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"O espelho": metafísica da escravidão moderna

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“O

ESPELHO

”:

METAFÍSICA

DA

ESCRAVIDÃO

MODERNA

Resumo

O presente artigo apresenta a leitura de “O espelho”, de Ma-chado de Assis, a partir da articulação do conto, forma moder-na, com a escravidão brasileira. Para isso, primeiro empreen-de-se a apresentação de algumas leituras anteriores do conto machadiano (Augusto Meyer, Raimundo Faoro, Alfredo Bosi, Abel B. Baptista e John Gledson). Na sequência, o conto ma-chadiano é visto como expressão moderna submetida ao des-vio do chão histórico brasileiro.

Abstract

This article presents a interpretation of “O espelho”, by Macha-do de Assis. The modern short story is related with the Brazilian slavery. At first we discuss some of the previous readings of Macha do (Augusto Meyer, Raimundo Faoro, Alfredo Bosi, B. Abel Baptista and John Gledson). Following the Machado de As-sis’ short story is seen as modern expression referred to the turn of Brazilian historical ground.

A

NTÔNIO

M

ARCOS

V

IEIRA

S

ANSEVERINO

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Palavras-chave

Machado de Assis; conto; “O espelho”; metafísica; escravidão.

Keywords

Machado de Assis; short story; “O espelho”; metaphysics; slavery. 6_ensaio.indd 104 6_ensaio.indd 104 7/11/2010 15:10:287/11/2010 15:10:28

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O

conto machadiano é uma forma moderna (narrativa curta que ganha autonomia em relação à religião, à história e a filosofia) e, ao mesmo tempo, está fortemente enraizada no Brasil novecentista. Tendo como referência central a es-cravidão, a dimensão material se articula à forma como Machado de Assis confi-gura o conto. A procura da forma adequada para a narrativa curta dá-se a partir de uma refração da luz europeia no Rio de Janeiro. O chão social do Império brasilei-ro, ocidental e escravocrata, impõe uma necessidade de adequação que penetra na forma narrativa e dá a ondulação peculiar da voz narrativa. Nessa tensão entre problema local e forma moderna, são esboçadas algumas linhas de leitura de “O espelho”, conto publicado em Papéis Avulsos, em 1882.

Leituras de “O espelho”

Augusto Meyer elabora uma série de ensaios em 1938, num movimento de aproximação de Machado de Assis, de aprendizagem que vai do respeito reverente à descoberta do grande autor. Leitor fino, descobre uma série de sutilezas da for-ma for-machadiana. Vejamos, especificamente, dois momentos de sua leitura de “O espelho”.

Ora, um dia o alferes ficou só naquele sítio, abandonado pelos escravos, sozinho como Robinson Crusoé numa ilha de silêncio. E em vez de um coro de elogios, ouvia o “cochicho do nada”. E o grande espelho de seu quarto, espelho antigo, refletia um fantasma em vez do alferes, um vulto espantado e desconhecido que imitava os seus gestos com medrosa surpresa.1

1 Augusto Meyer, Machado de Assis (1935-1958), Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro,

Corag, 2005. p. 47.

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Depois de uma introdução tipicamente ensaística, em que declara ter lido o conto em um momento de neurastenia, identificando-se com a sensação de morte em vida do alferes (“eu era o alferes”2), Augusto Meyer lança uma interessante

aproximação de Jacobina com Robinson Crusoé. Há indicação de um tema central do conto, a solidão em que a personagem é lançada, depois do abandono comple-to. Observe-se a oposição entre o náufrago inglês que reconstrói o mundo a partir de si e do alferes sem farda, que, na solidão, deixa de se sentir vivo e vira um fan-tasma, espectro de homem.

Ora Jacobina somos nós. Botamos a farda e representamos uma paródia de nosso eu autên-tico – não na vida social apenas, na vida profunda do espírito, que anda quase sempre fardado. O imperativo do instinto vital se encarrega de fardar o espírito para que ele não se veja no espe-lho tal como é na verdade.3

Nesse momento da leitura de Meyer, cabe estabelecer dois pontos. Em primeiro lugar, o crítico opõe a farda (máscara social) ao “eu autêntico” de um modo pecu-liar, pois a demanda da farda vem de dentro do indivíduo, para não se ver como é na verdade, e não como imposição externa como aparece na maioria das leituras. O encontro consigo mesmo torna-se aterrorizante. Observe-se, então, que a más-cara é proteção posta para não se ver como realmente é. Assim, ao ver-se sem máscara, o indivíduo se horroriza perante sua própria face.

Em segundo lugar, o movimento seguinte da leitura é identificar esse traço como dimensão universal: somos nós, seres humanos. Já em Meyer aparece um traço recorrente da leitura de “O espelho”: valorização da dimensão conceitual, teórica, e a consequente generalização da tese desenvolvida por Jacobina.

Raimundo Faoro, por sua vez, encerra sua leitura da obra de Machado de Assis em A pirâmide e o trapézio, pondo “O espelho” em primeiro plano. O livro de Fao-ro parece um esquisito exercício de crítica literária, pois faz citações dos ensaios, contos, crônicas e romances machadianos, retirando fragmentos de cada obra em função de temas a serem desenvolvidos, em busca da matéria histórica ali sedi-mentada. Faoro revela que sua leitura de Machado está centrada na dimensão mimética, quanto ao modo como a realidade fluminense teria sido transposta para dentro da prosa machadiana. Assim, o crítico cita mais de uma vez um mesmo trecho, desde que demonstre diferentes aspectos da história do Segundo Império. Está aí valorização da matéria histórica, do objeto representado, da dimensão ma-terial, do que é externo à ficção. Faoro mostra o que Machado viu, ou não, e pôde transpor para dentro da obra. Esses elementos ganham valor em Machado de Assis não porque sejam decisivos dentro estrutura do conto ou do romance, mas por representarem o Rio de Janeiro, uma visão aguda da sociedade novecentista. As di ferentes fases da obra machadiana se misturam em sua leitura. Se a matéria his-tórica é iluminada, a forma é desprezada.

2 Idem, ibidem, p. 46. 3 Idem, ibidem, p. 48.

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No capítulo final de A pirâmide e o trapézio, então, há um esforço de síntese em que Faoro procura mostrar uma visão genérica da prosa machadiana. Antes de comentar a leitura de “O espelho”, vale destacar dois pontos desse capítulo. A partir de Auerbach, e do movimento de incorporação do pobre na literatura, na prosa do século XIX, Faoro destaca trechos de Memórias póstumas de Brás Cubas, a fim de mostrar que a representação da pobreza está permeada pelo preconceito literário, herdado do romantismo, e pelo preconceito de classe. Assim, Prudêncio e Dona Plácida tornam-se exemplos do limite machadiano para incorporar a po-breza. Nesse momento se evidencia, no entanto, o limite de Faoro, enquanto crí-tico, que não leva em consideração a perspectiva distinta do autor Machado de Assis e do narrador Brás Cubas, esse sim detentor de preconceito de classe.

O outro aspecto a ser destacado já encaminha a leitura de “O espelho”, empre-endida por Faoro. Visto como moralista, observador atento dos costumes, Machado descobriria na realidade a dualidade essencial que opõe as pautas sociais, os cos-tumes, de um lado, e a o mundo enigmático da interioridade, de outro. Nessa li-nha, “O segredo do bonzo”, “Teoria do medalhão” e “O espelho” são chamados para defender a perspectiva que o papel social se impõe como única realidade. Como se pode observar, “O espelho” enquadra-se nessa leitura moralizante, que traz para a ficção a crise da sociedade em transição do estamento para a classe. O mundo da publicidade substitui a verdade, e na cisão em relação à subjetividade, o lado social desumaniza o indivíduo.

A deformação caricatural aponta para o monstruoso do mundo, que sufoca a autenticidade, o homem na sua essência pura e livre. A consciência revela na compulsão a que é submetida, o atordoamento, a perplexidade, a desorientação entre avalanche e desumanização.4

Assim como em Meyer, a linha de leitura traz o esforço de generalização. Mes-mo que se trate da localização no Brasil do Segundo Império, mesMes-mo que se baseie em longas citações dos contos, mesmo que se refira a autores como Auerbach, novamente aparece o limite da leitura de Faoro. Salvo engano, há dificuldade de pensar a penetração da matéria histórica na dimensão formal. Na medida em que o jogo narrativo é abstraído, o chão histórico se dissolve na universalização do

homem na sua essência pura e livre. Cabe insistir que “O espelho”, assim como os

outros dois contos, é de Papéis avulsos, 1882. Esse livro, primeiro da segunda fase, traz vários contos de feição teórica, de esforço conceitual mediado por um processo de narração peculiar. O medalhão é definido pelo pai em sua fala ao filho; a con-cepção do bonzo Pomada é apresentada na voz de Fernão Mendes Pinto e o esboço

de uma nova teoria da alma humana é construído por Jacobina. São narradores em

situação. O curioso é verificar a tendência de se tomar a posição interessada dos narradores como idêntica a de Machado de Assis.

Alfredo Bosi, em A máscara e a fenda, propõe uma visão de conjunto para o conto machadiano a partir da tensão entre a presença necessária e inescapável do

4 Raimundo Faoro, A pirâmide e o trapézio, 3. ed., Rio de Janeiro, Globo, 1988, p. 423.

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papel social, definida pela máscara, e o eu enigmático e indefinível que se esconde e não tem direito de expressão. Machado de Assis dedicava os contos da primeira fase à história de engano e traição (Contos fluminenses e Histórias da meia-noite). O centro da história situar-se-ia na suspeita. Em “Miss Dollar”, Gonçalves deve desfazer a suspeita de Margarida para que o amor se realize. Em “Luís Soares”, a personagem engana o tio para obter a herança; acaba punido, e, por fraqueza, se mata. Em “A mulher de preto”, o marido, por suspeitar da traição da esposa, sepa-ra-se; mesmo tendo sua imagem denegrida, Madalena mantém-se fiel ao juramento feito à amiga adúltera; ao final, desfeito o engano, o casal volta a se unir. Em “Se-gredo de Augusta”, a dissimulação de Vasconcelos, seus amigos e de Augusta é a marca da relação interpessoal. Em “Frei Simão”, o jovem amante é traído pelos próprios pais; eles dizem sua prima pobre havia morrido. Em todos esses casos de

Contos fluminenses, o amor ideal deve ser fruto do sentimento livre e desinteressado,

incondicional, que deseja apenas o bem do outro. O valor principal é de ordem moral, em que o sentimento amoroso, verdadeiro, não é egoísta, buscando o respei-to e a felicidade do amado. Assim, o sentimenrespei-to é manifestação autêntica e espon-tânea do homem.

No segundo livro, há um avanço no tratamento dos temas, tal como se dá em “A parasita azul”, em que Machado, com direito a paródia de trechos de Moreninha e de O guarani, constrói a vitória de Camilo, um enganador de marca maior.5

Mesmo assim, na primeira fase de Machado de Assis, portanto, o crítico verifica a existência de uma pré-histórica da máscara pela presença do problema referido, que se revela na necessidade de suprir a carência pelo casamento ou pela herança, matrimônio ou patrimônio. O limite da primeira fase está posto do tom morali-zante em que se projeta a punição da transgressão ou uma perspectiva de acomo-dação de interesses e desejos.

Na segunda fase, Bosi apresenta, de um lado, os contos-teoria que desenvol-vem o esquema acima descrito da contradição entre ser (desejo interior, vontade cega de viver) e parecer (máscara, farda, aparência). Nesses contos, Machado de-senharia sua concepção da existência humana e do papel social. De outro lado, teríamos os contos debruçados sobre o enigma insolúvel, um estudo narrativo da natureza interior de indivíduos que não põem a máscara e dissolvem na desordem subjetiva.

A partir das Memórias Póstumas de Brás Cubas e dos contos enfeixados nos Papéis Avulsos importa-lhe cunhar a fórmula sinuosa que esconda (mas não de todo) a contradição entre pa-recer e ser, entre a máscara e o desejo, entre o rito claro e público e a corrente escusa da vida

5 Em comentário lateral, creio que valha a pena referir a nostalgia do exílio que sente Camilo ao

regressar para sua terra, Goiás, centro do Brasil. Em um dos poucos contos que se passam no inte-rior do Brasil, Machado se preocupa menos com a natureza e mais com o sentimento íntimo. Note-se que a brasilidade aparece numa formulação primeira do que vai ser posto seriamente na Minha

formação, quando Nabuco constrói o problema: “de um lado do mar sente-se a ausência do mundo;

do outro, a ausência do país. O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação européia” (cf. Joaquim Nabuco, Minha formação, Rio de Janeiro, Jackson, 1949, p.47 [Clássicos Jackson, XX]).

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interior. [...] Machado vive até o fundo a certeza pós-romântica (ainda burguesa, “tardo-bur-guesa”, como diria um sociólogo italiano) de que é uma ilusão supor a autonomia do sujeito.6

A teoria básica dos contos de Machado de Assis, segundo Bosi, é a de que al ma frouxa do homem fica presa ao corpo sólido das formas instituídas. Para vencer na vida, o sujeito deveria usar a aparência social instituída, colocar a máscara, pois a sociedade apresenta-se como segunda natureza do homem. Nesse sentido, como no delírio de Brás, a história humana é rebaixada à condição natural, movida pe-las paixões que submetem o homem: egoísmo e conservação formariam um esta-tuto universal. A partir daí, o alienista encarnaria o poder médico, a afirmação da normalidade como repetição sempre do mesmo. Observe-se que a autonomia, pressuposto do individualismo burguês, vira ilusão. De certo modo, a ideia é de que Machado expõe de modo irônico a desfaçatez e o caráter enganoso da ideo-logia burguesa.

“O espelho” pode ser visto como conto exemplar dessa linha de leitura, de que “é impossível viver fora das determinações sociais”7 e a máscara se mostra

necessá-ria. Sem ela, sem a farda, não haveria como ser. Cabe citar a conclusão da análise: Diante do espelho, Jacobina se consagra, como em um rito, ao regime da opinião num átimo que empenha o futuro inteiro do eu narrador. Esse átimo, que parece, em si, tão misterioso, é o modo insólito que Machado encontra para falar da passagem que a maioria dos homens deve cumprir: da inexperiência ou da ingênua fraqueza à máscara adulta.8

No trecho citado, Bosi generaliza um processo comum a todos os homens a passagem da ingenuidade à maturidade como processo de perda da inocência e de aceitação do papel social (máscara ou farda). Seria a superação da ilusão românti-ca e a formação da consciência pós-romântiromânti-ca que põe em xeque a autonomia pela força da imposição social ou para força da interioridade informe do inconsciente. Observe-se que o crítico considera a troca de posição e de papel que há na passa-gem do personapassa-gem para o narrador (Jacobina) como processo de amadurecimento e de descoberta da determinação social que dá consistência e solidez ao indivíduo. De certo modo, a perspectiva machadiana estaria posta na capacidade de observar e de aceitar a realidade social. Na primeira fase, impõe uma correção moral aos desvios; na segunda, pelo distanciamento, haveria aceitação da máscara.

Em outra linha de força da crítica machadiana, Abel B. Baptista9 aponta a

di-mensão moderna que coloca entre a anedota narrada e a interpretação, a posição

6 Alfredo Bosi, “A máscara e a fenda”, in Alfredo Bosi (org.) Machado de Assis, São Paulo, Ática,

1989, p. 441 (Escritores Brasileiros, 1).

7 Idem, ibidem, p. 447. 8 Idem, ibidem, p. 448.

9 Nosso interesse primeiro é discutir a formulação de Abel Barros Baptista, feita como princípio

de leitura amplo, recorrente em vários contos de Machado (Abel Barros Baptista, “A emenda de Sê-neca: Machado de Assis e a forma do conto”, Teresa: revista de literatura brasileira, São Paulo, n. 6-7, p. 207-231, 2004-2005; Abel Barros Baptista, “Singular experiência – algumas figuras para uma revi-são dos contos de Machado de Assis”, Literatura Scripta, Belo Horizonte, v. 3, n. 6, 1º sem. 2000).

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do narrador, que traz para dentro do conto a impossibilidade de interpretar (a falta de sentido) ou o arbítrio. Segundo Baptista, Machado constrói um narrador mo-derno, na medida em que mina sua autoridade. Trata-se do conceito de moder-nidade centrado na ruptura da tradição e na necessidade de cada indivíduo desen-volver seus valores a partir de si mesmo. Talvez seja possível dizer que o crítico português está acompanhando a expansão capitalista que passa a dominar todas as regiões do planeta. O padrão europeu de cidade moderna, a forma livre e racionali-zada do trabalho e seus hábitos de convivência e consumo foram levados para todos os cantos do planeta. Um exemplo é a circulação da informação pelo jornal. Nesse sentido, olhando desde esse ponto de vista, não interessa a diferença local, mas a abstração dos traços modernos que aparecem em autores como Machado, retira-dos da condição sócio-histórica da nação em que se inserem.

Essa dimensão parcial da modernidade (sumariamente posta) leva a leituras da literatura como a proposta por Abel Barros Baptista. Não interessa olhar para a realidade local afetada pela expansão do capital, mas para a força moderna que se estende a todos os cantos. Assim, podemos ler o conto a partir de um conceito de modernidade que elide as peculiaridades locais, tal como aparece em Tchekov (Rússia), em Edgar Poe (Estados Unidos), em Henry James (Estados Unidos / Inglaterra), em Maupassant (França). São todos modernos. Reivindicar a perti-nência da dimensão local em seus contos seria retirá-los da dimensão moderna. De certo, poderíamos usar as próprias palavras de Baptista, “cabe apenas subli-nhar que o seqüestro nacionalista de Machado lhe obscurece a originalidade e lhe diminui a grandeza”.10 Assim, nessa linha, Machado deixaria de ser dos melhores

contistas do mundo, caso o leitor insistisse em enfatizar seu diálogo com a reali-dade brasileira.

Ao ler “O empréstimo”, Abel destaca a presença do narrador, espírito

repousa-do, capaz de decifrar a filosofia do empréstimo. Entre o episódio (redução de uma

vida em uma hora) e o sentido, o narrador se interpõe como intérprete: “é o pri-meiro traço propriamente moderno da forma do conto machadiano”.11 Assim,

segue a leitura do conto, apresentando a modernidade que mina a autoridade, que faz uma emenda a Sêneca.

O conto machadiano explora de diversas formas esta tensão e reitera, com a pertinácia da forma descoberta, a única maneira de a suprimir: a autoridade do narrador. O narrador garante que esteve lá ou que alguém esteve lá no momento em que uma vida se representou inteira. A indispensabilidade desta garantia conduz ao que há de menos sério na sugestão nada séria do primado da interpretação sobre a “anedota”.12

10 Abel Barros Baptista, O livro agreste: ensaio de curso de literatura brasileira, Campinas,

Edi-tora da Unicamp, 2005, p. 11. Em tom polêmico, o professor português introduz sua leitura criando uma dissociação entre estudo da forma e estudo do contexto sócio-histórico brasileiro. Por isso, pode-se colocar que seus achados formais, especificamente tratando aqui do narrador machadiano, têm amplo interesse, desde que (na nossa perspectiva) sejam pensados como sedimentação de pro-blemas sociais não resolvidos que se transformam em tensões estéticas.

11 Idem, ibidem, p. 214. 12 Idem, ibidem, p. 214.

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O movimento da leitura está desenhado, encaminhando o “escritor moderno”,13

que não tem mais amparo da tradição e que deve se inventar a partir de si mesmo, pois temos “a impossibilidade de o narrador se autorizar a si mesmo”.14 A leitura

de “O empréstimo” abstrai de certo modo um princípio geral a partir do arranjo da anedota em que Custódio busca o empréstimo para financiar sua aventura fi-nanceira (com certeza de fracasso) e em que Vaz Nunes nega emprestar qualquer dinheiro. O que fica da leitura é a posição do narrador entre a anedota e o sentido a ser produzido. A leitura de “O espelho” segue esse caminho:

A história contada é, por isso, em primeiro lugar, a história de uma narração, de alguém contando uma história: Jacobina, que, através da narração de “um caso”, expõe uma teoria, su-postamente a mesma que vem anunciada em subtítulo do conto, “Esboço de uma nova teoria da alma humana”.15

O aspecto central está posto no narrador que se impõe sobre seus interlocutores. O silêncio posto como condição para narrar e a saída final de Jacobina mostram seu caráter impositivo e a aceitação dos ouvintes que interrompem a discussão. A teoria se reduz à narrativa, perde o possível debate de ideias e posições. Esse caso é exemplar da conclusão que chegará ao final de que a atividade de interpretação se afirma como atividade de poder.

Haverá certamente algum leitor que agora se satisfaria com uma explicação geral para a insistência no inquérito à interpretação. E que talvez reclame. Percebeu que os contos de Macha-do de Assis não cabem facilmente em nenhuma das categorias rápidas, porque não são realistas nem formalistas; muito menos exemplos do que agora se chama de ficção metaliterária. Cada conto é um caso teórico, decerto; cada conto se insere uma teoria implícita do conto, também se aceita. Mas esse leitor pressente que se trata de algo mais, e quererá alguma explicação geral; menos técnica, menos literária, mais conforme com... a vida. Provavelmente, a única disponível será esta; os contos machadianos, parafraseando o filósofo, falam de homens que atuam e repre-sentam a ruína da interpretação para dizerem que o sentido da ação humana não é dado, nem ilustrável, nem decifrável, nem transmissível. Não porque seja destituída de sentido, antes por-que lhe falta sempre a autoridade do narrador. Mas essa é própria razão de ser da emenda de Sêneca.16

Depois de passar pelas “Primas de Sapucaia” e pela “Causa secreta”, Abel encerra sua apresentação do conto machadiano como um diálogo direto com o lei -tor. A base desse desdobramento está posta na percepção de que “se trata de algo mais”, que escapa à possibilidade de explicação ampla, pois cada unidade traz em si um problema teórico. Assim, a única “explicação geral” é de que os contos trazem à cena, ao palco, “a ruína da interpretação”, pois o sentido da vida sempre escapa “a autoridade do narrador”. Como se vê, estamos na dimensão moderna que abstrai

13 Idem, ibidem, p. 215. 14 Idem, ibidem,,p. 215. 15 Idem, ibidem, p. 218. 16 Idem, ibidem, p. 230. 6_ensaio.indd 111 6_ensaio.indd 111 8/6/2011 23:27:208/6/2011 23:27:20

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a dimensão brasileira do século XIX. No caso, não se trata mais do teor do enre-do, mas da posição do narrador para narrá-los e interpretá-los. No caso, trata-se de uma posição em falso que mina a própria autoridade de fazê-lo. Essa leitura traz vários pontos que ajudam a entender melhor alguns aspectos formais do conto, mas ao fazer de Machado um moderno ficam apagados elementos locais que dão peculiaridade a essa modernidade. Por exemplo, a autoridade do narra-dor não ganharia feição peculiar no chão histórico brasileiro?

Em “Os contos de Machado de Assis: o machete e o violoncelo”, John Gled-son17 escreve uma introdução aos contos em que advoga tese exatamente contrária

à de Baptista. Cabe destacar três pontos. Primeiro, existe a preocupação de recu-perar o contexto de publicação da maioria dos contos: Jornal das Famílias

(1864-1878), A estação (1879-1898) e Gazeta de Notícias (1881-1897). Os dois primeiros

jornais eram destinados ao público feminino, o terceiro representou uma moder-nização na imprensa fluminense implementada por Ferreira de Araújo. Segundo, seu critério implica incluir contos da primeira fase, mesmo sem a mesma qualida-de estética, pois “excluí-los daria um retrato inteiramente falso do progresso qualida-de Machado”.18 Terceiro, a leitura dos contos pode ser apresentada no esforço de

ar-ticular a dimensão local (matéria-prima) e o “tradicional europeu, em um concer-to para machete e violoncelo”.19

Cabe referir que Gledson faz a leitura de “O espelho” pressupondo o vínculo necessário com Papéis avulsos.20 Para o crítico inglês, Machado de Assis trata dos

problemas da identidade nacional através de uma identidade pessoal. Assim, como exemplo da tese, ele lê de modo complementar os contos “O espelho” e “Verba testamentária”. No primeiro, a identidade nacional é tão imperceptível quanto a imagem de Jacobina distorcida no espelho.21 No segundo, Nicolau é “a encarnação

de um tipo nacional ansioso por adotar idéias estrangeiras, mas que, em razão de seu caráter ressentido, e do seu desejo de se libertar destas mesmas idéias, é impe-dido de assim fazer”;22 ao cabo, o conto é a história da “consciência nacional”.23

Gledson preenche de sentido as imagens machadianas, a partir de uma relação direta com a história do Brasil. Constrói um sistema orgânico em que todos os elementos dos contos servem para narrar a história. Cria-se, nesse caso, um prin-cípio totalizador que subsume todos os elementos discrepantes. No caso trata-se do problema da identidade nacional. Especificamente trataria do momento em

17 John Gledson, “O machete e o violoncelo: uma introdução a uma antologia de contos de

Ma-chado de Assis; Conto de Escola: uma lição de história”, in Por um novo MaMa-chado de Assis: ensaios, São Paulo, Companhia das Letras, 2006.

18 Idem, ibidem, p. 30. 19 Idem, ibidem, p. 28.

20 John Gledson, “A história do Brasil em Papéis Avulsos de Machado de Assis”, in S. Chaloub; L.

Pereira (org.) A história contada: capítulos de história social da literatura no Brasil, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998. 21 Idem, ibidem, p. 18. 22 Idem, ibidem, p. 19. 23 Idem, ibidem, p. 16. 6_ensaio.indd 112 6_ensaio.indd 112 7/11/2010 15:10:297/11/2010 15:10:29

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que o Brasil começou a olhar para si no espelho – adquiriu uma alma? –, foi com a chegada da Corte portuguesa. No outro conto do volume, “Verba testamentária”, o estudo se completa na análise do patológico complexo de inferioridade e de res-sen timento vividos por Nicolau.

Trazendo para primeiro plano os dois últimos críticos, vemos que Gledson e Barros Baptista concordam com os outros críticos e entre si em um ponto, que Machado de Assis é um dos melhores contistas do século XIX. A explicação dada para isso, no entanto, é divergente. No primeiro caso – Gledson –, Machado con-segue isso a partir da necessidade de trazer para dentro da ficção a história brasi-leira. No segundo – Baptista –, temos a dimensão moderna que se afirma para além do problema local. Obviamente existem diversas outras leituras que foram feitas de Machado de Assis e, especificamente, de seus contos. Acontece, entretanto, que a polarização parece uma opção subjetiva dos críticos. Como vemos a partir de Schwarz, “universalismo e localismo são ideologias ou chavões, ou timbres, de que Machado se vale como pré-fabricados passíveis de uso satírico”.24 Em outros

termos, as dimensões do local ou do universal não são projeções, estão presentes dentro da prosa machadiana. É um dado objetivo que resiste ao arbítrio do crítico. A questão se põe no modo como a cultura europeia (metonimicamente entendida como universal) é apropriada na periferia. Desse modo, outras leituras foram fei-tas dos contos machadianos, no esforço de dar uma visada ampla ou ler especifi-camente um conto.25 Não vamos retomá-las aqui, pois o interesse do presente

ensaio é seguir o problema posto por Schwarz – “transformação periférica da cul-tura européia26 –, verificando como o chão histórico brasileiro penetra na forma

de “O espelho”. Como se trata de esboçar linhas de leitura, não vamos fazer algo que seria de suma importância que seria ir atrás de uma história material do coti-diano que penetra as frestas da prosa machadiana. Nesse sentido, vale saudar uma análise recente de “O espelho”, que fez muito do que desejáramos empreender,27

que não vai devidamente incorporada aqui pela leitura recentíssima.

24 Roberto Schwarz, “A viravolta machadiana”, Novos Estudos – Cebrap, São Paulo, n. 69, p. 29,

jul. 2004. A proposta de estudo do conto machadiano tem como referência a leitura do romance empreendida de modo sistemático por Schwarz (Roberto Schwarz, “Novidade de Memórias Póstumas

de Brás Cubas”, in A, C, Secchin et al. (org.) Machado de Assis: uma revisão, Rio de Janeiro, In-folio,

1998, p. 47-64; Idem, Um mestre na periferia do capitalismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989).

25 Além das leituras já citadas aqui, vale referir ainda: José Luís Jobim (org.) A biblioteca de

Machado de Assis, Rio de Janeiro, Topbooks, 2001. Luís Augusto Fischer, “Contos de Machado: da

ética à estética”, in A. C. Secchin et al. (org.) Machado de Assis: uma revisão, Rio de Janeiro, In-folio, 1998, p. 147-166. Kátia Muricy, A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo, São Paulo, Companhia das Letras, 1988. Sônia Brayner (org.) O conto de Machado de Assis: antologia, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p. 11. Eugênio Gomes, Machado de Assis: influências

inglesas, Rio de Janeiro, Pallas; Brasília, INL, 1976.

26 Cf. Roberto Schwarz, Martinha vs Lucrécia, in Benedito Antunes; Sérgio Vicente Motta (org.)

Machado de Assis e a crítica internacional, São Paulo, Unesp, 2009, p. 29.

27 Cláudio Duarte, O Brasil n’O espelho de Machado de Assis: fisionomia da dominação social e

ter-ritorial brasileira, Sinal de Menos, ano 2, n. 4, 2010, disponível em: <http://www.sinaldemenos.org>.

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À procura da forma ou quando um cachimbo é mais

do que um cachimbo

Observemos desde já o fenômeno do conto, enquanto gênero literário recor-rentemente afirmado em sua dimensão moderna, é uma conquista progressiva e lenta na produção machadiana. Demanda trabalho literário do crítico que estuda a prosa de seus contemporâneos, que escreve e reescreve seus contos, que seleciona um conjunto para publicar. Nesse processo, Papéis avulsos ocupa um lugar singu-lar. Primeira coleção depois de Memórias póstumas de Brás Cubas, traz advertência e notas do autor que parece preocupado em definir uma linha de atuação.

Este título de Papéis Avulsos parece negar ao livro uma certa unidade: faz crer que o autor coligiu vários escritos de ordem diversa para o fim de os não perder. A verdade é essa, sem ser bem essa. Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mes-ma mesa.

Quanto ao gênero deles, não sei que diga que não seja inútil. O livro está nas mãos do lei-tor. Direi somente, que se há aqui páginas que parecem meros contos e outras que o não são, defendo-me das segundas com dizer que os leitores das outras podem achar nelas algum inte-resse, e das primeiras defendo-me com S. João e Diderot. O evangelista, descrevendo a famosa besta do apocalipse, acrescentava (XVII, 9): “E aqui há sentido, que tem sabedoria”. Menos a sabedoria, cubro-me com aquela palavra. Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele, não só escrevia contos e alguns deliciosos, mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. E eis a razão do enciclopedista: é que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba, sem que a gente dê por isso.

Deste modo, venha de onde vier o reproche, espero que daí mesmo virá a absolvição. Machado de Assis28

Um princípio unificador, mas ao mesmo tempo desagregador, permite vê-lo como obra íntegra e não apenas como antologia de contos. Como colecionador que seleciona elementos heterogêneos a partir de um critério, Machado de Assis pode ter ligado os relatos heterogêneos a partir de algum princípio. “Pessoas de uma só família” supõe a unidade entre os seus membros pelo laço de parentesco; a obrigação do pai que os reúne destaca ao contrário o critério exterior que força a reunião em uma mesma mesa. O autor, como o pai, registra não apenas a unida-de da obra, mas sua dispersão, pois, após escritos e publicados, os contos, como os filhos, ganham autonomia e independência em relação ao pátrio poder. Talvez possa ser esboçada outra leitura nesse caso. De que o tema que unifica os contos é o problema da autoridade paterna ou tradicional que impõe a reunião em torno da mesa. É na dimensão familiar que os filhos se realizam.

“Defendo-me com S. João e Diderot. O evangelista, descrevendo a famosa bes-ta apocalíptica, acrescenbes-tava (XVII, 9): ‘E aqui há sentido, que tem sabedoria’. Menos a sabedoria, cubro-me com aquelas palavras.” Antes de mais nada, Machado

28 Joaquim Maria Machado de Assis, Obras completas, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1992, v. 2,

p. 252. Todas as citações da obra machadiana são retiradas dessa edição.

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joga de novo com a dupla referência, já que une o evangelista e o filósofo ilumi-nista, ateu. Quanto ao primeiro, parte da besta apocalíptica para mostrar que seus contos também têm sentido. Não têm sabedoria, pois seu horizonte não é a reli-gião, a revelação de uma verdade transcendente. Quanto a Diderot, cujas palavras (“meu amigo, façamos sempre contos... O tempo passa, e o conto da vida termina, sem que a gente perceba”) retornam como epígrafe em Várias histórias, Machado aparentemente utiliza-o para curar a melancolia, da perda do sentido transcen-dente ou da percepção da passagem do tempo. A alegria do espírito é o grande benefício da ficção. Se lembrarmos a ligação de Diderot com a sátira menipeia, vemos que o riso alivia, se não pode curar, a condição melancólica da humanida-de, consciente de sua finitude e miséria.

Pode-se apontar uma base comum para a citação de Diderot e São João. Ma-chado diz que suas narrativas trazem aspectos de ambos, mas também se libertam da tradição. De certo modo, o autor nos mostra que a narrativa curta está na reli-gião, como ilustração doutrinária, e na filosófica, como demonstração exemplar. Pela paródia do diálogo ou do texto bíblico, pela apropriação da crônica histórica ou de viagem, Machado contribui para dar autonomia ao conto, enquanto forma moderna, que pode se articular esteticamente sem dependência das amarras mo-ralistas, filosóficas ou religiosas. E a dimensão altamente moderna põe em xeque a autoridade da tradição, como vimos antes em Abel B. Baptista. A curiosidade é que esse esforço dá-se na medida mesma em que se submete aos limites da maté-ria local e que lhe dá as vamaté-riações das vozes narrativas que se põem entre a herança europeia (recriada e parodiada) e o chão social que lhe dá a base, tanto no papel dos narradores quanto na posição dos interlocutores, como vimos em John Gledson na mistura do machete e do violoncelo, no âmbito da família sob autoridade do pa-triarca à cabeceira da mesa.

Para entender esse conto machadiano, mistura da autonomia da forma moderna e da submissão aos limites locais, vale retomar a peculiaridade da virada da pro-dução Machadiana, colocando em paralelo os Papéis avulsos (1882) e, se houvesse espaço, Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e as Balas de estalo (1883-1887). Cabe apontar brevemente um problema de ordem sócio-histórica. Qual seja, a imprensa exerceu um papel importante na constituição da nacionalidade brasilei-ra, preocupação forte no período como se vê em um ensaio como Notícia da atual

literatura brasileira: Instinto de nacionalidade, de 1873, no qual Machado de Assis

observa que a literatura brasileira ainda está na adolescência, precisando de algu-mas gerações para se tornar autônoma: “Meu principal objeto é atestar o fa to atual, ora o fato é o instinto de que falei, o geral desejo de criar uma literatura mais independente”.29 Trata-se da inclinação de uma nação que não constituiu sua

identidade. A tendência é procurar nos temas locais, na natureza e no índio os traços definidores da brasilidade. O equívoco acontece quando a tendência é ele-vada ao caráter de doutrina, não se aceitando outros temas. O essencial é que o

29 Machado de Assis, Obras completas, op. cit., v. 3, p. 801.

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escritor seja um “homem de seu tempo e de seu país”,30 mesmo tratando de temas

e assuntos remotos. A questão central desse ensaio, parece-me, pode estar na per-cepção de que a literatura brasileira estava em formação. O processo de amadure-cimento não passa, nesse caso, pelos temas retirados da natureza, do índio, da cor local, nem da imitação dos padrões europeus, mas se centra num desenvolvimen-to autônomo da literatura enquandesenvolvimen-to instituição.

A referência ao ensaio de 1873 foi longa, pois o intento é mostrar o dilema que se apresentava na década de 1870. Há a necessidade de ser brasileiro, de for-mar uma nação ainda jovem, a partir dos traços que lhe são próprios, de um

sen-timento íntimo, mas, ao mesmo tempo, há forte preocupação de se colocar no

concerto das nações, de ser reconhecido como civilizado, como herdeiro das tra-dições europeias. Esse problema está posto não apenas na adoção das formas estéticas, quanto também nas formas jurídicas, nas soluções políticas, na consti-tuição do exército, nas soluções urbanas para a Corte. Enfim, as diversas esferas da construção brasileira passam pela adoção de formas europeias. O dilema se põe pela presença do desvio, da diferença cultural do brasileiro em relação ao europeu. Para ficar no exemplo mais forte (preocupação central em várias crôni-cas de Machado e seus companheiros), a escravidão seria uma marca diferencial brasileira, que definia a especificidade de nosso Estado-nação e que gerava repulsa e ressentimento, que dava vergonha perante os europeus. O que interessa pensar é a articulação do conto com essa ambição talvez falhada, ou no mínimo proble-mática, de querer ser um brasileiro europeizado ou um herdeiro da tradição eu-ropeia nos trópicos.

Para pensar isso, é importante recuperar as condições sociais em que o conto se desenvolve. Para isso, uma imagem emblemática serve de norte.

O uso largamente fuleiro do cachimbo no país será um dos tópicos escolhidos por um sócio do Instituto Histórico para “repelir as argüições injustas” sobre o Império publicadas na im-prensa européia. Buscando demonstrar que um viajante inglês, autor de um artigo da revista britânica Bentley´s Miscellany, interpretava tudo de má-fé, nosso crítico reporta-se à passagem na qual se descrevia a bagunça das tropas de linha da corte no final da Regência. Segundo o texto da Bentley´s, os soldados do exército estiravam-se preguiçosamente na frente de um quar-tel, enquanto seu oficial, que não estava nem aí, fumava cachimbo pouco adiante. O comentário do nosso crítico foi tão certeiro quanto paradoxal: “duvido que o oficial tivesse na mão um ca-chimbo [...] em nosso país, só os negros ou estrangeiros é que fazem uso de tal traste”. Não terá

sido esse o único momento em que os brasileiros tiveram de apartar-se da moda ocidental por causa do chão social do país.31 (grifo meu)

A passagem citada poderia ser resumida jocosamente com a declaração de que muitas vezes um cachimbo não é só um cachimbo. De modo um pouco mais sério, Alencastro mostra, a partir de exemplos como esse, retirados do cotidiano, “o

30 Idem, ibidem, p. 803.

31 Luis Felipe Alencastro, “A vida privada e ordem privada no Império”, in ___. (org.) História

da vida privada no Brasil: Império, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 63.

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desvio do comportamento brasileiro em relação ao modelo europeu”. No presente estudo, o interesse é mostrar como esse traço, presente na prosa da crônica, pode ser estendido também ao conto, a partir dessa noção de “desvio do modelo euro-peu”. Isso, que pode gerar ressentimento ou vergonha, pode ser base formal de trabalho estético, muitas vezes de feição cômica e paródica. A título de exemplo, vale citar uma crônica de Balas de estalo. Em 15 de julho de 1883, Lélio (pseudô-nimo de Machado) declara ter encontrado “o heroísmo da vida pacata do século” no feito de Abranches, que espontaneamente devolve os 10 mil réis que recebeu a mais. O registro feito pelo dono da Camisaria, publicando em jornal o episódio que não poderia ser esquecido, é o mote que permite ao cronista declarar que encontrou a matéria de uma “epopéia burguesa”. Machado trata aí de um pedido publicado por um camiseiro que descreve um “ato de tanta probidade [que] não merece ser esquecido”. O núcleo humorístico está na dimensão paródica, de uma ironia agressiva quanto à miudeza do gesto, quanto ao descompasso entre o ato e o valor atribuído. O gesto irônico do cronista provocou uma resposta furiosa do camiseiro, um protesto contra o deboche.

O esforço é manter constante atenção à forma estética enquanto forma tam-bém social e histórica. A literatura, enquanto representação da experiência brasi-leira, pode ser estudada a partir da análise imanente da obra, em que se sedimen-tam os condicionantes sociais de um país escravocrata e patriarcal. Ao mesmo tempo que não se pode esquecer da autonomia do conto moderno, conquista formal resultante de lenta acumulação, a narrativa traz em si as determinações sociais. Nesse sentido, o conto tem maior autonomia do que a crônica, mas o pro-blema da dupla filiação entre matéria local e formação europeia retorna como problema imanente à escrita contística. A necessidade da mediação coloca-se, no caso machadiano, em achar o ponto de encontro entre o problema exterior e as formas disponíveis para representá-las. Assim, não interessa ver apenas o docu-mento histórico do Se gundo Reinado, o testemunho da escravidão, os problemas da vida afetiva no uni ver so patriarcal. Também não interessa saber que Machado, com erudição formidável, atualizou suas leituras pela dimensão paródica e hu-morística. Interessa é encontrar o ponto de encontro entre ambas, que, por se tratar da dimensão brasileira, é ponto de inversão ou de ruptura, de ênfase na in-con gruência dos termos. De que modo a matéria prosaica e cotidiana ganha as-pecto formal e se torna um elemento estético? Nesse asas-pecto, a crônica de Balas

de estalo traz um problema central, pois, como ela traz um vínculo forte com os

problemas do cotidiano do autor e do leitor, sua autonomia é relativa. Ao mesmo tempo, a tensão entre o de sejo de ser civilizado e a precariedade da existência na corte é marcante.

Para mim, é antes um triângulo: forma estrangeira, material local e forma social. Simplifi-cando um pouco: enredo estrangeiro, personagens locais e ainda voz local: e é precisamente nessa terceira dimensão que esses romances parecem ser mais instáveis – mais incômodos, como diz Zhao acerca do narrador Qing tardio. O que faz sentido: o narrador é o pólo de co-mentário, de explicação, de avaliação, e quando os “modelos formais” estrangeiros (ou a efetiva presença estrangeira, nesse particular) fazem os personagens agir de maneira estranha (como

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Bunzo ou Ibarra ou Brás Cubas), então é claro que o comentário fica incômodo – prolixo, ca-prichoso, desgovernado.32

A hipótese de Franco Moretti é que, entre a forma europeia e a matéria local coloca-se um intermediário (uma voz narrativa) que traz para o núcleo do roman-ce o descompasso entre ambas as instâncias. Tal descompasso apareroman-ceria nas diver-sas regiões em que o romance entrou. Valeria discutir a tese, inclusive para testar sua pertinência em análises mais específicas. No momento, interessa trazer essa linha de estudo para pensar o conto dentro dessa linha. Seria possível estender aos narradores dos contos a mesma posição do narrador do romance? A hipótese é que isso aparece tanto na ficcionalização do narrador-cronista, conforme aparece nas crô nicas de Balas de estalo, quanto na escrita do conto. Levada para dentro da crô-nica, esse narrador esvazia a possibilidade de conciliação entre matéria local

(abran-ches e seu feito, alfaiates, 10 mil réis e toda tralha do cotidiano brasileiro) e forma

europeia (epopeia burguesa). Parece acentuar o descompasso cômico. A in con-gruência deixa de ser problema para ser técnica de composição. Aparece também no descompasso entre a forma do conto e a matéria local, mediada por nar rador arbitrário. De certo modo, a modernidade apontada por Baptista revela-se como problema local, tal como a novidade histórica da escravidão moderna em pleno Estado Nação no século XIX.33 Em outros termos, a narração do conto encena a

instabilidade moderna (mostrando os vazios das promessas burguesas) na me dida em que esse é um problema de incongruência local.

Reflexo no espelho machadiano

Machado de Assis é um grande contista, um dos maiores da literatura ociden-tal. Até aí ninguém discorda. O que cabe discutir é se ele se torna grande por se livrar da tralha cotidiana do Brasil novecentista, ou justamente por fazer desse cotidiano do Império escravocrata a matéria de sua literatura e o núcleo de sua forma. A preocupação de Machado com a matéria social é evidente em vários con-tos ou poemas, como “Mariana” (1871) ou “Sabina” (1875). A escravidão é posta no núcleo conflitivo das personagens. O sofrimento pessoal, sem perder a dimen-são psicológica, traz a indelével marca social. Acontece, depois de Memórias

pós-tumas de Brás Cubas, uma intensificação do tema quando ele é posto na forma de

composição. A matéria cotidiana, além de penetrar o íntimo das formas culturais, provoca um desvio (uma refração do padrão europeu), seguindo a leitura de Luís F. de Alencastro.

A partir da peculiaridade da escravidão moderna, tal como define Alencastro, Pasta Jr. mostra como o Brasil imperial, Estado-nação, vive a um só tempo sob

32 Franco Moretti, “Conjeturas sobre a literatura mundial”, Novos Estudos – Cebrap, São Paulo,

n. 58, p. 178-179, nov. 2000.

33 Cf. Luis Felipe Alencastro, “‘Pai contra mãe’: o terror escravagista em um conto de Machado

de Assis”, A clínica especular na obra de Machado de Assis, Cadernos da Association lacanienne inter-nationale, Paris, dez. 2002.

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dois regimes excludentes. A lógica da modernidade burguesa exige uma subjetivi-dade autônoma e livre. No Brasil, ela convive com a lógica da escravidão, centrada na dialética senhor/escravo. Assim, “a ilusão de autonomia tardo-burguesa” des-faz-se no chão escravocrata e patriarcal. Nessa ordem, o duplo ganha matéria e forma específicas no Brasil.

Em vez de realizar o retorno sobre si, o eu se vê preso na má infinidade de um movimento pendular em que ele bascula interminavelmente entre o mesmo e o outro – condenado a repetir sem término e sem saída a mesma fórmula: o outro é o mesmo, o mesmo é o outro, e assim indefinidamente. Ora, o que é essa fórmula senão a do duplo?34

Essa descrição articula o desdobramento próprio do duplo (entre o si mesmo e um outro) com o regime social do Estado-nação brasileiro, integrado ao mundo moderno, que definia no código civil que os escravos eram mercadorias e homens a um só tempo. Esse tema recorrente na literatura funciona como princípio orga-nizador de “O espelho (esboço de uma nova teoria da alma humana)”. Não vamos retomar novamente a qualificada fortuna crítica do conto, cabe apenas insistir que vamos esboçar uma leitura que traz para dentro da forma do conto moderno esse problema da escravidão, articulando metafísica, moralismo, modernidade e identi-dade brasileira. Para isso, vamos retomar passo a passo alguns aspectos do conto.

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos compa-nheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem

instru-ção, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um

paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. (grifos meus)

A relação entre a caracterização dada e o nome, Jacobina, estabelece uma rela-ção irônica. Nome ou apelido, Jacobina cria uma referência à ala radical da Revo-lução Francesa, na luta contra o Antigo Regime. Trata-se de um marco histórico na formação da história contemporânea e na afirmação combativa da luta do in-divíduo contra os privilégios. Essa referência não combina com o personagem calado, que se exime do debate, que evita a controvérsia, que se põe como mode-lo de perfeição os querubins. Astuto e cáustico, esse provinciano parece receber um nome (ou apelido), posto no feminino, em contraste à sua natureza e à sua posi-ção social. Cabe enfatizar um traço fundamental: ele se mostra avesso à discussão, como se ela trouxesse uma dimensão bestial. O traço de elevação (angelical) que trazia a gentileza do gesto como marca, revela-se no seu contrário, na baixeza do gesto autoritário da fala de Jacobina.

34 José Antônio Pasta Junior, “Singularidades do duplo no Brasil”, A clínica especular na obra de

Machado de Assis, Cadernos da Association lacanienne internationale, Paris, dez. 2002, p. 40.

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Quando este casmurro usou a palavra trinta ou quarenta minutos, há o anúncio do relato de uma experiência marcante. Normalmente nessa modalidade do conto emoldurado, quando alguns amigos estão reunidos, um deles toma a palavra para fazer uma revelação, a narração de algo assombroso ou fantástico. Guardando as proporções, poder-se-ia falar desde Álvares de Azevedo a Maupassant, contempo-râneo de Machado.

Cabe observar o tom da voz desse homem astuto, pois ele passa a ser taxativo – afirmativo em suas colocações, categórico em suas definições. Para efeito de mero contraste, cabe comparar com o início de “A missa do galo”, em que o nar-rador coloca que jamais compreenderá o que se passou. Jacobina estabelece outro patamar. Parece o narrador seguro, que relata o grande episódio de formação que levou a um aprendizado, que não se dá como processo, mas como revelação ritual em um átimo, conforme citação anterior de Bosi. Essa observação é fundamental, pois sua atitude e sua forma de falar contrastam com a descrição de um homem avesso à discussão, que busca concordar com seu interlocutor.

A conversa é caracterizada pela inconsistência dos pareceres e pela impossibi-lidade de um consenso. De certo modo, trata-se de passatempo, de tal maneira que discutem a natureza da alma como poderiam discutir o sexo dos anjos. Nesse momento, Jacobina é chamado ao debate e se propõe “a contar-lhes um caso de [sua] vida”, como “a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata”. Com essa introdução, o narrador define a natureza da alma: “cada criatura huma-na traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro”.

Em primeiro lugar, cabe insistir na marca original da concepção dual da alma humana. Em Meyer, Faoro e Bosi, a dualidade é explicada, resumindo em único traço, pela tensão entre eu e papel social. O peculiar, vale insistir, é a interioriza-ção dessa dualidade como duas almas que em seu seio moram. Antes de prosse-guir, retomo Benedito Nunes. Ao tratar da filosofia, deve-se considerar a ficção como modo de pensamento, “capaz de absorver filosofias e recondicioná-las a uma intenção diferente da que possuem nos discursos de origem”.35 No caso,

Ma-chado de Assis não se aplica seriamente à filosofia, mas ironicamente ri dela. As-sim, é o humor “a base do pensamento ficcional de Machado de Assis”.36 Com a

prudência necessária, a definição de Jacobina é filosofia de botequim. Ainda as-sim, ele traz um teor de verdade, a dimensão social que abandona a busca da unidade. O ponto de partida é a unidade cindida, lida como o problema moral do confronto essencial entre o eu e a máscara, entre natureza interior e farda. Trata-se não de tensão dialética, mas de concepção dualista em que as partes coexistem, mas não se integram, nem mesmo se chocam. Não seria possível de se pensar que essa expressão conceitual abstrai a cisão social entre senhor e escravo?

35 Benedito Nunes, No tempo do niilismo e outros ensaios, São Paulo, Ática, 1993, p. 135

(Te-mas, 35).

36 Idem, ibidem, p. 135.

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Posta no Estado moderno, duas identidades se colocam, mas não se comuni-cam. Talvez tenha razão Augusto Meyer quando diz ser difícil olhar no espelho e não ver senão uma massa informe e aterrorizante. A impossibilidade de alcançar a unidade é elevada, então, à condição positiva e cristalizada como na definição de duas almas da criatura humana.37 Assim, a formação do sujeito não se completa

pela superação do conflito, mas pela imobilização dos termos opostos como par-tes fixas. Observe-se que a ênfase de Jacobina está na força da alma que olha de fora para dentro: ela é mutável, mas é capaz de apagar a alma interior. No cerne, a feição de revelação crítica do conto, denúncia de um estado de coisas, é afirmação reacionária, elevada a uma teoria sustentada na autoridade de seu narrador. A força de seus conceitos e a direção metafísica podem levar ao esquecimento de quem fala: o enganoso, astuto e arrivista Jacobina, que vai de jovem de 25 anos, pobre alferes, a (com farda paga pelos amigos) sereno capitalista.

Em segundo lugar, a feição cáustica vem com toda a força do humor macha-diano: “as duas [almas] completam o homem, que é metafisicamente falando, uma laranja”.38 Ao lembrar que o homem é uma laranja, parece que não é mais

possível discutir seriamente a dimensão metafísica dessa discussão inconsistente

nos pareceres. Entramos na ironia, na incongruência entre a elevação do tema

(metafísica) e a imagem rebaixada (laranja). Há duas partes sobrepostas, que pe-dem equilíbrio, mas que têm pesos desiguais. Os negócios miúdos que se mistu-ram ao tema elevado não têm a mesma feição moderna de Baudelaire, tal como estudado por Auerbach.39 O cotidiano não é o de Paris, da cidade moderna, centro

do capitalismo, mas o de um sítio escuso no interior rural do Brasil, entre gali-nhas e escravos.

Talvez possamos resumir o relato de Jacobina como o aprendizado de um ho-mem que descobriu que era, metafisicamente falando, uma laranja. Não se trata de formação, de uma trajetória propriamente dita: “acabava de ser nomeado alfe-res da guarda nacional”. A nomeação não parece vir de conquista, mas de uma distinção concedida a ele e não a outros, assim como o fardamento que foi dado por amigos. Não se trata aqui de especular sobre o que não está narrado, mas de mostrar que o narrador põe ênfase na distinção sem indicar a presença do traba-lho ou da luta para conquistá-la.

37 Conforme apontou Pasta Jr., interessa pensar a especificidade brasileira do duplo. No caso, o

tema das duas almas havia aparecido em Álvares de Azevedo, no prefácio à segunda parte da Lira dos

vinte anos: “É que a unidade deste livro funda-se numa binomia. Duas almas que moram nas

caver-nas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces”. Álvares ecoa Goethe, que é retomado em Esaú e Jacó, pelo Conselheiro Aires, para definir Flora: duas almas em meu seio moram. O nó da questão está no modo como esse problema ganha dimensão brasileira na voz de um narrador como Jacobina.

38 Machado de Assis, Obras completas, op. cit., p. 221.

39 Erich Auerbach, “As Flores do mal e o sublime”, trad. S. Titan Jr. E J. M. Macedo. Inimigo

Rumor, Rio de Janeiro, n. 8. p. 83-100, 2000. Auerbach refere-se ao modo como Baudelaire

prova-velmente chocou seus contemporâneos com relações inusitadas, como a comparação entre o céu e uma tampa de caixão ou panela.

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No ambiente isolado do universo rural, em um sítio escuso e solitário, “o alfe-res eliminou o homem”. Recebido pela Tia Marcolina, Jacobina deixa de ser cha-mado Joãozinho, como dantes, para ser apenas o senhor alferes. A distinção passa a ser tal que ele recebe a melhor peça da mobilha da casa, que sai da sala de visitas para o quarto, o velho espelho. A alma exterior passou a ser os rapapés e as corte-sias, apenas aquilo que o lembrava do posto. No isolamento, chegamos ao trecho central do relato:

Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso que desde logo senti uma grande opressão, alguma cousa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limi-tada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade em suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade domés-tica interrompida.40

Observe-se que, ao preparar o clímax da narrativa, o narrador define sua soli-dão na contraposição aos escravos (espíritos boçais, pérfidos, malvados, velhacos). Na solidão, a perda do reconhecimento dos iguais traz a diminuição da alma, mas os escravos servem ainda de projeção do alferes. Outro aspecto importante é a percepção do domínio do papel social, da farda: “o alferes continuava a dominar em mim”. Vale insistir que a aparência não é materialização da natureza interior, mas outra natureza distinta do homem, que exerce domínio sobre si.

De certo modo, pelo relato, Jacobina mostra como ilusão a busca de unidade do indivíduo. Ilusória, posto que a imagem exterior não só não corresponde à materialização da dimensão interior como tem existência própria e paralela. Essa imagem está presente em outro conto de Papéis avulsos, “O segredo do bonzo”, em que o velho sacerdote, Pomada, relata que descobriu que havia duas existências paralelas. O indivíduo pode existir na solidão, mas pode existir pela opinião dos outros. Apenas a segunda é a que importa; mesmo que o indivíduo não acredite no que diz, os outros devem crer. O melhor exemplo é o nariz metafísico. Ao se-rem desnarigados, Diogo Meireles simula a colocação de outro nariz, invisível e

imaterial. Pela necessidade, os desnarigados são persuadidos a tal ponto da

exis-tência do novo nariz que usam lenço. Voltando a Jacobina, sua descoberta é de que havia duas existências, a pública e a privada, sem que houvesse compromisso entre uma e outra. Em que momento ele descobre? Quando os escravos fogem. Nesse momento, ele descobre que é impossível viver na solidão. Perdendo a base de sustentação dos escravos, o senhor deixa de existir como tal.

Lembre-se da comparação feita por Augusto Meyer, entre o alferes sem farda e a figura emblemática do individualismo moderno, Robinson Crusoé. Depois de fugir de casa, depois de algumas navegações, o naufrágio põe Crusoé em uma si-tuação de radical isolamento. Ele está solitário no limite do mundo civilizado em uma ilha selvagem.

40 Machado de Assis, Obras completas, op. cit., p. 226-227.

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Na opinião da maioria, o mito de Robinson Crusoe se alicerça quase inteiramente naquilo que acontece na ilha, cujo relato ocupa dois terços do primeiro volume da trilogia. A história de Crusoe mostra como um homem comum, ao ver-se completamente só, revela-se capaz de sub-meter a natureza aos seus próprios objetivos materiais, triunfando assim sobre o meio físico.41

Observe-se a figura de Crusoé solitário na ilha. Homem comum, traz dentro de si a razão que permite que aprenda o manejo de instrumentos, através de enge-nho, esforço e perseverança. Metódico e trabalhador, Robinson constrói um mun-do na ilha. De certo momun-do, seria possível dizer que ele apenas reconstrói a civili-zação que traz dentro de si. A força emblemática desse mito é proporcional à capacidade de superação desse personagem que dobra a natureza e o destino por suas próprias mãos. É interessante lembrar que o livro de Daniel Defoe, romancista, é recomendado como leitura para Emílio, acima de Plínio, Buffon e Aristóteles.

O meio mais seguro de nos elevarmos acima dos preconceitos e ordenarmos os juízos de acordo com as verdadeiras relações entre as coisas é colocarmo-nos no lugar de um homem isolado e julgarmos tudo como tal homem deve ele próprio julgar, com relação à sua própria utilidade.42

Rousseau prioriza a estada na ilha, sugerindo que Emílio “pense que ele é o próprio Robinson”.43 O objetivo está posto: mostrar como o homem pode se

bas-tar mesmo na solidão e, mais do que isso, como pode superar os preconceitos e vir a encontrar a verdadeira utilidade das coisas. Valeria ainda retomar também a for-ma como foi lido por Marx e retofor-mado por Ian Watt, for-mas, no momento, cabe ape nas destacar o indivíduo que traz dentro de si a civilização, que consegue construir um mundo à sua volta, pela domesticação da natureza, pela construção de uma casa, em suma, pela capacidade de trabalho. Se fôssemos ficar apenas com Rousseau, caberia também lembrar o esforço reflexivo dos Devaneios de um

cami-nhante solitário. Por fim, não é demais retomar A teoria do romance. O modelo do

romance pressuposto por Lukács44 é a forma biográfica. O indivíduo representado

no romance perde a generalidade do herói da epopeia, representante da comuni-dade, em que a integração com o mundo faz que seja ao mesmo tempo individua-lizado e coletivo, pois sua inserção no todo o define, e seus valores individuais são coletivos. No romance, o indivíduo problemático, inserido no mundo contingen-te, busca o sentido que lhe falta, numa tentativa sempre frustrada de superar a má infinitude, na medida em que conseguisse agregar em si os elementos contingentes à sua volta e o sentido subjetivo e interior, construído em sua solidão. Pela ação

41 Ian Watt, Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson Crusoe,

trad. Mario Pontes, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 157.

42 Jean-Jacques Rousseau, Emílio ou da educação, trad. Roberto L. Ferreira, São Paulo, Martins

Fontes, 1995, p. 233.

43 Machado de Assis, Obras completas, op. cit., p. 233.

44 Georg Lukács, Teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande

épica, trad. J. Marcos M. de Macedo, São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000 (Espírito Crítico).

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ele almeja a superação do isolamento das duas esferas, para chegar ao autoconhe-cimento e articular as diversas vivências na sociedade.

Assim, parece ser o esforço de Machado de Assis, nesse conto, dar voz a uma personagem do universo do Brasil escravocrata, para mostrar como fica aqui o problema da solidão. Esse tema reaparece em Papéis avulsos em pelo menos outros dois contos. Temos o isolamento de Bacamarte, tão distinto do resto de sua comu-nidade e que acaba confinando-se a si mesmo. Ao voltar-se sobre si mesmo, como que o cientista encrenca e perde o poder da análise. Em “Teoria do medalhão”, o pai diz para o filho temer a solidão, que “é oficina de idéias e o espírito deixado a si mesmo pode adquirir tal qual atividade”.45 Na dimensão desenhada por

Ma-chado, o indivíduo teme a solidão, pois pode criar atividade interior que impede o apagamento de si no papel social, no ofício de medalhão. Como aparece em “O segredo do bonzo”, o indivíduo não existe na solidão. Em “O espelho”, o processo é regressivo; na solidão, o indivíduo põe em risco seu papel social. A farda (papel social, medalhão), enquanto dissolução da interioridade, é uma forma de sobrevi-vência no Brasil escravocrata. Mesmo quando dorme, a farda retorna no sonho de Jacobina para que continue a ser alferes.

Qual é o aprendizado do nosso Crusoé, ilhado e perdido no isolamento de um sítio no interior do Brasil? Ele descobre a natureza dividida de sua alma. Primeiro, os familiares e os amigos; depois Tia Marcolina e seu cunhado; por fim, os escra-vos lhe davam de volta a existência apenas externa. Sem ela, não havia nada por dentro. Sem a presença dos escravos, resta uma matéria informe. O clímax do conto parece estar na fantasmagoria final. Talvez fosse interessante lembrar o nú-mero de vezes em que aparecem cenas esdrúxulas, delírios, imagens inusitadas em Machado. No caso, estamos lidando com uma apresentação que parece didáti-ca. Através de Jacobina, Machado traz o tema do fantástico de Hoffmann, da pre-sença do duplo, do autômato.

Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol

abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho

relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow,

e topei este famoso estribilho: Never, for ever! – For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: – Never, for ever! – For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do

abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio

era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. [...]

Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco

mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser

ir-mão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: – o sono, eliminando

a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me

orgu-lhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam

45 Machado de Assis, Obras completas, op. cit., p. 89.

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alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver.46 (grifos meus)

A citação é longa, mas vale para mostrar a dimensão da solidão. No caso, pa-rece-me, algo interessante é a descrição do movimento do tempo, medido pelo relógio. Na solidão de Jacobina, o tempo perde a ideia de passagem, de fluxo, e passa a se assemelhar à sua própria negação, à eternidade. No movimento pendu-lar temos a tradução não da passagem do tempo, mas da imobilidade eterna, ape-nas o never, for ever (nunca, para sempre; não ser, ser). A sensação de estranheza agrega-se à perda de vitalidade, uma percepção do tempo parado: algo da condi-ção do morto.

Em sua ambivalência incessante está submetido ao regime da formação supressiva. Tal é o regime da sua paradoxal síntese negativa, se o olharmos bem, vemos que esse é o regime limite, em que a formação do sujeito – ou, se quiser, a relação sujeito-objeto, na base de tudo – se dá na passagem mutuamente supressiva entre um e outro, ou mais precisamente, no limite entre ambos, naquele instante infinitesimal e interminável em que o pêndulo das ambivalências en-contra-se suspenso no exato meio de seu arco oscilatório, instante inapreensível em que o mo-vimento é parada, o mesmo é o outro, o ser é o não-ser.47

José Antônio Pasta Jr. descreve a oscilação presente em Macunaíma, preso no movimento de báscula entre ser e não ser. Podemos surpreender em um detalhe de “O espelho” algo semelhante (never, for ever), de tal modo que o tempo perde o fluxo linear, preso ao vai-vem pendular. O leitor é posto na desorientação de quem não sabe qual linha seguir, se a mobilidade da báscula ou se imobilidade do vértice que a prende.

Não há interiorização do tempo como mudança e transformação. Ao contrá-rio, o tempo define-se nesse caso apenas na medida em que os compromissos so-ciais estão postos. E mais especificamente no alferes, isso é apenas uma casca. Não está formalizado como processo de interiorização da experiência. De certo modo, em um universo escravocrata, talvez seja possível dizer que não haja a constitui-ção da subjetividade, por que não é possível o trabalho metódico e racionalizado de Crusoé. Talvez seja possível ampliar e dizer que não há trabalho do pensamento. Em outros termos, o processo de subjetivação da experiência necessita do traba-lho subjetivo. Assim, o enfrentamento de uma situação extrema de solidão impõe ao indivíduo a necessidade de se voltar para si. Conta apenas consigo mesmo, tendo a chance de refletir sobre sua própria condição. No caso, Jacobina para na pers pectiva encantada, ao descobrir que é impossível ver sua imagem no espelho, pois não há mais o que ver.

De certo modo, como indivíduo moderno à brasileira, regride ao paradoxo imo bilizante de estar vivo e se sentir morto, de ser homem e parecer autômato,

46 Idem, ibidem, p. 228-229

47 José Antônio Pasta Junior, “Tristes estrelas da ursa Macunaíma”, in J. A. Avancini, Mário de

An drade, Porto Alegre, UE, 1993, p. 27-32.

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Referências

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