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SEGUNDA PARTE

No documento Herberto Sales - Cascalho.pdf (páginas 50-148)

I

Q UANDO

Zé de Peixoto chegou a Andaraí, já toda a ci­ dade sabia do seu incidente com o Cel. Germano. A notícia se !difundira com rapidez, e cada qual que a transmitia acrescen­ tava, por conta própria, novos detalhes. Algumas pessoas diziam que os tiros tinham sido disparados nos pés do chefe, outras que uma bala passara raspando por uma de suas orelhas, indo alo­ jar-se na porta da cozinha. Enquanto isso, muitos adiantavam que o negro não usara uma repetição mas sim um parabelum - arma com que atirava muito bem. Um homem chegou a dizer na porta do botequim de Leó :

- Os tiros foram disparados de tão perto, que o capote do coronel ficou sapecado de pólvora.

Entretanto, ainda que repercutisse como a maior prova de coragem que um homem podia dar, e despertasse, mesmo, um vago entusiasmo ou admiração, a notícia foi recebida pelo povo com sobressalto.

D. Elza, cunhada do chefe, logo que soube do ocorrido ficou aflita, e pensou em telegrafar imediatamente ao marido, que se encontrava na Capital. Ciente disso, Dr. Marcolino pro­ curou dissuadi-la da idéia, explicando-lhe que "a história não passara de uma arruaça sem importância, não sendo necessário Quelezinho precipitar seu regresso por causa dela".

- Acabei agora mesmo de ter notícias da São Pedro - disse, lançando mão de um último argumento. - Germano vai passando bem, não houve nada.

Na farmácia de Carvalhal, na loja de Benigno Carregosa, no bilhar de Ziu, nas bibocas do Rapa-Tição e da Santa Bár­ bara, nas casas das mulheres-damas e nos caminhos da serra, nos grupos reunidos debaixo da jaqueira e nos passeios das casas comerciais, na porta da igreja e debaixo das pontes, nos banhos da Boca da Gruna e nos churrascos de Pereirinha, à meia­ -noite, no Remanso - comentou-se largamente o episódio da Passagem :

- O negro é raçado mesmo.

- Se o coronel não tem o santo forte, estava torado na bala.

- Mas também ele só atirou porque estava de porre - convinham alguns.

- De porre ou não, só sei dizer é que ele tem cabelo na venta - contestavam outros.

Enquanto outros consideravam :

- Chega a parecer mentira que ele tenha emendado os bigodes com o chefe!

E assim foi o negro feito herói pela cidade que o temia, pela cidade que conhecia a história dos seus crimes, e acabava de ficar sabendo até quanto podia ir sua audácia de cabra des­ temido que nascera para o cangaço.

Mas um velho garimpeiro, conversando no Córrego do Padre, mostrou-se pessimista. Disse:

- Desta vez, ele pode encomendar a mortalha.

11

Zé de Peixoto chegou por volta das três horas da tarde, ficando hospedado em casa de Joana Magra, sua velha conhe­ cida. À noite, o delegado Esquivei foi procurá-lo por ordem do Dr. Marcolino. Encontrou-o sentado na soleira da porta, em mangas de camisa, palitando os dentes. V árias pessoas já o ti­ nham ido ver, mas nesse momento não havia ninguém com ele, a não ser Joana Magra, que cantarolava na cozinha.

Acabavam de dar sete horas. Como era noite de lua, os meninos corriam picula no Ribimba, escondidos na mata de camboatá e velame da estrada dos Bichinhos, ou atrás das pe­ dras. Chegava até ali a gritaria deles.

- Joana! - chamou o negro. - Traga a luz. A mulher trouxe o candeeiro-placa.

- Boa .noite - disse.

E colocou o candeeiro em cima da mesa, com um grampo de cabelo pendurado no tubo de dez linhas.

O delegado Esquivei sentou-se. Depois de pigarrear e olhar de banda para o jagunço, que se instalara numa marquesa, ao lado da janela, começou a falar.

- Nós soubemos aqui de uma questão que você teve com o chefe - foi dizendo.

- É mentira desses cachorros! - atalhou-o brutalmente Zé de Peixoto, sacudindo as mãos. - Eu não tive nada com meu padrinho não. Foi besteira. Cachaçada. Ele nem se impor­ tou . . . O mais foi conversa do povo.

O delegado via as grandes mãos do negro recortadas na parede em amplas sombras móveis. Coçou o queixo e pros­ seguiu:

. - Sim . . . Eu sei que tudo não passou de uma questão sem importância. Por isso mesmo, foi como amigo que eu vim procurar você . . .

- E o que é que o senhor quer de mim? - respondeu o negro, olhando-o com desconfiança.

O delegado, ainda que muito velhaco, estava longe de po­ der dominar os seus nervos. O medo que tinha do jagunço, sendo muito grande, traía-o na voz e na conversa reticenciosa. Nem mesmo a autoridade de que se achava revestido impedia-o de sentir aquele medo enorme.

- Você sabe que eu sempre gostei de você, José . . . - disse. - Sempre fui seu amigo . . .

- Sei disso - concordou o negro, pondo o pé em cima da marquesa.

- E se eu vim aqui . . . - continuou o delegado - foi . . .

- Foi o quê? - interrompeu-o Zé de Peixoto.

- Foi apenas para lhe transmitir um recado de Dr. Mar- colino . . .

- Que recado? - indagou o negro, sempre desconfiado. O delegado Esquivei experimentava agora um leve tre­ mor em todo o corpo. Nem parecia o homem frio que man­ dara matar um dia, por causa de uma simples questão de ga­ rimpo, o meia-praça Tarcisso, que deixou viúva com oito fi­ lhos pequenos. Zé de Peixoto, que era sabedor do caso, lem­ brava-se do diamante do meia-praça assassinado - embora não soubesse que o brilhante que o delegado trazia em um dos dedos, e que estava reluzindo à luz do candeeiro, fosse a mes­ ma pedra.

- O recado . . . - foi dizendo Esquivei - é para lhe pe­ dir . . . Você sabe . . . O recado é dele . . . É para lhe pedir que

não perturbe a ordem.

Zé de Peixoto deu uma palmada no joelho :

- Eu vim foi tratar de minha vida, Seu Esquivei. Vim

foi negociar. Não estou caçando briga com ninguém não.

- Sei disso - respondeu o delegado. - Mas você sa­ be . . . Eu estou apenas transmitindo um recado de Dr. Marco­ lino. Como autoridade, sei perfeitamente que você não vai criar nenhum caso.

- Pode estar tranqüilo.

- Estou tranqüilo, José. Já lhe disse - frisou o outro. - E se vim falar com você, foi apenas porque Dr. Marcolino me pediu. Ele não quer nenhuma perturbação da ordem . . . gem . . .

Ora, Seu Esquivei! Eu não sou nenhum arruaceiro não. Sei disso . . . Mas foi por causa da questão da Passa- Qual é questão da Passagem, Seu Esquivei! Pode ficar sossegado que eu vou falar pessoalmente com Dr. Marcolino. Eu vim foi tratar de minha vida, Seu Esquivei!

O delegado não esperou por mais nada. Notando que ha­ via um tom de enfado nas palavras do jagunço, apanhou o cha­ péu e despediu-se imediatamente. Na ponta da rua, quatro ho­ mens estavam à sua espera - três inspetores e um soldado à paisana, que ele ali deixara para qualquer eventualidade. Na companhia deles, recobrou sua energia de autoridade policial. Limpou o suor do rosto e contou-lhes:

- Passei-lhe uma repreensão em regra. Fui franco : falei com ele pra pisar macio, porque Dr. Marcolino não estava dis­ posto a tolerar nada. Disse a ele: "Você já sabe, Zé. Escreveu não leu, o pau comeu. Lhe meto na cadeia". Queria que vocês vissem. O negro pediu até pelo amor de minha mãe para eu não fazer nada com ele.

Zé de Peixoto veio sentar-se na porta da rua e perdeu-se em divagações sobre o que ia ser sua vida ali na cidade - na cidade que ele via do outro lado do rio e que dava oito povoados da Passagem. Quando Joana Magra o chamou para dormir, ele teve este comentário que a velha meretriz não compreendeu :

- Mas esse delegado Esquivei é uma besta!

111

Dr. Marcolino era a "segunda pessoa do chefe" e exercia sobre este a maior influência. No dia seguinte, muito cedo ainda,

Zé de Peixoto foi procurá-lo. Acreditava que um entendimento pessoal com o intendente resolvesse sua situação ali na cidade, pondo-o ao abrigo de uma possível perseguição de Quelezinho. Como sabia que o médico era madrugador, foi engolindo o café e saindo. Acendeu o cigarro já na porta da rua.

- Até logo, Joana - disse. A mulher respondeu da cozinha : - Até logo, meu filho.

A rua começava a despertar. A lenha ardia nas trempes, enfumaçando a cobertura de palha das moradas humildes. Era aquele movimento de sempre, de gente acordando para pegar firme no trabalho, cada qual tratando de sua ocupação. Algu­ mas mulheres lavavam coadores na porta dos ranchos, enquanto outras preparavam o churrasco de carne-seca que os seus ho­ mens levariam para a serra. Enchia o ar um cheiro de torresmo chiando nas panelas, e o garimpeiro Meloro, com a cara estre­ munhada, veio sentar-se no lajedo para gatear um ralo. A velha Vitória passou com uma lata de água na cabeça, de volta do rio, e deu bom dia a uma moça que estava com uma chocolateira na mão. Metido nos seus chinelos de trança, o punhal por dentro da camisa, Zé de Peixoto ia cruzando com aquela gente que se entregava à faina cotidiana, cumprimentando os conhecidos. Mui­ tos, ao responderem, acrescentavam um respeitoso "Como vai o senhor, Seu Zé?", mas ninguém se atrevia, nem de leve, a fazer qualquer comentário à passagem do negro.

Era uma manhã luminosa, de sol brilhante. Numa ampla sucessão de planos, o casaria da cidade branquejava abaixo da mata rala do barranco e, mais além, a serra apresentava os re­ levos de um muramento colossal. Grupos de garimpeiros atraves­ savam o areão com bateias de borco na cabeça. Enquanto cami­ nhava, Zé de Peixoto ouvia com atenção a conversa deles :

- Quando o cascalho chegou no apanhador, nós limpa­ mos de mão, de farracho e frincheiro. E fomos dobrando e me­ xendo sempre, catando os bugalhaus maiores pra jogar fora, até que chegamos no último fervedouro. Estava feita a primeira ca­ beceira.

- Aí então foi só meter nas bateias . . . - Foi.

O da frente disse:

- Tem dois dias que eu estou batendo com água no boli­ nete. Hoje eu quero ver se apanho outra cabeceira.

- E você, já quebrou sua cata? - perguntou, ao compa­ nheiro, um negro que estava de calção.

- Estamos quebrando - respondeu o outro. - O pior é que o patrão nos arranjou uns bruaqueiros que só fazem atrasar o serviço. A gente tem de explicar tudo. Eles não entendem pa­ tavina de cascalhão.

- Quantas canoas tem a corrida de vocês? - Três.

- A nossa tem cinco. São cinco canoas e cinco fervedou- ros separados por cinco traves de pedras retadas. É uma corrida de pipoco.

- Pois a minha não tem canoa nenhuma - disse outro. - É corrida larga. Eu e meus sócios só tivemos o trabalho de fazer a chumbação, colocando pedras soltas pra o cascalho re­ ferver. Ontem mesmo nós cortamos areão o dia todo, até ficar o escoado.

Enquanto isso, o negro ia andando sempre, entrevendo, nes­ ses pedaços de conversa, a próxima garimpagem e o provável bambúrrio, a vida que diante dele se abria ali na cidade - a vida das sempre renovadas aventuras do país dos garimpos. Agora já os garimpeiros se tinham distanciado, e dentro em pou­ co passariam por baixo da ponte, tomando o caminho da serra. Um novo dia de trabalho ia começar para eles - cheio de espe­ ranças e cogitações comuns. Foi quando o negro viu uma mu­ lher chegar à porta do rancho e gritar para o filho :

- Zequinha, tome estes quinhentos reis e vá na casa de Armando Bodeiro comprar meio litro de leite de cabra pra seu irmão.

IV

O sobrado de Dr. Marcolino ficava ao pé do morro, dei­ tando fundos para o pasto do árabe Mansur, proprietário da Pensão Grande Líbano. Era um casarão rodeado de janelas, com telhado de cumeeira e entrada lateral. O médico tinha consultório no andar térreo - um pequeno cômodo atulhado de revistas velhas, de mesas, de armários cheios de vidros de remédio, tudo na maior desordem, e cheirando a álcool. As pontas dos dedos habitualmente manchadas de iodo, Dr. Marcolino usava óculos e fumava desbragadamente, o que o fazia tossir de minuto em minuto. Segundo ele próprio declarava, viera para Andaraí a conselho de amigos; entretanto, ninguém sabia ao certo dos seus antecedentes. Mas como o povo tem sempre o que falar, dizia-se

que ele era filho de um padre que morava em Cachoeira. Depois do seu nascimento, o vigário fora mudado de freguesia, deixan­ do-o em companhia da mãe, a quem ele abandonara logo que se formou.

- Quando menino, comprou muito gás para mulher-dama - contavam.

Muita gente, porém, não dava crédito a tais conversas. Por outro lado, havia quem insinuasse ser ele casado e ter prole nu­ merosa; mas que a mulher o deixara por já não poder suportar suas bebedeiras, levando consigo todos os filhos. De qualquer forma, em dez anos de vida em Andaraí, ele jamais se referiu ao seu passado; nem nunca deu direito a que se lhe fizessem perguntas a respeito. Chegara um dia às Lavras, atraído pela fama dos seus garimpos ricos - e, afinal, quase todos chegavam nas mesmas condições : com um passado que ninguém conhecia. A influência que Dr. Marcolino exercia junto ao Cel. Ger­ mano fora resultado de meras circunstâncias políticas. O profes­ sor Valadão, que viera muito tempo depois dele, costumava dizer ao seu compadre Carregosa:

- O que o Marcolino teve foi oportunidade. E com mal disfarçada inveja acrescentava : - Em terra de cegos, quem tem um olho é rei.

Efetivamente, o ambiente que o médico encontrara fora o mais propício possível. À frente de duzentos homens armados, o coronel acabava de alijar a tiros seus adversários eleitorais, assumindo a chefia do município com amplas garantias do go­ verno, cuja política, em relação ao interior, era baseada na lei do mais forte. No entanto, em meio a tanta energia e audácia, faltava ao novo chefe qualquer dose de instrução, de modo que ele se viu na contingência de solicitar os serviços de um secretá­ rio hábil. Na cidade, as pessoas que se achavam à altura de de­ sempenhar esse cargo pertenciam às hostes decaídas, não mere­ cendo, portanto, a menor confiança de sua parte. O caso é que o Cel. Germano tinha de responder ao primeiro telegrama do governador - um longo telegrama de felicitações - e não ati­ nava como fazê-lo. De repente, lembrando-se do médico, que muito atiladamente já lhe tinha ido prestar solidariedade, man­ dou chamá-lo. Dr. Marcolino não regateou os seus serviços. Guardando o estetoscópio no bolso do paletó, redigiu, no pró­ prio bloco de receitas, a resposta ao telegrama governamental. Duas horas depois estava nomeado secretário da Intendência.

Daí por diante, insinuando-se gradativamente na amizade do novo chefe político, logo formou, somando sua astúcia à ca-

pacidade de ação do outro, o organismo mandante do municí­ pio. E em Andaraí podia acontecer tudo - menos uma coisa: pisar um médico para fazer concorrência ao Dr. Marcolino da Silva Prata.

- Ele entrou com o pé direito - diziam .

Quando Zé de Peixoto dobrou a esquina, Dr. Marcolino estava debruçado na janela do consultório. De paletó de pijama, e tendo acabado de tomar café, fumava um grande charuto. De­ fronte do sobrado, no areão coalhado de cacimbas, com suas rodilhas e cuias de lata de queijo, algumas mulheres apanhavam água. Antônio do Fumo ia passando com o seu jumento carre­ gado de lenha.

- Bom dia, doutor - foi dizendo Zé de Peixoto.

O médico enfiou as mãos nos bolsos do paletó de pijama, e, conservando o charuto no canto da boca, mandou que o ja­ gunço yntrasse.

- Sente aí - disse em seguida.

Zé de Peixoto sentou-se e pôs o chapéu sobre os joelhos. Esquivei procurou você ontem? - perguntou Dr. Mar- colino.

Procurou, senhor sim. Disse que foi o senhor que tinha mandado.

- Sim - respondeu o médico, tossindo convulsivamente. - Fui eu que mandei.

- O senhor pode ficar tranqüilo, Dr. Marcolino - disse o negro, com ar calmo. - Deus me livre de perturbar a ordem. Eu vim pra Andaraí foi tratar de minha vida.

Dr. Marcolino foi até a janela, escarrou com estrondo na calçada, e depois sentou-se. Aspirando demoradamente a fuma­ ça do charuto, procurou dar outro rumo à conversa.

- Acho que você cometeu uma asneira muito grande, José - opinou, num tom paternal. - Em todo o caso, o que pas- sou, passou. Já sabe onde vai trabalhar?

- V ou garimpar na serra de Seu Teotônio. Já falou com ele?

- Ainda não. V ou falar depois que sair daqui.

- Teotônio tem frentes de serviço muito ricas - consi- derou o médico.

- Aquela fazenda-fina mesmo que eu vendi ao senhor o

ano passado foi de lá - relembrou o negro.

Ao ouvir estas palavras, Dr. Marcolino olhou instintivamen­ te para o anel que trazia no dedo: a fazenda-fina fora transfor­ mada no chuveiro de pequeninos brilhantes de primeira água em meio dos quais reluzia a esmeralda simbólica. Sorriu com ironia, soprou para o alto a fumaça do charuto, e perguntou:

- Você vai ter algum sócio no fornecimento?

- Não senhor. Eu vou fornecer sozinho. Por quê? - res- pondeu Zé de Peixoto : era como se tivesse marcado mentalmen­ te um golpe. - O senhor quer algum meia-praça?

- Não, não - disse o médico, comprimindo a ponta do charuto entre os dentes. - Eu compro diamantes, mas não for­ neço garimpeiros.

E como se estivesse proferindo uma verdade:

- De maneira alguma eu participaria de uma sociedade com quem quer que fosse. É contra o meu feitio.

O jagunço alisou com a mão a fita do chapéu.

- Eu falei . . . eu falei por falar, doutor - disse, um tanto encabulado. - Aliás, o senhor não precisa ser meu sócio.

- Como?

- Quero dizer . . . o senhor não precisa ser meu sócio, porque quem vai ver meu diamante é o senhor.

E sempre de olhos baixos, o negro esperou pelo efeito de suas palavras.

- Eu lhe agradeço a preferência - disse o médico. - Mas eu não posso comprar seus diamantes. Teotônio é meu amigo, e como dono da serra quem deve ter a preferência é ele. Essa preferência, aliás, não é nenhum favor; é um direito adqui­ rido por lei - concluiu, soprando a fumaça contra a brasa do charuto.

- Não, doutor, não senhor . . . Meu diamante é livre. Seu Teotônio apenas me cobra o quinto.

- Pois é um grande favor que ele lhe faz.

- Reconheço . . . Mas como meu diamante é livre, espero que o senhor não recuse a preferência que eu estou lhe dando. O médico levou novamente o charuto à boca e, esboçando um sorriso, disse:

- Vá trabalhar, José. Vá trabalhar primeiro. É muito cedo para conversarmos sobre isso.

- Quer dizer que eu posso trabalhar? - retrucou Zé de Peixoto com vivacidade, erguendo pela primeira vez os olhos.

O médico fitou-o de modo enigmático : Claro . . . Por que não?

Será que Seu Quelezinho não vai me perseguir, doutor?

- Perseguir? - e Dr. Marcolino sorriu novamente. Não. Quelezinho não vai perseguir você.

O negro guardou um minuto de silêncio. Depois disse: Quer dizer que posso contar com o senhor, doutor? Procure contar com o chefe.

Com meu padrinho? Sim. Com o Cel. Germano.

E tendo dito isso, Dr. Marcolino levantou-se. Zé de Peixo­ to sabia que o médico costumava cobrar muito caro sua pro­ teção. Por isso mesmo, embora já lhe houvesse assegurado a preferência dos diamantes que viesse a pegar, ainda disse:

- Eu não valho nada, patrão. Mas o senhor pode contar comigo pra o que der e vier. Estou pronto pra fazer o que o senhor mandar . . .

- Vá, José, vá trabalhar - limitou-se a repetir o médico, dando uma palmada nas costas do jagunço. Agora sabia que po­ dia manohrar com ele - com aquele homem a quem na reali­ dade também temia, como todos ali na cidade. - V á, vá tra­ balhar o seu garimpo - disse, a título de despedida.

O negro pôs o chapéu na cabeça e saiu .

Assim que se viu sozinho no consultório, Dr. Marcolino tomou da garrafa de cachaça que estava em cima de um dos armários, e encheu pela metade um grosso copo de vidro. De­ pois de ter bebido de um trago o conteúdo, fez uma careta me­ donha, cuspiu por duas ou três vezes, e cortou nos dentes a ponta de um novo charuto. Agora vinham chegando os primei ... ros clientes do dia. Tossindo ruidosamente, o médico gritou para a empregada :

- Sinhá Laura! Ferva a seringa!

v

Depois da praça vinha a pracinha - àquela hora com Antônio de Zé Benício descarregando adobes trazidos da olaria

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