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Herberto Sales - Cascalho.pdf

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Sf:RGIO MILLIET

E CASCALHO

Quando foi ·lançada a terceira edição deste romance de Herberto Sales, cuidadosamente revista, o crí­ tico SÉRGio MiLLIET escreveu a se­ guinte nota entusiástica:

"f: de 1944 a primeira edição de

Cascalho. Chamando, então, aten­ ção do público para a bela estréia do escritor baiano, observei, a par das quaiidades excepcionais do ro­ mancista, certos defeitos decorren­ tes de sua inexperiência. A obra

carecia, em particular, de unidade.

O documento precioso e as anota­ ções realistas da primeira parte di­ luíam-se na expressão algo. dema­ gógica da segunda. A crítica social esmagava a realidade humana dos personagens.

Na segunda edição do livro, mos­ trou Herberto Sales que não so­ mente reestudara as falhas do· ro­ mance como ainda o escrevera por assim dizer de n�vo, procedendo a profundas alteraÇões de estilo e composição. Ao mesmo tempo em

que torcia o pescoço à grandiloqüên­ cia, fazia de seus heróis homens de carne e osso. Quanto à filosofia so­ cial da obra, surgia ela então me­ nos do comentário; sempre perigoso pela sedução moralizante, que da ação dos protagonistas. Não mais hesitei, a partir desse momento, em classificar Cascalho de primeiro grande romance �a região diamantí­ fera. Vinha ele completar o quadro realista do colonialismo econômico brasileiro e, tal qual os romances da cana e do cacau, os da seca e do

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cangaço, de José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachei de Queiroz, confirmava, acentuando-as, as co­ res negras dos demais painéis."

[ .. . ]

"Há em Cascalho, além do valor literário, uma importante contribui-ção ao estudo do vocabulário e da sintaxe de toda uma região brasi­ leira. Do ponto de vista do estilo e da Hngua será talvez, esse, o melhor e mais sedutor aspecto do romance. Acontece ainda que, ao contrário do que fizeram numero­ sos escritores regionalistas, não se trata, no caso, de uma anotação eru­ dita e morta e sim de uma pene­ tração viva e aguda, de uma co­ munhão real do autor com o meio descrito. Seus garimpeiros falam e agem sem esforço dentro do desen­ volvimento normal do tema. Não se sente a presença de um observador, de caderninho em mão a registrar palavras exóticas ou metáforas cu­ riosas para, com a matéria""prima colhida, contar histórias falsas, arti­ ficiais em sua trama e na psicologia dos protagonistas. Não, essa gente do garimpo é mesmo de garimpo. Ela está cinematografada na sua existência cotidiana e o autor com­ partilha suas ocupações, seus an­ seios, suas dores e alegrias. A tris­ teza e a miséria da situação econô­ mica e social da zona diamantífera ressaltam violentamente, sem que, para as entendermos, se necessite as­ sinalar-lhes a autenticidade com in­ terpretações à margem.

Grande romance, em verdade, e

merecedor do êxito que vem al­ cançando. "

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CASCALHO

- agora em 6. a edição

-é o grande romance da região diaman­ tífera.

Nessa obra-prima de nossas letras,

HERBERTO SALES narra, com verdade humana e grandeza artística, os dra­ mas do garimpo.

O crítico paulista SÉRGIO MILUET,

além de destacar a importância desse livro no quadro da ficção nacional, ressalta que Cascalho "é uma impor­ tante contribuição ao estudo do voca­ bulário e da sintaxe de toda uma re­ gião brasileira" .

Mais uma edição de categoria da EDITORA

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COLEÇÃO VERA CRUZ (Literatura Brasileira) volume 182

(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do Sindicato N acionai dos Editores de Livros, GB)

Sales, Herberto,

1917-S164c Cascalho: romance. 6. ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975.

291p. 21cm (Vera Cruz, v. 182)

1. Romance brasileiro. I. Título. II. Série.

CDD- 869.93

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H E RB E RTO SAL E S

(Da Academia Brasileira de Letras)

CASCALHO

romance sexta edição, revista

civilização brasileira

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Exemplar N.0 Desenho de capa: DOUNÊ '/10� '1 �, u v i} Planejamento gráfico: DIAGRAM

Direitos desta edição reservados à

EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.

Rua da Lapa, 120 - 12.0 andar RIO DE JANEIRO, GB.

1 975

---Impresso no Brasil

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A meus Pais

- em cujo sobradão de vinte janelas, em Andaraí, nas Lavras, foi escrito este roman­ ce, que também é dedicado ao meu fraternal amigo

Marques Rebelo.

A

Antônio Accioly Netto, Afrânio Coutinho

e

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I

O

o cÉu ESCURO, com a armação que houve de uma hora para outra, as águas caíram de uma vez nas cabeceiras distan­ tes. E inundando talhados, catas e grunas, carregaram pela noite adentro os paióis de cascalho. No povoado da Passagem, à mar­ gem do Rio Paraguaçu agora de monte a monte, rajadas de vento cortavam de alto a baixo as ruas ermas, quando os garimpeiros, em lúgubre vozerio, irromperam pela praça alagada com enxur­ radas descendo para o areão. Vinham encharcados de chuva, transportando como destroços suas bateias, seus carumbés, suas enxadas, seus frincheiros, suas alavancas, seus ralos, suas brocas - suas ferramentas de trabalho, no ombro e na cabeça. Na frente deles caminhava o velho Justino, empunhando a candeia de azeite que o vento ameaçava apagar. Foi quando de novo desabou a chuva.

Mesmo assim pararam defronte da casa do chefe - justa­ mente ao tempo em que a porta da casa se abria e a figura do Cel. Germano recortava-se contra a claridade indecisa do can­ deeiro-placa. Como o ruído da chuva fosse ensurdecedor, o velho Justino teve de gritar :

- As águas tomaram o serviço todo!

Depois passou a explicar ao patrão que os garimpeiros esta­ vam trazendo um companheiro que morrera afogado - "o Rai­ mundo, aquele frente" - na correnteza de uma cabeça-d'água.

- Foi uma coisa à-toa. Só se o senhor visse. Eu acho até que foi um ataque que ele teve, assim que nem o finado Flávio, que morreu nas Piabas.

O coronel recebeu a notícia com a maior naturalidade: é que, à força de ali se repetirem, os acidentes acabavam por tirar à morte qualquer sentido de surpresa. O mesmo não se deu, entretanto, ao atentar no sombrio quadro constituído pela garim­ peirada esbatida à luz bruxuleante das candeias; ao fazê-lo, teve um estremecimento. Porque sentiu de repente, em face daquela

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massa de trabalhadores destroçados, a evidência de seu próprio iruortúnio. Fez então um movimento brusco e ordenou sumaria­ mente ao velho J ustino :

- Despache estes homens agora mesmo.

Depois voltou as costas. E bateu a porta com força. Elimi­ nava assim a presença exacerbadora daquela multidão arruinada.

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Fazia cerca de quatro meses que o Cel. Germano viera para a Passagem. O Paraguaçu corre ali no fundo de um vale de margens escarpadas, onde as moitas de alcaçuz emergem das de­ pressões cheias de detritos aluviais, fundindo os emburrados no verde predominante de sua folhagem. Logo depois, correndo sem­ pre por entre as rochas nuas que atulham o leito áspero, vai pre­ cipitar-se numa queda, escachoando no lombo de grande lajedos cor-de-rosa, para alcançar, por fim, o amplo areão onde se es­ praia, a caminho da mata, banhando o casario branco do povoado.

:É a serra de maior tradição de riqueza das Lavras. Quanto ao rio propriamente dito, embora já muito trabalhado na grupiara das margens e em todos os serviços de leito por volta daquele ano, continuava a desfrutar a mesma fama do tempo do Cel. J oca de Carvalho, seu primeiro explorador. Os garimpeiros afir­ mavam :

- O Paraguaçu ainda tem serviço para cem anos.

Sua atual produção diamantífera, no entanto, estava longe de ser aquela que caracterizara os anos das primeiras descobertas. Em outros tempos, não só pela abundância de diamantes, como também pela facilidade de exploração dos garimpos, adquirira todo o vale o prestígio de uma espécie de Terra Prometida. Na época do Cel. Germano, porém, já não ocorriam casos de garim­ peiros que encontravam diamantes agarrados às raízes dos pés de canela-d'ema, ao arrancá-los para acender fogo em suas tocas. Todavia, para não falar no Poço da Donana e de outros poços ricos que desafiavam, pela sua profundidade, os rudimentares processos de mineração ali empregados, restavam pródigos ajogos como o do Cabelo da Roda, onde eram encontrados os diamantes matemáticos do cascalho balinha.

- Quem encontrar uma mancha de cascalho balinha no

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Paraguaçu - diziam os garimpeiros - pode comprar fiado.

É para se pegar até no encher do carumbé!

A suprema ambição se concentrava naquele cascalho privi­ legiado. E a exploração dos garimpos se processava numa luta de lances repetidos, as esperanças dos homens criando um código e elaborando um calendário. Durante o período das chuvas, que se prolongava, com intervalos variáveis, de princípios de novem­ bro a fins de março, os garimpeiros eram obrigados a suspender todos os cateamentos. Vinha a cheia de Santa Luzia, batiam em retirada para os cascalhões, serviços que eram trabalhados com o aproveitamento das águas nos regos e nas corridas .

Era muito dispendiosa a garimpagem no Paraguaçu : só em bananas de dinamite para os broqueamentos se gastavam somas vultosas. E era um tal de apontar brocas todo dia que não havia dinheiro que chegasse. Os resultados, porém, eram compensado­ res. No ano anterior, por exemplo, o coronel fizera uma apuração de mais de cem contos - e o garimpeiro Filó Finança, que anda­ va infusado, bamburrara na primeira semana, gastando 800$000

com uma mulher-dama boazinha mesmo que viera de Tamburi. Sem dúvida, era o Paraguaçu, para todos os efeitos, o melhor garimpo das Lavras.

De março a junho, as chuvas rareavam; contudo, as neblinas eram comuns nessa quadra, tornando temerária qualquer tenta­ tiva de cateamento. Por isso mesmo, a experiência instituíra aquela praxe :

- Só depois da fogueira . . .

Era quando o Cel. Germano, vindo da fazenda São Pedro, se instalava na Passagem. Ordinariamente, os serviços começa­ vam pela construção dos cortes de terra preta com faxinas de fedegoso. Distribuídos em sociedades capitaneadas pelos frentes, entregavam-se os garimpeiros à secagem de água que os dividia entre o enchedor e o tombador, entrando na fase onde o cascalho era socado e por fim amontoado, para ser em seguida ralado e depois lavado. Esses trabalhos, que se prolongavam durante qua­ tro ou seis semanas, eram logo recomeçados nas novas catas que se abriam, quase todas quebradas a dinamite, numa operação que o marrão batido a braço arrematava. Vinha então a fase final da apuração - com todos os serviços resumidos antes de no­ vembro, quando tinha início o período regular das chuvas.

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tretanto, ocorriam muitas vezes cheias temporãs - o que tornava aquela garimpagem não só a mais dispendiosa, mas também a mais arriscada das Lavras.

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Cel. Germano atacara o serviço com vontade; viera disposto a fazer muito mais do que no ano anterior. Chegara à Passagem em fins de junho, e já os primeiros garimpeiros apareciam. Como de costume, instalou-se na casa que pertencera à velha Chiquinha - uma casa térrea, de calçada alta, que ficava bem na entrada da praça. Nenzinha, sua amásia, viera com ele, e D. Santa, sua esposa, ficara na São Pedro - fazenda onde ele residia, e que distava poucas léguas dali. Conforme acontecia todos os anos, o barracão fora entregue a Zé de Peixoto - negro de tutano, que os garimpeiros respeitavam, enquanto o velho Justino, ja bas­ tante experimentado no serviço, ficara incumbido de gerir a garimpagem.

Era o coronel um homem forte e de hábitos rústicos. Tinha os seus cinqüenta e cinco anos, trabalhara muito na mocidade, mas estava bem conservado. Todos os anos, ao chegar à Passa­ gem, era logo procurado pelos garimpeiros, que para ali se diri­ giam numa verdadeira romaria; atendia-os na sala, aparando as unhas com um canivete, o velho J ustino sentado ao lado. Os garimpeiros iam entrando e ele começava a fazer perguntas :

- Então, Seu Neco Rompedor, como vão os garimpos lá no Andaraí?

- Com esse tempo, coronel, está tudo parado - respondia o garimpeiro. - A salvação é que existe o Paraguaçu. Senão a gente tinha de quebrar a cabeça com aquelas restingas dos Co­ queiros, faiscar no Viriato, ou lavar cisco debaixo da ponte, como Manezim Cangula.

O coronel puxava a fumaça do cigarro : - E a gruna de Teotônio?

O garimpeiro sorria, sem jeito:

- Qual, coronel, Seu Teotônio não deixa ninguém traba­ lhar na gruna dele não. Esses donos de grunas só têm serviço pra eles mesmos. O senhor não vê Seu Aurino? Seu Teotônio é a mesma coisa.

Sabendo que seu garimpo era o único a comportar na seca um número ilimitado de garimpeiros, o Cel. Germano sorria

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mamente. Ah, o seu Paraguaçu! . . . Léguas e léguas de serra que lhe pertenciam por documentos passados em cartório, selados e garantidos por lei, e que estavam guardados dentro daquele ca­ nudo de folha-de-flandres, que era como o seu cetro de rei dos diamantes.

Como era comum, no início da garimpagem, ter momentos de bom humor, que bem traduziam seu estado de otimismo, concordava:

- É. O Paraguaçu é mesmo a mãe de vocês todos. Não vai faltar serviço pra ninguém.

Entretanto, ao ver avolumar-se o número de garimpeiros que lhe pediam trabalho, garimpeiros que se reuniam defronte da casa, espalhados pela calçada, debruçados nas janelas, com­ primindo-se num grande ajuntamento de gente necessitada, ele ia restringindo aos poucos as colocações de meias-praças, ao cons­ tituir as sociedades. Naquele ano, quando Saiu lhe apareceu, foi logo dizendo ao garimpeiro:

- Você vai ganhar dois mil e quinhentos por dia, Saiu. Sei que você é bom de serviço.

- Quer dizer que eu entro como alugado? - respondeu o garimpeiro.

- Oxente! Como é que você queria entrar? Como meia--praça? Já não tem mais lugar pra meia-praça.

- Eu tenho oito filhos, coronel - alegou Saiu.

- E o que é que eu tenho com isso? - retrucou ele, vol-taQdo à sua aspereza habitual : sentia necessidade dela. - Quem fez seus filhos? eu ou você?

O garimpeiro era preto. Ficou branco.

- Pois é - continuou o coronel. - Você querendo, entra como alugado. Está achando a diária baixa? Não está tão baixa não. Tem gente que vai ganhar mil e quinhentos. Em todo caso, se você não quiser, é só voltar pra Andaraí. Uma coisa, porém, lhe garanto: você não vai encontrar lá colocação melhor. Quer ficar?

Saiu lembrou-se da advertência da mulher: "Se arrume por lá de qualquer maneira, porque senão seus filhos vão pedir esmola".

- Quer? - insistiu o dono do garimpo.

Com o chapéu debaixo do braço, sem ter honestamente outra alternativa, o garimpeiro respondeu:

- Está certo, coronel. Pode mandar assentar meu nome.

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O velho Justino molhou a ponta do lápis na língua e lan­ çou o nome do trabalhador no caderno .

No tempo das primeiras descobertas, aqueles garimpos não conheciam dono. O povo trabalhava à vontade, nos cateamentos e nos serviços de mergulho, mas logo veio o Cel. Joca de Car­ valho com os seus Títulos de Terras e Minas, com os seus regis­ tros de lotes reconhecidos pelo Governo, e estabeleceu domínio particular sobre o vale. Transferido o direito de propriedade ao Cel. Germano, certo garimpeiro tentara um dia contavam -trabalhar no Paraguaçu. Viera de fora, já dera muita cabeçada, estava ficando velho, precisava cuidar do futuro. "Com uns quatro contos eu estou satisfeito" - pensava. Subiu a serra numa terça-feira, atraído pela fama dos garimpos da Passagem, e não tardou a dar cálculo numa grupiara. Arregaçou as calças, muito tranqüilo, e começou a trabalhar. Foi quando chegou o gerente com uma espingarda nas costas. Estava inspecionando a serra e disse :

- Você não pode trabalhar aqui não. - Por quê?

- Porque não.

- De quem são estas terras? - Do chefe.

- E as margens do rio? - Do chefe.

- E o rio? - Do chefe.

O homem olhou. O Paraguaçu descrevia lá embaixo uma curva ampla.

- O rio também? - indagou.

- Sim. O rio e o leito do rio respondeu o gerente. -Você, aqui, sem ordem do chefe, nem pra beber água .

Em virtude da própria concorrência de braços, era possível ao coronel organizar suas sociedades em grupos de quatro ga­ rimpeiros, sendo que a metade desses lugares era reservada aos simples alugados ou diaristas. Somente a outra metade - a so­ ciedade propriamente dita - era constituída de meias-praças, isto é, de garimpeiros que partilhavam, uma vez abatido o

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quinto, de 50% da venda preferencial dos diamantes. Por outro lado, fugindo à praxe dos demais serviços, só muito raramente eram ali admitidas sociedades fornecidas por estranhos : era o caso das de Quelezinho e das de Dr. Marcolino, que exploravam ocasionais faisqueiras. Mas, de modo geral, o coronel não se interessava pela mera cobrança do quinto, que lhe dava direito a 20% sobre o produto extraído por qualquer sociedade em seus terrenos; preferia garimpar só, ressalvando o seu duplo direito de dono de serra e de fornecedor.

IV

Cel. Germano passou a tranca nas janelas e deitou-se na rede para fumar. Já não se lembrava do garimpeiro Raimundo. Entretanto, não se esquecia da cara do velho Justino ao dar-lhe notícia da cheia. "As águas tomaram o serviço todo!" Como que continuava a ouvir sua voz (a cara magra e aflita com pin­ gos de chuva escorrendo), lembrava-se de cada palavra dele: "As águas tomaram o serviço todo!" Lá fora, a chuva caía tor­ rencialmente, e a cada trovão ele sentia estremecer seu fundo supersticioso. Oh, a chuva! . . . Desabara de uma vez, como um castigo. Era preciso queimar palha benta, rezar para Santa Bár­ bara. Por que viera ela surpreender a garimpagem justamente na sua fase mais importante? Deus do Céu! Só podia ser mesmo maldição . . . Aquela maldição das cheias inesperadas que pesava sobre o seu garimpo. Exemplos de outras mais anti­ gas, ocorridas no tempo do Cel. Joca de Carvalho, vinham fortalecer suas crendices: o rio era, de fato, o único "dono" daquelas paragens. Havia como que um poder sobrenatural, uma força oculta pairando em tudo aquilo. Lembrava-se, agora, do que lhe tinham contado na infância: "O Paraguaçu era en­ cantado ... " E sentiu-se diluído numa espessa e acabrunhadora calma fatalista. (O toco de cigarro se desprendeu da mão imóvel e tombou sobre os tijolos. À luz do candeeiro que alumiava a sala, era a de um morto sua boca entre-aberta.) Foi adorme­ cendo lentamente e sem querer.

- Se não fosse esta chuva, dentro de duas semanas eu acabava de limpar minha cata - disse um dos garimpeiros.

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Eram quatro, e estavam conversando sob a cobertura de zinco que havia no oitão do barracão. O outro contou:

- Eu tinha começado a descer a minha ontem. Eu e meus sócios.

- Comigo foi pior - atalhou um mulato baixo. - Eu já estava amontoando. Mas, por mais que eu apertasse o cedro, de dia e de noite, dobrando o trabalho, não me livrei da chuva. O resultado foi que eu fiquei sem resumir meu serviço . . .

Um que era novato mostrou-se espantado.

- Como é isso? - disse. - Se a chuva veio sem ninguém esperar, como é que você estava apertando o cedro pra se livrar dela?

- A chuva foi fora de época - garantiu o primeiro. Mas o mulato baixo explicou :

- Vocês são curaus no Paraguaçu. A semana passada eu estava sentado na beira da lapa, quando vi uma nuvem amarela subindo no céu, bem na direção da cata. Fiquei olhando, olhan­ do, e nisto eu vi um martim-pescador descendo rio abaixo can­ tando. Depois ele voltou, sentou num pé de gameleira e con· tinuou a cantar. Deixe lá que eu estou olhando. Pois bem. Quando eu menos esperei, ele tornou a voar e subiu o rio toda a vida, cantando sempre.

O mais velho dos quatro garimpeiros, que já era um ho­ mem de barbas brancas, interrompeu a conversa.

- Então você viu o martim-pescador e não avisou a nin­ guém? - disse, num tom de reprovação.

- Eu avisei a todos os companheiros que estavam na toca de Deraldo de Seu Lélis - justificou-se o outro. - Mas eles não acreditaram.

- São uns curaus mesmo! - resmungou o velho. E soltando uma longa baforada, sentenciou :

- Quando o martim-pescador sobe o rio, é pra abrir a boca do tanque.

Você não pode se queixar de nada, velho Pedro -disse o outro. - Você estava trabalhando de alugado, e sua diária você ganha em qualquer garimpo. Nós, sim, é que tive­ mos prejuízo, porque ficamos sem resumir nossas catas.

Um trovão acompanhou a voz do homem. A chuva caía com força sobre a cobertura de zinco, e o velho não respondeu uma palavra. Lembrava-se, agora, da primeira vez que traba­ lhara de meia-praça no Paraguaçu. Era ainda um rapaz . . .

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Viera de Palmeiras fazia quinze dias apenas, e embora fosse lavrista, tendo nascido e se criado naquela cidade, não tinha até então cateado em leito de rio. "Será que vem enchente pra nos tomar a cata?" - perguntara ao sócio, que era fornecido por uma sobrinha do Cel. J oca de Carvalho. "Pode vir e não vir" - respondera-lhe o outro. Ele não se sentia bastante expe­ riente para trabalhar num veio geral como era o Paraguaçu, só conhecia serviços de barranco e de grupiara, de sorte que ficou sobressaltado. "Já me disseram que só vai haver cheia em novembro" - observara. "Mas, de qualquer maneira, tenho receio de uma enchente temporã." Então um companheiro de toca lhe respondera: "Você está bancando o curau?" - E ex­ plicara: "É só assuntar quando o martim-pescador sobe o rio, rapaz. Primeiro ele desce pra ir buscar a companheira, depois volta e vai abrir a boca do tanque. Quando desce de novo, já é com a cheia encostada. Fica então cantando nas gameleiras : 'Este ano não tira mais! Não tira mais cascalho! Este ano não tira mais!' Portanto, fique prevenido : quando ele subir o rio pela segunda vez - é avexar o pau dia e noite, porque a en­ chente é certeira". No dia seguinte, ele ainda dissera ao com­ panheiro: "Não sei não, meu sócio. Mas como que tem uma coisa que me diz que vem cheia pra enrascar nossa cata". E o sócio lhe respondera: "Vire sua boca pra maré vazante, Pedro. Eu estou assuntando o martim-pescador e não tenho visto nada". Duas semanas depois, quando começaram a lavar, o rio encheu de uma hora para outra e inundou todo o vale. Ele não vira nenhum martim-pescador - reconhecia; mas um companheiro lhe garantira ter visto. Essa lenda, na qual muitos garimpeiros não acreditavam, tinha, assim, para ele, a expressão de uma advertência permanente: depois de haver fracassado no seu pri­ meiro cateamento no Paraguaçu, quando em toda a frente se pegava diamante, passara dez anos infusado. Puxou então outra fumaça do cigarro. E ouvindo a chuva que escachoava na co­ bertura de zinco, engrossando as enxurradas, não mais se lem­ brou da sua primeira garimpagem ali, mas sim dos seus tempos de rapazinho em Palmeiras, quando pedia chuva para fazer correr barranco.

Depois de lavar os pratos, a velha Atanásia escorou a porta dos fundos e levou o urinol para o quarto do patrão. Fazia isso

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precisamente há quinze anos. Pam, pam, pam, pam, era a go­ teira martelando a lata grande no corredor .

Apesar da chuva, havia algum movimento na rua, com os garimpeiros tomando cachaça para rebater o frio. A casa do velho João Vítor estava tinindo de gente; ele a tinha cedido para a sentinela de Raimundo, por não possuir o garimpeiro parentes nem aderentes no povoado. Do cadáver estendido na marquesa, lívido e inchado, ainda escorria água. Em várias partes do corpo - um fardo úmido - havia sinais das cordas com que ele fora amarrado ao varão de maria-mole, para facilitar o transporte. Entre garrafas vazias servindo de castiçais, tinham colocado uma imagem de N. S. Bom Jesus da Lapa. Na sala espalhava-se o cheiro nauseante das velas de sebo. Foi quando um garimpeiro de Lençóis disse a outro :

- Até a cachaça está entranhada deste fedor nojento. Baixo, franzino, trôpego, o velho João Vítor envelhecera ali na Passagem, e em outros tempos fora garimpeiro bambur­ rista. Agora, já sem forças para trabalhar, cuidava da capela e cobrava imposto dos bruaqueiros. O Professor Valadão, em Andaraí, costumava gabar-lhe a letra ainda certa e bem talhada: "O velho João Vítor escreve a pincel!" Entretanto, ninguém melhor do que ele sabia que aquele serviço de cobrança dos bruaqueiros não ia durar muito: sua catarata aumentava cada vez mais, alastrando-se pelos olhos como uma clara de ovo, e já não era com facilidade que enchia um comprovante. Descon­ fiava que ia acabar como esmoler, no povoado onde vivia desde menino. De qualquer maneira, porém, não se descuidava : com­ prara uns óculos na loja de Zé Antunes e espremia sumo de hor­ telã graúda diariamente nos olhos .

Por volta das dez horas, a chuva cessou, embora conti­ nuasse a relampejar. O negro Zé de Peixoto fechou o barracão, meteu-se na capa colonial e dirigiu-se para a casa do velho João Vítor. Estava visivelmente embriagado, e logo que ali chegou lhe deram uma cadeira para sentar-se. Todos os homens fala­ vam sobre a garimpagem malograda.

- Eu já tenho visto toda espécie de cheia temporã no Paraguaçu - disse um deles.

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- Como esta de hoje eu há muito tempo não vejo - opi­ nou outro. - Porque trovejou e choveu nas cabeceiras e aqui ao mesmo tempo.

- A pior é a de tromba-d'água - disse o garimpeiro Qui­ rino. - Ninguém vê chuva, não cai uma gota d'água, e quando a gente menos espera, de uma hora para outra, o rio enche e enrasca o serviço todo.

- É quando chove só nas cabeceiras - aparteou um velho. - Mas quer dizer que, quando tem tromba-d'água, o rio enche sem chuva? indagou um curau que viera do sertão. -Não cai nem neblina?

Zé de Peixoto interveio:

- Que neblina! Nem neblina nem lebréia! E cuspindo grosso:

A enchente vem é com o sol quente, tinindo, de tirar lasca.

Eu sei dizer que com isso eu fiquei foi sem minha fer­ ramenta - queixou-se outro garimpeiro. - Eu estava na porta do rancho fazendo um cigarro, quando ouvi o sócio gritar : "O rio está enchendo!" e já vi foi a ferramenta descendo rio abaixo. Até meu chapéu foi embora.

- Meu sócio também cortou um doze - declarou outro. - E eu, que estava com o sentido no bambúrrio pra ir ver minha mãe em Mato Grosso, vou ver agora eu sei o que é.

- Fé em Deus, rapaz - procurou animá-lo um compa­ nheiro. - Daqui pra cima quem governa é um só - e olhou para o alto.

Quem encosta em Deus não geme nem sente dor -disse o velho João Vítor.

Outro garimpeiro lembrou então que se fizesse uma fogueira - "Vamos aproveitar agora que estiou". A idéia foi acolhida com entusiasmo, e trouxeram lenha imediatamente. Num abrir e fechar de olhos a fogueira estava acesa - uma fogueira grande que clareou a praça. Todos queriam "quentar fogo" a um só tempo; e a garrafa de cachaça foi passando de mão em mão, os homens bebendo pelo gargalo. Saindo do interior da casa, Filó Finança tirou o chapéu e cumprimentou Agenor Cabeça-Seca:

- Boa noite, urubu.

Agenor, preto troncudo, respondeu sem se voltar : - Se eu fosse urubu, era seu irmão.

Arregalando os olhos num jeito muito seu, o indicador em riste, Filó replicou ao pé da letra:

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- Se você fosse meu irmão, você era um homem! Foi uma gargalhada geral. Até Zé de Peixoto achou graça. E aprovou:

Boa resposta! Esse Finança é um filho da mãe . •

Uma lufada de vento entrou pelas janelas e as velas se apagaram.

- É capaz da chuva voltar - disse um garimpeiro do lado de fora.

Zé de Peixoto tomou da garrafa de cachaça e escancarou a boca para a dose cavalar.

- Não vá Seu Zé fazer uma das dele - observou o velho João Vítor, dirigindo-se a um outro homem que estava sem beber.

Foi quando houve um trovão tão forte que todos os garim­ peiros de repente se calaram. Alguns pensaram que tivesse caído uma faísca - outros se lembraram da tempestade que desabara em Andaraí no dia em que retiraram Nossa Senhora da Piedade do altar. Por um instante, só se ouviu mesmo o rio roncando dentro da noite, chegando água.

v

Era meia-noite quando o Cel. Germano despertou sobres­ saltado. Abalara-o terrível pesadelo, na visão tumultuária das águas que subiam. Diamantes boiavam como estrelas, descendo rio abaixo. E o velho Justino gritava em meio das catas revol­ vidas : "As águas tomaram o serviço todo!" Rouco, desesperado, o grito ecoava fundamente no bojo da noite. Era preciso evitar aquela derrocada, não podia permitir que o rio lhe arrebatasse assim tantos diamantes. Agora um deles vinha passando bem perto - estendeu a mão para pegá-lo. Tinha, calculadamente, uns dois quilos. Nesse momento, porém, um trovão estrondou. Ergueu-se, bem no meio do rio, uma tromba-d'água da altura de um sobrado, e, à luz de um relâmpago, apareceu um gigante desgrenhado, o corpo coberto de espumas. Foi quando uma voz de mulher se fez ouvir. O coronel volveu o rosto: de preto, ace­ nando do areão, D. Hilda gritava: "Volte, meu filho! Volte!

É o Paraguaçu!" Quis retroceder - mas viu que o gigante avançava, rilhando os dentes. "Volte, meu filho, volte! Deixe

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estes diamantes! Todos são dele! Não ponha a mão em nenhum! Volte! " De repente, uma pancada de chuva caiu de rijo sobre a terra. Sentindo-se ensopado, procurou, aflito, o velho J ustino; e viu que este desaparecera. Agora estava só, irremediavelmente só. Não! D. Hilda gritava ainda, acenava do areão: "Volte, meu filho, volte!" Teve medo. Olhou em torno : as águas conti­ nuavam a subir, os diamantes boiavam. Avidamente, estendeu a mão para um deles; quando o sentiu sob os dedos trêmulos, puxou-o de uma vez. O diamante, porém, opôs insólita resis­ tência. Surpreendido, passou a mão por baixo, e encontrou raí­ zes. "Volte, meu filho! Volte! É o Paraguaçu!" Olhou : o gigante continuava a avançar, ao som de trepidantes trovões. Apresen­ tava-se como uma massa escura, descomunal, ofegante. A cla­ ridade de um novo relâmpago, divisou-o por inteiro : era um monstro iracundo que vinha cuspindo espumas. Puxou de novo o diamante, com toda a força : mas uma cabeça-d'água submer­ giu-o. Quando voltou à tona, estava no meio do rio, debatendo­ -se na correnteza. Embora continuasse a ver o vulto de D. Hilda no areão, já não ouvia sua voz. "Volte, meu filho, volte! " - lembrava-se do seu apelo. "Volte, é o Paraguaçu!" Então aquele gigante era o Paraguaçu, aquele monstro era o "dono" do vale - o "dono" daqueles diamantes que boiavam, daqueles diamantes enraizados? Sim - e sentia agora a respiração "dele" .. . Era aquele vento, aquele vento frio . . . Tentou então nadar com as últimas forças que lhe restavam; eis, porém, que uma possante garra lhe reteve os movimentos. Era a mão "dele"! Despertou inundado de suor. Sobressaltado, ergueu-se da rede e passou o lenço na testa. O querosene estava se extin­ guindo, o candeeiro era uma brasa na escuridão da sala. Cha­ mou por Nenzinha, por Atanásia, mas não obteve resposta. Só aí foi que notou que havia grande gritaria na praça. Pensou no finado Raimundo e na sentinela. Tateando, apanhou o candeeiro já apagado, e chamou mais forte :

- Atanásia!

Dessa vez a empregada respondeu. Levantou-se da esteira, ainda tonta de sono, enrolou-se no xale - e deu com os olhos nele, que já ia entrando na sala, o fósforo aceso numa das mãos e o candeeiro na outra. O vento zunia nas frestas das portas, e o vozerio era confuso lá fora. Contudo, o coronel ouviu alguém gritar:

- O rio já está no muro do quintal de Seu Heron! Atanásia trouxe a garrafa de querosene. O coronel acendeu

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o candeeiro e dirigiu-se em seguida para a sala de visitas. Passou, antes, pelo quarto de Nenzinha, que acordara com a gritaria dos garimpeiros, e disse-lhe em voz baixa:

- Acenda uma vela para minha mãe.

A mulher olhou-o com espanto e viu-o afastar-se apressa­ damente, com o candeeiro na mão .

Quando o coronel abriu a porta, como numa grande onda de fogo, os garimpeiros atravessavam a praça correndo, empu­ nhando as candeias de gruna. O azeite ardia nos fachos fume­ gantes, arrancando às trevas uma multidão curiosa e ululante. Todos queriam ver o rio chegando água. Então ele teve, ainda sob influência do sonho, uma súbita visão da procissão de foga­ réus. Lembrou-se da quaresma. E, instintivamente, murmurou consigo próprio: "Deus lhe dê o céu, minha mãe" .

Alguns garimpeiros se aproximaram: - Nunca vi cheia como esta.

- Desta vez a Passagem se acaba!

- Eu acho até que já está entrando água nos quintais. Agora já todas as casas estavam abertas, os fifós acesos nas salas. Havia na rua uma fervilhação de dia de festa. Os mo­ radores corriam para as portas, e reuniam-se aos vizinhos nas calçadas, comentando a cheia. As mulheres, agasalhadas nos xa­ les, ralhavam com os filhos para não saírem. Estes, não podendo ver de perto o rio, onde desde cedo se tornavam nadadores de mão-cheia, ficavam nas janelas espiando os garimpeiros. Algum dia fariam a mesma coisa, atravessariam a praça com uma can­ deia de azeite na mão, para ver as cabeças-d'água de noite.

- Seu pai foi olhar? - perguntou um deles ao compa­ nheiro.

- Foi - respondeu o outro. - Disse que vinha descendo um jegue morto.

De pé, na porta, Cel. Germano parecia considerar a agita­ ção dos habitantes do povoado. Não podia divisar o rio, mas

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ouvia sua ronqueira de fim de mundo, seu rumor de elemento em fúria. Garimpeiros acercaram-se dele, de candeia na mão; e, em meio à fumarada das tochas, ele distinguia alguns rostos familiares. O velho J ustino foi chegando, de chapéu em cima dos olhos, o pala molhado, e contou-lhe que uma casa desabara na Rua do Tabuão. Foi quando o velho João Vítor, que se dirigira apressadamente para a capela, começou a tocar o sino. Houve então um estremecimento entre os homens. É que o repentino badalar, despertando em todos eles um vago receio de morte, lhes trouxe à lembrança o afogamento de Raimundo: gemendo dentro da noite, o rio parecia pedir mais vidas .

O coronel vestiu o capote, pôs o chapéu e desceu para ver de perto a enchente. Muitos garimpeiros o acompanharam, alu­ miando o caminho com as candeias. Soprava um vento frio, úmido, e algumas delas se apagaram. Nesse momento, um ga­ rimpeiro acendeu um pedaço de candombá, a resina pegou fogo e foi aquela claridade grande contra a qual o vento não podia. Ao chegarem perto da casa de Seu Heron, o rumor do rio não deixava mais que se ouvisse nada. O coronel parou, e alguns garimpeiros avançaram, erguendo as candeias acima da cabeça. Pôde ele então constatar que o rio estava muito mais cheio do que pensara. As águas desciam de arrancada, cobrindo inteira­ mente o areão e invadindo as cercas marginais, já quase dentro do povoado. De pé, cercado pelos garimpeiros, a face apreen­ siva recortando-se à luz das candeias, o coronel contemplava o espetáculo da cheia. Estava no alto de uma pedra, as mãos nos bolsos do capote, o chapéu desabado. Em volta, na escuridão reinante, os garimpeiros como que se prostravam diante daque­ las duas forças que se defrontavam na noite: as águas rouque­ jantes e o patrão majestático.

De repente, uma rajada de vento trouxe novos pingos de chuva. Candeias se apagaram, e houve então, entre os garim­ peiros, um movimento no sentido de retrocederem. Cel. Ger­ mano, entretanto, continuava de pé, indiferente aos pingos de chuva que caíam. O vento dobrava-lhe a aba do chapéu. Tinha os olhos fixos na superfície líquida que se estendia na sua frente, enquanto voltava a pairar, sobre seus pensamentos, a sombra da mãe morta. Via as espumas descerem rio abaixo, muito bran­ cas e espessas, e teve, de súbito, a impressão de que elas iam se

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cristalizando e adquirindo reverberações de diamantes colossais. Sentiu o corpo gelar . . . As águas rugiam, mergulhando pela noite adentro num acometimento fantástico, e tudo trepidava à passagem delas. Via-as na afirmação de sua força poderosa, retomando de assalto os terrenos que ele e os seus garimpeiros tinham conquistado. Sim, era o Paraguaçu crescendo dentro da noite! Apertou o capote de encontro ao peito, as mãos trêmulas. Os garimpeiros continuavam perplexos, estranhando todos eles a atitude do chefe. Ao engrossarem, porém, os pingos de chuva, o coronel desceu da pedra, puxou a gola do capote até as ore­ lhas, e, com decisão, voltou as costas para o rio. Em silêncio, os garimpeiros acompanharam-no. O rumor das águas era cada vez maior.

VI

O coronel já ia entrando em casa, quando se ouviu um tiro no outro lado da praça. Ao estampido, os homens correram, e estabeleceu-se o pânico. Portas e janelas foram fechadas com estrondo, a praça escureceu de repente. Muitos garimpeiros pro­ curavam proteger-se junto à calçada da casa do chefe, apagando as candeias. Logo em seguida, outro tiro. O coronel não podia compreender o que se passava. O velho J ustino levou a mão à fogo-central, e alguns garimpeiros pensaram logo num provável rolo na sentinela de Raimundo. Ao estrondar, porém, o terceiro tiro, a voz de Zé de Peixoto foi ouvida. A arma estava sendo disparada na porta do barracão.

- Quem é esse doido? - gritou o chefe, que não reco­ nhecera de pronto a voz do jagunço.

Em resposta, ouviu-se outro tiro. E não tardou, e todos viram sair de dentro das trevas, alumiado pela luz das poucas candeias acesas, o negro Zé de Peixoto. Vinha jogando cabrio­ las, com uma repetição na mão, e gritava como um louco :

- Cadê um homem de coragem? Eu hoje estou com von­ tade de fazer um fecha!

O velho Justino sacou rapidamente a fogo-central, pondo­ -se em guarda.

- Entregue a arma, Peixoto! - advertiu-o com um grito. Os garimpeiros recuaram.

Que é que você quer, Justino? - respondeu o jagunço.

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- Vá escovar urubu na praia. Eu hoje não estou respeitando nem meu padrinho!

Cel. Germano sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. Zé de Peixoto tratava-o por "meu padrinho". Vendo-se desrespeitado por um jagunço, coisa que pela primeira vez lhe acontecia, per­ deu as estribeiras. Afastou aos empurrões os garimpeiros que o cercavam - e avançou num ímpeto de coragem para o negro.

Vindos da sentinela, começavam a chegar outros garim­ peiros.

- Que é isso, minha gente? - perguntavam, na correria em que vinham.

Antes de chegar perto de U de Peixoto, o coronel já foi gritando, cheio de cólera:

- Aprenda a respeitar homem, seu filho da mãe! E cerrando os punhos no ar:

- Você faz-se de besta? Quem está falando sou eu, está ouvindo? Sou eu, cabuleté descarado!

Ante aquela presença que se anunciava terrível, o negro cambaleou, atordoado.

- Me dê a arma, vamos! Me dê a arma!

O jagunço desabou aos pés do chefe: não esperava que ele estivesse tão perto e ouvisse a provocação.

- Passe por essa, "meu padrim" . . . Passe por essa . . . - suplicou em voz baixa.

Empurrando-o contra uma poça de lama, o coronel arreba­ tou a arma de suas mãos. Os garimpeiros assistiam à cena em silêncio, entreolhando-se à luz das candeias. Era estranho que, de sessenta e tantos homens, só um tivesse coragem de enfren­ tar o negro! Viram o chefe afastar-se, e de novo subir a cal­ çada da casa, fazendo crescer o respeito que sempre desfrutara entre eles. Foi quando o velho Justino, conservando a pistola na mão, acercou-se do jagunço, que permanecia no mesmo lugar : estava como que wnzo.

- Vá curtir sua cachaça lá adiante, U disselhe. -E agradeça a Deus mais este dia de vida .

Quando o coronel acabou de fechar a porta, desabou uma chuva grossa. Os garimpeiros debandaram aos gritos. Na sala, encontrou N enzinha enrolada no xale, muito aflita; ao ouvir os

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tiros, ficara sobressaltada, sem atinar com o que estava acon­ tecendo.

- Vá rezar a Magnificat ordenoulhe o coronel. -E queime palha benta. -Esta chuva está parecendo um castigo - e encostou a repetição de Zé de Peixoto junto ao armário .

Defronte do nicho ardiam duas velas; Nenzinha acabara de rezar a Magnificat. Agora a chuva tinha de passar, aquela oração era forte. Levantou-se, o xale cobrindo-lhe os ombros, e levou a palha benta à chama de uma das velas. A mão tremia­ -lhe, a palha começou a estalar ao contato do fogo. Foi quando o coronel entrou no quarto. Ela pressentiu-o, mas não se voltou; ele fechou a porta devagar. A chuva cantava no telhado, a palha benta crepitava à chama da vela. Ele pousou então a mão no ombro dela. Ela estremeceu. No nicho, o dourado das imagens reluzia.

- Basta, minha filha . . . - disse ele, fechando o livro de rezas.

Ela protestou fracamente; - Não, hoje não . . .

Mas ele já a abraçava com força.

VII

Amanheceu estiado. O rio baixara mais, descobrindo um grande pedaço do areão, e alguns emburrados estavam à vista, com os ovões característicos do Paraguaçu. Nenzinha acordara abatida, e desde cedo tratou de arrumar as malas; o coronel lhe dissera que viajariam logo depois do almoço. Agora ele estava na sala, acertando contas com os garimpeiros, auxiliado, como de costume, pelo velho Justino.

- Joaquim! - chamou. - Vamos ver sua nota.

O garimpeiro atravessou o grande grupo formado na porta da casa, tirou o chapéu e apresentou-se. O velho Justino, que recolhera, logo depois da apuração, o diamante que o meia-praça pegara na tarde anterior, entregara-o pouco antes ao chefe.

- Você teve sorte, Joaquim - disse este. - Infelizmente, nem todos tiveram tempo de lavar, o que agravou meu prejuízo.

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- Assim mesmo eu só pude lavar vinte carumbés - res­ pondeu o garimpeiro. - Saí da cata um instante, deixei a bateia na lavadeira, e quando eu vi foi meu sócio grintando: "Corre, rapaz, que a bateia vai descendo rio abaixo!" Era o rio que já estava chegando água.

- O pior é que seu diamante não dá pra você comprar outra bateia.

- Quanto deu de peso?

O coronel, que já pesara o diamante, tinha-o agora entre os dedos.

- Deu um quilate - informou, diminuindo dois. E de­ preciando a pedra, para fazer maior lucro, acrescentou : - Mas é um diamante muito ponteado. Só vale 350$000.

- Será que o senhor não pode chegar mais uma coizinha, coronel? - insinuou timidamente o garimpeiro.

- Meu preço é um só.

- Então o senhor pode fazer a conta.

O coronel guardou o diamante no picuá, que em seguida tampou, franziu as sobrancelhas e fez a conta. Depois respondeu:

- Abatendo os 20% do quinto, da minha parte como dono da serra, ficam duzentos e oitenta mil-reis. Dos duzentos e oitenta, abatendo a metade, da minha parte como fornecedor, ficam cento e quarenta. Seu sócio está aí?

- Está, sim senhor.

- Alcidão! - apressou-se o velho Justino em chamar. Imediatamente entrou outro garimpeiro na sala.

- Pois bem - disse o chefe. - Cada um tem direito a

70$000.

Mas, logo em seguida, abrindo o caderno de papel pardo do barracão, correu o dedo ao longo da página cheia de números alinhados em parcelas, e acrescentou :

- Sua conta no barracão é 160$000, Joaquim. Quer dizer que, abatendo os setenta de sua parte no diamante, você fica me devendo noventa.

O garimpeiro coçou a cabeça:

- Virgem, coronel! Minha conta no barracão é tudo isso?! - Se não for mais - respondeu o chefe. - É capaz da-quele cabuleté do Zé de Peixoto ter deixado de tomar nota de alguma coisa.

Joaquim abanou a cabeça. Todos os meias-praças eram contratados à base de 10$000 por semana. Entretanto, no Para­ guaçu, essa importância não era fornecida em dinheiro, mas sim

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em vale assinado pelo coronel, e destinado ao barracão do garim­ po por ele especialmente montado para este fim : o de fornecer, em gêneros alimentícios, a cada garimpeiro, a importância cor­ respondente à sua remuneração semanal. Na qualidade de bom frente de serviço, fora aberto a Joaquim um crédito suplementar de resto de saco, para atender a pequenos excessos do saco normal; estes excessos é que importavam em 160$000. O garim­ peiro não imaginava que sua conta extraordinária chegasse a tanto; surpreendido, considerou intimamente: "Perdi minha ba­ teia, e ainda por cima vou sair daqui na imbira".

- E como há de ser, coronel? . . . - disse, com hesitação. - Como há de ser? - retrucou, meio agastado, o chefe. - Você encheu a barriga, matou sua fome, me deve 90$000,

tem que pagar esse dinheiro. - Pagar como, patrão? . . .

O coronel se pôs nervoso, e, como acontecia em semelhan­ tes ocasiões, começou a cuspir e a intercalar na conversa o seu conhecido cacoete:

- f:h, pagar como? :Bh, você não tem ferramenta não, êh, êh! Veja qual é a ferramenta que você tem. Eu não posso perder meu dinheiro não. Matei sua fome, êh? quero os meus

90$000, êh?

Diante das manifestações de irritação do chefe, todos os garimpeiros se entreolharam, num comentário mudo, enquanto Joaquim pedia ao sócio o que lhe restava da ferramenta. Sem tardar, foram trazidos à presença do coronel um ralo, uma cunha de marreta, um marrão, duas brocas, um sacador de broca, e um alavanca de trinta quilos.

- f:h, pode deixar tudo aí, êh, êh! - foi dizendo o coro­ nel. - Quando você arranjar os noventa mil-reis, pode vir buscar sua ferramenta.

- Coronel . . . - balbuciou o garimpeiro - eu já estou saindo daqui limpo e areado. Se eu não levar minha ferramenta, vou sofrer mais do que sovaco de aleijado. Pelo bem da finada D. Hilda, coronel, dispense minha ferramenta!

- Eu não posso perder 90$000 com ninguém - respon­ deu o Cel. Germano, tornando-se subitamente calmo.

D. Hilda era o nome de sua mãe.

Tenha paciência, coronel insistiu o garimpeirro. -Se eu não levar minha ferramenta, vou comer da banda podre.

Arranje os 90$000 primeiro. Eu tenho quatro filhos, coronel.

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- Guarde a ferramenta no depósito, Justino - ordenou o chefe, reacendendo o cigarro.

- Pela homa de D. Nenzinha, patrão - insistiu o ga­ rimpeiro.

O coronel fitou demoradamente o trabalhador. Depois ris­ cou a conta no caderno, passando o lápis com força, e disse, com o cigarro na boca:

- Deixe o ralo pra ele, Justino.

- Eu agradeço muito ao senhor, coronel - respondeu o garimpeiro. - Deus lhe ajude. Mas, como o que vai ficar de minha ferramenta vale, pelo menos, 120$000, será que o senhor não podia me dar o resto em dinheiro? Eu não queria chegar em Andar aí de mão abanando . . .

- Seu caso já está resolvido - disse o chefe. - Quando você arranjar os 90$000, venha buscar o resto de sua ferra­ menta. Agora vá tocando, que eu tenho de despachar os outros.

Era uma ordem sumária. O garimpeiro apanhou o ralo, pediu licença e retirou-se da sala. Os companheiros ficaram olhando para ele.

- Agora vamos ver você, Alcidão - foi dizendo o coro­ nel ao sócio de Joaquim. - Você deve 195$000 ao barracão. Abatendo os setenta de sua parte no diamante, seu débito fica reduzido a cento e vinte e cinco. Tem ferramenta pra garantir esse dinheiro?

- Não senhor . . . - Não tem?

- Não senhor. . . Eu estava trabalhando com a do meu sócio. De ferramenta minha, eu só tenho mesmo um farracho . . .

- Faça bom proveito dele - atalhou o chefe, de mau humor.

- Eu não sei como vou lhe pagar, patrão - disse o garimpeiro em voz baixa.

Você vai pagar com serviço respondeu o coronel. -Você e outros que não têm ferramenta pra garantir os débitos.

- Aqui mesmo ou em Andaraí?

O coronel fez uma anotação no caderno e respondeu: - Na fazenda.

Nesse momento, de volta do depósito, onde reunira a ferra­ menta de Joaquim à de outros garimpeiros em condições idên­ ticas, o velho Justino entrou na sala. O chefe já estava dizendo a Alcidão:

- E agora pode ir saindo. Seu caso já está resolvido.

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Voltando-se para Justino, acrescentou:

- Tem algum alugado devendo ao barracão?

- Não senhor - respondeu o gerente. - Todas as diá-rias estavam em dia.

Cel. Germano considerou intimamente que a atuação de Zé

de Peixoto, à frente do barracão, sempre fora louvável; mas isto em nada atenuou a indignação que lhe causara a arruaça da véspera, quando o negro, embriagado, o desrespeitara.

Sucessivamente, foram chamados os demais garimpeiros. Atendido o último deles, e já com a sala vazia, o coronel fechou o caderno, e retirou um pedaço de fumo do bolso do casaco. Enquanto o cortava, para a palha previamente sovada, fez um rápido balanço do cateamento: ganhara apenas trinta contos, o que representava, em relação às possibilidades do serviço, e aos resultados do ano anterior, um verdadeiro fracasso. "Agora estou abastecido de ferramentas para muito tempo" - pensou, ao calcular o número delas no depósito. Ao enrolar o cigarro, disse ao velho J ustino :

- Contas feitas, malas arrumadas. Vamos viajar depois do meio-dia.

O enterro de Raimundo fora cedo. Em meio daquele cheiro de vela de sebo que havia na casa do velho João Vítor, seus sócios discutiram rapidamente como ele seria enterrado.

- Ele não pode ir amarrado no mesmo varão de maria--mole em que veio da serra, como um porco - disse um dos sócios.

- Bem, eu não tenho dinheiro pra mandar fazer o caixão dele - alegou outro. - Quem devia fazer isso era Seu Aurino,

que ganhou dez contos nas costas dele, vocês não se lembram? - Naquele diamante que ele pegou no Viria to?

- Sim.

- É o mesmo que Seu Teotônio está usando hoje no alfi-nete de gravata - disse outro.

- Passe a garrafa de cachaça - pediu um outro garim­ peiro. - Vou tomar um pedaço pra apontar o dia.

O dia ia, de fato, clareando, e o cadáver tinha um tom vagamente arroxeado.

- A gente tem de levar ele é na esteira mesmo - disse outro garimpeiro. - Esteira é uma coisa que sempre se arranja, qualquer dono de venda pode arranjar uma esteira de toucinho.

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Filó Finança ia chegando: - 'dia, gente.

- 'dia.

- Se lembrem que aqui na Passagem ainda tem um cai-xão-da-misericórdia - disse -, que é uma espécie de mulher­ -dama; serve a todo mundo. O velho João Vítor está aí?

- Não. Saiu - respondeu um garimpeiro.

- Pois quando ele chegar - continuou Filó - é falar com ele pra ir buscar o caixão na capela.

Assim que voltou, o velho João Vítor foi buscar o caixão: havia dois ratos dentro. Abriu-o, matou os ratos, e vasculhou-o ali mesmo defronte da casa. Mal tinham colocado nele o cadá­ ver, chegou outro garimpeiro com um recado do Cel. Germano:

- 'dia.

- 'dia - responderam, omitindo sempre a primeira pala-vra da saudação.

- O chefe mandou dizer pra mandar a ferramenta do finado. Ele morreu devendo ao barracão.

A sepultura foi aberta no barranco, entre mamoneiras e pés de fedegoso.

VIII

Quando o coronel viu o cachorro-mestre entrar na sala, voltou-se logo para a porta : João Vaqueiro, que era esperado naquela manhã, vindo da fazenda São Pedro, ia entrando tam­ bém. O chefe mandou que ele se sentasse e pediu-lhe notícias da fazenda.

- Tudo lá vai bem - respondeu o vaqueiro, que era um cabra retinto e dobrado. - Não há novidade não senhor.

- Consertou a cerca da manga? - Consertei sim senhor.

- E como vai o gado?

- O gado vai bem. Aquela vaca azeitona, que tem uma mancha branca na apá, é que está com uma bicheira danada. O senhor precisa até comprar uma lata de creolina pra ela.

- Fale com Justino.

- E arranjar um pouco de mercúrio também.

- Mercúrio eu tenho lá. Está dentro do armário. Agora vá preparar os animais, porque nós vamos viajar depois do almoço.

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João Vaqueiro pediu licença e retirou-se. Na rua, os garim­ peiros correram para ele. O capataz da São Pedro, dada a fama de valente de que desfrutava, gozava de muita simpatia entre os outros homens, sendo seu convívio motivo de honra. Alguns ga­ rimpeiros faziam questão de pagar-lhe uma cachaça, o que ele de bom grado aceitava, como grande bebedor que era. Finalmente, quando se dirigia para o barracão, veio a saber, por Filá Fi­ nança, da arruaça que o negro Zé de Peixoto fizera. Ouviu tudo muito espantado, e, em vez de se dirigir para o barracão, tomou outro rumo, e foi buscar os animais na manga .

Abanando a cauda, a língua para o lado de fora, o cachorro ia andando na frente; João Vaqueiro vinha atrás, em silêncio, intrigado com a história de Zé de Peixoto. Nunca tinham sido bons amigos . . . Haviam lutado juntos nos barulhos do Coxó, mas sempre lhe votara grande antipatia. Não porque tivesse medo dele; não. Não tinha medo dele. Era homem para enfren­ tar dois Zé de Peixoto. O cabra tinha mesmo mais farromba do que outra coisa. Palavra grosso, com aquela ronqueira toda, mas ronqueira não queria dizer nada, porque porco também roncava. As razões que o levavam a odiá-lo eram de natureza diferente, nada tinham a ver com medo. Não diria que fosse inveja, porque não invejava ninguém; mas o negro, com aquela história de "meu padrinho", estava querendo passar a perna nos outros, e já falava até em ser subdelegado. E o coronel? O que é que o coronel estava fazendo? O coronel parecia que estava rezado .. . Ah, ele é que nunca se enganara: sabia que o negro não prestava, que ainda ia acabar fazendo uma sujeira. Nunca falara porque talvez não fosse compreendido, haviam de pen­ sar que ele falava era por despeito, ou por mágoa de alguma rixa antiga. Por isso mesmo, deixara o tempo correr, convencido de que um dia lhe dariam razão. Caminhando sempre, saltou um pequeno córrego, com o cabresto na mão, e foi andando rente ao muro da manga. Abriu a cancela, logo que ali chegou, mas, antes de entrar, volveu o rosto na direção do povoado. Que estaria fazendo, àquela hora, dentro do barracão, o negro Zé de Peixoto? Que estaria pensando, que rumo iria tomar, agora que a garimpagem estava terminada e não mais contava com a proteção do chefe? De repente, pensou no finado Raimundo, cuja morte Filó Finança lhe contara. Por que, em vez dele, não

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morrera Zé de Peixoto? Debaixo do chão, enterrado com sete palmos bem contados, queria ver se ele ainda tinha farromba de valente. Foi quando se lembrou que discutira com Zé de Peixoto certa vez. Fora logo depois dos barulhos do Coxó. Bem que podia tê-lo matado naquela ocasião; bem que podia. Agora, o Sol estava alto. Olhou mais uma vez para as quatro portas do barracão, cuspiu para o lado, e entrou na manga como se não estivesse pensando em nada.

IX

Os garimpeiros que tinham de ir para Andaraí aguardavam que as águas do rio baixassem, sem o que não poderiam atra­ vessar para a Vitória. Nem era bom pensar em vau, e não havia braço humano que pudesse governar, com o rio tão cheio, o ajoujo das travessias normais. Para matar o tempo, com os cobertores dobrados na boca das capangas, conversavam:

- Aqui no Paraguaçu - disse Filó Finança - alugado sofre mais do que sapatinha de mulher-dama em cabaré.

Isso é verdade concordou o bruaqueiro Miguel. -Como eu estava dizendo, primeiro me botaram no enchedor. Quando eu enchi duzentos barris, não agüentei mais. Já estava com o espinhaço me doendo.

- Correão-de-ferro não é pilhéria - aparteou Agenor Cabeça-Seca.

E o alugado voltou a falar:

- Nisso me mandaram pro mourão. Mas aí também eu arrencguei. Então eu fui pro tombador, que é mais manso, e pude agüentar fixe até beber a água da cata toda. Quando entrou a noite, Joaquim trouxe um feixe de canela-d'ema e acendeu o fogo no pião da cata, que a agüinha já estava por nada. Mas deixe lá que eu sofri foi como boi ladrão.

Em outro grupo, com a sua grande masca de fumo no canto da boca, Benedito Lasqueado contava:

- Nosso serviço estava nesse pé. Fizemos um corte de caixão, e socamos terra preta até ficar que nem cimento. Recua­ mos a água toda, que devia ter uns três batidos, depois esqua­ drejamos a cata, desmontamos, e metemos a broca no embur­ rado. Demos uns seis ou oito tiros. Depois retiramos os estilha­ ças de pedras, e ferimos o cascalho para conhecer a qualidade.

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- A informação era bosta-de-barata? - perguntou Joa­ quim Boca-de-Virgem.

- Qual é bosta-de-barata, seu!

- Estou perguntando é porque bosta-de-barata é informa-ção de arrozinho - explicou o garimpeiro. - E arrozinho aqui no Paraguaçu, você bem sabe, não dá nem a poder de reza.

- Quem encontrar cascalho arrozinho no Paraguaçu pode dizer "Até logo!", porque senão vai morrer de fome - aparteou outro homem.

Benedito Lasqueado retomou a conversa :

- Você logo não está vendo, Boca-de-Virgem! A infor­ mação que eu encontrei foi cocá, feijão azul-oleoso, bugalhau pequeno e redondo, foi favinha, rapaz! Feri foi cascalho balinha legítimo, cor-de-rosa-queimado, de polmo cor de ouro. Você logo não está vendo, Boca-de-Virgem! - repetiu, com ar gabola. - Então você entrou foi no come-calado, hem, seu mano? - aparteou um garimpeiro doca, que era sobrinho de Bertulino Mentira-Fresca, de Lençóis.

- Você bem sabe que esse negócio de come-calado já aca­ bou - disse Benedito. - O que é que eu podia fazer com o gerente em cima de mim com cada olho deste tamanho?

Conversavam de preferência sobre garimpagens passadas, recordando antigos bambúrrios, como que para iludirem a si pró­ prios, em face do malogro dos cateamentos daquele ano. Um velho alto, que estava pitando, e até então se conservara em silêncio, lembrando-se de uma pedra grossa que pegara na moci­ dade, disse como que a esmo:

- Nem sempre bosta-de-barata é informação de cascalho pobre. Aqui no Paraguaçu, é; mas na Mãe do Povo, por exem­ plo, é informação de cascalho rico.

Já em outro grupo, formado debaixo do pé de tamarindo, era Saiu que conversava.

- Eu estava trabalhando de meia-praça - disse. - Foi um ano em que eu vi, de uma vez, seis olhos-de-arara. Quando chegou a hora de fazer o corte, eu fiz o meu foi de caixão, com pedras assentadas no sistema de tição, em cima de camadas de capim-pubo. - Assoou o nariz com as pontas dos dedos e continuou: - O rio podia estar com uns cinco batidos. O pior é que a terra preta ficava longe, numas grupiaras, a quatro qui­ lômetros de distância, e o jeito foi eu carregar ela no lombo pra encher o caixão, que devia ter mais ou menos um metro de altura.

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Foi quando ouviram alguém erguer a voz em outro grupo: era Filó Finança, que pusera ao ombro sua espingarda de caçar mocó, e, tendo tomado uma resolução súbita, dizia aos seus companheiros :

- Bem, gente. Nós não podemos ficar aqui o tempo todo conversando. Daqui a pouco o coronel vai embora, e nós pre­ cisamos tratar da vida, pois saco vazio não se põe em pé. Nós já fomos despachados, o que é que nós estamos esperando? Vamos tentar atravessar por cima da serra, porque o rio não esvazia agora. Quem não quiser, pode ficar. _Eu é que já vou tocando.

Do outro lado, na Vitória, o ajoujo estava amarrado por meio de correntes, e não seria posto tão cedo no serviço; trepi­ dava sobre uma esteira de espumas, e os garimpeiros foram aos poucos se movimentando. Não tardou, e todo um grande grupo subia a serra, rumando para a cidade.

X

Assim que os trouxe da manga, João Vaqueiro foi tratando de arrear os animais, enquanto o chefe, que já estava de botas e chapéu, pronto para partir, ia enchendo o tambor do revólver, do qual nunca se apartava. Defronte da casa, com os animais já prontos e amarrados no mourão, estabeleceu-se logo aquele movimento de viagem. Trazida uma cadeira, para facilitar o acesso ao cilhão, Nenzinha nele se instalou, tendo o coronel, antes de montar, colocado o pé da amásia na caçamba, seguran­ do-o por debaixo da bata. Este rápido contato com o corpo da mulher lembrou-lhe certo momento da noite anterior, quando a tivera, por fim, entre os braços. Ao mesmo tempo, João Va­ queiro fez subir para um cavalo velho a negra Atanásia, arro­ chou o burro de carga, e também montou. Por último, montou Justino - e a cavalgada partiu na tarde fresca, atravessando as poças de lama da praça.

- Até a volta! - disse o velho Justino, com o fuzil des­ cansado no cabeçote.

Alguns garimpeiros, que estavam reunidos na praça, ace­ naram com os chapéus.

Mal o coronel avançou uns trinta metros, Zé de Peixoto saiu ao seu encontro. O chefe, que desde a véspera não o via,

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parou o cavalo. O cachorro começou a latir, e João Vaqueiro esporeou seu animal para perto. O negro tirou o chapéu:

- Meu padrinho . . . Não repare aquilo de ontem . . . A enchente me botou doido . . .

Sem dar nenhuma resposta, o coronel torceu as rédeas, fechou o cavalo nas esporas, e desceu a rua num galope. Seus companheiros de viagem seguiram atrás. Entre os garimpeiros, alguém murmurou:

- O negro está perdido mesmo.

Logo depois, os cavaleiros desapareciam na boca da mata .

Na encruzilhada o grupo subdividiu-se. Nenzinha, Ataná­ sia e Justino seguiram para a Santa Luzia; o coronel e João Vaqueiro tomaram a estrada da São Pedro. Durante algum tem­ po, viajaram em silêncio. Mas logo o chefe disse:

- ó João.

- Senhor.

- Quando ele aparecer lá na fazenda, você pode fazer o serviço . . .

O rosto impassível de João Vaqueiro como que se ilumi­ nou. Esperara sempre por aquela ordem . . . Chegou mais para cima a mala que conduzia no cabeçote, com os valores do pa­ trão, e não disse mais nada. Para o coronel, a decisão que acabara de tomar tinha muita importância: era preciso fazer respeitar-se.

XI

Dois dias depois, Zé de Peixoto viajou para Andaraí. Liqui­ dou os negócios com o velho Justino, tendo retirado um saldo de 850$000. Com esse dinheiro - pensava - iria mosquitar na cidade, abrindo uma biboca para despachar meias-praças. A Passagem é que não lhe servia mais; terminara a garimpagem,

o chefe aborrecera-se com ele, o melhor mesmo era procurar outro rumo.

Referências

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