• Nenhum resultado encontrado

Um depósito sagrado? A inserção dos atos judiciários nos livros santos da Alta Idade Média (séc. IX-XI)

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Um depósito sagrado? A inserção dos atos judiciários nos livros santos da Alta Idade Média (séc. IX-XI)"

Copied!
15
0
0

Texto

(1)

67

UM DEPÓSITO SAGRADO? A INSERÇÃO DOS ATOS JUDICIÁRIOS NOS LIVROS SANTOS DA ALTA IDADE MÉDIA (SÉC. IX-XI)

A SACRED DEPOSITORY? THE INSERTION OF JUDICIARY ACTS IN THE HOLY BOOKS OF THE HIGH MIDDLE AGES (CENTURIES IX-XI)

Laurent Jégou

Université Paris I (Panthéon-Sorbonne)

Laboratoire de Médiévistique Occidentale de Paris (LAMOP) Tradução

André Miatello

_________________________________________________________________________________________________________

Resumo: Este artigo analisa a presença de documentos jurídicos e/ou diplomáticos inseridos em códices de livros sagrados, como manuscritos da Bíblia, durante a Alta Idade Média. A prática de compilar, num só codex, textos de naturezas diversas e, às vezes, contrastantes, era bastante comum, mas chama a atenção a abundância de inserções, em textos sagrados, dos atos judiciários, como as convenientiae, para os séculos IX e X, em regiões diversas, como os reinos de França, Borgonha, Inglaterra e Germânia. A partir de um estudo codicológico de trinta manuscritos, pretende-se discutir, em primeiro lugar, os motivos para a inserção dos atos judiciais em manuscritos sagrados, parcial ou integralmente, e, em segundo lugar, se a inserção foi intencional ou incidental. Tal

esforço proporciona uma maior

compreensão do lugar do escrito (literacy), do sagrado e do belo na sociedade da Alta Idade Média, bem como a natureza das relações sociais presentes nos atos inseridos em textos sagrados.

Palavras-chave: Manuscritos, Atos Judiciais, Textos Sagrados.

Abstract: This paper analyzes the presence of legal and/or diplomatic documents inserted in codices of sacred books, as manuscripts of the Bible, during the High Middle Ages. The practice of compiling, in just one codex, texts of different and, sometimes, contrasting natures, was quite common, but draws attention the amount of inserts in sacred texts, of judicial acts, such as the convenientiae, during centuries IX and X, in several regions such as the kingdoms of France, Burgundy, England and Germany. From a codicological study of thirty manuscripts, it is intended to discuss, firstly, the reasons for the insertion of the judicial acts in sacred manuscripts, partially or fully, and, secondly, if the insertion was intentional or incidental. This effort provides greater understanding of the place of writing (literacy), of the sacred and the beautiful in the early Middle Ages, as well as the nature of the social relations present in the acts inserted in sacred texts. Keywords: Manuscripts, Judicial Acts, Sacred Texts.

__________________________________________________________________________________________________________

Recebido em: 27/04/2016 Aprovado em: 19/07/2016

(2)

68

Introdução

O monumento da arte irlandesa medieval, o Livro de Kells, foi objeto de uma edição digitalizada de grande qualidade1. Essa ferramenta permite observar que essa

Bíblia, ricamente adornada com iluminuras, contém várias transcrições de atos judiciários, registrados nos anos 1030-1160. Atos cuja qualidade precária contrasta com o restante do volume, composto de um texto escriturístico suntuosamente ilustrado2. A inserção de

documentos jurídicos em um códex de tal valor artístico impressiona, mas um levantamento mais aprofundado nos livros sacros da Alta Idade Média mostrou que essa prática não tinha nada de excepcional: encontram-se numerosos atos diplomáticos inseridos nos textos escriturísticos e patrísticos, e antes de tudo, nas Bíblias compostas entre os séculos VI e XI. Ainda mais surpreendente, os códices que serviram a esses registros de ações jurídicas figuram entre os manuscritos mais admiráveis e mais preciosos da Alta Idade Média. Neles se encontram consignados textos de diversas naturezas (cartas, textos narrativos, excertos de necrológios, orações, fórmulas de maldição...), mas, antes de tudo, os atos judiciários ou extrajudiciários, e mais frequentemente as convenientiae ou os juramentos que foram transcritos nos séculos X e XI.

O corpus sobre o qual repousa esta pesquisa é limitado a três dezenas de manuscritos dos reinos da França e da Borgonha, porém esses usos diplomáticos se verificam na Irlanda, na Inglaterra ou no reino germânico. O exercício exigiria um trabalho de maior amplitude, mas ainda é difícil estabelecer uma lista exaustiva das inserções dos atos. Com efeito, os códices disseminaram-se nas bibliotecas da França, da Europa e até mesmo dos Estados Unidos; por outro lado, é indispensável consultar os manuscritos propriamente ditos, ou ao menos, suas reproduções para que se defina a natureza desses documentos. Além disso, nenhum estudo global sobre essa documentação foi realizado até agora, ainda que esta prática seja conhecida desde tempos passados3.

Desde a metade do século XVIII, em seu Novo tratado de diplomática (1750), Tassin e

1 The Book of Kells, Trinity College Library Dublin, DVD-ROM, éd. B. Simpson, 2008.

2 HERBERT, M.. Charter materials from Kells. In: O’MAHONY, F.. The Book of Kells. Proceedings of a

conference at Trinity College Dublin, 6-9 septembre 1992. Dublin: Scolar Pr., 1994, p.60-77.

3 Jean-Loup Lemaître consagrou um estudo à questão da presença dos atos diplomáticos nos livros

litúrgicos por ocasião do colóquio sobre os Cartulários (1983), porém ele focalizou os livros litúrgicos da Baixa Idade Média [LEMAÎTRE, J.-L.. Les actes transcrits dans les livres liturgiques. In: GUYOTJEANNIN, O. (dir.), MORELLE, L. (dir.), PARISSE, M. (dir.). Les cartulaires. Paris: École des Chartes, 1993 (Mémoires et documents de l’École des Chartes, 39), p. 59-75].

(3)

69

Toutain sublinhavam que as páginas deixadas em branco nos manuscritos “para conservar escrita na sua beleza” são carregadas de marcas, de diplomas, de fragmentos de autores antigos. Eles explicam essa prática pelo fato de que os arquivos dos mosteiros eram considerados como “depósitos públicos” 4.

Esses atos judiciários devem ser analisados, primeiramente, em sua dimensão diplomática e codicológica. Importa compreender como esses atos foram encontrados íntegros nos livros sacros, sendo que o objetivo primeiro é saber se eles foram colocados intencionalmente ou incidentalmente. Em seguida, esse corpus documentário pode ser analisado através de uma grade de leitura antropológica. Esses atos oferecem uma luz original sobre o lugar do escrito (literacy), do sagrado e do belo na sociedade da Alta Idade Média. Eles nos ensinam igualmente a natureza das relações sociais tecidas por ocasião do registro desses atos nos livros sacros. Convém ver qual interesse os litigantes encontravam ao inserir as cartas nos livros sacros, compreender por que eles escolheram a Bíblia e, sobretudo, as mais admiráveis dentre elas, para registrar essas ações jurídicas.

1. O corpus

Entre as inscrições manuscritas registradas nos Evangelhos, textos patrísticos ou livros litúrgicos, três categorias mereceram nossa atenção.

A primeira é constituída de juramentos copiados ou inseridos no interior de um códex. Foi assim que o texto da Paz de Deus, difundido em 1024, na diocese de Cambrai, pelo bispo Geraldo I (1012-1051), conservou-se numa coleção de textos hagiográficos provenientes da abadia de Saint-Vasst de Arras5. Outro juramento de paz, emprestado pelo arcebispo de Viena (França) pelo conde Humberto de Brancas Mãos, nos anos 1030, é conservado em uma Bíblia vienense do século X, conservada em Berna, entre outras adições do século XI: uma lista episcopal e o relato de uma profecia de São Legério. O juramento, inicialmente transcrito no verso de um fólio de guarda, foi, em seguida, retirado e inserido no f°248, entre dois cadernos do Livro dos

4 TASSIN, R.-P., TOUTAIN, Ch.-F., BAUSSONNET, J. B.. Nouveau traité de diplomatique. Paris, 1750,

IV, p.475-476.

(4)

70

Macabeus6. Finalmente, a Biblia oferecida por Carlos, o Calvo, por ocasião de seu coroamento imperial, em 875, ao Papa João VIII, foi conservada na biblioteca papal durante vários séculos. Ao fim do século XI, Gregório VII mandou fazer uma cópia e assinalar o juramento vassálico feito pelo chefe normando Roberto Guiscardo7.

Uma segunda categoria de documentos é composta por registros de restituições de bens eclesiásticos a uma igreja. Um bom exemplo é a a Biblia de Teodulfo. Trata-se de um dos manuscritos carolíngios mais célebres, inicialmente, em razão das ambições de seu autor, que procurou reconstituir a Bíblia hebraica, mas também por causa da utilização de fólios purpúreos e de letras de ouro e de prata. No final do volume, entre o final dos Evangelhos e o cólofon, foi transcrito, no século XI, um ato judiciário através do qual o bispo Odolrico (1021-1035) atesta a restituição de uma igreja feita por um cônego de Orléans, Azinério, em 10258.

Uma terceira categoria é composta por atos que pontuam a resolução de um conflito. Uma notícia judiciária de 941, que é o mais antigo ato episcopal de Cambrai, foi conservada em uma coleção de textos patrísticos e canônicos9. Da mesma forma, vários volumes do

acervo da Biblioteca de Santo Amand-Elnone guardam atos que registram a resolução de conflitos que opuseram os abades a seus vizinhos laicos ao longo dos anos 1060-108010.

6 Bern. A 9. Sobre esse manuscrito, DE MANTEYER, G.. La paix en Viennois (Anse [17 juin ?] 1025) et

les additions à la Bible de Vienne (ms. Bern. A 9), Bulletin de la Société de statistique, des sciences

naturelles et des arts industriels du département de l’Isère, XXXIII (= 4e s., VII), 1904, p.87-189, com

transcrição do texto: p.91-98. Sobre o contexto de redação do juramento, DUCOURTHIAL, C.. Géographie du pouvoir en pays de Savoie au tournant de l’an Mil. In: GUILLERE, Ch. (ed.), POISSON, J.-M. (ed.), RIPART, L. (ed.), DUCOURTHIAL, C. (ed.). Le royaume de Bourgogne autour de l’an Mil. Chambéry: Editions de L’université de Savoie, 2008, p.231-232.

7 Roma, abbazia di San Paolo fuori le mura, 1, f°334 v°. Sobre esse manuscrito, CARDINALI, M. (ed.). La

Bibbia carolíngia. Cidade do Vaticano: Edizioni Abbazia San Paolo, 2009; ARNALDI, G. (ed.). Commentario storico, paleografico, artistico, critico della Bibbia di San Paolo fuori le mura (Codex membrananceus saeculi IX.). Rome: Istituto poligrafico e Zecca dello Stato/Libreria dello Stato, 1993.

Sobre o contexto de redação do juramento, MANSELLI, R.. Roberto il Guiscardo e il papato. In: CENTRO DI STUDI NORMANNO-SVEVE. Roberto il Guiscardo e il suo tempo. Atti delle prime giornate

normanno-sveve, Bari, 28-29 maggio 1973. Bari: Edizioni Dedalo, 1975, p.183-201.

8 BNF Lat. 9380. 9 BM Cambrai 485.

10 BM Valenciennes 548; BM Valenciennes 33, BM Valenciennes 148. Os atos são editados em:

PLATELLE, H.. La justice seigneuriale de l’abbaye de Saint-Amand: son organisation judiciaire, sa

procédure et sa compétence, du XIe au XVIe siècle. Louvain: Bureaux de la R.H.E./Editions

Béatrice-Nauwelaerts/Publications Universitaires de Louvain, 1965 (Bibliothèque de la Revue d’Histoire ecclésiastique, 41), p.418-427. Os manuscritos podem ser acessados no seguinte endereço: http://bookline-03.valenciennes.fr/bib/fondsvirtuels/ Cataloguemanuscrits /catmas.asp.

(5)

71

A inserção dos atos não se limita a esses três tipos de documentação que definimos para a nossa análise. Por exemplo, o codex chamado Primeira Bíblia de Saint-Marcial de

Limoges, outro monumento da arte carolíngia, compreende, inscritos nas páginas deixadas

em branco pelo copista, uma carta do papa João XIX aos bispos de França (1031) (f°130), textos reconhecendo a apostolicidade de São Marcial (942) (f°219 v°), uma longa fórmula de maldição (f°220), um falso diploma de Luís, o Piedoso (f°221 v°), atos de restituições de propriedades a São Marcial (f° 221 v°), prosas litúrgicas (f°222)11, etc. Curiosamente, figuram nos diferentes manuscritos poucos diplomas ou atos de doação, embora constituam o tipo mais recorrente de ato diplomático. Ao contrário, os atos mais numerosos são os documentos de natureza judiciária, datados em sua maioria da segunda metade do século XI.

2. Análise codicológica

O exame codicológico dos volumes analisados conduz a descartar de nossa investigação um certo número de atos, inseridos nos códices de maneira puramente fortuita. Com efeito, uma parte das cartas foi registrada em pergaminhos que foram empregados como fólios de proteção, para proteger a primeira e a última folha do codex do contato da encadernação. Esses atos utilizados para proteger o texto foram quase sempre conservados apenas sob a forma de fragmentos, cortados e furados para os adaptar ao formato dos livros que eles deveriam proteger. A conventio assinada em 1105 entre o abade Hugo de Saint-Amand e um certo Ansbaldo foi conservada no tratado De

opifício Dei, de Lactâncio, copiado no século IX12. O ato é fragmentário; ele foi cortado à direita para ser ajustado ao formato do livro; as primeiras palavras da parte esquerda são ilegíveis, pois o pergaminho foi inserido na calha da encadernação quando ela foi substituída no século XII. Outro ato sofreu o mesmo destino. Trata-se de um acordo de paz concluído entre o abade Hugo de Saint-Amand e o castelão de Valenciennes, que figura nos Moralia in Job, de Gregório Magno. A carta evoca os múltiplos procedimentos judiciários e extrajudiciários que utilizaram os monges para dobrar o seu procurador, culpado de múltiplas “injúrias” sobre os domínios da abadia. Em seguida,

11 BNF Lat. 5-II. Sobre esse manuscrito e as condições de sua produção: GABORIT-CHOPIN, D.. La

décoration des manuscrits à Saint-Martial de Limoges et en Limousin du IXe au XIIe siècle. Paris-Genève:

Ecole Nationale des Chartes, 1969, p.176-177.

(6)

72

relata-se detalhadamente o ritual de humilhação realizada pelo castelão diante do altar13. Qualquer que tenha sido o interesse do texto, as razões que motivaram a sua conservação são de ordem material. O monge que compôs a encadernação, em busca de um pergaminho, recorreu a esse ato de enorme dimensão, que ele próprio teve de cortar para adaptá-lo aos fólios do códex, ou seja, 455mm x 290mm. A divisa quirográfica, colocada à esquerda, serviu para consolidar a encadernação do manuscrito. Para demonstrar que não havia nenhuma relação com o conteúdo da obra, e a fim de que não desbotasse o brilho, os monges puseram a carta ao avesso, no verso (a escrita do lado da encadernação), de tal forma que ela não aparece frente ao texto de Gregório.

Um ato de 941 também se beneficiou de uma conservação fortuita. Essa notícia judiciária é de grande interesse para a história da instituição judiciária e para o conhecimento das realidades sociais na metade do século X. Ela registra a resolução do conflito orquestrado pelo bispo imunista Fulberto (934-956) entre um de seus vassalos, Rainério, e uma mulher que o cavaleiro reivindicava como sua serva. Mais uma vez, se o ato foi conservado, não é por causa de seu valor documental, mas somente porque serviu de cobertura a uma coleção de textos patrísticos e canônicos14.

Felizmente, todos os atos inseridos nos textos sacros não respondem a essas finalidades utilitárias. Em outras ocasiões, os escribas exploraram os espaços em branco deixados no texto, seja no início do volume, seja no fim, seja entre as diferentes seções, para registrar os atos que eles julgavam importantes de serem conservados. Um caso como esse se encontra, por exemplo, na Bíblia de Teodulfo entre o final do texto do Evangelho e o explicit em verso, redigido em maiúsculas de ouro sobre fundo púrpura15. A Bíblia de Teodulfo é composta de 347 fólios. No fólio 346 vº, entre o fim do texto e o explicit, foi transcrito, no século XI, um ato pelo qual o bispo Odolrico de Orléans atesta a restituição feita à catedral desta cidade, por volta

13 BM Valenciennes 33. Sobre a resolução de conflitos entre os monges de Saint-Amand e seus vizinhos

laicos: PLATELLE, H.. La justice seigneuriale de l’abbaye de Saint-Amand: son organisation judiciaire,

sa procédure et sa compétence, du XIe au XVIe siècle. Louvain: Bureaux de la R.H.E./Editions

Béatrice-Nauwelaerts/Publications Universitaires de Louvain, 1965 (Bibliothèque de la Revue d’Histoire ecclésiastique, 41); VANDERPUTTEN, S. Monks, knights, and the enactment of competing social realities in eleventh- und twelth- century Flanders, Speculum, v. 84, 2009, p.582-612.

14 BM Cambrai 485. Ver DESPY, G. Serfs ou libres? Sur une notice judiciaire cambrésienne de 941, Revue belge

de philologie et d’histoire, tomo 39, fac. 4, 1961, p.1127-1143 (edição e reprodução do ato, p.1142-1143).

15 BNF Lat. 9380, f°346 v°. Sobre a Bíblia de Teodulfo: DELISLE, L. Les Bibles de Théodulphe,

(7)

73

de 1025, de uma igreja injustamente tomada por Azinério, cônego de Orléans. Entre as subscrições do ato figuram o rei Roberto, o Piedoso, seu filho Hugo, o arcebispo Gauzelino de Bourges, os bispos Fulberto de Chartres, Beraldo de Soissons, Amélio de Albi e Garino de Beauvais, o que leva a crer que o ato foi composto quando do concílio de Natal, de 1022, que condenou vários cônegos de Orléans acusados de heresia16. Entre eles, Azinério, que demonstrou arrependimento e obteve o perdão de seu bispo. O documento atesta, além disso, os rancores acumulados no seio do cabido após a condenação sangrenta de 1022, pois o nome do bispo Odolrico (Odolricus

gratia Dei sanctae Aurelianensis ecclesiae episcopus) foi posteriormente riscado. A

restituição de Azinério é o único ato registrado na Bíblia de Teodulfo, que tem por característica o fato de ser marcada por numerosos espaços brancos, deixados intencionalmente pelo autor com a finalidade de receber os comentários sobre os textos evangélicos. O bispo Odolrico não hesitou em utilizar a obra mais preciosa do tesouro, oferecida por Teodulfo à sua igreja no século IX, para transcrever o ato episcopal. Entretanto, ele evitou desnaturalizar a beleza ou a pureza da obra, posto que este ato foi colocado no fim do volume.

3. Os textos escriturísticos e patrísticos, “guardiões sagrados”

É bem verdade que, na Idade Média, o pergaminho era raro e caro, porém, as intenções dos escribas não se reduziam a explorar os manuscritos para neles preencher os brancos deixados pelos copistas. O desejo de ver inscrever o ato num livro sagrado é, algumas vezes, claramente indicado pelo autor. Assim, um ato transmitido numa primeira parte do cartulário da abadia de São Pedro de Chartres, chamado Livro de

Haganon, registra um ato do abade Arnulfo (1022-1033), datado de 1033. Nesse ato, o

abade pede que seja celebrada a memória de um benfeitor da abadia, o arcebispo Roberto de Rouen, que restituiu duas igrejas a São Pedro de Chartres: “a fim de que esta recompensa permaneça firme nos séculos, nós confirmamos por nossos nomes e nossas mãos e ordenamos que seja escrito no nosso texto de ouro do santo Evangelho,

16 BAUTIER, R.-H.. L’hérésie d’Orléans et le mouvement intellectuel au début du XIe siècle. Documents

et hypothèses, In: MINISTERE DE L'ÉDUCATION NATIONALE. COMITE DES TRAVAUX HISTORIQUES ET SCIENTIFIQUES (ed.) Enseignement et vie intellectuelle (IXe-XVIe siècle). Actes du

(8)

74

para nossos sucessores, de tal sorte que esse testemunho se torne inviolável” 17. As motivações do abade Arnulfo não eram guiadas por causas materiais e econômicas. A escolha da Bíblia para receber este ato era deliberada, justificada por motivações espirituais. Além disso, poucos indivíduos tinham autoridade para inscrever uma ação jurídica em um texto sagrado. A decisão emanava do bispo ou do abade, isto é, de clérigos dotados de uma autoridade sagrada, que agiam em nome de sua igreja, na medida em que a obra pertencia ao tesouro ou à biblioteca da igreja, não ao seu titular.

Esses atos não empenhavam unicamente o bispo, mas o conjunto dos protagonistas envolvidos no ato. Os atos podem, então, ser analisados à luz dos trabalhos antropológicos referentes à economia do dom. A inserção de uma transação, de uma restituição patrimonial ou de um juramento de paz num livro sagrado engendraria uma relação singular entre os atores, que consolidava a relação de amicitia nascida por ocasião do regulamento do conflito18. Essa exaltação da memória pelos estabelecimentos eclesiásticos se observa através

dos atos transcritos nos livros da Biblioteca de São Marcial de Limoges. No século XI, relações de amicitia ligavam os viscondes de Limoges à abadia, sede da necrópole dinástica e centro da celebração familiar. A memória de Ademar II (1048-1090) foi celebrada com maior intensidade do que a de seus predecessores, em razão de sua decisão, tomada em 1062, de ceder a abadia a Cluny e renunciar aos direitos aos que ele poderia reivindicar, à exceção de uma renda anual de 200 sólidos, cobrada no dia de São Yirieix (26 de agosto)19. Essa ação reformadora explica sem dúvida a inscrição de Ademar II no segundo necrológio de São Marcial, composto na segunda metade do século XI, no dia 15 de outubro. É o mesmo ímpeto

17 “Et ut haec reconpensatio firma permaneat in secula, manibus nostris et nominibus confirmavimus, et in

nostro aureo textu sancti Evangelii, ad inviolabile testimonium, posteris nostris scribi mandavimus”:

GUERARD, B. (ed.). Cartulaire de l’abbaye de Saint-Père de Chartres. Paris: Imprimerie de Crapelet, 1840, livro VI, c.5 (1033), p.116-117.

18 Sobre as aplicações e as interpretações do esquema maussiano na medievística, MAGNANI, E. Don et

sciences sociales. Théories et pratiques croisées, Dijon: Editions de l'Université de Dijon, 2007; ALGAZI,

G. (ed.) Negotiating the gift. Pre-modern figurations of exchange, Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2003 (Veröffentlichungen des Max-Planck Instituts für Geschichte, 188); BIJSTERVELD, A.-J. The medieval gift as agent of social bonding and political power: a comparative approach. In: COHEN. E. (ed.), DE JONG, M. (ed.) Medieval Transformations. Texts, Power, and Gifts in Context. Leiden-Boston-Cologne: BRILL, 2001 (Cultures, Beliefs and Traditions. Medieval and early modern peoples, 2), p.123-156; HANNIG, J. Ars donandi. Zur Ökonomie des Schenkens im früheren Mittelalter. Geschichte in

Wissenschaft und Unterricht, 37, 1986, p.149-162.

19 ROBLIN, V. (ed.) Recueil des actes des vicomtes de Limoges. Genève: Librairie Droz, 2009, n°24,

p.134-136. Sobre as relações entre o poder viscontal e os monjes, DELHOUME, D. Les vicomtes de Limoges et l’abbaye: difficultés et enjeux d’un pouvoir urbain (Xe-XIVe s.). In: ANDRAULT-SCHMITT, Cl. (ed).

Saint-Martial de Limoges. Ambition politique et production culturelle (Xe-XIIIe siècle). Limoges: Presses

(9)

75

reformador que explica que outro ato viscondal tenha sido transcrito em nada menos do que seis códices diferentes da biblioteca da abadia20. Através desse ato datado de 1077, o visconde, sua esposa e seus filhos Pedro e Ademar remetem à abadia dez libras dos direitos do mosteiro. Essa soma corresponde aos 200 sólidos (ou seja, dez libras) que o visconde tinha reservado para si quando da cessão de São Marcial a Cluny. O alcance desse ato é superior ao do ato de 1062, pois, através dessa restituição, a abadia cruzava uma etapa suplementar na aquisição da libertas. Sem dúvida, essa é a razão pela qual os monges copiaram excertos dessa notícia em vários locais, em textos de grande valor espiritual e estético.

O ato de 1033, que figura no Cartulário de São Pedro de Chartres, deve ser colocado no seu contexto de redação. Através deste ato, o abade Arnulfo pede que, em honra do arcebispo de Rouen, Roberto, um pobre seja alimentado cada dia e que se lhe lavem os pés; que um vivo seja sustentado enquanto um morto é sepultado; que um salmo seja cantado nos dias de festa; que uma missa seja rezada a cada semana em seu nome, enfim, que esses favores sejam inscritos no texto do Evangelho. A transcrição no livro sagrado constitui, então, um contra-dom espiritual, respondendo à restituição da igreja de São Dionísio de Fontenay e do priorado de Pedro de Jusiers, realizada pouco tempo antes pelo arcebispo, que detinha esses bens ilegitimamente. A carta de restituição figura em outros lugares no cartulário; ela precede imediatamente ao ato de Arnulfo21. A ação do abade ultrapassa o esquema de interpretação tradicional aplicado às restituições de altares, pois o contra-dom espiritual, sob forma de esmolas ou missas, é sublimado pela inscrição do gesto episcopal no Livro.

As propriedades restituídas, as pazes negociadas, constituem um fundamento da identidade de uma igreja, ao mesmo título que as relíquias, os livros ou o patrimônio fundiário. Por essa razão, tanto quanto o patrimônio predial ou o tesouro, convinha preservá-los, conservá-los e comemorá-los. Essa identidade eclesial, associando memória temporal, espiritual e cultural, se observa desde o começo do século IX, em Freising. Com efeito, à iniciativa do bispo Hitto (811-835), foi estabelecida num mesmo élan uma empresa de colação dos arquivos da igreja (Liber traditionum), de restauração dos

20 BNF Lat. 1834, f°151 v° ; BNF Lat.1960 f°2 r° ; BNF Lat. 1969, f°211 v° ; BNF Lat. 2157 f°192 v° ;

BNF Lat. 2262 f°1 ; BNF Lat. 2704 f°1 r°. L’acte est édité dans ROBLIN, V. (ed.) Recueil des actes des

vicomtes de Limoges. Genève: Librairie Droz, 2009, n°41, p.158-159.

21 GUERARD, B. (ed.). Cartulaire de l’abbaye de Saint-Père de Chartres. Paris: Imprimerie de Crapelet,

(10)

76

manuscritos da Sagrada Escritura, de confecção de manuscritos litúrgicos e de redação da Lex Baiuvariorum22. O bispo pretendia, assim, consolidar o patrimônio predial,

litúrgico, espiritual e identitário da igreja de Freising, no momento em que a Bavária se transferia para a órbita carolíngia. Assim, as realidades patrimoniais não são fundamentalmente estranhas às realidades escriturárias ou litúrgicas, posto que a terra, como os textos conservados no tesouro da igreja, eram os depositários da identidade eclesial. Essas considerações patrimoniais e identitárias impregnam a Primeira Bíblia de

S. Martial de Limoges (BNF Lat. 5). Os atos conciliares reconhecendo a apostolicidade

de São Martial foram inseridos nessa obra-prima da arte medieval, a qual havia sido objeto de ásperos debates e de contestações23. A transcrição desses instrumentos de propaganda no interior dessa obra notável (na sua forma como no seu conteúdo) oferecia uma garantia suplementar de legitimação da autoridade do santo protetor da abadia.

A inserção de atos judiciários nos livros santos era igualmente movida por motivações de ordem jurídica. Compreendem-se facilmente essas finalidades quando se tratam de fórmulas de juramento, como os juramentos de Paz de Deus que foram conservados nos manuscritos de Douai ou de Berna, pois os livros serviam à prestação do juramento24. Inserir nesses livros a fórmula a ser pronunciada revestia-se de uma dimensão prática e devia incitar os juramentados a honrar seu compromisso. Além disso, essa forma de conservação oferecia garantias de aplicação posto que toda falta com relação ao conteúdo do ato se assemelhava a uma falta para com o texto sagrado que o acompanhava, junto ao qual a carta era, doravante, indissociável.

22 GEARY,P.. La mémoire et l’oubli à la fin du premier millénaire. Paris: Aubier, 1996, p.144-147;

BISCHOFF, B. Die südostdeutschen Schreibschulen und Bibliotheken in der Karolingerzeit, 1. Die

bayrischen Diözesen, Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1974, p.58-130.

23 LANDES, R. Relics, apocalypse and the deceits of history. Ademar of Chabannes, 989-1034. Cambridge

Mass.: Harvard University Press, 1995 (Harvard historical studies, 117), p.197-281.

24 Verifica-se o juramento sobre a Bíblia, mas ele aparece raramente nas fontes, que amiúde sublinham o

juramento prestado sobre o altar. Um exemplo de juramento sobre a Bíblia é oferecido pelas fórmulas visigóticas: Formulae visigothicae, n°39 (conditiones sacramentorum) In: ZEUMER, K. (ed.) Formulae

merowingici et karolini aevi, Hanover: MGH, 1886 (M.G.H., Formulae), p. 592. Foram conservados

também a promessas de fidelidade prestada pelo papa Eugênio II a Luís o Piedoso (824) [Constitutio

romana (824), BORETIUS, A. (ed.) Capitularia regum Francorum. Hanover: MGH, 1883 (M.G.H., Capitularia, 1), p.324] e o juramento de Theutberge pronunciado pouco depois do repúdio de Waldrade

por Lotário II [Relatio de Theutbergae receptione scripta. In: BORETIUS, A., KRAUSE, V.. Capitularia

regum Francorum, Hanovre: MGH, 1897 (M.G.H., Capitularia, 2), p.468-469]. Pode-se igualmente citar

o caso do manuscrito BM Tours 22, evangeliário de bela lavra, redigido em letras douradas, no interior do qual uma mão do século XII inscreveu, no f°227 v°, a fórmula de juramento prestado pelos reis de França (de Luís VII a Luís XIV), como abades e cônegos da igreja de São Martinho de Tours.

(11)

77

A intenção primeira não era uma utilização dessas cartas e do livro que as continha como modo de prova judiciária, na medida em que o escrito ocupava apenas uma função secundária na economia da prova. Outrossim, fonte alguma faz menção de algum codex ou mesmo de uma coleção de atos (libri traditionum, cartulários) que tinha sido apresentado diante de uma assembleia judiciária. A autoridade desses atos estava alhures; ela residia no valor social atribuído à Bíblia, e numa certa medida, aos textos patrísticos, numa sociedade de Alta Idade Média. Se se utilizou a Bíblia, é porque ela representava a Autoridade suprema, “lugar de identidade cristã”, uma “norma intangível, inexpugnável e marcada por um sinal sagrado”25. A inscrição de um ato judiciário numa Bíblia ou num livro precioso constituía

um meio de conservação excepcional, assegurando que a decisão registrada beneficiar-se-ia do cuidado e da proteção devidos aos livros sagrados e não poderia ser destruída.

A preservação dos textos sagrados no tesouro da igreja oferecia uma garantia complementar. O tesouro, articulado em torno das relíquias do santo padroeiro, constituía um depósito sagrado, mas também uma vitrine do poder eclesiástico, testemunho da prosperidade e do prestígio da igreja26. Ali se colocavam as relíquias, é certo, os

instrumentos litúrgicos, as peças de ourivesaria, os tecidos preciosos, mas também os manuscritos, como o demonstram os inventários dos tesouros, que foram, também eles, transcritos frequentemente nos livros dos Evangelhos27. A inserção dos atos diplomáticos nos Evangelhos conjecturava uma conservação no tesouro, ao contato com as relíquias, as quais irradiavam e envolviam o conteúdo do tesouro sacralizado. O contato com os objetos sagrados recompensava, o que explica que, em outras ocasiões, algumas cartas eram conservadas no próprio interior dos relicários28.

4. O alcance espiritual de uma ação jurídica

A inscrição de um ato em um evangeliário ou em algum outro texto sagrado devia assegurar a preservação da memória da ação jurídica registrada, numa perspectiva

25 LOBRICHON, G. La Bible au Moyen Âge, Paris: Picard, 2003, p.18-27.

26 PALAZZO, E. Le livre dans les trésors du Moyen Âge. Contribution à l’histoire de la memoria

médiévale, Annales Histoire Sciences Sociales, a. 52, n. 1, 1997, p.93-118.

27 Os casos são encontrados em Quedlinbourg (em um evangeliário de pequeno formato) ou em

Saint-Bavon de Gand (em um evangeliário do século IX): BISCHOFF, B. Mittelalterliche Schatzverzeichnisse, 1. Von der Zeit Karls des Grossen bis zur Mitte des 13. Jahrhunderts. Munich: Prestel, 1967, n°75 e 28.

28 CLANCHY, Michael T. From memory to written record. England, 1066-1307. Oxford-Cambridge:

(12)

78

escatológica29. Assim conservada e colocada sob o selo do sagrado, a convenientia, o regulamento judiciário, adquiria uma validade incontestável, bem como uma dimensão mágica30. Outros usos diplomáticos em vigor nos séculos X e XI respondiam às mesmas necessidades de sacralidade: o recurso ao crisma na invocação dos atos31, o grande emprego de citações bíblicas nos preâmbulos32, a colocação do ato sob a invocação divina, o recurso às cláusulas cominatórias (cláusulas de maldição ou de excomunhão), a utilização de preces como divisas quirográficas33. Essas garantias sagradas não tornavam o ato irrefragável por si. Ao contrário, constata-se que os diversos usos se generalizam nos séculos X e XI. Eles atestam a dificuldade dos autores de fazer respeitar as decisões inscritas nas cartas. Desse ponto de vista, a cronologia dos atos transcritos nos textos sagrados é eloquente:

Data Século IX Século X Século XI Século XII

Número de atos 0 2 20 6

% 0 % 7 % 72 % 21 %

O século XI representa mais de 70% dos atos recenseados até então. Infelizmente, é difícil dar uma cronologia precisa, pois um grande número de atos não comporta uma data, e não é datável senão a partir de indicações paleográficas. A partir desses dados, pode-se afirmar que o espode-sencial dos atos data dos anos 1030-1080. Não pode-se trata absolutamente de um período de “anarquia diplomática”, nem de um período de penúria de pergaminhos34,

29 A noção de memória impregna, por exemplo, o preâmbulo do ato de restituição realizado pelo cônego

Azinério: “Cum multis modis, labentibus temporum curriculis, subintrante oblivione, res gestae a thesauris

memoriae noscuntur sepius recedere, solum scriptura testificante, et gerentes rerum et actus gerentium futurorum notitiae possunt patere, necessario quicquid boni quis gesserit, maxime in sancta ecclesia, apicibus litterarum, quae sunt vocum notae, opportet tradere.” (BNF Lat. 9380).

30 HARBSMEIER. M. Buch, Magie und koloniale Situation. Zur Anthropologie von Buch und Schrift. In:

GANZ, P., Das Buch als magisches und als Repräsentationsobjekt. Wiesbaden: Harrassowitz, 1992, p.3-24.

31 TOCK, B.-M. Scribes, souscripteurs et témoins dans les actes privés en France (VIIe-début XIIe siècle),

Turnhout: Brepols, 2005 (ARTEM, 9), p.188.

32 HEROLD, Paul. Intertextualität im Kontext von Urkunden, Mitteilungen des Instituts für österreiche

Geschichtsforschung, n. 111, 2004, p.141-162.

33 Observa-se, por exemplo, embaixo de uma convenientia orquestrada pelo arcebispo Legério de Bourges,

no final do século XI ou no final do século XII, a metade superior da divisa quirográfica seguinte: SANCTI

SPIRITUS NOBIS GRATIA; RÉDET, L.. Documents pour l’histoire de l’église de Saint-Hilaire de Poitiers, Mémoires de la société des antiquaires de l’Ouest, 14, 1848, p.120.

34 GUYOTJEANNIN, O. Penuria scriptorum. Le mythe de l’anarchie documentaire dans la France du Nord

(Xe-première moitié du XIe siècle), In: GUYOTJEANNIN,O. (ed.), MORELLE, L. (ed.), PARISSE M.

(ed.), Pratiques de l’écrit documentaire au XIe siècle. Paris-Genève: Librairie Droz, 1997 (Bibliothèque de

(13)

79

mas de uma situação sociopolítica perturbada, caracterizada por uma competição crescente entre os atores políticos à escala local e por uma distância crescente entre o rei e os grandes. Essa situação política explica as inovações diplomáticas que aparecem nos atos ao longo desse período, como o emprego crescente de cláusulas cominatórias (si quis...) no dispositivo dos atos diplomáticos. No curso dos séculos X e XI, período de instabilidade social e política, as cláusulas espirituais (ameaça de excomunhão, de condenação lançada contra aquele que contestasse o conteúdo da carta) substituíam lentamente as cláusulas penais (ameaça de multa ou de condenação judicial). Esses diversos usos constituíam meios de fazer respeitar o conteúdo dos atos, o que a autoridade pública não estava mais em condições de assegurar35. Essa concordância de usos diplomáticos é observada alhures no próprio conteúdo dos atos conservados nos livros sagrados: a maior parte dos atos inseridos nas Bíblias recorrem às cláusulas de excomunhão.

O frágil número de atos posteriores a 1100 é mais difícil de aclarar, sobretudo quando se conhece o crescimento exponencial da produção diplomática durante esse período. Talvez fosse melhor ligar o recuo desse uso, consistindo em inserir os atos nos textos sagrados pela evolução das práticas de escrita, à “revolução documental” que observa Michael Clanchy na sociedade anglo-normanda nos século XI-XII, que atinge o continente no século XII, e que se traduz por uma “dessacralização do escrito” 36. 5. A escolha de obras de grande valor estético

Permanece uma interrogação que está na origem do interesse deste artigo pelos atos diplomáticos. É a escolha, para transcrever esses documentos, de livros de uma grandíssima beleza estética. Entre as Bíblias escolhidas para receber os atos figuram os mais belos livros iluminados da Alta Idade Média, entre os quais se pode citar o Livro de Kells, o Livro de

Durrow, a Bíblia de Teodulfo, a primeira Bíblia de Saint-Martial de Limoges. Isso não pode,

evidentemente, ser fruto do acaso. Se se desejava encontrar espaço disponível para inserir

35 ZIMMERMANN, M. Protocoles et préambules dans les documents catalans du Xe au XIIe siècle.

Évolution diplomatique et signification spirituelle, Mélanges de la Casa de Velazquez, n. 10, 1974, p.41-76; LITTLE, L. K. Benedictine maledictions. Liturgical cursing and the early medieval West. Ithaca-Londres: Cornell University Press, 1993.

36 CLANCHY, Michael T. From memory to written record. England, 1066-1307. Oxford-Cambridge:

Wiley-Blackwell, 1979, a ser lido com as críticas feitas por Charles F. Briggs (BRIGGS, Charles F. Literacy, reading and writing in the medieval West, Journal of Medieval History, n. 26, v.4, 2000, p.397-420) e Paul Bertrand [BERTRAND, Paul. À propos de la révolution de l’écrit (Xe-XIIIe siècle). Considérations inactuelles, dans Pratiques de l’écrit, n° spécial de Médiévales, n. 56, 2009, p.75-92].

(14)

80

os atos, outros livros estavam à disposição em Orléans, em Limoges ou na Cúria Romana. Os homens da Alta Idade Média consideravam que a memória das ações seria mais bem preservada se essas últimas fossem transcritas nos livros santos, e sobretudo, nos códices cujo valor estético era grande. Toca-se, então, na questão da percepção estética. Sem dúvida o olhar colocado pelos clérigos sobre os livros era igual ao que Suger, no começo do século XII, colocava sobre os vitrais e as demais obras artísticas que ele contempla37. O abade evoca o prazer quase místico sentido diante das obras de arte que são postas a serviço de Deus e têm vocação para aclarar o espírito do expectador com uma iluminação espiritual. A beleza estética era considerada como uma materialização da perfeição divina, e reforçava a sacralidade dos volumes38. Não se pode separar, assim, os usos do sagrado da percepção do “belo” na sociedade dos séculos X-XI. Dever-se-ia, então, alargar a análise ao livro como objeto, interrogar-se sobre o que conferia sacralidade ao códex. Seria um equívoco limitar o valor sagrado do livro apenas ao seu conteúdo, uma vez que as encadernações eram frequentemente o elemento mais importante aos olhos dos clérigos. Os inventários de tesouros ou de bibliotecas descrevem com abundância e precisão as encadernações dos livros, seu conteúdo e as iluminuras que eles contêm39. A Paz de Ariberto descreve um

pequeno cofre do evangeliário revestido de ouro, marfim e pedras preciosas, realizado pelo arcebispo de Milão, Ariberto (1018-1045)40. Esse cofre serviu de osculatorium, tablete que servia para executar o beijo de paz quando das celebrações da catedral. O continente (a encadernação) adquiriu um valor espiritual superior ao conteúdo (o evangeliário).

Conclusão

A inserção de atos diplomáticos nos textos escriturísticos ou patrísticos é, às vezes, fruto do acaso, imputável às necessidades materiais de consolidação ou de confecção de cadernos. No entanto, os eclesiásticos também fizeram transcrever intencionalmente as decisões judiciais ou extrajudiciais nos códices de grande valor. Eles esperavam assim

37 SUGER. De rebus in administratione sua gestis. In: Lecoy de la Marche (ed.) , A.. Oeuvres complètes

de Suger. Paris: Jules Renouard, 1867 (Société de l’histoire de France, 139), p.198.

38 GAUTHIER, Marie-Madeleine. Pulcher et formosus. L’appréciation du beau en latin médiéval, In: La

lexicographie du latin médiéval et ses rapports avec les recherches actuelles sur la civilisation du Moyen-Âge.

Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1981, p.401-419; PANOFSKY, E. Architecture

gothique et pensée scolastique. Paris: Les Édition de Minuit, 1967, p.33-47.

39 STEENBOCK, F. Der kirchliche Prachteinband im frühen Mittelalter. Berlim: Deutscher Verlag für

Kunstwissenschaft, 1965.

(15)

81

assegurar a conservação, preservar a memória da ação jurídica registrada e, sobretudo, colocar essa ação sob o selo do sagrado, a fim de garantir a execução.

Ao término deste trabalho, é importante se perguntar pela relação do ato com o

codex no qual foi escrito. É o texto bíblico, pela sua autoridade e seu caráter sagrado, que

confere ao ato sua legitimidade. Não se pode, com isso, considerar o ato como um paratexto, à semelhança de uma dedicatória ou de um explicit em verso, que aparecem em alguns volumes. Não se pode também relacionar esses documentos diplomáticos aos diplomas transcritos nas gesta episcoporum e gesta abbatum ou aos outros relatos hagiográficos, tais como a Vita de Meinwerk41. Para o autor das Gesta de Mans, a validade dos diplomas transcritos no texto (particularmente os falsos diplomas que ele tinha forjado) advinha do fato de ter sido inseridos no relato dos gestos dos santos padroeiros da Igreja. Todavia, contrariamente às gestae episcoporum, os atos inseridos nos textos sagrados não formam um conjunto coerente e lógico com o livro que os contém. Se a autoridade do texto sagrado transborda sobre o conteúdo do ato, a carta não exerce absolutamente nenhuma influência sobre o livro que a comporta.

41 BETHMANN, G. (ed.) Gesta episcoporum Cameracensium. Hanover: MGH, 1846 (M.G.H., Scriptores,

7), p. 393-489; BUSSON, G (ed.), LEDRU, A. (ed.). Actus pontificum Cenomannis in urbe degentium. Le Mans, 1901 (Archives Historiques du Maine, 2); TENCKOFF, F. (ed.) Vita Meinwerci episcopi

Paterbrunnensis (Das Leben des Bischofs Meinwerk von Paderborn). Hanover: MGH, 1921 (M.G.H., SS. rer. Germ., 59). Sobre as trocas fundiárias na Vita, ver: REUTER, T. Property transactions and social relations between rulers, bishops and nobles in early eleventh-century Saxony: the evidence of the Vita

Meiwerci, In: DAVIES, W. (ed.), FOURACRE P. (ed.). Property and power in the early Middle Ages, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p.165-199.

Referências

Documentos relacionados

Teresa, nem como villa agrária nem mesmo como «povoação (compacta) na feição actual, própria para encabeçar um município», como defende Almeida

O com.arte sublima o sucesso da associação entre Arte e Comércio porquanto, nesta iniciativa, lojistas do comércio local e artistas das mais diversas expressões de Arte,

Todos eles, com todo seu pecúlio, bem como com todos os seus pequenos terrenos e seus pequenos alojamentos, seus pequenos jardins e suas pequenas vinhas, e com tudo o que podem ter

O Capitulário de Frankfurt estabelece que homem nenhum, eclesiástico ou laico, pode vender cereais a preço maior que aquele estabelecido para um módio produzido nos domínios

(UEFS 2010) Carlos Magno dividiu [seus domínios] em circunscrições. As circunscrições fronteiriças chamavam-se marcas. A frente de cada circunscrição estava um conde. O

Fortalecer o exercício da cidadania, a inclusão social através de valores norteadores da ética, da moral e da espiritualidade contribuindo para a convivência

Suas linhas comportadas e simétricas permitem utilizar o modelo para dividir ambientes e, as almofadas soltas além do detalhe em debrum dão um toque alegre de vivacidade.. por

Fernando de Almeida numa cor- metódica e constante, por não reconhecerem validade rente historiográfica dominante, e à forma como ela científica em propostas