São quatro os diálogos platónicos directamente relacionados com o processo, condenação e morte de Sócrates: o Êutifron, cuja acção decorre algum tempo antes do julgamento; a Apologia de Sócrates, que relata a sua defesa perante os juízes; o Críton, em que, na antevéspera da execução, se ponderam as razões para aceitar a pro-posta de fuga da prisão; e o Fédon, que descreve o último encontro de Sócrates com os seus amigos, até ao momento da morte. Todavia, a proximidade entre estas quatro obras é de natureza puramente dra-mática.
Embora a data exacta da sua composição seja desconhecida, a Apologia costuma ser considerada a obra mais antiga, seguindo-se--lhe, em estreita relação com ela, o Críton. Estes dois diálogos, justa-mente qualificados de «biográficos», são, decerto, anteriores ao Êutifron e Fédon. O Êutifron, exibindo as características típicas dos primeiros diálogos1, só por razões artísticas evocará o processo de
Sócrates. Por sua vez, o Fédon, que pelo seu envolvimento com a
1 É costume dividir os diálogos de Platão em três períodos. O pri-meiro — dedicado à defesa da Filosofia, como modo de vida e investiga-ção sobre a «excelência» (aretê) — configura uma metodologia determina-da pela combinação determina-da pergunta «O que é?» com a refutação antilógica (elenchos). O segundo debruça-se sobre os pressupostos desta prática: a Teoria das Formas e os seus desenvolvimentos doutrinais. O terceiro ini-cia a recuperação da tradição reflexiva grega, ao mesmo tempo que em-preende a revisão da versão clássica da Teoria das Formas.
Teoria das Formas se deixa integrar no grupo das obras do segundo período, poderá chegar a distar uns vinte anos dos dois primeiros, embora seja impossível afirmá-lo com certeza, ou até saber quantos e quais diálogos possam, entretanto, ter sido compostos.
Esta edição conjunta da Apologia de Sócrates, Críton e Êutifron cobre um duplo programa: por um lado, acompanha o rela-to das circunstâncias em que decorreu o processo e condenação de Sócrates, visando esclarecer o sentido e a finalidade do seu compor-tamento; por outro, serve de introdução ao estilo de investigação do-cumentado nos diálogos, comummente designados de «socráticos». Deixando o primeiro aspecto para a introdução a cada diálogo, con-centremo-nos no segundo.
A aretê
A Apologia de Sócrates contém já o programa de investigação que os primeiros diálogos executam. O conflito entre a sabedoria «hu-mana», de Sócrates, e a outra «mais que hu«hu-mana», dos seus inter-locutores, está aí já perfeitamente caracterizado, mas a mola que dispa-ra o conflito que opõe Sócdispa-rates aos seus concidadãos não está à vista. O tópico comum a todas essas disputas é a excelência, perfeição (aretê): a «virtude», como tradicionalmente é costume traduzir o ter-mo. Este é o padrão ideal de comportamento para um grego, a norma reguladora do valor dos seus cometimentos, de cuja importância se
colhem traços, ao longo da tradição poética, desde os poemas homéri-cos até aos tempos do declínio da polis. As suas raízes mergulham ainda no solo fértil da saga, reactivando perenemente a gesta dos heróis, cujo exemplo consubstanciou durante tantos séculos tudo aqui-lo que um heleno precisou de saber para «viver bem».
É um ideal heróico, só por si capaz de inspirar feitos como Maratona, as Termópilas ou Plateias. Todavia, a brilhante operação de Salamina ou a cadeia de concertadas acções diplomáticas, políticas e militares que conduzem a Atenas democrática à hegemonia sobre as cidades gregas não poderão por ele ser justificadas. Por paradigmáti-cos que os exemplos de Aquiles e Ulisses possam ter sido para os cabos-de-guerra europeus, durante as épocas de expansão do Velho Continente — e esses dois são já bem diferentes um do outro — o seu poder sobre uma elite intelectual e mercantil tende a dissipar-se. Na Grécia da Antiguidade o trânsito de uma a outra sociedade não se faz directa e imediatamente. A Atenas de Péricles, na segunda metade do século V, é uma comunidade dilacerada pelo conflito entre
duas épocas, dois ideais de vida e duas, ou três, classes políticas que se defrontam com o mesmo e bem presente problema: a sobrevivência. Nesta conjuntura não é surpreendente notar uma tensão cada vez mais agudizada entre as interpretações democrática e aristocrática do ideal de vida da aretê. Esta última aponta a «natureza» do agente, a «virtude da sua raça», a «força do seu sangue» como receptáculo impoluto do ideal heróico. Pelo contrário, a outra tende a traduzir a excelência pelo sucesso, defendendo a possibilidade da sua aquisição mediante diversos procedimentos em que a obediência ao paradigma é
substituída pela eficácia: aí, o sinal da excelência vai impresso na qualidade dos produtos que o indivíduo tem para oferecer. Tanto para uma quanto para outra, porém — numa faca, num cavalo, num che-fe político ou militar —, a avaliação é análoga: devem fazer «bem» aquilo «para que servem».
É neste terreno, tão pisado pelos debates públicos desta Atenas, que as primeiras reflexões socrático-platónicas se situam. Os diálogos que as encerram limitar-se-ão a insistir na necessidade de definição de um critério comum a todos os sujeitos e situações, susceptível de resolver todas as diferenças. Logo por aí, Platão visará uma solução fora do alcance daqueles que apenas conversavam sobre o assunto. Para esses, a excelência será uma capacidade de realizar «bem» certos objectos e acções. Para Platão, porém, ela será já — em estrita analogia com qualquer actividade profissional — uma supercapaci-dade: um (bom) sapateiro fará (bons) sapatos, estes são a sua obra, mas «o bem», a marca da sua excelência é independente de qualquer produto ou acção específicos. Esta subtil distinção desloca o problema da diversidade infindável de objectos e situações para visar uma só «virtude» e um só sujeito: o homem.
O conflito dos saberes
O objectivo da investigação será, pois, definir esse critério, bus-cando um «mesmo», que possa englobar todos os indivíduos, tipos de
actividade e situações. Essa Forma2 — aspecto idêntico em todos os
casos a que se aplica um mesmo nome — é o alvo das perguntas de Sócrates acerca da excelência, em geral, ou de cada uma das «virtu-des» que a integram (justiça, sabedoria, coragem, sensatez e piedade). Pretende Sócrates que o conhecedor, entendido em qualquer virtude, se poderá identificar pela capacidade de explicar o que ela é, por meio de uma definição. Ora, é próprio da dignidade de tal objecto de in-vestigação — a norma de origem divina que todos os actos humanos devem acatar — que a definição prestada não possa sofrer refutação. Uma tal exigência poderá parecer-nos estranha, mas, para um grego, é implicitamente decorrente da natureza do objecto visado, tal como o conhecimento do divino se inscreve, para um crente, na realidade necessária de Deus.
Por exemplo, no Êutifron, a realidade da piedade — objecto da pergunta de Sócrates — é sempre independente da qualidade das res-postas que o seu interlocutor propõe. Estas acabam sempre por ser refutadas, por serem produzidas por uma aparência de saber — um «julgar que sabe» (quando não sabe) — que o saber de Sócrates re-duz à contradição. O conflito funda-se no princípio que a Apologia distintamente formula e os primeiros diálogos reiteram
constantemen-2 Complemento de um verbo (eidenai), em que «saber», «conhecer», se acrescentam ao significado original «ver», «visar».
ÍNDICE
Introdução,
por JOSÉ TRINDADE SANTOS... 9