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As Fronteiras da Dor. Maria Manuela Assunção Moreno. Resumo:

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Academic year: 2021

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“As Fronteiras da Dor”

Maria Manuela Assunção Moreno Resumo:

A partir de um caso clínico atendido no CRAVI (Centro de Referência e Apoio a Vítimas de Crimes Fatais do Estado de São Paulo), o presente trabalho constitui uma tentativa de compreensão

psicanalítica do conceito de dor em sua relação com o de trauma e de compulsão a repetição. O texto toma como referência o “Projeto para uma Psicologia Científica” de Freud para pensar o fenômeno da dor, ao lado da experiência de satisfação, como experiência fundante do psiquismo, podendo ser considerado como primeira metáfora de instauração do inconsciente, fazendo surgir e funcionar o eu através do pensamento.

AS FRONTEIRAS DA DOR Maria Manuela Assunção Moreno

“Todo mundo é capaz de suportar uma dor, com exceção de quem a sente.”

William Shakespeare

Este trabalho apresentado no ano passado constitui uma primeira aproximação do conceito de dor para a teoria psicanalítica. Trata-se antes de mais nada de um estudo e assim se apresenta em sua forma. O interesse pelo tema surgiu a partir do estudo realizado neste seminário do texto de Freud “Projeto para uma Psicologia Científica” de 1895 e das questões provenientes do meu trabalho com sujeitos que vivenciaram a perda de um familiar de forma violenta ou foram expostos diretamente à violência urbana, realizado no CRAVI (Centro de Referência e Apoio às Vítimas- Programa da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania de São Paulo).

É possível dizer que o fenômeno da dor, embora não tenha sido muito explorado sob a luz da psicanálise, uma vez que não aparece nos dicionários específicos, constitui ao lado da experiência de satisfação, uma experiência fundante do psiquismo humano.

Apesar de muitos autores pós-freudianos considerarem o texto “Projeto para uma Psicologia Científica” como pré-psicanalítico e o próprio autor tê-lo desprezado, só vindo a ser publicado contra a sua vontade em 1950, após sua morte, nele se pode encontrar as bases para

conceitualizações psicanalíticas posteriores. Freud forja, neste texto, um modelo de aparelho psíquico baseado na memória e nos processos quantitativos, buscando conferir ao psiquismo uma concretude em torno de partículas materiais (os neurônios) que lhe asseguraria, na época, sua cientificidade.

O interesse na descrição quantitativa dos fenômenos psíquicos surge em Freud a partir de suas observações clínicas de pacientes histéricos e obsessivos. Segundo Garcia-Roza (2001), Freud levanta a hipótese de uma proporcionalidade entre a intensidade dos traumas e a intensidade dos sintomas por eles produzidos. Freud percebeu, então, uma tendência do psiquismo humano a se desfazer de idéias excessivamente intensas através de processos como a conversão, descarga,

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substituição entre outros. Esta tendência será chamada de princípio da inércia nervosa, que se constitui como a primeira lei fundamental do aparelho psíquico. O primeiro modelo adotado por Freud é o do arco reflexo em que os neurônios são divididos em motores e sensoriais e buscam se livrar dos estímulos. Porém, este modelo de fuga do estímulo não dá conta da estimulação vinda do interior do organismo que necessita de uma alteração do mundo externo através da assim chamada ação específica. Para realizá-la deve existir um acúmulo de energia, que se dá através de neurônios investidos, ou ligados, que ofereça uma resistência à tendência primária de descarga e possa

postergá-la, possibilitando assim a ação específica. Partindo do princípio da inércia nervosa, própria do funcionamento primário, Freud formula o princípio de constância nervosa, em que certa

quantidade de energia deve ser retida, ou melhor, ligada para possibilitar o processo chamado de secundário.

Segundo Freud: “..., a memória de uma experiência (isto é, a força persistente atuante) depende de um fator que se pode qualificar como a magnitude da impressão e, também, da freqüência com que a mesma se repete.”

À medida que a excitação consegue romper a barreira de contato, mantida através de uma quantidade constante nos neurônios y , cria-se uma facilitação, ou uma marca que deixa uma espécie de trilhamento mais permeável à passagem de novas excitações. A memória constitui-se pela existência de diferenças nas facilitações entre neurônios, uma vez que a energia tende a percorrer as vias preferenciais já percorridas. O conceito de Bahnung , como cadeia com percursos facilitados diferenciados, constitui a primeira metáfora da violação que nos remete à

conceitualização da experiência de dor. Segundo Derrida, “não há Bahnung sem um começo de dor.”

Para Freud, “a dor consiste na irrupção de grandes Qs em y .”, afirmação que vai ser sustentada em textos posteriores, já considerados psicanalíticos em si, como Além do Princípio do Prazer e em Inibição, Sintoma e Angústia. Os mecanismos de proteção psíquicos não conseguem fazer resistência à invasão de uma ordem tão elevada de Q, que é sentida como desprazer pela

consciência. Para o autor, além do aumento da quantidade, outro fator pode ser responsável pela experiência de dor, a interrupção da continuidade constituinte do ritmo psíquico, quando a quantidade externa é mínima. A dor, ao romper por completo as resistências oferecidas pelas barreiras de contato, cria facilitações permanentes desdiferenciadas. Além disso a dor produz uma facilitação entre uma propensão à descarga e uma imagem mnêmica do objeto que a acentua. A imagem mnêmica do objeto hostil, ao ser re-investida produz um estado de desprazer, chamado de afeto.

Diferentemente do que ocorre na experiência de satisfação, a vivência de dor é desestruturante, desorganiza o aparelho psíquico ao desdiferenciar as Bahnungen estabelecidas, ou seja as associações. Na experiência de satisfação uma facilitação é estabelecida entre duas imagens-lembrança, a do objeto de satisfação e a da descarga através da ação específica. Frente a um estado de necessidade libera-se uma descarga motora que produz uma alteração interna no sujeito, levando o bebê ao choro ou a uma agitação motora, que, no entanto, não alivia a tensão. Deve ocorrer a eliminação do estado de estimulação externa que só pode se dar através de uma ação específica no mundo exterior, que não é alcançada pelo organismo despreparado do bebê. Então este choro funciona como uma demanda para que um organismo mais preparado realize a ação pelo bebê, o que o introduz no registro da comunicação, ou melhor, na ordem simbólica. A eliminação da tensão através da ação específica realizada por um outro promove a vivência de satisfação. Estabelece-se, então uma associação entre a ação específica e a diminuição da tensão.

Os resíduos das experiências de dor e de satisfação são os afetos e os estados de desejo,

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somação, produzindo uma atração positiva pelo objeto desejado e no caso do afeto por liberação súbita, que leva a uma repulsa à imagem mnêmica hostil, que pode ser considerada como modelo de defesa psíquica. Segundo Freud, ambos os estados deixam atrás de si motivações do tipo

compulsivo em favor da passagem de quantidade em y . Esta afirmação nos leva a pensar na tendência à repetição do psiquismo humano, tão bem elaborada por Freud em seu texto Recordar, Repetir e Re-elaborar, tanto em busca do prazer, do re-encontro do objeto de satisfação, como das situações traumáticas, ou seja das experiências de dor que produzem desprazer.

No estado de desejo, quando o impulso reaparece, as duas imagens-lembrança são re-investidas. Caso o objeto não esteja presente, ocorre uma alucinação que leva necessariamente à decepção. O “eu” como organizador psíquico irá inibir, através de catexias colaterais a passagem de Qn e, desta forma, irá postergar o investimento da imagem-lembrança até receber sinais de realidade, da

percepção do objeto, provindos da descarga na consciência. Desta forma, a inibição do “eu” fornece um critério de distinção entre percepção e representação re-investida. No caso do re-investimento do objeto hostil, que causa uma desprazer semelhante àquele vivenciado durante a experiência de dor, o psiquismo lança mão da defesa primária, ou recalque, que visa a manter a representação afastada. O psiquismo tende a reproduzir o estado em y que assinalou o fim da dor, ou seja, a representação imediatamente posterior, realizando uma defesa reflexiva. O “eu” também pode realizar uma ação inibitória, diminuindo a descarga pelo neurônio-chave associado à representação hostil.

Poderíamos afirmar que a repulsa causada por uma experiência dolorosa está na base do recalque, mecanismo de defesa psíquica que retira o ser humano do registro do mecanismo reflexo. A experiência da dor constitui-se, desta forma, como a primeira metáfora de instauração o

inconsciente e faz surgir e funcionar o “eu”, através do pensamento. O sujeito ao buscar satisfação de uma necessidade, após uma primeira experiência de satisfação, re-investe a imagem-lembrança e alucina o objeto. Frente à dor causada pela frustração da alucinação que não é capaz de descarregar a tensão, o “eu” é obrigado a desinvestir a alucinação do desejo. Daniel Delouya, retomando o Projeto , nos diz: “A dor obriga então a recorrer às fontes das experiências de satisfação, buscando nos registros de sua descarga reflexa as imagens próprias de movimento, para encontrar- por meio da percepção e dos investimentos laterais- alternativas atuais à ação específica de outrora: é este o pensamento ou a ação do pensar que amplia e expande a experiência, dando estofo ao eu nascente de cujos contornos notifica a dor.” É possível entender, desta forma, a afirmação de Manoel T. Berlinck: “o ser humano habita na dor. Não sentir dor coloca o ser humano num radical desamparo.” A dor representa um limite, uma resposta a uma fratura nos limites orgânicos e

psíquicos que nos remete ao nosso desamparo inicial. Constitui-se assim como a angústia, um sinal, o primeiro sinal para o psiquismo organizar uma defesa contra a ameaça produzida pela irrupção de quantidades nocivas à trama psíquica. Nocivas pela possibilidade de criação de facilitações

permanentes que, muitas vezes, desestruturam os traços e associações já estabelecidos, por não conseguirem se deter nestas e por gerar um contra-investimento paralisante.

A dor apresenta uma íntima relação com o conceito de trauma. Para Freud, o trauma, num primeiro momento, ocorre em função de um aumento de estímulo, tanto interno quanto externo, que supere a capacidade de absorção do aparelho. Esta irrupção energética restará desligada de representações. Primeiro Freud acredita na realidade do trauma, a partir dos relatos de abuso de suas pacientes e só a partir de 1900, reconhecerá a realidade psíquica e sustentará que o traumático constitui a fantasia inconsciente. Em sua segunda teoria do trauma, Freud o concebe como resultado de uma segunda cena, ou representação, que vem conferir à primeira cena, impossibilitada de ser significada quando vivida (devido ao desamparo humano) uma significação traumática. Freud, em Além do Princípio do Prazer, afirma a impossibilidade da angústia produzir uma neurose traumática (neurose de natureza narcísica produzida em situações de guerra, acidentes ou de violência). A neurose traumática advém do fator de surpresa que captura o sujeito na situação do terror produzido. Este

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terror produtor da neurose pode ser amenizado por um dano físico ou uma ferida, que atrai para si um investimento de energia narcisista, possibilitando talvez a ligação do quantum de excitação liberado. Neste momento, Freud sem colocar em palavras, fala da possibilidade da dor ativar os mecanismos de defesa de uma forma diferente da angústia, que realiza uma preparação psíquica através de um sobreinvestimento.

Além da proteção oferecida pelo dano físico, o aparelho psíquico re-investe repetidamente o trilhamento permanente deixado pela experiência de dor frente a qualquer aumento de excitação libidinal, produzindo “pesadelos” e alucinações que o reconduzem à situação traumática, liberando desprazer semelhante à dor sentida da primeira vez. Resta uma pergunta, por que? Segundo Freud, o sujeito está fixado psiquicamente ao trauma. No entanto, como explicar esta repetição penosa em face do princípio do prazer que rege o aparelho psíquico? Freud responde que nesta repetição, trata-se de um detrata-sejo de prazer de outra índole, ligada à possibilidade de processar psiquicamente algo desprazeroso. Freud localiza nos sonhos de neuróticos traumáticos, nos sonhos em análise e nos jogos infantis de separação, não um meio de atingir prazer, ou o cumprimento de desejo, mas uma compulsão à repetição, um meio de desenvolvimento de angústia e possibilidade de ligação psíquica da excitação.

Em contraponto à situações traumáticas externas, Freud afirma o caráter traumático das pulsões à medida que produzem perturbações econômicas comparáveis às das neuroses traumáticas. As moções pulsionais se encontram sob o registro do processo psíquico primário, ou seja, apresentam investimento livre. O processo secundário é responsável pela ligação da excitação das pulsões em inscrições que podem ser significadas. Para Freud, em Além do Princípio do Prazer, o que não pôde ser inscrito, ou seja, que não pôde ser recalcado como marca mnêmica de uma excitação, sob a égide do princípio do prazer, tende a retornar compulsivamente através de atuações. As próprias repetições não contradizem o princípio do prazer, mas se situam para além do princípio do prazer. De que pulsão falamos? O que seria uma pulsão? Pulsão é um conceito limite entre corpo e psique para a psicanálise. Consiste em uma força que tem sua fonte em uma excitação corporal. Seu objetivo é eliminar este estado de tensão, retornando a uma vivência primária de satisfação. Portanto, Freud nos diz que toda pulsão tem um caráter conservador, visando em última instância um retorno ao inanimado. Em um primeiro momento da teoria freudiana, as pulsões estavam

divididas em pulsões de auto-conservação, ou pulsões do eu e pulsões sexuais e esta dualidade tinha papel determinante no conflito psíquico. As pulsões do “eu”, uma vez que só poderiam se satisfazer através de um objeto externo se tornaram agentes do princípio da realidade e se localizaram em oposição às sexuais, que poderiam se satisfazer através da fantasia e, portanto, estavam regidas pelo princípio do prazer. Não é intenção do presente estudo se aprofundar no estudo da evolução do pensamento pulsional na teoria freudiana, no entanto, esta breve incursão busca as relações entre os fenômenos clínicos associados à experiência de dor e a teoria pulsional. Neste primeiro momento, portanto, o sadismo e o ódio se encontravam relacionados com as pulsões do “eu”, no sentido de serem derivados de sua luta pela conservação e afirmação. Com a introdução do conceito de

narcisismo em 1915, Freud afirma que a libido pode investir tanto um objeto sexual externo como o próprio “eu”. Mas é a partir da conceitualização do masoquismo primário, não mais como originário de uma introversão do sadismo, que uma nova dualidade começa a surgir. Esta dualidade é

finalmente conceituada em seu texto Mais Além do Princípio do Prazer , a partir de fenômenos clínicos como os pesadelos e as neuroses traumáticas que apontavam uma compulsão à repetição e que clinicamente se apresentavam como uma grande resistência. Freud caracteriza a pulsão de morte, como a pulsão por excelência, devido ao seu caráter regressivo e repetitivo. As pulsões de morte se contrapõe às de vida (sexuais + egóicas) uma vez que tendem à redução completa das tensões, a um retorno ao inanimado. As pulsões de vida tem como meta a construção de ligações, a conservação da vida e são regidas pelo princípio do prazer. A questão a que princípios econômicos as diferentes pulsões respondem é controversa.

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Por que os sujeitos repetem, então, a experiência dolorosa? Em O Problema Econômico do Masoquismo , Freud nos remete novamente àquelas questões clínicas, particularmente o masoquismo, que questionam a função de guardião psíquico do princípio do prazer. Neste fenômeno, dor e desprazer deixam de ser sinais para constituírem-se como metas psíquicas. Esta questão problematiza a relação entre o princípio do prazer e as duas pulsões. Neste texto, Freud defenderá a tese da vinculação entre pulsão de morte e o princípio de Nirvana como tendência do psiquismo a conduzir a inquietude da vida à estabilidade do inorgânico. No entanto, um aumento de tensão não necessariamente responde por um sentimento de desprazer. Freud utiliza o exemplo da excitação sexual para sustentar que o prazer e o desprazer não dependem de um fator quantitativo, mas sim qualitativo. A partir da pulsão de vida, da libido, o princípio de Nirvana sofre uma

modificação, no ser vivo, em princípio do prazer. Estes princípios se conciliam ainda com uma outra modificação exigida pela necessária relação com o mundo externo, o princípio de realidade. Além da coexistência destes três princípios que regem o psiquismo humano, neste texto, Freud ao se aprofundar no estudo do masoquismo, afirma a existência de um masoquismo originário e chega à conclusão da impossibilidade de uma assepsia em relação às pulsões. Freud descreve o

masoquismo erógeno, ou prazer em receber dor, como a tentativa da libido em tornar inócua, dominar a pulsão de morte ao ligar-se através da coexcitação sexual a esta tendência auto-destrutiva. Neste caso qual seria a função da dor? Seguindo a tendência da pulsão de vida de

dominar a pulsão de morte, através do processo secundário, a necessidade de dor pode ser entendida como uma repetição em direção da simbolização daquilo que da pulsão não pode ser significado. Após esta incursão no pensamento psicanalítico freudiano gostaria de ilustrar a relação da

experiência de dor com a compulsão à repetição através de um exemplo clínico de uma mãe, vítima indireta de homicídio, atendida no CRAVI (centro de referência e apoio à vítima).

A.e F. perderam sua filha M., de 32 anos, assassinada. M. não voltou do trabalho em uma sexta-feira, conforme o hábito. M. não costumava sair nem tinha muitos amigos. A. diz que elas eram muito amigas e realmente durante o período do atendimento é possível perceber que isto diz de um vínculo entre mãe e filha bastante especular, em que não existe espaço para a constituição de um desejo diferente do de A. Desde o desaparecimento, começa sua busca em todos os hospitais, IMLs, delegacias de polícia e outros órgãos. Somente após um mês, é que a polícia consegue ligar a foto de M. à de uma mulher que tinha sido encontrada morta, na época do desaparecimento, à beira do R. Tietê, e que já tinha sido enterrada em vala comum. Indignada com o erro cometido pelo IML, transtornada pela dor do desaparecimento de uma filha e depois pela notícia de sua morte, A. procura com seu marido, F., o CRAVI.

Logo no primeiro encontro A. diz: “Deus, a gente não foi feito para perder um filho, é demais, ninguém está preparado!” As primeiras sessões transcorreram em torno da dúvida de A. em relação à existência de segredos na vida da filha, será que haveria algo que ela desconhecia a respeito de sua filha? Falou-se, também, bastante sobre a necessidade de A. de colocar “tudo isso” para fora, coisa que em casa não era possível, referindo-se ao constante choro e às falas repetitivas durante as sessões.

O erro cometido pelo IML, pois quando A. e F. foram procurar M., seu corpo já estava lá, porém não fora reconhecido, também é abordado em sua intrínseca relação com um suposto engano. Será que não é M. que está enterrada lá? Para a família não houve reconhecimento da morte, apesar de terem reconhecido o corpo por fotos. A escuta percebe a necessidade de deixar que todas as hipóteses sejam investidas, desde a desconfiança em relação a um emprego de M. com adictos, desconhecido para a família até sua morte, a possibilidade de relacionamentos sigilosos, bem como as diversas lembranças boas que remetem a uma confiança na palavra de M, como parte do

processo de construção de uma imagem diferente de M., que possibilite a separação e a conseqüente realização do luto. Este luto que esteve desde o início impedido e que coincide com a

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impossibilidade de terem visto M. morta.

Concomitantemente a equipe jurídica tentava, através de seus recursos, possibilitar um novo

reconhecimento, que foi negado pelo juiz. No entanto, após dois anos, o juiz autoriza o translado do corpo para o cemitério da família, o que supostamente ajudaria na concretização simbólica da morte através de seu ritual, o enterro assistido pela família.

Freud já havia dito que aquilo que pode se tornar conflito retorna na região de apoio da pulsão parcial em questão, a visão. A. no transcorrer destes anos, muitas vezes, afirmou ver de relance sua filha pela casa, ou chegando do trabalho pela rua. Pudemos acompanhar na teoria freudiana que o excesso que não pôde ser representado, faz pressão e retorna, ou na formas de sonhos (pesadelos) ou em sintomas. Sonho e alucinação se aproximam enquanto fenômenos clínicos já que ambos resultam de uma afastamento da realidade e da presentificação da realização de um desejo, que tem sua fonte em pulsões recalcadas ou nunca simbolizadas, em imagens. Formações delirantes podem surgir em situações de perda, como já afirmou Freud em Luto e Melancolia e se repetem, atuando tanto como resistência à realidade como possibilidade de reconhecimento e significação desta, uma vez que, neste caso, são trazidas em análise, para um outro poder ajudar a construir um sentido para esta experiência tão dolorosa.

Além dos delírios, A. desenvolve uma enxaqueca que muitas vezes a impossibilita de vir às sessões. Em uma sessão em que aborda o tema, A. diz: “É tanta coisa para a cabeça!” Realmente, a perda de uma filha, nestas circunstâncias, é um excesso que não consegue ser circunscrito por representação alguma. Qualquer tentativa de limitar a dor através de palavras é vivida, muitas vezes, como uma violência que deve ser evitada. No entanto, a dor pulsa e A. retorna ao atendimento

Concluindo com uma citação de Levinás: “A explicação da dor do outro é o início de toda imoralidade”

Os conceitos psicanalíticos de dor e pulsão ultrapassam a oposição entre psíquico e orgânico. Não existe uma dor que não envolva simultaneamente estes dois registros. Dor e pulsão dizem respeito a limites e rupturas. Limites que marcam nosso corpo e nosso desejo, conferindo um lugar para o humano. Rupturas que nos desorganizam e nos permitem ir além, na busca de uma inscrição, de uma simbolização. Este resto doloroso, enquanto não encontra um nome para poder ser esquecido, retorna em estado bruto em pesadelos e delírios, ou em atuações. Faz-se presente a cada associação insignificante e invade, com suas imagens de dor a cena psíquica. Paraliza-nos e não podemos fugir. A dor mortal dessubjetiva. No entanto, como o ser humano vive para a morte, sobrevive através da mescla de pulsões. Sexualizando a dor, transforma-a em motor para a sua busca e nesta busca é imprescindível o encontro de um outro, que o insira em um código da coletividade, oferecendo assim um trilho, um andaime para esta construção.

Retomando a citação de Shakespeare, a dor diz respeito a uma subjetividade. Mas sabemos que o ser humano nasce desamparado, impossibilitado de descarga das tensões corporais que o invadem e que precisa do outro para se constituir, assujeitando-se ao desejo do outro e obtendo satisfação sob uma lógica masoquista. É frente ao desamparo inicial, à experiência de perda primordial de uma completude nunca alcançada, que a dor constitui-se como limite, possibilidade de defesa que remete o bebê em direção ao objeto através do grito. É na ligação que a resposta do outro faz ao grito que se constitui a prefiguração deste outro e a aliança deste com as imagens corporais das moções pulsionais e as representações motoras da fala. O efeito da dor, portanto, aparece como esforço de ligação. Segundo Delouya, “É com a dor que se concebe o outro!” , e por que não o si mesmo! É nesta abertura ao objeto exigida pela dor que se insere e se legitima a prática da psicanálise e sua ética. Um grito ao analista em busca de uma marca, de uma construção que remeta o sujeito àquilo

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que nele pulsa. Não uma explicação, mas uma simbolização de uma vivência que se assemelha ao delírio, porém, ao se constituir como intervenção da linguagem, promove o acesso ao princípio da realidade.

Freud, S. Projeto para uma Psicologia Científica, in. ESB, vol. 1, pág. 401.

Garcia-Roza, L. A. Introdução à Metapsicologia Freudiana, pág. 141. Jorge Zahar Editor, 2001. (Derrida, J., “Freud e a cena da escritura”, in: A Escritura e a Diferença, S.P., Jorge Zahar, 1988) Delouya, D. A dor entre o corpo, seu anseio e a concepção de seu objeto. In: Dor. Ed. Escuta, 1999, pág. 25.

Berlinck, M. T. A Dor. In: Dor. Ed. Escuta, 1999, pág. 9.

Existem exemplos clínicos de crianças autistas que buscam fixar através da dor a zona corporal de excitação sexual, batendo-se nas paredes. A dor constitui-se, desta forma, como um meio de devolver o corpo à psique.

Delouya, D. A dor entre o corpo, seu anseio e a concepção de seu objeto. In: Dor. Ed. Escuta, 1999, pág. 31.

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