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TERCEIRA PARTE

No documento Herberto Sales - Cascalho.pdf (páginas 148-200)

I

F

AZIA APENAS três meses que o Promotor Oscar do Soure estava na cidade, onde fora recebido com frieza hostil. Era aque­ la sua primeira investidura, tendo vindo preencher uma vaga já por muitos rejeitada. Esta se dera por morte do seu anteces­ sor, em conseqüência de um ataque de uremia, embora se mur­ murasse o contrário nos corredores do Tribunal, em Salvador. Acreditava-se que o outro Promotor morrera de "traumatismo moral", abandonado ao seu destino de autoridade desprestigia­ da pelos poderes políticos da comarca, sem garantias de qual­ quer espécie no exercício de suas funções. Ao Dr. Oscar tinham dito:

- Ele não teve forças, naturalmente, nem ninguém teria, para suportar tamanha humilhação. Foi coisa de meter vergo­ nha a cachorro.

Afirmara isto um antigo professor do Dr. Oscar, homem de modos um tanto rudes, que acrescentara, enquanto folheava

um jornal:

- O próprio réu apareceu-lhe um dia em casa, de gar­ rucha na cintura, e exigiu, em nome do coronel, seu protetor, que ele lhe entregasse o processo. Ê como eu já lhe disse: você vai para uma terra de bandidos. Se alimenta sonhos com rela­ ção à carreira que abraçou, trate de pô-los de lado. Tenho bas­ tante experiência para lhe dizer isto.

E num tom desdenhoso:

- O sertão está transformado num covil de bandidos. A Justiça não vale nada.

Outros, porém, a quem ele falara dessas amargas observa­ ções, manifestaram-se de maneira diversa.

- Não se deixe influenciar pelas palavras de um advo­ gado fracassado, que nada mais espera da vida - disseram-lhe. - Aceite o cargo, pois o essencial é você iniciar sua carreira, e quando se trata disso não interessa saber como nem por onde.

Foi o que ele fez, em nome do senso prático e do desejo de logo começar a trabalhar, embora alimentando a idéia de uma permuta imediata. Animado por esse caráter provisório que emprestava à sua decisão, arrumou a mala e marcou o dia da viagem, entregando-se com indiferentismo à sua aventura nas Lavras. Nenhum entusiasmo sentia pela nomeação em si mes­ ma. De qualquer modo, porém, recusou-se a entrar em contato com Quelezinho, então em Salvador, conforme o tinha acon­ selhado um colega. Achou de bom aviso pôr-se em guarda, evi­ tando favores de políticos da comarca, e com isso os decorren­ tes compromissos de ordem particular, estranhos às suas ativi­ dades profissionais. Estas podiam ser perturbadas por aqueles, e ainda que sua estada fosse por pouco tempo, coisa de emer­ gência, de acordo com o que pensava, colocava acima de tudo sua independência. Com tais propósitos, a que não faltava um vago sentimento de neutralidade, chegara num sábado a Anda­ raí, hospedando-se na pensão do árabe Mansur. Entretanto, mal apeara, depois da longa viagem a cavalo, já o Dr. Canuto Ru­ fino, Juiz de Direito da comarca, vinha apresentar-se e cum­ primentá-lo, levando-o em seguida para casa, sob o pretexto de que a pensão era uma verdadeira espelunca, onde "o colega seria devorado pelos percevejos" .

Foi hóspede do Juiz durante uma semana, transferindo-se depois para a mesma casa onde morara o antigo Promotor - um velho sobrado que havia na praça, com a cozinha atravessa­ da no beco que dava para o Apertado-da-Hora, local de freqüên­ cia suspeita. Não estranhara a vida monótona, o paradeiro da pequena cidade, com jumentos soltos no meio das ruas e um ou outro sujeito de pé nas esquinas, porque nascera no interior e no interior passara grande parte da existência, conhecendo bem aquela pasmaceira. Entretanto, o ambiente político não o animava a ficar, e por isso irritou-se quando o procurador lhe escreveu aconselhando a fazê-lo. A carta dizia: "Não tenha pressa em sair daí. Meta-se no comércio de diamantes, que tem enriquecido muita gente, segundo se propala, e depois a per­ muta será fácil". Nos seu planos, ainda na Capital, talvez por agir com alguma precipitação, Dr. Oscar não pensara nesse importante detalhe. Como proponente da permuta, e levando em consideração a má fama da comarca lavrista, teria de ofe­ recer uma boa compensação em dinheiro, sem o que não con-

seguiria interessar nenhum colega de outra promotoria. E ago­ ra vinha o procurador aconselhá-lo a entrar no comércio de diamantes, como única solução para o caso: sendo minguados seus vencimentos, só em atividades extraprofissionais poderia arranjar o dinheiro a ser dado de vantagem para realização do seu intento! Sentiu-se contrariado a princípio, ante a perspecti­ va de ter de se demorar por tempo indeterminado em Andaraí, e da contrariedade passou ao acabrunhamento, quando conside­ rou a natureza comercial de que se revestia a proposta de troca de comaroa. Restava, naturalmente, outro meio que tornaria viável sua mudança, mas este lhe era tão inacessível quanto o primeiro, pois não dispunha de elementos na política com que pudesse forçar uma transferência por promoção. Na vida soli­ tária que levava em Andaraí, em companhia de uma velha que o Dr. Canuto lhe metera em casa como empregada, foi aos pou­ cos dominado pelo desânimo. Em cartas dirigidas à família, lon­ gas cartas com que enchia as horas de ócio, mostrava-se por vezes pessimista, considerando inútil o tempo gasto com os estu­ dos. Respondiam-lhe com palavras de estímulo, observando-lhe que todo início de carreira era difícil, e que ele devia ter pa­ ciência para esperar os dias melhores que haveriam de vir. Nada disso, porém, o confortava, pois seu estado de espírito era agra­ vado pelo indiferentismo com que o tratavam na cidade, indi­ ferentismo que lhe parecia calculado e chegava a tomar o aspec­ to de uma manifestação de repúdio. Por outro lado, só muito raramente saía, uma ou duas vezes por semana, para ir à casa do Juiz, visitas que não eram retribuídas, porque o Dr. Canuto "tinha horror a subir escadas".

- O coração já não agüenta, seu colega - justificava-se. Como não havia quase trabalho, a não ser um ou outro processo sem importância que o oficial de justiça vinha trazer­ -lhe para despacho, passava os dias lendo jornais, ali recebidos com grande atraso, folheando velhas revistas forenses, mas na­ da conseguia prender-lhe a atenção. Às vezes, chegava à janela, e vendo passar Quelezinho, de chapéu-chile enterrado na cabeça, só ocasionalmente cumprimentando-o, no que era imitado pelos demais elementos de destaque na política municipal, um senti­ mento de impotente revolta se apoderava dele. Sentia-se ferido no seu amor-próprio, diminuído aos seus próprios olhos, rebe­ lando-se contra a situação de inferioridade e desprestígio a que se achava reduzido, e que em certos momentos lhe parecia irre­ mediável. À noite, com a galhofa que havia no bilhar de Ziu, onde os boêmios se reuniam para beber e jogar até altas horas,

cada gargalhada deles lhe chegava aos ouvidos como uma zom­ baria, e só muito tarde conseguia conciliar o sono. Vez por outra, porém, estando com melhor disposição, debruçava-se na janela para fumar. E os sons de algum violão em serenata pelas ruas, enchendo o silêncio das madrugadas, faziam com que as circunstâncias e os acontecimentos de sua vida se tornassem co­ mo que vagos e imprecisos, e uma espécie de secreto entorpeci­ mento o dominasse.

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Andaraí, Dr. Oscar, é a terra dos diamantes, mas tam­ bém pode ser chamada de terra das lombrigas. Tenho feito as minhas observações. É lombriga por toda parte. Na farmácia, sem exagero, avio uma média de dez vermífugos diários. Todo mundo tem lombrigas na cidade. Acho que é da água - disse­ ra-lhe Carvalhal, o farmacêutico, alto, magro, de costeletas, uma das poucas pessoas que o visitaram, num domingo à noite, enquanto o povo passava para ver o 3 .0 e o 4.0 episódios do fil­ me em série Nas garras dos leões, anunciado como tendo "por­ rada como corno". Só aparecera uma única vez, porém, com o que Dr. Oscar se sentira aliviado, porque a palestra do far­ macêutico lhe causara verdadeiramente náuseas. Também fora vê-lo o Dr. Marcolino, em visita rápida, cumprimentando-o em nome do Cel. Germano, do que ele duvidou, parecendo-lhe ter surpreendido, na atitude aparentemente cortês do médico, um simples impulso de curiosidade por sua vinda. Assim, desde que se instalara no sobrado, tornou-se completo o seu isolamento. Quando tinha necessidade de conversar com alguém, impelido por um natural desejo de comunicação, o recurso era mesmo ir sentar-se estupidamente na cozinha, ao lado do fogão, e dar dois dedos de prosa oca com a velha Ifigênia : - era este o nome da empregada. Nessas ocasiões, chegava a sentir falta dos dias passados em casa do Juiz, embora ali tivesse sido obrigado a ouvir o colega discorrer enfadonhamente sobre sua criação de canários, à hora do almoço e do jantar, falando-lhe dos trinados do Clemenceau e dos estalos do Napoleão, ah, seu colega! ca­ narinho-da-terra que estava de muda, mas que qualquer dia da­ queles ia abrir o bico que era uma beleza!

Não tardou, porém, e um homem amarelo, de óculos, sem dentes, sempre com a barba por fazer e vestindo uma horrenda roupa cáqui, passou a freqüentar regularmente o sobrado, fa­ zendo-lhe companhia. Era o escrivão Pimentel, que lhe parece-

ra intragável no primeiro momento, para, no fim de algum tem­ po, olhá-lo com indulgente simpatia. Por seu intermédio, e atra­ vés dos números de A Evolução, hebdomadário editado na ci­ dade, que o escrivão lhe trazia invariavelmente aos domingos, passou a inteirar-se do que ocorria no município, ficando a par da existência de "um tal Valadão, que devia parecer-se com as coisas que escrevia"; de "um vago coletor Barroso, a quem

A Evolução chamava de "aquânime exator"; de "um tal D. Costa, poeta e comprador de diamantes"; enfim - de todas as figuras de importância da sociedade local, por ele englobadas num único indivíduo e numa mesma onda de surda e irreme­ diável antipatia.

O Pimentel é uma boa alma? Nada disso, Seu Oscar. Ele não passa de um pobre desgraçado - repetiu o telegrafista Nascimento, na sua quarta visita, com aquele ar desabusado que tanto escandalizara o Promotor ao conhecê-lo.

Era o seu mais recente contato com pessoa de Andaraí, em circunstâncias de mera rotina social, mas entre os dois já se estabelecera tão fraternal camaradagem, que a ambos parecia se darem desde muito tempo. Tudo correra, entretanto, por conta de urna identidade de atitude em relação ao meio em que viviam. A essa conclusão chegou Dr. Oscar depois da pri­ meira visita do telegrafista, quando o ouviu chamar de "pau­ -d'água reles" a Dr. Marcolino. Estranhando que semelhante co­ mentário partisse daquele sujeito que lhe aparecera no sobrado de bengala, de roupa mescla e colete branco, com um maciço aspecto de conferencista, procurou indagar, levado por natural curiosidade, a respeito de sua vida.

- Quem sabe da vida de Nascimento? - dissera-lhe o escrivão Pimentel. - Ele vive metido em casa com a mulher e os filhos, passando, às vezes, um ano inteiro sem sair, tanto que eu fiquei espantado, doutor, confesso, quando o senhor me disse que ele tinha estado aqui. Nascimento é meio esqui­ sito.

Era uma informação vaga, mas bastou ao Promotor para compreender que se tratava de um homem que repudiava aque­ le meio, e que o procurara com o evidente intuito de desabafar. Isto foi confirmado posteriormente, ao ouvir dele estas palavras: Até que enfim, Seu Oscar, depois de seis anos, encon-

trei alguém com quem pudesse conversar neste calcanhar-de­ -judas!

O calcanhar-de-judas era Andaraí, de cujo povo ele se isolara num retraimento gerado em calada revolta, ao ponto de, por vezes, atirar os telegramas da janela do sobrado, aos desti­ natários que os iam aparar embaixo, a fim de impedir que mui­ tos deles lhe subissem as escadas da casa. Mas embora se desse com todos, um traço comum o tinha aproximado inicialmente do Promotor, que não se dava com quase ninguém: a fria indi­ ferença com que eram olhados os dois, individualmente, na ci­ dade. Em desabafos recíprocos, as visitas entre eles se amiuda­ ram, o Promotor indo com freqüência ao telégrafo e ele à casa do Promotor, de tal maneira que o Juiz chegou a queixar-se de que "o colega andava sumido", enquanto os comentários no bilhar de Ziu eram de outra natureza.

- Estão amigados - diziam.

O que levou o coletor Barroso a duvidar da masculinidade do Dr. Oscar, que ainda não procurara mulher desde que ali chegara, segundo tinha apurado, e que "dos dois era quem devia estar dando".

Nascimento segurou o exemplar de A Evolução com a pon­ ta dos dedos :

- Você também lê este lixo?

Foi o Pimentel que me trouxe hoje - respondeu Dr. Oscar.

Em todo o caso, vale a pena ler o que escreve o diretor desta droga - continuou o telegrafista, depois de acender o charuto. - Não é com facilidade que a gente encontra uma cavalgadura como o Valadão. Se ele ficar de quatro pés, nasce rabo.

O Promotor sorriu. Já se habituara com o tom arrasador da palestra do amigo, não mais estranhando suas expressões de incontido desdém. Nas conversas que entretinham, e que ver­ savam ordinariamente sobre pessoas de Andaraí, o coletor Bar­ roso era por ele incisivamente tachado de "rato". A seu ver, o Juiz de Direito não passava de "um poltrão". Do capangueiro Teotônio, não vacilava em dizer que se tratava de "um crápula de pai e mãe". Definia o Carvalhal como sendo "um escro­ talhão", enquanto o tabelião Romualdo, em cuja rotunda figu­ ra o Promotor ainda não pusera os olhos, recebia a sumária

classificação de "pederasta". Por aí afora, chegava ao árabe Mansur, a quem o telegrafista chamava impulsivamente de "gringo porco e ladrão" :

- Roubou noventa contos de um hóspede, Seu Oscar. Um patife!

E contara que o hóspede se chamava Ostrowsky, um judeu russo que viera comprar diamantes em Andaraí, e cuja valise, onde estava guardada a referida importância, desaparecera mis­ teriosamente do quarto de tabique da Pensão Grande Líbano.

Necessitado de dinheiro como estava, o Promotor olhara-o com ar de pasmo quando o ouviu mencionar tão vultosa soma, e, sob pressão de íntima e repentina ansiedade, indagara acerca das providências tomadas por ocasião do roubo, ocorrido dois anos antes.

- O judeu quase fica doido - continuara Nascimento. - Incomodou até o Chefe de Polícia. Como se tratava de um verdadeiro escândalo, as autoridades forjaram um inquérito pa­ ra salvar as aparências, tendo por finalidade inocentar Mansur, que é elemento da política do Cel. Germano. O roubo foi atribuído a um pobre-diabo que trabalhava na pensão, e em quem a Polícia desceu a borracha sem pena, com o fim de obter uma confissão. O resultado é que o judeu perdeu o dinheiro, porque o inquérito deu em droga, e tudo ficou como se nada houvesse acontecido. Um ladrão, Seu Oscar! Conheço essa cam­ bada há seis anos. Sei dos podres dessa gente toda. O gringo é um ladrão!

- Mas ele ficou com o dinheiro todo? - fora a última pergunta do Promotor.

O telegrafista enxugou o suor da testa e respondeu : - Há muitas versões. Dizem que ele rachou a bolada com Quelezinho.

E num assomo de cólera:

- É assim que essa gente fica rica, Seu Oscar. Rouban­ do! É debaixo de roubos de toda espécie que Andaraí cria esta fama de lugar bom pra se ganhar dinheiro.

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O Promotor continuava sem idéias claras a respeito fosse do que fosse. O mesmo sentimento de consciente e acabrunha­ dora inutilidade assaltava-o com freqüência, embora o conví-

vio de Nascimento lhe tivesse despertado um certo ânimo para encarar com altivez a situação. Por vezes, mostrava-se inclina­ do a aceitá-la, como uma salutar experiência para a sua car­ reira, mas, não raro, sentía ímpeto de impor sua autoridade sob qualquer forma ao povo de Andaraí, de tal maneira se conta­ giava dos assomos de revolta do amigo. Estavam agora mais uma vez juntos, conversando na ampla sala do sobrado, enquan­ to as sombras da noite envolviam lentamente a cidade, fazendo desaparecer, ao longe, os negros e pesados contornos da serra. Ifigênia veio acender o candeeiro.

- Nascimento janta comigo - disse-lhe em voz baixa Dr. Oscar.

E voltando-se novamente para a visita :

- Pois é, Seu Nascimento. Eu não sei, afinal, o que fazer. Recebi hoje outra carta do meu procurador, em que ele me co­ munica a proposta de um colega que está interessado na per­ muta, mas que pede dez contos de volta.

Os ratos começavam a mover-se precipitadamente no for­ ro de pano da sala, contra o qual se projetava a luz do candeei­ ro. O telegrafista, já habituado ao ruído, acendeu com lentidão o charuto e perguntou :

- Você vai aceitar?

- Não posso - alegou o Promotor. - Onde é que eu vou arranjar dez contos? Só se fosse em algum trabalho de advocacia . . .

- Então já sabe que você não arranja - disse Nasci­ mento. - Aqui não há ninguém a quem você defender e muito menos o que você advogar. Que poderia você fazer em matéria de feitos cíveis? O coronel é quem resolve tudo. A razão está sempre com ele.

E depois de se levantar para cuspir :

- A advocacia é um luxo dos centros civilizados. O co­ ronel já está defendido por natureza.

Dr. Oscar esboçou um sorriso.

- Você às vezes me sai um reacionário de quatro costa­ dos - observou.

- Eu?

- Sim . . . Sei que você diz a verdade quando afirma que aqui não há campo para a advocacia, mal, aliás, generalizado em todo o sertão, onde predomina a mentalidade patronal. Con­ cordo que aqui um advogado nada tem a fazer, em virtude de quase todas as serras e garimpos pertencerem ao coronel, e de todas as questões serem resolvidas na base das precárias rela-

ções existentes entre o trabalhador e o proprietário. Concordo com tudo isso. Mas daí a você dizer que a advocacia é um luxo dos centros civilizados, francamente, Seu Nascimento, me parece um absurdo.

- Pois a mim não parece.

- Não é possível! - protestou Dr. Oscar. - Será que você não reconhece, apesar de tudo, os benefícios que adviriam da defesa dos interesses desses garimpeiros que vivem escraviza­ dos aos donos de serras?

O telegrafista mastigou a ponta do charuto.

- Você não me compreende, Oscar . . . - disse. Sentou- -se e acrescentou : - Eu sou contra os ricos, mas isso não quer dizer que eu tome o partido dos pobres. Para mim uns e outros são iguais. Que é um homem rico senão um homem pobre com dinheiro?

O Promotor coçou a cabeça.

- Ora, Nascimento! - exclamou. - Não sei . . . Você me sai com cada uma que eu fico arrasado.

- É o que eu estou lhe dizendo - insistiu o telegrafista. À luz do candeeiro, sua fisionomia apresentava uma tran­ qüilidade que evidentemente contrastava com o ímpeto de suas palavras. De repente, contraindo a mão sobre a mesa, disse, num tom ao qual não se podia negar sinceridade:

- Seu Oscar, eu não acredito no gênero humano. Está compreendendo? Já não sei separar os homens dos canalhas. Mas foi interrompido por lfigênia, que entrava na sala para avisar que o jantar estava na mesa. Dr. Oscar bateu ama­ velmente no ombro do outro:

- Você hoje está num grande dia, Seu Nascimento - disse, com uma bonomia que implicava aprovação. - Mas dei­ xemos o gênero humano em paz, que está à nossa espera, lá dentro, o magro pirão de um pobre Promotor .

- Voltando ao caso da permuta - disse Dr. Oscar, enquanto se servia de um pedaço de lombo, que era sábado, dia da disputada carne fresca nos dois únicos açougues da ci­ dade, com cachorros rosnando na porta e mulheres-damas asse­ diando garimpeiros por causa de meia-libra de fígado - nun­ ca me passou pela cabeça entrar no comércio de diamantes. Mas, que diabo! será que não há nenhum colega que tenha idéia de fazer o contrário?

- Que tenha idéia de entrar no comércio de diamantes? indagou Nascimento, erguendo o garfo cheio.

- Sim. Isto naturalmente tornaria viável a permuta. Nascimento descansou o garfo no prato.

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