradeço ao corpo docente – professores maravilhosos que alegremente repartiram generosas porções, crendo que gerariam bons frutos.

Agradeço também aos queridos colegas que tornaram a jornada mais leve e prazerosa.

Agradeço ao meu Fiel Amigo, fonte de toda inspiração e Criador de todas as coisas. As muitas palavras seriam insuficientes para descrever as bençãos recebidas de

Sua mão.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

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Este trabalho explora o posicionamento discursivo de internautas que se expressam no site de compartilhamento de vídeos YouTube por meio de comentários sobre a animação de curta duração da história bíblica de Jó, intitulada The book of Job, produzida pela equipe The Bible Project. Como fundamentação teórica nos baseamos nas correntes que inserem o leitor no foco da discussão, como a teoria da recepção e a teoria da leitura subjetiva. Neste trabalho, consideramos a Bíblia uma obra literária universal, fonte inspiradora de inúmeras produções multissemióticas , como é o caso do nosso objeto de estudo, o vídeo site The book of Job Para analisarmos a animação, recorremos a autores que discorrem sobre multimodalidades, mudança das mídias e suportes na era digital e suas implicações na (re)construção de sentidos dos textos. Trata-se de uma pesquisa qualitativa em que se propõe uma análise discursiva dos comentários dos internautas sobre a referida animação, baseando-se principalmente na noção bakhtiniana de discurso. O corpus de análise consiste em uma seleção de comentários com maior representatividade, como o maior número de curtidas e as respostas de internautas. Nesses comentários pudemos identificar posicionamentos que, ora ecoavam discursos concordantes e elogiosos à animação, ora ecoavam vozes destoantes e questionadoras. Enfim, esta dissertação abrange diferentes campos teóricos, que dialogam nas análises dos dados, tal como a proposta transdisciplinar da Linguística Aplicada.

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This paper explores the discursive positioning of internet users expressing themselves on the YouTube video-sharing site through comments on the short-lived animation of Job's biblical story, named The book of Job, produced by The Bible Project team. As theoretical basis we are based on the currents that insert the reader into the focus of the discussion, such as the Theory of Reception and the theory of subjective reading. In this paper, we consider the Bible to be a universal literary work, inspiring source for countless multisemiotic productions, such as the object of our study, the video The book of Job. To analyze the animation, we have dived into the authors who discuss about multimodalities, change of media and media in the digital age and their implications in the (re) construction of text meanings. This is a qualitative research that proposes a discursive analysis of the comments of Internet users about this animation, based mainly on the Bakhtinian notion of discourse. The corpus of analysis consists of a selection of comments with greater representation, such as the highest number of likes and the responses of Internet users. In these comments we were able to identify discursive formations that sometimes echoed discordant and complimenting speeches to the animation, sometimes echoed disagreeable and questioning voices. Finally, this dissertation covers different theoretical fields, which dialogue in data analysis, such as the transdisciplinary proposal of Applied Linguistics.

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Objetivos, perguntas de pesquisa e disposição dos capítulos ... 15

CAPÍTULO 1 - LITERATURA E LEITOR ... 19

1.1 Literatura, Estética da Recepção e Leitura Subjetiva ... 20

1.2 A Bíblia e o texto literário ... 32

CAPÍTULO 2 - MULTIMODALIDADES: A EVOLUÇÃO DAS MÍDIAS E AS MUDANÇAS SOCIOCULTURAIS EM PARALELO ... 44

2.1 Cinco gerações tecnológicas ... 46

2.2 Multimodalidades: uma breve retomada ... 50

2.3 Comunicação online ... 57

CAPÍTULO 3 - METODOLOGIA DE PESQUISA ... 61

3.1 Contexto da pesquisa ... 63

3.2 Noções de discurso mobilizadas na análise... 67

3.3 Elaboração do corpus – os caminhos percorridos ... 76

CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DE DADOS ... 85

4.1 A Animação The Book of Job ... 86

4.2 Análise do Corpus Textual – Comentários por ordem de representatividade ...105

CAPÍTULO 5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS ...122

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INTRODUÇÃO

“As obras dissolvem as fronteiras de sua época, vivem nos séculos, isto é, no grande

tempo, e além disso levam frequentemente (as grandes obras, sempre) uma vida mais

intensiva e plena que em sua atualidade” (Bakhtin, 2003, p. 362) Em março de 2015, a rede de televisão Record passou a exibir a novela Os Dez Mandamentos, escrita por Vivian de Oliveira e dirigida por Alexandre Avancini. O elenco contava com alguns nomes comuns à teledramaturgia brasileira, como Iran Malfitano, Camila Rodrigues, Roger Gobeth, Gisele Itiê e Sérgio Marone. A saga foi dividida em duas temporadas que recontavam as passagens dos livros bíblicos de Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio – quatro dos cinco volumes que compõem o Pentateuco que, de acordo com Frye (2004), pode ser considerado a principal porção do Velho Testamento. Episódios como as Dez pragas, a Abertura do Mar Vermelho e os Quarenta anos no deserto foram acrescidos por tramas, romances e aventuras paralelos que não constam nas Escrituras: todo esse arranjo garantiu não apenas a simpatia dos espectadores, mas também indicações no Seoul International Drama Awards (categoria de melhor novela)1 e Shorty Awards (categoria televisão)2. A novela foi precedida por muitas minisséries bíblicas da mesma emissora, como A história de Ester (2010), Rei Davi (2012) e Milagres de Jesus (2014). Outras novelas com adaptações da Bíblia, como Terra Prometida, continuaram a marcar presença em horário nobre, evidenciando assim que a aposta da emissora Record em se lançar ao campo do sagrado foi bem-sucedida, e pode colocar em xeque a premissa de que fé e religião não agradam ao grande público.

O Brasil é reconhecido como um país majoritariamente cristão3 e, ainda que tenha a liberdade religiosa assegurada pela Constituição4, fora dos templos ou de 1 Conhecida como SDA, trata-se de uma cerimônia de premiação realizada em Seul, na Coreia do Sul,

que reconhece as melhores produções internacionais da televisão. Disponível em:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Seoul_International_Drama_Awards. Acesso em: 24 de julho de 2019. 2 Ou simplesmente Shorties, trata-se de um evento de premiação anual para homenagear os criadores

de curtas no micro-blogging Twitter e nas redes sociais. Disponível em:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Shorty_Awards. Acesso em: 24 de julho de 2019.

3 Dados do censo de 2010 levantado pelo IBGE confirmam que o Brasil se mantém majoritariamente cristão, com 64,6% de católicos e 22,2% de evangélicos. Houve um aumento da diversidade religiosa no país com o crescimento das religiões como candomblé, umbanda, judaísmo, islamismo, budismo hinduísmo e tradições indígenas. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?id=3&idnoticia=2170&view=noticia. Acesso em: 27 de julho de 2019.

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ambientes de reunião, percebe-se, em geral, um acordo velado de não explorar o assunto demasiadamente, a menos que exista interesse mútuo. De acordo com Alves (2019), essa fuga do tema teve início com a expansão dos Estudos Sociais no país, por volta de 1930. O autor esclarece que para importantes nomes da Sociologia, como Weber, Marx e Engels, a religião constituía uma problemática cuja complexidade representava principalmente um retrocesso científico. Alves (2019, p. 66) afirma que não se pode ignorar o papel central da religião na formação coletiva e cultural de um país ou civilização, sem que se sofra algum tipo de perda e sem sentir os efeitos negativos desta concepção equivocada:

A religião, entre nós, ocupou sempre um lugar marginal e de importância secundária. Assim, não encontramos, dentro do que foi produzido na área da sociologia da religião, nenhum esforço teórico globalizante que coloque a religião no centro mesmo da teoria sociológica.

O apagamento proposital do tema gerou uma sensível lacuna acadêmica que ainda hoje vem sendo reparada. Salvo seminários teológicos, normalmente financiados por instituições de cunho religioso, a compreensão de fenômenos religiosos, práticas/objetos em seu entorno e a influência cultural e histórica que exercem são temas que dificilmente encontram guarida nos centros de pesquisa. Diante desse cenário, nos chama a atenção a popularidade das superproduções de temática religiosa e a conquista da aceitação do público, que levaram a emissora Record a realizar elevados investimentos financeiros para garantir a produção de novelas e minisséries, como as acima mencionadas.

Abordamos esses dados iniciais para situar nosso objeto de estudo, que embora não pertença à realidade televisiva, é também uma releitura de uma passagem bíblica, porém veiculada em redes sociais online. O trabalho que aqui apresentamos visa analisar uma animação da história bíblica de Jó, a partir dos discursos e posicionamentos expressos pelos internautas (leitores) na seção de comentários do YouTube. A animação foi produzida pela equipe The Bible Project (doravante TBP), composta principalmente por profissionais de artes visuais e animação gráfica, cujo trabalho já ultrapassa a divulgação de 100 vídeos de temática bíblica. Nossa hipótese é que os comentários mais populares, isto é, com maior número de curtidas e respostas, nos permitirão identificar discursos que poderão

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ecoar a mensagem cunhada na animação, ou ainda discursos de autoridade (Azzari, 2017) em relação ao texto bíblico.

A leitura das páginas que se seguem são um convite para um olhar literário, multimodal e discursivo da realidade presente nos dados coletados. Os caminhos percorridos nos permitiram buscar pontos de convergência entre três temas centrais: 1) a Bíblia como obra literária universal, fonte inspiradora de inúmeras produções semióticas; 2) a possibilidade de releitura multimodal da adaptação para animação online e suas implicações na reconstrução do sentido da história bíblica; e 3) uma análise discursiva dos principais posicionamentos dos internautas que tiveram acesso à animação, tomando como base a noção bakhtiniana de discurso. Ao longo da pesquisa, percebemos a grande abrangência de nosso objeto de estudo, de modo que, para atingir o objetivo proposto, recorremos aos mais diversos campos de estudo da(s) linguagem(ns).

Nosso percurso inicia-se com a compreensão de que mudanças de abordagem da leitura ocorreram desde a metade do século passado, o que influenciou não apenas a esfera acadêmica, mas também a educação e a sociedade como um todo. Rojo (2004) e Kleiman (2004) esclarecem que houve uma descentralização dos textos e autores, caminhando para a centralidade do leitor no processo da leitura. No campo da literatura, a estética da recepção encontra guarida nas impressões do leitor (Eagleton, 2006), juntamente com a corrente teórica francesa que encoraja a leitura subjetiva – teorias essas que estão de acordo com nossa linha argumentativa sobre o papel social da literatura, principalmente quando se considera a centralidade do leitor.

Elementos de mitologia e religiões pagãs povoaram as produções artísticas ao longo da história, contudo os temas bíblicos nunca desapareceram da arte. Michelangelo retratou inúmeras personagens e episódios bíblicos no teto da Capela Sistina. Leonardo da Vinci inspirou-se na famosa cena em que o anjo Gabriel comunica à Maria que ela seria a mãe do Salvador para pintar o quadro A Anunciação. O poema épico Paraíso Perdido, de John Milton, retrata a figura ardilosa de Satanás, que induz Adão e Eva a comerem o fruto proibido. Machado de Assis, em seu conto Entre Santos, narra o encontro secreto dos santos ao longo da madrugada para comentarem as fatídicas orações de seus fiéis. Como se vê, a Bíblia é uma obra prima da Literatura uma vez que constitui fonte de inspiração para outras obras e gêneros artísticos célebres (Frye, 2004)

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De fato, os temas bíblicos vêm sendo explorados em diferentes suportes ao longo dos séculos. Uma hipótese para isso pode ser contemplada na epígrafe que abre a introdução, na qual Bakhtin (2003) afirma que as grandes obras não estão encerradas em seu próprio tempo de produção, pois não se apegaram a temas que lhe fossem contemporâneos, ao contrário, as grandes obras abarcam temas e dilemas atemporais e por essa razão podem se tornar ainda mais populares quando decorridos séculos de sua publicação inicial. Assim, não é de se admirar que Shakespeare ainda seja lido e relido na atualidade, à luz de uma leitura carregada de sentidos socialmente construídos ao longo de quatro séculos após sua morte. Com relação à obra literária, afirma Bakhtin (2003) que “não se pode fechá-la nessa época: sua plenitude só se revela no grande tempo” (Bakhtin, 2003, p. 364). Embora o autor não se refira propriamente à ressemiotização das composições literárias, podemos considerar que uma obra clássica, desdobrada em diversas semioses, também pode despertar interesse no leitor contemporâneo.

Entendemos ainda que a Bíblia pode compor o grupo das grandes obras clássicas da literatura. O foco principal de nosso trabalho não é o discurso religioso, porém é impossível ignorar o tema, uma vez que nossa análise decorre dos comentários de internautas, possivelmente entrecortados pela carga religiosa que o Livro Sagrado agrega. Como todo enunciado é formulado a partir de uma densa e complexa rede de outros enunciados e discursos, histórica e socialmente imbricados (Bakhtin, 2003), por essa razão, não é de surpreender que o tema religião possa surgir em algum ponto de nossas análises.

Ao adotarmos por um instante a ótica do espectador, notamos que o acesso às narrativas bíblicas sob a roupagem televisiva pode conferir ao processo de interpretação da história um sentido completamente novo. O discurso bíblico religioso, geralmente restrito às missas e cultos, encontra-se agora na televisão, mais especificamente na Record. É possível que muitos espectadores possuam um exemplar da Bíblia em casa, guardado na estante ou talvez aberto no Salmo 91. Entretanto, poucos são os leitores que, dotados de muito interesse, se aventuram pelas páginas do livro Sagrado sem grandes dificuldades. De acordo com Frye (2004), a leitura bíblica é árida e nada convidativa ao leitor menos experiente. Logo, esse movimento de ressemiotização permite que os espectadores indiferentes a qualquer assunto relacionado à história do povo hebreu possam contemplar, do conforto de

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suas casas, a história recontada em formato de capítulos de novela – gênero tão familiar aos brasileiros.

De acordo com Santaella (2007), que discorre sobre as gerações tecnológicas, houve uma evolução nos suportes e meios, de modo que o surgimento de um novo suporte ou meio não implica necessariamente a extinção dos precedentes, eles podem coexistir sendo apenas deslocados para suprir um propósito diferente. Nos exemplos já citados, referentes às telenovelas bíblicas, às obras de arte e às obras literárias inspiradas na Bíblia, percebemos que o texto bíblico pode habitar/perpassar inúmeros dispositivos e suportes, tais como: jornais, revistas, emissoras de televisão, rádios etc.

O YouTube foi a plataforma escolhida para nossa análise por ser a mais popular dentre os sites de redes sociais adotados pela equipe TBP, já que conta com ampla participação dos internautas sob a forma de comentários. Silva (2017, p. 5) explica que “o YouTube tem uma série de recursos que permitem que os internautas troquem experiências e mensagens, criem grupos e realizem outras atividades de redes sociais”. Mais que um espaço colaborativo, o autor afirma que o site veicula valores sociais e culturais, uma vez que os comentários ali expressos representam uma das principais formas de comunicação entre os moderadores dos canais de vídeos e seus seguidores.

O vídeo selecionado é uma animação baseada na história de Jó, narrativa bíblica amplamente conhecida, cujo personagem principal, patriarca de uma renomada família e possuidor de uma imponente riqueza, perde todos os seus bens e entes queridos em uma sucessão de acontecimentos trágicos. As mazelas da personagem Jó, a influência dos amigos e os questionamentos direcionados à figura divina são retratados pela equipe TBP em uma animação que dura 7’14”, e conta com dois narradores. Para contextualizar a pesquisa, inicialmente descreveremos o vídeo, contrastando-o com o texto bíblico adotado para a sua adaptação (Hutcheon, 2013; Greenberg, 1997).

A escolha do objeto de pesquisa nasceu de meu interesse particular pela Bíblia, um livro que possibilita vivenciar a leitura subjetiva, tal qual proposta pelos autores franceses Rouxel e Langlade (2013). Ao me deparar com as produções multimodais da equipe TBP, constatei um ponto de encontro entre a animação, a teoria da recepção e a leitura literária subjetiva, todas áreas de meu interesse de pesquisa, por isso procurei convergi-las neste trabalho. De natureza transdisciplinar,

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a Linguística Aplicada é uma ciência da linguagem que se coloca para além do ensino, como é o caso da pesquisa que desenvolvemos. Muitas vezes, é necessário que diversas áreas sejam articuladas para que os objetivos de uma pesquisa sejam atingidos. Signorini (1998) reconhece que a Linguística Aplicada avança por zonas fronteiriças de disciplinas como Antropologia, Sociologia, Pedagogia, Psicanálise, etc., ou seja, para além das teorias dos estudos da linguagem até então existentes. A autora afirma que a Linguística Aplicada:

Têm-se também constituído como uma área feita de margens, de zonas limítrofes e bifurcações, onde se tornam móveis as linhas de partilha dos campos disciplinares e são deslocados, reinscritos, reconfigurados, os constructos tomados de diferentes tradições e áreas do conhecimento (SIGNORINI, 1998, p. 100).

Zonas limítrofes e bifurcações são expressões que se aplicaram ao longo desta pesquisa, levando-nos a constantes reestruturações de nossas abordagens, de modo que, mesmo após o término deste trabalho, afirmamos que não há solidez que não possa ser minimamente questionada. Caminhando sobre essa tênue linha da construção de novos saberes, prosseguimos em direção a um tema difuso, constituído pela convergência entre literatura, discursos religiosos e tecnologias comunicativas, cuja discussão é pertinente aos dias atuais.

Objetivos, perguntas de pesquisa e disposição dos capítulos

Considerando-se a leitura de textos escritos um ato enunciativo que mobiliza posicionamentos valorativos, acreditamos que esse conceito possa ser aplicado à leitura de textos que circulam nas mídias contemporâneas. Longe de ser simples recursos, essas mídias encontram-se atreladas a forças políticas e econômicas (Lemke, 2009), o que desperta nosso interesse de investigar como se dá a recepção dos leitores internautas, expressa por meio de comentários na plataforma YouTube, referente à adaptação para animação The book of Job (doravante TbJ), produzida pela equipe TBP. Nossos objetivos específicos são:

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1- Analisar quais discursos são mobilizados na animação, tendo como base de comparação o texto bíblico a que se refere, a partir dos conceitos teóricos discutidos ao longo de todo o trabalho.

2- Analisar uma seleção de comentários – os mais populares, cuja representatividade do posicionamento tende a ser mais significativa, – referentes à animação supracitada, verificando se/como/em que medida replicam os discursos identificados no objetivo 1.

Também formulamos algumas perguntas para direcionar as abordagens metodológicas aplicáveis, bem como as ferramentas utilizadas em cada etapa:

1- Quais discursos podem ser percebidos na leitura multimodal da animação? Como esses discursos dialogam com a leitura literária do texto bíblico?

2- Quais “posicionamentos discursivos”5 podem ser identificados no corpus selecionado, isto é, nos comentários dos internautas acerca do discurso religioso, da Bíblia e da animação, respectivamente?

Partimos de um paradigma interpretativista de pesquisa, de natureza qualitativa (Bortoni-Ricardo, 2008), uma vez que os dados coletados serão interpretados à luz de teorias compatíveis com a concepção de linguagem que propusemos até aqui. Os capítulos desta dissertação foram organizados de forma a embasá-la teórica e metodologicamente. Por um lado, nossa questão se refere à análise dos enunciados nos comentários sobre o vídeo; por outro, sendo a Bíblia um livro literário, não podemos desconsiderar as noções de leitura literária envolvidas. Por fim, tendo em conta que o vídeo consiste em uma animação exibida em uma plataforma virtual, também devemos tratar das multimodalidades. Nesse sentido, apresentamos dois capítulos teóricos que abordam aspectos importantes dessa discussão, enquanto aspectos relativos ao discurso foram tratados no capítulo referente à metodologia de pesquisa.

No primeiro capítulo, Literatura e Leitor, discorremos sobre alguns aspectos da leitura literária, inicialmente a partir das ideias de autores como: Cosson 5 Usamos o termo “posicionamentos” (Barton e Lee, 2015) para nos referirmos aos comentários dos internautas leitores da animação. E “discursivos” no sentido bakhtiniano do termo.

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(2014), Candido (2004) e Eco (2003), relevantes para a leitura literária e a formação cidadã. Em seguida, tratamos da Estética da Recepção, de acordo com o que propõem Eagleton (2006) e Zilberman (2008). Abordamos também as noções de leitura, propostas por Rojo (2004) e Kleiman (2004), que explicam a diferença da leitura que decodifica unidades alfabéticas e a leitura socialmente participativa A partir daí, explicamos o conceito de leitura subjetiva defendida por Rouxel, Langlade e Rezende (2013), autores que valorizam a leitura literária subjetiva do leitor, base teórica discutida em nossas análises. Encerremos o capítulo com um levantamento teórico acerca da concepção literária do texto bíblico, objeto da recepção dos leitores e, portanto, passível de leitura subjetiva; para isso utilizamos como base teórica os autores Auerbach (1987), Frye (2004) e Gabel e Wheeler (1993).

No segundo capítulo, intitulado Multimodalidades: a evolução das mídias e as mudanças socioculturais em paralelo, abordamos inicialmente as multimodalidades como uma área de estudos bastante ampla e levantamos reflexões sobre mudanças sociais que acompanham as mediações tecnológicas (Santaella, 2007). Em seguida, discorremos sobre as ideias de Jewitt (2009), Iedema (2003) e Lemke (2009), que lançam olhares sob diferentes perspectivas ao discutirem o conceito de novas mídias. Nessa seção, incluímos ainda algumas considerações sobre o que são as adaptações (Hutcheon, 2013) e a ideia de transmídia traversals (Lemke, 2009), que revela o interesse comercial por trás de produções e adaptações de obras conhecidas. Para finalizar o capítulo, discorremos a respeito da Comunicação Mediada por Computador (CMC), de modo a situar a plataforma YouTube como mídia social. Para isso recorremos às ideias de Recuero (2009, 2014) e Silva (2017), Barton e Lee (2015), que trazem contribuições significativas com relação ao estudo de redes sociais.

O terceiro capítulo, Metodologia de pesquisa, descreve as ferramentas metodológicas utilizadas para a coleta e análise do corpus. Articulamos nosso tema ao campo da pesquisa em Linguística Aplicada, de cunho qualitativo interpretativista (Bortoni-Ricardo, 2008). Trata-se ainda de um estudo de caso (André, 1995), dada a especificidade do contexto estudado. Ao nosso ver, a pesquisa também se enquadra no que Brandão (2014) denomina espaço discursivo, que foi elucidado no capítulo em questão. Em seguida, descrevemos o site da equipe TBP e justificamos a escolha do vídeo selecionado, além de tecer algumas considerações sobre a análise de produções multimodais baseadas em Lankshear e Leander (2005), Burn (2010) e Kress e Mavers (2005). Prosseguimos o capítulo fomentando uma discussão sobre as

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noções de discurso pautada em Bakhtin (2003), e também retomamos as ideias de Azzari (2017) e Brandão (2014), que muito contribuíram para esse terreno teórico. O último tópico consistiu em uma descrição da coleta de dados com explicações acerca dos diferentes tipos de ferramentas utilizadas ao longo do processo, embora tenhamos abandonado algumas delas até chegar ao corpus textual analisado, composto de 11 comentários de maior representatividade. Ao fim deste capítulo, sustentamos teoricamente a ideia de Bíblia como gênero literário e fizemos uma descrição analítica da animação TbJ.

O quarto capítulo, Análise de dados, foi dividido em duas subseções devido à diferença da natureza dos dados – uma animação e um corpus textual de comentários. Na primeira parte, apresentamos imagens intercaladas com a transcrição da narração do vídeo TbJ, desenvolvendo uma descrição teórico-analítica dos principais posicionamentos ali presentes, através das concepções propostas por Greenberg (1997) e Pessoa (2017), e também trazemos alguns trechos do livro de Jó para fins de comparação com a animação. Na segunda parte, o corpus textual dos comentários foi introduzido e passamos a analisa-los utilizando principalmente a noção de discurso bakhtiniano defendido no capítulo 3, e também com base na leitura subjetiva (Rouxel, Langlade e Rezende, 2013), além de de outras ideias de diversos autores das principais teorias levantadas ao longo deste trabalho.

No quinto e último capítulo, Considerações Finais, apresentamos o caminho por nós percorrido, mostrando quais pontos nos chamaram mais atenção ao longo da pesquisa e nos direcionaram aos resultados obtidos a partir das análises. Definidos pela natureza qualitativa deste trabalho, os resultados são, na verdade, muito mais um convite à reflexão dos encontros proporcionados pelo tema do que uma quantificação objetiva deste.

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CAPÍTULO 1 - LITERATURA E LEITOR

Toda a função da leitura é [...] levar-nos a uma autoconsciência mais profunda, catalisar uma visão mais crítica de nossas próprias identidades. É como se aquilo que lemos, ao avançarmos por um livro, fôssemos nós mesmos (Eagleton, 2006, p. 120). Neste capítulo, tomamos como ponto de partida os temas leitura e literatura, que culminam em uma discussão sobre o sujeito leitor e as realocações do autor, do texto e do contexto cultural em se tratando de leitura literária sob a perspectiva da Estética de Recepção e da teoria francesa da leitura subjetiva. Escolhemos esses temas e referenciais teóricos por que pretendemos analisar, nesta pesquisa, os comentários dos internautas acerca da Bíblia – aqui tratado como texto literário por excelência – e da animação, uma vez que o vídeo TbJ apresenta-se como uma releitura multimodal do livro de Jó, do Antigo Testamento. Como veremos, além de um compilado de escritos históricos, a Bíblia Sagrada é considerada uma obra literária por muitos autores, dentre os quais estão Frye (2004) e Auerbach (1987). Esse foi um dos pontos que nos levou a retomar a importância social da literatura.

Nos estudos literários podemos apontar a Estética da Recepção como um movimento que propõe a centralidade do leitor no processo de interpretação de uma obra literária. Consideramos que o feed de comentários do YouTube é um espaço no qual as impressões pessoais dos internautas são exteriorizadas, e ali eles podem assumir posicionamentos discursivos a partir da leitura subjetiva que fazem do vídeo assistido. Nosso interesse em compreender as teorias de leitura e o papel do leitor na interpretação do texto literário bíblico deve-se ao fato de que nesse ambiente encontramos indícios de como e em que medida os espectadores do vídeo TbJ apropriaram-se subjetivamente da mensagem veiculada pela equipe TBP.

Focaremos apenas na leitura do texto escrito, excluindo os textos imagéticos, sonoros e performáticos, entre outros textos multimodais, que serão contemplados no capítulo subsequente, cujo objeto de estudo consiste em uma animação, gênero multimodal por excelência. Esclarecemos ainda que, embora nosso interesse não seja a leitura literária escolar propriamente dita, pareceu-nos pertinente recorrermos às pesquisas da Educação sobre leitura, primeiro por se revelarem completas e cabíveis aos nossos interesses e segundo porque compreendemos que a linguagem é educativa e a leitura literária, ensinável.

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1.1 Literatura, Estética da Recepção e Leitura Subjetiva

Uma abordagem histórica da literatura nos faria percorrer tão longe quanto a história das línguas alcança. Para citar um único exemplo, Frye (2004) relata que a língua árabe se espalhou até o ponto onde se estendeu o Corão, e não apenas alcançou diversos povos, como também inevitavelmente foi sendo transformada à medida que os escritos religiosos foram sofrendo alterações. Isso sem falar das histórias literárias que povoam o imaginário de culturas inteiras e que se eternizaram na forma de adaptações (Hutcheon, 2013), (res)significando a literatura para as novas gerações.

Antes de prosseguir com nossa discussão, tomamos as palavras de Candido (2004) para definir literatura, já que o autor descreve a literatura com a abrangência que gostaríamos de conferir a ela neste trabalho:

Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis de produção escrita das grandes civilizações (CANDIDO, 2004, p. 174).

Baseado nessa definição, Cosson (2014) estabelece alguns pontos fundamentais da literatura. Para o autor, a linguagem é comparável a um “corpo”, o qual exercitamos através do uso da palavra. A apropriação individual e coletiva da linguagem é justamente o que evita que este corpo se atrofie. Uma das formas centrais do uso da palavra é a escrita, pois ela está infiltrada em diversos ambientes, permitindo armazenar conhecimentos e organizar nossa sociedade. Nesse sentido, a literatura, ainda segundo o autor, representa o perfeito exercício do corpo linguagem, porque explora as potencialidades das palavras de forma que nenhuma outra atividade humana faz. Além disso, a literatura é “plena de saberes sobre o homem e o mundo” (Cosson, 2014, p.17). Ler ou escrever literatura é aguçar o senso de si mesmo e da comunidade em que se vive, é expressar o mundo por si a partir da produção própria ou compreensão da produção de outrem. “É mais que um

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conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem renúncia da minha própria identidade” (Cosson, 2014, p.17).

Candido (2004, p. 174) defende o direito à literatura ao argumentar que ela corresponde a um dos bens incompreensíveis, ou seja, ao essencial para que o ser humano se desenvolva de forma integral:

São bens incompreensíveis não apenas os que assegurem a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. São incompreensíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer, e porque não, à arte e à Literatura.

Parafraseando o autor, podemos afirmar que, assim como há iniciativas políticas que garantem os direitos humanos mais básicos a todas as classes sociais, dever-se-ia igualmente viabilizar o acesso à literatura.

Petit (2013), ao discorrer sobre como promover a leitura na escola e fora dela, enfatiza que as narrativas ou relatos que mais se distanciam de nós, seja cultural, temporal ou espacialmente, podem ser justamente aqueles que mais nos afetam, gerando reflexões libertadoras pelo elevado grau de identificação do sujeito com a narrativa. Para ela, um repertório de leitura deve ser construído não como uma cabana isolada, mas como pontes que possibilitam o acesso a diversas direções, permitindo que o leitor construa suas metáforas pessoais de acordo com o tempo em que vive.

Acreditamos, portanto, que mais do que um simples objeto de estudo, a literatura representa uma ponte para uma realidade nova a ser construída e reelaborada (Petit, 2013), ou seja, a literatura representa um objeto transformador. Ao mencionarmos a transformação do ser, não pretendemos pormenorizar esse processo, essencialmente pessoal e contextualizado. Deixaremos que Candido (2004, p. 180) explique, em breves palavras, o que queremos expressar com transformação, a partir de sua definição da relação humanização-literatura:

Entendo aqui por humanização [...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota

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de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.

Eco (2003) também aponta para algumas funções da literatura, ao afirmar, por exemplo, que ela mantém a língua em exercício. Sendo a língua um patrimônio coletivo e indomável, ela pode ser algumas vezes influenciada pela literatura: “Pensemos no que teria sido da civilização grega sem Homero, a identidade alemã sem a tradução da Bíblia feita por Lutero, a língua russa sem Puchkin, a civilização indiana sem seus poemas fundadores” (Eco, 2003, p. 11). A exemplo de Frye (2004), que menciona a relação entre a língua árabe e o despontar do Corão, Eco afirma que Dante conseguiu, com a Divina Comédia, unificar o italiano vulgar, embora tal façanha tenha demorado séculos para acontecer. A literatura, portanto, é importante para a manutenção e desenvolvimento das línguas, atua como um exercício da linguagem e, sobretudo, na esteira de Candido (2004), como um bem indispensável ao ser humano.

Ao longo da história, movimentos sociais, filosóficos e políticos originaram vertentes de pensamento que influenciaram os campos das ciências e das artes ao longo dos séculos (Eagleton, 2006). A literatura relaciona-se a esses movimentos, sendo produzida, compreendida e interpretada a partir deles. Um exemplo disso é a fenomenologia do século XX, que surge no contexto posterior à Primeira Guerra Mundial (Eagleton, 2006), e aborda a soberania da consciência humana, defendendo que a essência pura das coisas está naquilo que nossa percepção consciente é capaz de assimilar. Essa redução do mundo exterior consiste em uma tentativa de apreender a essência de qualquer objeto e torná-lo imutável, firme e tangível. A ênfase da fenomenologia recai sobre as estruturas profundas da mente, desprezando a compreensão superficial dos objetos e buscado sempre sua essência universal.

No campo da literatura, a escola crítica de Genebra e os formalistas russos estão entre os que aderiram a essa linha, para quem a poesia “isolava o objeto real e em lugar dele focalizava a maneira pela qual era percebido” (Eagleton, 2006, p. 89). A principal característica do formalismo russo a ser destacada é a leitura imanente do texto, que não se deixa afetar por nenhum aspecto externo a ele. Nesse sentido, o background do autor, as condições de produção, o contexto histórico e as próprias impressões do leitor são aspectos irrelevantes para esse segmento teórico. O texto deve ser considerado como “materialização da consciência do autor: todos os seus aspectos estilísticos e semânticos são percebidos como partes orgânicas de um todo

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complexo, do qual a essência unificadora é a mente do autor” (Eagleton, 2006, p. 90). A principal crítica a essa corrente teórica emergiu da tentativa de fugir da contaminação que a própria linguagem poderia impor ao texto, como se tal pureza fosse possível ou mesmo necessária.

Contrapondo-se à fenomenologia, surge a hermenêutica, inicialmente vinculada apenas às Sagradas Escrituras. Resumidamente, a hermenêutica visa reconstituir os elementos de um texto, tornando-o um todo completo e definido, de modo que uma obra nunca seja internamente contraditória, inacabada ou difusa. Alguns autores dessa linha entendem que pode haver mais de uma interpretação para um texto, porém essas nunca devem escapar de um “sistema de expectativas e probabilidades típicas". Nesse sentido, a crítica literária insurge como uma figura autoritária, um juiz responsável por banir qualquer aspecto não condizente com o espectro de significados instituídos como válidos, de modo que o próprio texto deve se subordinar àquela visão única e vigente, supostamente atribuída ao autor no momento da escrita. Essa perspectiva ainda permanece ao longo dos anos e qualquer tentativa de releitura ou análise sob outra perspectiva é comumente rejeitada. A esse respeito, o filósofo e crítico literário Eagleton (2006, p. 113) contra-argumenta:

Há problemas óbvios na tentativa de determinar o que está se passando na cabeça de alguém, para depois pretender que é esse o significado de um escrito. Muitas coisas podem estar passando na cabeça do autor no momento em que ele escreve.

Para Eagleton (2006), a existência de um sistema de probabilidades beira ao idealismo abstrato, como se houvesse mecanismos de interpretação tão eficientes a ponto de definir exatamente o que o autor teria em mente no momento da escrita. Contudo, o próprio escritor do texto pode se tornar leitor de sua obra (algum tempo depois de sua concretização), surpreendendo-se com os caminhos ambíguos ali existentes, que podem conduzi-lo a outras interpretações, diferentes das que tinha em mente quando escreveu e talvez até mesmo mais interessantes. Mas para o exegeta, a interpretação será mais eficaz à medida que se atém às intenções originais de quem escreve. Tal cuidado excessivo para jamais se distanciar da intenção interpretativa do autor será aprofundado no capítulo subsequente.

É certo que a fenomenologia e a hermenêutica geraram importantes contribuições para a crítica literária, fornecendo subsídios para outras escolas

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literárias, entretanto essas linhas centralizam demasiadamente a atenção ao autor e ao texto, desse modo, enaltece a leitura dos clássicos em detrimento da literatura não canônica. A título de curiosidade, a tragédia grega já apontava para a participação ativa do leitor na composição de uma obra, o que parece ter sido ignorado nos séculos seguintes. Zilberman (2008) explica que a catarse aristotélica é o efeito que ocorre quando o público da dramatização experimenta emoções intensas e, em um movimento para expurgá-las, é purificado. A reação do público consiste em uma “resposta definida de modo coletivo, mas experimentada de maneira pessoal” (Zilberman, 2008, p. 86), o que revela que o aspecto subjetivo era um fator fundamental para Aristóteles.

A autora contextualiza que, a partir da segunda metade do século XX, Jauss insurge rompendo com a tradição do estruturalismo e das teorias literárias formalistas, e volta a enfatizar a relação dialógica entre a obra e o leitor. Essa relação não é fixa, uma vez que os leitores, a cada leitura e de acordo com a cultura e a época, atribuem diferentes sentidos às obras lidas. A autora afirma que o leitor “carrega consigo uma bagagem cultural de que não pode abrir mão e que interfere na recepção de uma criação literária particular” (Zilberman, 2008, p. 92). Além disso, os processos de circulação e manutenção da literatura são influenciados ativamente pelo leitor, uma vez que ele “constitui um fator ativo que interfere no processo como a literatura circula na sociedade” (Zilberman, 2008, online).

Embora a experiência de leitura seja individual, o leitor sempre se encontra inserido em uma determinada sociedade e “as épocas ou as sociedades constituem horizontes de expectativa dentro dos quais as obras se situam” (Zilberman, 2008, online). Em outras palavras, quando uma nova obra é publicada, ela é automaticamente inserida em uma sociedade com normas de comunicação e estética já existentes. Tais normas são chamadas pela autora de saber prévio e formam um cenário composto por outras obras, antigas ou recentes, que influenciam a concepção dos leitores em um dado contexto, tornando possível até mesmo a previsão de como será a recepção do público frente a uma nova obra. Posicionar o leitor socialmente e compreender que ele pode alterar as relações em seu entorno (e ser por elas alterado) a partir de suas escolhas de leitura, socialmente definidas, é um dos pontos de reflexão de Zilberman (2008).

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Em oposição às correntes teóricas já mencionadas, a Estética da Recepção defende que toda leitura pressupõe a formulação de hipóteses, que constroem o significado do texto (Eagleton, 2006). O autor ainda afirma que:

O leitor estabelece conexões implícitas, preenche lacunas, faz deduções e comprova suposições – e tudo isso significa o uso de um conhecimento tácito do mundo em geral e das convenções literárias em particular. O texto, em si, realmente não passa de uma série de "dicas" para o leitor, convites para que ele dê sentido a um trecho de linguagem. Na terminologia da teoria da recepção, o leitor "concretiza” a obra literária, que em si mesma não passa de uma cadeia de marcas negras organizadas numa página. Sem essa constante participação ativa do leitor, não haveria obra literária (EAGLETON, 2006, p. 116).

Contrariamente à fenomenologia e à hermenêutica, essa teoria atribui especial valor ao leitor: sem ele, o texto perde sua razão de ser. O leitor é quem julga, seleciona e organiza as informações fornecidas no texto, construindo seu sentido e coerência. Nesse processo, é o leitor quem mensura a importância de cada informação registrada no papel. Tais processos ocorrem de forma involuntária e inconsciente, numa leitura corrida e sequenciada, em que o leitor dificilmente se lembrará de todas as informações contidas nas páginas anteriores. Isso porque a leitura não é um movimento linear e sim um quadro de referências que vai se formando à medida que lemos, e que vamos visitando de tempos em tempos para fins de interpretação. Com base nesse quadro, também formulamos hipóteses do que está por vir e, a cada nova informação relevante, o leitor tende a calibrar suas expectativas e hipóteses. Eagleton (2006, p. 118) explica esse processo de construção-desconstrução-reconstrução que ocorre durante o ato da leitura:

À medida que prosseguimos a leitura, deixamos de lado suposições, revemos crenças, fazemos deduções e previsões cada vez mais complexas; cada frase abre um horizonte que é confirmado, questionado ou destruído pela frase seguinte. Lemos simultaneamente para trás e para a frente, prevendo e recordando, talvez conscientes de outras concretizações possíveis do texto que a nossa leitura negou.

Aceitar tamanha participação do leigo no processo de interpretação de uma obra poderia ser visto como uma forma de reduzir sua importância no espectro

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artístico. Dessa forma, tal concepção de literatura e de formação literária nem sempre foi reconhecida no passado, contudo, com as mudanças de paradigmas nas teorias de leitura, percebe-se algum avanço nas formas de se conceber a literatura. Os protocolos da leitura literária movem-se quando se compreende que a obra só existe porque é lida por leitores reais. Sem o leitor, a obra intocada não atinge seu objetivo. (Chartier, 1999)

Nas últimas décadas, a leitura tem despertado bastante interesse em estudos sobre o letramento. Fortemente atrelados ao contexto escolar, os temas leitura, alfabetização e letramento insurgem como protagonistas, não apenas nos meios educacionais e linguísticos, mas nos estudos sociais em geral. A esse respeito, Rojo (2004) critica a prática de ensino da leitura escolar que delega ao aluno a tarefa nada desafiadora de localizar informações em textos trazidos pelo livro didático, tarefa que ele faz sem precisar sequer ler os textos de fato. Sabemos que o livro didático, muitas vezes, é seguido à risca em sala de aula, o que restringe a leitura apenas para fins didáticos. A prática de cópia da lousa pode até transmitir a ideia de que o aluno está lendo, mas não significa que esteja necessariamente refletindo criticamente sobre aquilo que copia. A percepção de que o aluno pode ingressar na escola, percorrer todas as séries e se formar sem se tornar um leitor profícuo é a razão que leva Rojo (2004) a discutir as teorias de leitura que regem o ensino escolar regular.

A autora apresenta as teorias de leitura que surgiram a partir da última metade do séc. XX, aqui divididas em três partes, de acordo com o que é proposto pelos estudiosos do tema. Discorreremos brevemente sobre cada uma delas. A primeira teoria de leitura é a que privilegia o processo de decodificação de grafemas em fonemas, tendo como objeto central a alfabetização. A sequência do ensino é linear e ascendente, começando com a identificação das letras com o som, posteriormente agrupadas na forma de sílabas que, em seguida, se tornam palavras, frases, períodos, parágrafos e textos. Embora essa teoria contribua para o processo de alfabetização, ela é limitante por condicionar o alfabetizando a um único caminho possível, que não o conduz para a integração de conhecimentos novos aos pré-existentes. Além disso, essa teoria coloca em segundo plano o papel social de leitura (Rojo, 2004).

A segunda teoria de leitura está embasada na compreensão do texto. Aqui, para que a leitura seja realizada, inúmeras capacidades devem ser ativadas, como por exemplo, a de acessar conhecimentos outrora adquiridos e criar pontes com o

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novo conteúdo, gerando estratégias de leitura, sobretudo cognitivas. Sob esse paradigma, passou-se a considerar que o ato de leitura era também um encontro entre leitor e autor, não apenas entre leitor e texto, tampouco mera decodificação de signos linguísticos. Essa interação ocorre uma vez que o leitor tem em mãos o texto, o qual contém pistas que podem revelar a intenção do autor na hora da escrita. Essa interação entre leitor, texto e autor já nos mostra indícios dos aspectos sociais da leitura.

Recentemente, ainda de acordo com Rojo (2004), a leitura passou a ser entendida como um ato discursivo. De forma simplificada, essa teoria defende que o leitor é um ser carregado e entrecortado por discursos e que, no momento da leitura, depara-se com outro discurso: um texto advindo de outras intersecções discursivas. Desse modo, valores construídos a partir das esferas sociais de autor e leitor se chocam no momento da leitura e o produto final dessa colisão é um novo discurso, que convida à réplica, à tréplica e assim por diante. Para a autora, as capacidades linguísticas e discursivas estão no cerne dessa teoria.

Rojo também tece considerações sobre o significado da leitura para o leitor. A leitura normalmente visa a um objetivo (escolar, profissional, de lazer), preenchendo uma necessidade da vida real, o que, por si só, confere satisfação ao leitor. Entretanto, o leitor também pode não apenas compreender o que lê, mas apreciar ou se aborrecer com a leitura. Além do trabalho estético com a linguagem, a apreciação de um texto pode ocorrer quando o leitor percebe marcas de intertextualidade em algo que lhe é familiar, quando há um cruzamento com temas e discursos que lhe são caros, ou que simplesmente aludem a um conhecimento anterior. A autora explica ainda que a presença de linguagens não verbais, como sons, mapas, diagramas, gráficos, imagens estáticas ou em movimento também influenciam na apreciação do texto lido. É importante salientar que todas essas características apontam para um caráter social da leitura. Nas bem colocadas palavras da autora, “ao ler, replicamos ou reagimos ao texto constantemente: sentimos prazer, deixamo-nos enlevar e apreciamos o belo na forma da linguagem, ou odiamos e achamos feio o resultado da construção do autor” (Rojo, 2004, p.7). Sejam por razões estéticas ou afetivas, no ato da leitura somos incentivados ou desencorajados pelo que sentimos, de modo que o texto pode nos atrair ou repelir. Além disso, a leitura nos coloca diante da posição ideológica de quem escreve e o movimento natural do leitor como agente social é

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concordar, discordar e avaliar os valores ali colocados, sobretudo os “valores éticos e políticos” (Rojo, 2004, p.7).

Por fim, a autora destaca o perfil de leitor capaz de movimentar-se em distintas esferas sociais:

Falar na formação do leitor cidadão é [...] permitir a nossos alunos a confiança na possibilidade e as capacidades necessárias ao exercício pleno da compreensão. Portanto, trata-se de nos acercarmos da palavra não de maneira autoritária[1], colada ao discurso do autor, para repeti-lo de cor; mas de maneira internamente persuasiva, isto é, podendo penetrar plasticamente, flexivelmente as palavras do autor, mesclar-nos a elas, fazendo das suas palavras nossas palavras, para adotá-las, contrariá-las, criticá-las, em permanente revisão e réplica. (ROJO, 2004, p. 7)6

Assim como Rojo, Kleiman (2004) também nos fornece elementos para compreender a leitura escolar, através de uma breve retomada sobre as teorias de leitura. A autora defende que a leitura é um importante agente na formação cidadã, o que pode ser equiparado à formação humanizadora de Candido, já aqui referido. A concepção de leitura como prática social encontra-se embasada no estudo do letramento7 (Kleiman, 2004). “Os modos de ler interessam pelo que nos podem mostrar sobre a construção social dos saberes em eventos que envolvem interações, textos multissemióticos e mobilização dos gêneros complexos” (Kleiman, 2004, p. 15). As mudanças na leitura como objeto de pesquisa conclamam novas configurações metodológicas, que podem contribuir, por exemplo, para a criação de programas sociais voltados à leitura, considerando o leitor como ser social, e a leitura como um evento local e específico.

Rojo e Kleiman nos oferecem um breve panorama do movimento percorrido pela teoria da leitura, despindo-a de sua roupagem puramente informativa para um ato formativo. É interessante observar que, ao mesmo tempo que o ensino de língua materna assumia uma nova forma de encarar a leitura, a crítica literária também abria espaço para a Estética da Recepção, tornando-se mais conhecida por meio de teóricos como Jaus e Iser.

6 Grifo da autora.

7 Aqui, o termo letramento encontra-se no singular, uma vez que a autora se refere apenas ao letramento da letra escrita.

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Langlade (2013, p. 25) afirma que: “a exclusão, ou ao menos a marginalização, da subjetividade é habitualmente apresentada como uma condição de êxito na leitura literária escolar e universitária”. O autor francês critica a impessoalidade e o não-lugar do leitor na escola, como se as emoções e projeções da personalidade de cada leitor fosse um parasita ou um empecilho à interpretação saudável. Ele também questiona se esses ecos subjetivos, teimosamente presentes durante o ato da leitura literária “não seriam indícios de uma apropriação do texto, de uma singularização da obra realizada pelo autor?” (Langlade, 2013, p. 26). A resposta a esse questionamento é positiva e é a partir daí que se constrói o conceito de leitura subjetiva.

O processo de apropriação da leitura pode ser melhor compreendido a partir de Rouxel, Langlade e Rezende (2013, p. 23), cujas ideias são amplamente utilizadas nesta pesquisa. Eles sugerem que para se alcançar uma leitura efetiva é importante repensar as perspectivas formalistas (cujo enfoque é o dinamismo interno do texto) e observar o sujeito leitor no processo:

A implicação do sujeito dá sentido à prática da leitura, pois ela é, ao mesmo tempo, o signo da apropriação do texto pelo leitor e a condição necessária de um diálogo com o outro, graças às diversidades das recepções de uma mesma obra.

Se apostamos em um estereótipo de leitor modelo ou leitor ideal, nos termos de Eco (2003), anulamos a imprevisibilidade e excluímos a construção social que ressalta o “eu leitor”, o “eu pessoa”, “o sujeito leitor”. Rouxel, Langlade e Rezende (2013) nos apresentam a diferença entre o leitor implícito e o leitor empírico. O leitor implícito é aquele que o autor tinha em mente ao produzir sua obra, aquele cujas reações e caminhos mentais possíveis à leitura já estavam de certa forma previstos e subentendidos. Já o leitor empírico é aquele que está iniciando seu contato com a leitura literária, que reage de maneira inesperada e surpreendente, que por vezes incorre nas superinterpretações apontadas por Eco (2003). Apoiados pela teoria da recepção, os autores franceses buscam:

Descrever como se encontram, e confrontam, os leitores implícitos e os leitores empíricos. Esses últimos se dobram necessariamente às instruções do texto? Quais são as experiências de leitura imprevistas que eles têm o direito de realizar? Como observar o surgimento da subjetividade e como circunscrevê-la? Como determinar seu papel nos

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processos heurísticos? O que as experiências de leitura subjetivas podem nos ensinar sobre esse leitor empírico? São muitas e difíceis as questões que incidem no ensino da literatura” (ROUXEL, LANGLADE e REZENDE, 2013, p. 21).

Ao analisar a cultura literária de alguns alunos, Rouxel (2013) nos fornece ainda outras facetas da leitura subjetiva, voltando-se para um contexto escolar. A autora analisou diários íntimos de alguns alunos leitores, nos quais escreviam sem se preocupar com as obrigações escolares, que por vezes afugentam qualquer possibilidade de lazer na atividade da leitura. O corpus de pesquisa de Rouxel é, pois, menos formal, mais subjetivo e próximo da realidade dos leitores participantes.

Para a autora, a cultura literária de um leitor não se constrói somente a partir do cânone definido ao longo da história, mas sua intenção é que o professor de literatura possa fornecer aos alunos experiências de leituras clássicas, de diferentes gêneros e temas concernentes ao universo humano. Longe de minimizar a importância dos clássicos, Rouxel (2013) atribui maior importância ao espaço simbólico pessoal de cada leitor na construção de sua cultura literária, o que abrange frequentemente obras não clássicas, embora defenda a existência de um diálogo enriquecedor para o leitor que transita entre ambas as esferas.

A autora afirma que a cultura literária é algo em movimento, é um capital dinâmico, ativo: “Se o leitor domina um texto, se apropria dele, este deixa de ser uma coisa em si: ele significa para o leitor, estimula seu pensamento. Nessa situação, os textos são lidos para pensar o mundo e para se construir.” (Rouxel, 2013, p. 171). A ideia de construir ou reconstruir o mundo a partir da leitura do texto é uma característica essencial da leitura subjetiva. Embora os autores dessa linha não excluam a importância do capital cultural e dos clássicos, entendem também que há uma necessidade de tratar os alunos como leitores autênticos, que utilizam recortes de leituras para construir sua própria realidade simbólica. Todo leitor precisa construir seu próprio espaço e capital de leitura que sejam subjetivamente significativos para ele e forneçam condições necessárias para criar e recriar sua própria condição humana.

Defender uma leitura subjetiva pode parecer incoerente aos críticos literários uma vez que essa leitura atribui muita responsabilidade do leitor em relação à obra, e tira a literatura do ambiente sagrado no qual por vezes ela é mantida. Na visão dos autores da teoria da leitura subjetiva, o leitor é “uma identidade ‘plural’,

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móvel, feita de eus diferentes que surgem segundo os momentos do texto, as circunstâncias de leitura e as finalidades que lhe são designadas” (Rouxel, Langlade e Rezende, 2013, p. 24).

Contudo, tais autores não defendem uma liberdade irrestrita do sujeito leitor em atribuir à obra quaisquer interpretações que julgue possíveis, a ponto de contrariar a coerência interna da história ou negando as assertivas feitas pelo autor. Jouve (2013), também adepto dessa teoria, explica que há a “subjetividade necessária”, quando a leitura de um texto literário exige um investimento pessoal do sujeito leitor: no ato da leitura o leitor constrói imagens mentais, representações daquilo que lê, de acordo com seu repertório de mundo, de vida, de leitura. E há também, continua Jouve (2013), a “subjetividade acidental”, que pode ocasionar desvios do sentido “original” da obra ou do sentido “intencional” do autor. Isso acontece quando, por exemplo, o leitor é conduzido/seduzido pelo texto literário e interpreta subjetivamente aquilo que não estava previsto estruturalmente pelo texto nem pelo autor. Entretanto, essas duas subjetividades, assim definidas pelo autor francês, não devem impedir que o leitor tenha liberdade de interpretação. Ao contrário, Jouve (2013, p. 60) propõe um equilíbrio entre elas e defende que, ao longo da leitura, as hipóteses formuladas pelo leitor sejam questionadas constantemente e este é o processo de reflexão que a leitura proporciona:

É finalmente quando as configurações subjetivas do leitor são questionadas pelo texto (quer dizer, quando a subjetividade é acidental) que a experiência de volta a si é mais impactante. O leitor é então levado a refletir sobre o que o conduziu a projetar no texto aquilo que não estava lá.

Tendo em vista a construção do capital literário que Rouxel (2013) menciona acima, entendemos que muitos internautas podem procurar as produções da equipe TBP por curiosidade ou interesse em conhecer melhor a literatura bíblica. Mais do que apenas adquirir informação, muitos internautas desejam, de fato, aprofundar-se na leitura da Bíblia de forma verdadeiramente significativa, tendo em vista que seu processo de leitura será sempre entrecortado por reflexões (Jouve, 2013) que os convidam a pensar e repensar sua leitura. Nesse percurso é comum que os internautas questionem, elogiem, discordem, critiquem a produção da equipe, o que constatamos no corpus analisado mais adiante..

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Acreditamos que a principal razão para posicionamentos tão distintos reside justamente na subjetividade – necessária e acidental, nos termos de Jouve (2013) – de leitura de cada um, pois cada internauta possui uma trajetória singular de vida, um repertório individual de outras leituras e de conhecimentos de mundo, o que o compõe como leitor e o direciona na leitura do vídeo. Além disso, sabemos que o vídeo é um texto multimodal, composto por imagens em movimento, que propõe uma narrativa dos acontecimentos, modificando assim o processo de leitura e recepção por parte dos internautas.

Como anteriormente explicitamos, desenvolvemos esta base teórica sobre literatura e leitura subjetiva porque, antes de mais nada, a Bíblia escrita é considerada uma obra literária. Portanto, para desenvolver a comparação entre o texto bíblico e a animação, proposta no objetivo específico 1, iniciamos a próxima subseção com um levantamento teórico reflexivo sobre aspectos da Bíblia como texto literário, em detrimento de algumas crenças sobre os modos de se ler a Bíblia.

Essa etapa visa elucidar possíveis visões do texto bíblico, uma vez que a animação foi produzida a partir de uma ou mais dessas visões, e que podem surgir nos comentários acerca do vídeo. Não esgotaremos todas as abordagens de leituras bíblicas, nem identificaremos suas principais linhas interpretativas; apenas discutiremos as ideias de alguns autores que explicam as Escrituras como um texto literário, cujos escritores foram pessoas reais, imersas em contextos sociais e históricos.

1.2 A Bíblia e o texto literário

Diante do exposto até aqui sobre a literatura e a leitura do texto literário, nos deparamos com o desafio de apontar algumas perspectivas teóricas acerca do texto bíblico quanto ao seu teor literário. Partimos do pressuposto de que a Bíblia é uma criação humana milenar que, por meio da linguagem oral e posteriormente escrita (Frye, 2004) chegou até nós, mas sofreu incalculáveis alterações e traduções durante esse processo. A obra coleciona alguns gêneros discursivos e veicula a história da formação de um povo do Oriente Médio e sua participação no mundo antigo, atribuindo especial visibilidade a alguns personagens centrais, como Jesus Cristo, cuja figura atrai inúmeros seguidores até hoje.

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Compreendemos que a Bíblia, antiga e antiquada como alguns a julgam, ainda gera calorosos embates religiosos, culturais e políticos. Longe de ignorar tais questões, esclarecemos que, para esta pesquisa, nos interessa compreendê-la como um texto literário que pode ser lido e interpretado através da teoria da recepção e da leitura subjetiva. Apresentamos a seguir algumas noções propostas por autores com inclinações teológicas, que encontraram nos campos da História e da Crítica Literária, informações valiosas para uma melhor compreensão e interpretação do texto bíblico.

As múltiplas revisões da Bíblia, bem como seus contextos histórico e arqueológico, fazem com que não haja um consenso da obra. Contudo, alguns pontos são amplamente aceitos; por exemplo, o termo “Bíblia” parece ser conveniente, já que há pelo menos quatro bíblias: a Judaica, a Católica, a Ortodoxa Oriental e a Protestante (Frye, 2004; Gabel e Wheeler, 1993). Uma das versões mais utilizadas é a Bíblia Protestante, que inclui Antigo e Novo testamentos em uma única obra e exclui os livros apócrifos que, ao menos nessa área de estudos, poderiam resultar em maiores discordâncias que similaridades. Logo, quando se afirma “a Bíblia relata que...”, caberiam perguntas como “Qual Bíblia?”; “De qual versão estamos falando?”; “Essa Bíblia inclui os mesmos livros que a Bíblia que eu conheço?”; “Esse livro faz parte do Canon Protestante ou Católico?”; e assim por diante.

Feitas tais ressalvas, comecemos por um dos mais conhecidos títulos que analisam o texto bíblico: o Mimesis – a Representação da Realidade na Literatura Ocidental, de autoria do filólogo alemão Erich Auerbach e lançado pela primeira vez em 1946. No primeiro capítulo, A cicatriz de Ulisses, o autor retrata a cena em que uma criada lava os pés do herói grego Ulisses, de Homero, contrastando-a com a fatídica passagem do Gênesis, na qual Abraão se levanta de madrugada para sacrificar seu prometido filho em obediência inquestionável a uma ordem divina. Como já sabemos, o texto homérico descreve com riqueza de detalhes cada evento e objeto da narrativa poética, enquanto a narrativa bíblica ganha fama de ser lacônica e obscura. Homero opta por uma descrição pormenorizada da infância do herói na casa do avô, do lugar onde passava as férias, das aventuras nas caçadas, do animal responsável pelo ferimento que gerou a cicatriz, do regresso à casa dos pais e a preocupação desses com relação ao filho. O episódio, com mais de 70 versos, narra o momento em que Ulisses retorna a seu palácio, devidamente disfarçado para não ser reconhecido, e se depara com inimigos que desejam a sua mulher, Penélope.

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