• Nenhum resultado encontrado

Um ensaio sobre o conceito de repetição: do amor à criação

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2019

Share "Um ensaio sobre o conceito de repetição: do amor à criação"

Copied!
118
0
0

Texto

(1)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA CLÍNICA E CULTURA

Daniela Márcia Blundi Sturzenegger

Um ensaio sobre o conceito de repetição: do amor à criação

Volume único

(2)

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE PSICOLOGIA

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA CLÍNICA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA CLÍNICA E CULTURA

Daniela Márcia Blundi Sturzenegger

Um ensaio sobre o conceito de repetição: do amor à criação

Volume único

Dissertação de mestrado realizado na Universidade de Brasília – UnB, Programa de Psicologia Clínica e Cultura, Orientador (a): Daniela Scheinkman Chatelard

(3)

Ficha Catalográfica

Sturzenegger, Daniela Márcia Blundi

Um ensaio sobre o conceito de repetição: do amor à criação/ Daniela Márcia Blundi Sturzenegger. – Brasília – UnB/ Departamento de Psicologia Clínica, 2008.

116 f

Orientador (a): Daniela Scheinkman Chatelard

Dissertação (mestrado) – Universidade de Brasília/ Departamento de Psicologia Clinica/ Programa de Psicologia Clínica e Cultura, 2008.

(4)

Daniela Márcia Blundi Sturzenegger

Um ensaio sobre o conceito de repetição: do amor à criação

Volume único

Dissertação de mestrado realizado na Universidade de Brasília – UnB, Programa de Psicologia Clínica e Cultura, Orientador (a): Daniela Scheinkman Chatelard

(5)

Dedicatória

(6)

Agradecimentos

Agradeço a todos que participaram comigo desse período de mestrado, especialmente na elaboração da dissertação. A meus pais por me apoiarem com todas as forças, meus irmãos e namorado pela paciência e compreensão. Agradeço à minha analista pela escuta e também pela ajuda teórica nesse processo. Agradeço à minha orientadora por aceitar me acompanhar nessa etapa.

(7)

Resumo

Este trabalho constitui um ensaio acerca do conceito de repetição na psicanálise, em especial a partir das obras de Freud e Lacan. Na busca da compreensão do fenômeno da repetição, mostrou-se necessário transitar pelos outros três conceitos fundamentais: o inconsciente, a pulsão e a transferência. A questão maior, que percorre todo o trabalho, está relacionada à repetição do mesmo e ao processo de criação a partir da repetição. No contexto desse questionamento maior, outra questão assumiu importância: o amor. A articulação entre a s d iversas questões propostas demandou investigar com profundidade o conceito da repetição. É no inconsciente que se localiza o ambiente da repetição. A repetição é um processo inconsciente. O movimento pulsional e o movimento da repetição estão intimamente ligados, o que faz com que mantenham entre si sempre grande proximidade. A pulsão de morte insere uma nova forma de pensar a repetição, e é a partir dela que temos a criação. Na transferência, além de sua relação de intimidade com a repetição, temos também a inscrição do amor. A inscrição do amor exige que sejam expostas as diferenças que o contrapõem ao desejo. É pelo conceito de transferência que se torna possível articular as questões pertinentes à dualidade da repetição e à dualidade amor/desejo.

Palavras-chave: repetição, inconsciente, pulsão, pulsão de morte, transferência, criação, amor e desejo.

(8)

This essay discusses the concept of repetition in the psychoanalysis from the perspective of Freud and Lacan´s works. In the search of understanding the phenomenon of repetition, it is necessary to discuss three basic concepts: the unconscious, the instinct and the transference. The main question, that covers the entire essay, is related to the repetition of the same things and the process of creation from repetition. In this context, another subject assumes importance: love. The interaction among all proposed questions in this work demanded to deeply investigate the concept of repetition. It is in the unconscious that the environment of repetition is situated. The repetition is an unconscious process. The instinctual movement and the movement of repetition are intimately connected. The death instinct inserts a new way of thinking the repetition, and it is from it that we have the creation. In the transference, apart from its close relation with repetition, we also have the registration of love. The registration of love demands that the differences of it from desire appear. It is from the transference concept that becomes possible to ask the pertinent questions of the duality of repetition and the duality of love/desire.

Key-words: repetition, unconscious, instinct, death instinct, transference, creation, love, desire.

(9)

Folha de rosto...1

Ficha Catalográfica...2

Folha de aprovações...3

Dedicatória...4

Agradecimento...5

Resumo...6

Abstract...7

Sumário...8

Introdução...10

Capítulo 1 – Repetição - de que se trata?...16

1.1 – O conceito de repetição em Freud...16

1.2 - O inconsciente e a repetição...23

a) Freud...23

b) Lacan...28

1.3 – O conceito de repetição em Lacan - tychê e automaton...31

Capítulo 2 – Pulsão e repetição...37

2.1 – O movimento pulsional e o movimento repetitivo...37

2.2 - Além do princípio do prazer...51

2.3 - Pulsão de morte...64

(10)

3.1 – A repetição e a clínica psicanalítica...80

a) A transferência e resistência...84

b) O amor transferencial...87

c) O manejo da transferência e a dinâmica da cura...90

d) A transferência em Lacan ...98

3.2 – Fim de análise – para onde vai o amor?...101

3.3 – Retorno ou criação?...107

Conclusão...111

(11)

Introdução

O presente trabalho aborda o controverso tema da repetição, com o objetivo de tentar esclarecer a sua natureza, a forma como se apresenta, e suas conseqüências.

O aspecto da repetição que primeiramente motivou nossas pesquisas tem a ver com o fato de que o fenômeno repetido nunca é igual, fazendo inscrever, assim, a diferença, o processo de criação. Nesse terreno, a partir de ampla pesquisa bibliográfica, foram utilizados como base textos de Freud e Lacan, para trabalhar a noção que os dois autores trazem sobre a repetição.

No que concerne a Lacan, em O Seminário - Livro 11, buscou-se alcançar a relação existente entre a repetição e o que o autor considera os outros três conceitos fundamentais da psicanálise – o inconsciente, a pulsão e a transferência.

De outro lado, o tema da repetição se apresenta como de extrema importância também para a perfeita compreensão de aspectos vitais da teoria freudiana e, indo além da psicanálise, igualmente da filosofia. Com efeito, temos em Nietzsche, Kierkegaard e Deleuze exemplos de pensadores que fizeram essa mesma busca. Obviamente, não constitui o objetivo deste trabalho discutir a noção de repetição no campo da filosofia. O que interessa, aqui, é somente apontar para a diversidade de buscas acerca desse tema, e enfatizar que o que aproxima essas teorias é justamente o fato de todas conceberem a repetição a partir da produção de diferenças, o que importa, sempre, em gerar o novo.

(12)

O eterno retorno diz respeito aos ciclos repetitivos da vida. Para Nietzsche, a repetição é relacionada não somente ao sujeito, mas à vida na terra: guerras, epidemias etc. Almeida (2005) aponta que se trata de uma repetição cíclica do mundo no seu devir. Nietzsche trata de uma questão que será importante também para a psicanálise: o tempo. Sua noção de tempo não é cíclica. Não se trata de um ciclo temporal que se repete ao longo da eternidade. O eterno retorno trata de aspectos complementares de uma mesma realidade, para além do bem e do mal, da angústia e do prazer. Segundo Almeida (2005), o eterno retorno, em toda a sua estrutura, se aplica somente sob a perspectiva da volta do mesmo e do diferente, ao mesmo tempo.

Deleuze também faz uma extensa exposição do tema da repetição em Diferença e repetição, de 1968. Para ele, a diferença está sempre associada à repetição, de forma que a repetição deve ser distinguida da generalidade. Ele aproxima a repetição da singularidade, ou seja, de algo insubstituível. Considerando que o duplo, as almas e os reflexos não são do domínio da semelhança, ele ressalta que para a repetição tal aproximação também não é possível: “Entre a repetição e a semelhança, mesmo extrema, a diferença é de natureza” (DELEUZE, 1968, p. 19). Na visão de Deleuze, o repetir está associado a um comportar-se em relação a algo único e singular, a algo que não possui semelhante ou equivalente. Se há repetição, há diferença.

(13)

Sobre este argumento, Almeida (2005) observa que “a ambigüidade da repetição reside, precisamente, em que se está permanentemente diante de um fim, de uma conclusão e de uma chegada que podem concomitantemente representar, provocar ou desencadear uma nova partida, um novo começo, uma nova criação” (p. 29). Temos assim que a diferença e a criação parecem estar sempre presentes, ao menos como questionamento, na repetição.

Como se sabe, para a psicanálise, a teoria e a prática estão sempre articuladas, do que decorre que tudo estará relacionado a um sujeito. Partindo desse ponto, o trabalho propõe que a repetição está conectada a todos os outros conceitos fundamentais, para que assim se possa buscar, da forma mais ampla possível, a dimensão da repetição para a teoria e para a prática, e, assim, para o sujeito.

Surge então, aqui, um novo aspecto para se falar da diferença e do processo de criação a partir da repetição: o amor. Isso leva ao desafio da busca de tornar possível, pela repetição, alcançar-se o amor e a criação.

O processo de investigação sobre este último aspecto pode assumir, como ponto de partida, o poema Quando o amor vacila (autor desconhecido, interpretado por Maria Bethânia em show gravado):

Eu sei que atrás deste universo de aparências, das diferenças todas, a esperança é preservada

Nas xícaras sujas de ontem o café de cada manhã é servido, mas existe uma palavra que eu não

suporto ouvir, e dela não me conformo.

Eu acredito em tudo, mas eu quero você agora

Eu te amo pelas tuas faltas, pelo teu corpo marcado, pelas tuas cicatrizes

Pelas tuas loucuras todas, minha vida

Eu amo as tuas mãos mesmo que por causa delas eu não saiba o que fazer das minhas

Amo teu jogo triste

...

Mesmo e fora de si eu te amo pela tua essência

(14)

Se a maré das circunstâncias não tivesse te banhado nas águas do equívoco

Eu te amo nas horas infernais e na vida sem tempo

quando sozinha eu bordo mais uma toalha de fim de semana

...

Eu te amo pelas tuas ilusões perdidas e pelos teus sonhos inúteis

Amo teu sistema de vida e morte

Eu te amo pelo que se repete e que nunca é igual

Eu te amo pelas tuas entradas, saídas e bandeiras

Eu te amo desde os teus pés até o que te escapa

Eu te amo de alma para alma e mais que as palavras

Ainda que seja através delas que eu me defendo

Quando digo que te amo mais que os momentos difíceis

Onde o próprio amor vacila.

Alguns questionamentos se seguem a partir dessa nova articulação. Afinal, o que se repete é o mesmo ou é o diferente? Existe uma criação possível a partir da repetição? O amor relatado no poema descrito é um amor à falta, não à completude? É possível uma articulação entre o amor e a falta a partir da repetição? Como podemos pensar a criação a partir da repetição e do amor? Esses pontos estarão sendo debatidos durante nossa pesquisa.

O presente trabalho compõe-se desta introdução, de três capítulos de conteúdo argumentativo, e de um capítulo final, conclusivo.

No primeiro capítulo iremos abordar dois conceitos, o inconsciente e a repetição. Freud considera, em toda a sua obra, que a repetição é inconsciente. Buscaremos então, a partir da exploração desse conceito, identificar de onde viria o mecanismo da repetição, inclusive como forma de facilitar a compreensão dos outros conceitos.

(15)

buscaremos chamar a atenção, por meio de recortes, para os aspectos que serão de grande validade para os capítulos seguintes.

A leitura de Lacan do inconsciente apresenta algumas questões que se dirigem para um aspecto diferente da concepção trazida por Freud. Por essa razão, faremos também uma exposição do inconsciente tal como apresentado por Lacan.

Ainda no mesmo capítulo, trazemos uma abertura para a compreensão de que se trata na repetição - de que estamos falando e de como ela surgiu para a psicanálise. Também apontaremos para as diferentes formas de conceber esse conceito a partir de Freud e Lacan.

No segundo capítulo será trabalhado o conceito da pulsão. O capítulo é dividido em três partes, para tentar abordar de forma ampla esse conceito, que se torna fundamental para a compreensão da repetição. Temos, na primeira parte, o movimento pulsional, que se faz presente no inconsciente, e o movimento da repetição. Na segunda parte temos uma exploração do texto Além do princípio do prazer (1920), de Freud, onde a relação da compulsão com a repetição e a pulsão de morte começam a se fazer presentes. Nesse texto ainda está vigente a primeira teoria pulsional, em que sua dualidade se apresenta pelas pulsões sexuais e pulsões do ego. Na terceira parte temos uma busca mais detalhada e uma apresentação mais clara da pulsão de morte, que, a partir de outros textos de Freud, traz a mudança da teoria pulsional, que representa um momento importante para a teoria psicanalítica. É a partir da pulsão de morte que podemos começar a pensar a questão da criação.

(16)

temos o amor de transferência. Assim começa a se fazer possível nossa investigação sobre a repetição e a criação a partir do amor. A transferência, nesse momento, ultrapassa os limites de sua utilização técnica no trabalho psicanalítico para se tornar fonte de estudo do psiquismo e do inconsciente. A transferência, assim como outros conceitos, também será trabalhada sob as visões de Freud e Lacan.

Nosso questionamento final, mesmo que ainda em aberto, foi desenvolvido em duas partes: a primeira através do fim de análise e a segunda trazendo a noção do retorno e criação pela repetição, buscando a criação a partir da pulsão de morte.

(17)

Capítulo 1

Repetição: de que se trata?

1.1 O conceito de repetição em Freud

A psicanálise começa a ser desenvolvida, como teoria, a partir da clínica. De fato, foi a partir do atendimento clínico, das percepções de Freud dos sintomas de seus pacientes e, também de sua auto-análise, que se tornou possível acumular todo o material metapsicológico que existe hoje, sobretudo o descrito por Freud.

Desde o princípio Freud já percebia, de alguma forma, um movimento de retorno. Essa percepção freudiana passou por várias atualizações até se tornar um conceito, conceito que foi bastante desenvolvido ao longo de sua obra e continua, até hoje, objeto de muito trabalho e discussão.

No princípio, a percepção de algo que retornava era entendida por Freud como uma rememoração, no sentido de uma lembrança. Nessa época, em que o método psicanalítico ainda não havia sido estabelecido, o método utilizado era a hipnose. O método hipnótico era implementado a partir da catarse, por meio da qual se tentava eliminar o sintoma com a descarga provinda de um excesso de excitação, que não encontrava saída pelo funcionamento, tido como ‘normal’, do psiquismo.

(18)

conscientemente da origem de seu sintoma. Já nessa época, Freud percebia que o que o interessava estava fora do campo da consciência, pois o paciente parecia não se lembrar do que gerava o seu adoecimento. Freud (1914) aponta então que “recordar e ab-reagir, com o auxílio da hipnose, era a que, àquela época, se visava” (p. 193).

Em 1893, ainda estudando os fenômenos histéricos sob a via da hipnose, Freud relata que a hipnose se incorpora ao que ele chama de um dos mais ardentes desejos humanos, que seria o desejo de poder voltar a uma experiência. Temos, nessa constatação de Freud, uma alusão (ainda que um pouco precária em relação ao curso que posteriormente se tomou) à repetição.

Para Freud (1914), a técnica hipnótica apresentou processos psíquicos importantes para um tratamento analítico futuro. Segundo ele, a recordação na hipnose se dava da seguinte forma: “o paciente colocava-se de volta numa situação anterior, que parecia nunca confundir com a atual, e fornecia um relato dos processos mentais a ela pertencentes, na medida em que permaneciam normais” (p. 194). Essa idéia já nos aponta para questões importantes acerca da repetição que estamos buscando: o fato de ela não se confundir com a situação atual nos remete para a questão da alienação de si, assim como também para a atemporalidade do inconsciente. Esses tópicos serão desenvolvidos em outro momento.

(19)

à alienação, a um não saber de si; o sujeito não sabe que repete, fenômeno, pois, contrário à ab-reação, na qual o que se busca é justamente o conhecimento.

Freud então abandona a hipnose e o método catártico e apreende a noção da associação- livre. Na associação- livre (regra fundamental da psicanálise), o paciente é estimulado a falar tudo o que vier à mente. O que se buscava com esse novo método era não mais a cena traumática, mas justamente o que o paciente deixava de recordar. Há aí um abandono de um fato específico, substituído que é por uma série de lembranças importantes para o sujeito. Passa então a existir uma busca que vai para além de uma eliminação de sintomas, que vai para uma reconstrução da história do paciente.

Em P r ojeto para uma psicologia científica, de 1895, Freud elabora de forma mais consistente a memória, já a incluindo dentro do funcionamento psíquico. Nesse texto, Freud descreve o funcionamento do psiquismo de maneira ainda bastante fisiológica, trazendo, no entanto, questões que permaneceriam como bastante importantes para toda a sua obra. Nesse texto, a memória surge a partir do excesso de excitação, o que se torna suficiente para constituí- la como traço. Mas, observa Santos (2002), “para que os traços se transformem em caminhos preferenciais é necessário supor as repetições que, curiosamente, vão criar um sistema de diferenças” (p. 26). Assim, já podemos ver indícios da repetição, assim como sua noção de diferença, em um texto freudiano bastante inicial.

(20)

presente. Ele assinala, porém, que, o objetivo dessas técnicas permanecia o mesmo: “preencher lacunas na memória; dinamicamente, é superar resistências devidas à repressão” (FREUD, 1914, p. 194).

P a r a F r e u d , ainda em 1914, o esquecimento de experiências ou sensações normalmente se reduz a interceptá- las na consciência. A função do esquecer se torna ainda mais restrita quando se leva em consideração o valor do material esquecido, que surge a partir das lembranças encobridoras. Ele observa então que “não é apenas algo, mas a totalidade do que é essencial na infância que foi retido nessas lembranças” (p. 194). A questão que se apresenta para a psicanálise nesse momento é, então, como extrair esse material que foi esquecido pelo trabalho de análise.

Freud (1914) aponta para uma diferença entre as lembranças encobridoras e o que ele considera um outro grupo de processos psíquicos (as fantasias, processos de referência, impulsos emocionais, vinculações de pensamento). Segundo ele, o segundo grupo de processos compreende atos puramente internos, diferentes de impressões e experiências, o que significa que, com relação ao esquecer e ao recordar, devem ser considerados separadamente. Nesse segundo grupo de processos também acontece de ser ‘recordado’ algo que nunca poderia ter sido ‘esquecido’, pois, segundo ele, nunca foi notado, nunca foi consciente.

A partir de todo o trabalho desenvolvido a partir dos pacientes em hipnose e também de suas observações sobre as lembranças, Freud (1914) chega a um ponto muito importante: ele diz que o paciente “não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o sem, naturalmente, saber que o está repetindo” (p. 196).

(21)

Freud percebe que o paciente submete-se a uma compulsão à repetição, que substitui o impulso a recordar, não apenas em sua atitude com o médico, mas em todas as suas atividades e relacionamentos, compreendendo então que esta é a sua maneira de recordar. A repetição começa aí a fazer parte do funcionamento psíquico.

Mas, afinal, o que é que o sujeito repete?

Em 1914 Freud responde dizendo que o sujeito “repete tudo o que já avançou a partir das fontes do reprimido para sua personalidade manifesta – suas inibições, suas atitudes inúteis e seus traços patológicos de caráter. Repete também todos os seus sintomas no decurso do tratamento” (p. 198). Na repetição não se trata então de uma lembrança, mas sim de uma forma de reviver o trauma.

Assim, não se deve tratar da neurose do paciente e de seus sintomas como um acontecimento do passado, mas sim, tratá- la como um acontecimento do presente. Para o paciente isso é vivido e experimentado como algo real e que faz parte de sua vida presente. O que o trabalho de análise consiste em fazer é remontá-lo ao passado. O que se percebe é que o repetir, na forma como é induzido no tratamento psicanalítico, evoca um fragmento da vida real. A partir dessa nova visão da compulsão à repetição, Freud (1914) diz que “não obtivemos um fato novo, mas apenas uma visão mais ampla” (p. 198).

(22)

que se segue é: como que algo familiar e conhecido pode causar uma sensação de tamanha estranheza?

Freud faz uma busca incansável do significado dessa sensação. Primeiramente ele busca na lingüística algo que lhe dê algum sentido. O que surge dessa busca é justamente uma questão de extrema importância, tanto para a definição do que torna algo estranho, assim justificando o termo usado, como para a noção da repetição, a partir da qual podemos fazer uma aproximação. Essa questão evoca a noção do duplo.

Devemos aqui apenas chamar a atenção para o fato de que essa busca foi feita, principalmente, no idioma alemão, e que o termo traduzido para o inglês, the uncanny, não traduz de forma efetiva a noção que Freud gostaria de evocar desse questionamento. O termo em português nos ajuda nessa compreensão. Na busca feita por Freud, ele encontra inúmeras definições para o termo (não somente em alemão). Levantaremos aqui as que mais se encaixam em nosso interesse.

Uma primeira colocação é que o termo Unheimliche tem o sentido contrário do de Heimliche, que significa o que é familiar, íntimo, doméstico, pertencente à casa. Assim, de início poderíamos concluir que o conteúdo se torna estranho justamente por não ser familiar, por não ser conhecido. Freud (1919) nos adverte, porém, para que nem tudo o que é novo é assustador: “Só podemos dizer que aquilo que é novo pode tornar-se facilmente assustador e estranho; algumas novidades são assustadoras, mas de modo algum todas elas. Algo tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar, para torná- lo estranho” (p. 277).

Existe, porém, uma outra significação atribuída ao termo Heimliche, que indica um novo caminho. Ele também traz o sentido de ‘oculto da vista, escondido, sonegado aos outros, obscuro’. Esse significado faz com que o termo se aproxime de seu oposto, Unheimliche. Dessa forma, podemos dizer que o que é Heimliche vem também a ser Unheimliche:

Em geral somos lembrados de que a palavra Heimliche não deixa de ser ambígua,

(23)

são muito diferentes: por um lado significa o que é familiar e agradável e por outro,

o que está oculto e se mantém fora da vista (FREUD, 1919, p. 282).

O sentido de Heimliche se desenvolve, a partir daí, até que se torne o mesmo de seu oposto - Unheimliche.

Freud aproxima a sensação de estranho ao desejo infantil. O desejo é sempre inconsciente e relacionado ao recalcado, por isso não temos acesso consciente ao desejo. Podemos dizer que não temos acesso (a não ser pela transferência, em análise) a nenhum material que foi recalcado. Assim, a repetição do que foi reprimido causaria certamente uma sensação de estranheza. Partindo dessas observações, podemos aproximar a repetição e o desejo da definição dada por Schelling, anunciada em Freud (1919). Para ele, “Unheimliche é o nome de tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz” (p. 281). Freud então ressalta que a passagem da definição a partir de Heimliche p a r a Unheimliche f a z sentido, pois o estranho não é, de fato, o que é novo e alheio ao sujeito, mas sim, algo familiar e, até certo ponto, estabelecido na mente. Esse conteúdo que é familiar se alienou pela repressão e, assim, dá a sensação de novo e desconhecido, por estar no inconsciente.

(24)

1.2 O Inconsciente e a Repetição

a) Freud

Freud considera a repetição (compreendida tanto como movimento compulsivo como conceito) um processo inconsciente. Partindo dessa premissa vamos fazer um retorno ao início da teoria freudiana para compreender exatamente de que se trata no inconsciente. Para tentar satisfazer nossas necessidades iremos discorrer apenas sobre alguns aspectos d o inconsciente, aqueles que nos levam onde queremos chegar: à compulsão à repetição.

O inconsciente freudiano não tem relação de aproximação com nenhum conceito desenvolvido anteriormente. Lacan (1964) nos chama a atenção para isso dizendo que “o consciente freudiano nada tem a ver com as formas ditas do inconsciente que o precederam, mesmo as que o acompanhavam, mesmo as que o cercam ainda” (p. 29). A razão que motiva Freud a buscar uma nova instância (um novo sistema, na época) surge da situação clínica.

A busca por um estado inconsciente se deve ao grande número de lacunas apresentadas na consciência. Mas o que chama a atenção de Freud é justamente a forma como o inconsciente aparece; ele aparece no tropeço, naquilo que o paciente não se dá conta. Já percebendo que o material a ser trabalhado, aquilo que aparecia como sintoma, estava em lugar ‘desconhecido’, assim, já era percebido que, mesmo na indefinição do inconsciente, é preciso se chegar lá. É preciso chegar ao inconsciente, pois em algum lugar ele se mostra. É, então, principalmente no sonho, no ato falho e no chiste, que se encontra o inconsciente. É necessário, porém, estar atento, pois eles não são o inconsciente, embora seja lá que ele é representado, seja lá que ele se mostra. Eles são manifestações do inconsciente.

(25)

abrir mão de explorar um pouco suas contribuições. Freud faz uma descrição bastante neurológica desses sistemas, principalmente em 1895, em Projeto [...]. Devemos estar sempre atentos, no entanto, à noção que Freud dá a esses sistemas desde o início, principalmente ao inconsciente.

A concepção tópica desenvolvida naquele momento contribuiu para uma substancialização do inconsciente. Porém, o inconsciente freudiano não é uma substância, ou propriedade de uma. Garcia-Roza (1984) nos adverte que “o termo ‘conteúdo do inconsciente’ não designa uma relação de conteúdo a continente análogo a quando dizemos que o copo contém água” (p. 174). Para ele, o inconsciente é uma lei de articulação que possui uma sintaxe diferente da consciência. Freud já dizia que o sujeito (o ego) ‘obedece a dois senhores’; essa cisão diz respeito justamente a essas duas leis, duas diferentes formas (consciente e inconsciente). Para Garcia-Roza (1984), o que define o inconsciente não são os seus conteúdos, mas sim o modo pelo qual ele opera. O inconsciente impõe a esses conteúdos uma determinada forma.

A concepção freudiana se opõe à noção de que o inconsciente se encontra antes da consciência: “Ao nível do inconsciente, há algo homólogo em todos os pontos ao que se passa ao nível do sujeito – isso fala e funciona de modo tão elaborado quanto o do nível consciente, que perde assim o que parecia seu privilégio” (LACAN, 1964, p. 29). Consciente e inconsciente estão sempre aí, presentes no sujeito.

(26)

O processo primário está ligado ao sistema inconsciente e, pois, à energia que flui livremente pelo aparelho psíquico. O que faz Freud considerá-la energia livre está relacionado ao fato de que ela busca descarga (satisfação) da forma mais direta possível. Esse processo funciona segundo o modelo do arco-reflexo (descrito por Freud em 1895, mas que não iremos detalhar aqui), que implica descarga total de energia.

O processo secundário, ligado ao sistema pré-consciente/consciente, diz respeito à energia ligada. Diz-se que a energia é ligada, pois sua descarga é adiada, possibilitando assim uma descarga mais controlada. A energia que busca satisfação nesses processos é a libido, considerada por Freud como energia sexual. Assim, o inconsciente é, para Freud, sexual.

Esses dois processos também estão relacionados, respectivamente, ao princípio do prazer e ao princípio de realidade. A experiência de satisfação está ligada a essa descarga. As pulsões que buscam satisfação fazem- na pela descarga produzida pelo processo primário ou pelo processo secundário. Quando esse objeto de satisfação é perdido, Freud afirma que o sujeito alucina esse objeto; dessa forma, a satisfação será sempre parcial. Quanto a essas questões, discorreremos de forma mais detalhada mais adiante.

(27)

É somente no capítulo VII desse texto que Freud rompe com a tentativa neurológica de buscar suas explicações. Segundo Garcia-Roza (1984), essa nova concepção se torna clara, inclusive, no título do trabalho, que sugere, a partir da interpretação, uma busca pelo sentido dos sonhos. Com relação a isso Freud já diz, no capítulo III, que “minha teoria não se baseia numa consideração do conteúdo manifesto dos sonhos, mas se refere aos pensamentos que são indicados pelo trabalho de interpretação como existentes atrás dos sonhos” (FREUD, 1900, p. 144).

Os sonhos apresentam dois mecanismos que se tornam muito importantes para a compreensão de vários acontecimentos psíquicos. Eles são o deslocamento e a condensação. Em muitos sonhos, possivelmente na maioria deles, o desejo encontra-se bastante disfarçado, quase oculto, isso devido a esses dois mecanismos. Para Freud (1900), é a censura (depois desenvolvida como supereu) que estabelece qual material pode e qual não pode ser compreendido. A censura faz uso então desses mecanismos para que o desejo reprimido não apareça na consciência. Quanto mais rigorosa a censura, maior o disfarce.

A condensação faz com que o conteúdo dos sonhos seja bastante reduzido, se comparado ao dos pensamentos oníricos de forma geral. Assim, o que lembramos do sonho é somente uma pequena parte de seu verdadeiro conteúdo. No deslocamento ocorre uma transferência de intensidade psíquica.

(28)

aflorar um desejo inconsciente que, por ser inaceitável para a consciência, produziu ansiedade” (GARCIA-ROZA, 1984, p. 86).

Freud (1900) considera que o que seria a essência dos pensamentos oníricos não precisa estar incluído no sonho. Para ele, então, esses dois processos são os fatores dominantes para a forma assumida pelos sonhos, a forma manifesta. Esses dois mecanismos, assim como o sonho, estão relacionados ao processo primário. E é assim que os sonhos se tornam via de acesso ao inconsciente.

O inconsciente, então, sendo estruturado a partir desses dois mecanismos, se manifesta de forma também disfarçada, e é por isso que, normalmente, é pelos lapsos que ele se apresenta. Os desejos e pensamentos oníricos se tornam irreconhecíveis para a consciência. Garcia-Roza (1984) nos adverte, porém, para que “os únicos desejos capazes de produzir um sonho são aqueles que pertencem ao inconsciente”, e completa dizendo que “a nível de sistema inconsciente, o passado se conserva integralmente, e como o sonho é um fenômeno regressivo, são os desejos mais infantis os que funcionam como induzidores permanentes de seus conteúdos” (p. 85).

Alguns outros aspectos são também de muita importância para uma melhor compreensão do inconsciente e de sua manifestação. Um deles tem a ver com o fato de que o inconsciente (mesmo com esses mecanismos que transformam seu conteúdo quando percebido pela consciência) não faz uma associação errada. O inconsciente não produz ligações erradas ou falsas. Santos (2002) considera que “o erro, a falha, são indicativos da verdade do sujeito” (p. 55). Por essa via podemos pensar na razão pelo qual é nos lapsos, naquilo que foge ao controle consciente, que o sujeito aparece.

(29)

temporal. Existe passado, presente e futuro. No inconsciente isso é diferente, sua atemporalidade faz com que seus conteúdos se apresentem sempre como parte do presente, mesmo sendo eles fruto de percepções e afetos considerados infantis. Por essa razão é que o que se apresenta a partir do inconsciente é o infantil, mas que é sempre vivido como atual.

b) Lacan

Lacan (1964) aproxima os mecanismos de condensação e deslocamento das figuras lingüísticas de metáfora e metonímia. Essa aproximação serve de suporte inicial para ele estruturar sua concepção do inconsciente, onde ele diz que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Garcia-Roza (1984) observa que:

Os processos metafóricos e metonímicos, nós os encontramos em funcionamento em

todas as chamadas formações do inconsciente e são eles os responsáveis por uma

das mais importantes características da linguagem: o seu duplo sentido; isto é, o fato

de ela dizer outra coisa diferente daquilo que diz a letra (p. 188).

Mas é exatamente nesse diferente que é possível surgir o sujeito com sua verdade.

(30)

Lacan (1964) considera que o inconsciente freudiano “nos mostra a hiância por onde a neurose se conforma a um real – real que bem pode, ele sim, não ser determinado” (p. 27). É nesse espaço, nessa lacuna que alguma coisa acontece. Algo é produzido nessa hiância, e, para Lacan, o que se produz ali, que se apresenta quando surge o inconsciente, é tido como um achado. A forma como o sujeito lida com esse achado é muito particular, pois está relacionada à sua alienação: “é aquilo pelo que o sujeito se sente ultrapassado, pelo que ele acaba achando ao mesmo tempo mais e menos do que esperava – mas que, de todo modo, é, em relação ao que ele esperava, de um valor único” (LACAN, 1964, p. 30).

É engano pensar que a partir do momento em que se tem ‘contato’ com o inconsciente, nós o teremos sempre disponível, já que ele se acha e também se perde. Essa descontinuidade, para Lacan (1964), significa que o inconsciente se manifesta como vacilação. A partir dessa observação, ele introduz um questionamento: podemos pensar que existe um um que seja anterior a essa descontinuidade? E, para ele, a resposta é não. Para Lacan, o um d o inconsciente, o das Ding, está justamente na fenda, na ruptura. Dessa forma, diz ele, devemos situar o inconsciente no nível de um ser, de sujeito da enunciação, que apresenta seu enigma ao sujeito - enquanto alienado de sua história - e que fala. “Assim, o inconsciente se manifesta sempre como o que vacila num corte,... em que o sujeito se saca em algum ponto inesperado” (LACAN, 1964, p. 32).

(31)

Wo es war, soll Ich werden, a máxima de Freud, é considerada por Lacan erradamente traduzida. Ele faz uma aproximação de sentido com: aqui, no campo do sonho, estás em casa. A constatação feita por Freud, na Conferência XXXI, provoca várias questões em Lacan. A questão de nosso maior interesse é a da busca da verdade do sujeito. Freud traz aqui o modo de ser da subjetividade. Existe uma exigência, que é a exigência da verdade, que o sujeito desconhece. Esse sujeito não é absoluto; ele é por vezes atropelado por algo que é vivido pelo consciente como estranho, como uma lacuna sem sentido. O que essas lacunas indicam é o lugar do Outro, é lá que se situa a cadeia do significante e, lá também que o sujeito deve aparecer.

O Outro é, para Lacan, a ordem inconsciente, a ordem simbólica. Soll Ich werden não trata do eu, mas do Ich, “o lugar total da rede dos significantes, quer dizer, o sujeito, lá onde estava, desde sempre, o sonho” (LACAN, 1964, p. 47). Lacan continua dizendo, porém, que o sujeito está aí para ser reencontrado, “aí onde estava – o real” (p. 47). É daí que o sujeito deve advir. A forma de o sujeito advir nesse lugar é discriminando a rede de significantes, e a única forma de se discriminar essa rede é com o retorno, cruzando seu caminho novamente, do mesmo modo. Para ele, essa noção de cruzamento, a função do retorno, é essencial como constituição do campo inconsciente, e é a partir dessa noção que Lacan constrói a sua teoria da repetição, que descreveremos mais adiante.

Antes de introduzir a teoria lacaniana da repetição, devemos abordar mais uma questão, de extrema importância para este trabalho: a relação estabelecida entre o inconsciente e a sexualidade. O inconsciente é sexual, pois sua energia, energia do processo primário, é a libido, energia sexual. Para Lacan, porém, o sexual se inscreve no inconsciente por uma outra via. Pela via do desejo.

(32)

no campo do processo primário o impulso se satisfaz pela alucinação e, assim, “a função do desejo é resíduo último do efeito do significante no sujeito. É daí, necessariamente que se institui o essencial do processo primário” (LACAN, 1964, p. 147).

O realismo do inconsciente está na lacuna, no corte, naquela hiância, em uma ruptura que se inscreve na falta. É na análise que Lacan dá seu passo em referência à sexualidade. Para ele, é no desejo, que surge em análise, a partir dessa falta, que está a sexualidade. Assim é que a sexualidade, a partir do desejo que se articula em significantes, se liga ao inconsciente. Também trabalharemos mais essa questão quando formos desenvolver sua teoria da transferência.

1.3 O conceito de repetição em Lacan: tychê e automaton

A leitura que Lacan faz da repetição parte de um lugar um pouco diferente do que Freud desenvolveu. Como podemos observar, é por meio da transferência, no trabalho de análise, que Freud primeiramente observa a repetição, e daí parte para dar continuidade ao desenvolvimento desse conceito. Para Lacan, o conceito de repetição, apesar de se apresentar em análise, nada tem a ver com o de transferência. A repetição se desenvolve, em sua teoria, a partir do conceito de inconsciente e da noção de causalidade. Ele recorre então a Aristóteles e à sua noção de causa acidental, para desenvolver sua concepção sobre a repetição, tomando emprestado de Aristóteles as duas formas em que este desenvolve a causa acidental: a tychê e o automaton.

(33)

caráter de excepcionalidade, se distinguindo assim das outras causas. A tychê é associada a uma necessidade desconhecida, mas com um grau de deliberação, sendo, assim, uma causa oculta para a razão. Automaton está mais próximo do acaso, de uma causa acidental, sem nenhuma deliberação, de forma que seu efeito não é esperado.

Santos (2002) traz a definição de Aristóteles citada por Forrester:

Quando um agente causal qualquer produz acidentalmente um efeito não pertencente

a seu campo de aplicação, atribuímo-lo ao automaton; e, nos casos especiais em que

um tal resultado advém de uma ação deliberada (ainda que sua meta tivesse sido

outra) por parte de um ser capaz de escolher, podemos dizer que é fruto da tychê (p.

120).

Garcia-Roza (1984) considera que as noções de tychê e automaton foram sempre referidas ao acaso por dizerem respeito a acontecimentos a que a razão humana não atribuía inteligibilidade. Para ele, “tanto tychê quanto automaton designam um acaso secundário e não um acaso original, isto é, estão ambos referidos a uma ordem da qual eles são uma exceção ou um desvio” (p. 41).

A tychê é então referida a um ‘destino’, ao qual o sujeito estaria submetido, sendo aproximada do termo sorte. Mesmo sendo considerada uma causa oculta, a tychê não deve ser assimilada a um caráter puramente fortuito, que se aproximaria mais do automaton. Santos (2002) aponta para mais uma observação de Forrester, importante de ser ressaltada. Para ele, a tychê seria como uma subclasse do automaton, pois “somente os seres que são capazes de bem e de mal, tanto no sentido de ‘sentir-se’ quanto no de ‘agir’, só esses podem ser descritos pela tychê” (p. 120). Enfatiza, assim, a possibilidade de deliberação, de escolha, mesmo que inconsciente.

(34)

rede das associações, de uma rede composta de acaso e contigüidade. Os significantes se constituem em uma estrutura muito definida. Assim, diz ele,

Para nós, ao nível da última camada do inconsciente, lá onde funciona o diafragma,

lá onde se estabelecem as pré-relações entre o processo primário e o que dele será

utilizado no nível do pré-consciente, não poderia haver milagres. Isso, diz ele, tem

que ter relações com a causalidade (p. 49).

Lacan considera essencial a função do retorno, que, segundo ele, é o que garante a constituição do campo inconsciente. Para ele, porém, a função da repetição não se resume somente à do retorno dos signos.

Lacan (1964) então traduz a tychê como o encontro do real, e o automaton como a cadeia de significantes. Nessa etapa o real é o que retorna sempre ao mesmo lugar – ao lugar onde o sujeito não o encontra. O real é, então, aquilo que se repete como falta, um encontro faltoso. Garcia-Roza (1986) considera que o que caracteriza a tychê como ‘acaso’ é justamente esse encontro, o encontro de duas séries causais, e, o que justifica ter o caráter de excepcionalidade se dá também por conta de se tratar de um encontro. Ele observa que, para Aristóteles, o acaso não é tido como ausência de ordem, mas sim como um ‘acidente’ que articula séries causais independentes.

(35)

Por razão do que foi descrito acima, o retorno se liga à constituição do inconsciente. Essa seria a vertente simbólica da repetição, sempre compreendida por Lacan em duas vias: tychê e automaton, real e simbólico, produção e retorno. A noção dada à tychê deixa de lado a noção da ordem dos significantes para falar de causalidade, ou seja, é uma outra concepção. Ela traz em si o campo do real. Mas onde estaria esse real?

A cadeia de significantes seria a cadeia do desejo comandada pelo princípio do prazer, onde o objeto absoluto, aquele que estamos sempre procurando, sempre falta. No imaginário temos o objeto presente, um objeto, porém, que colocamos no lugar do objeto absoluto, uma ilusão. O real está situado entre esses dois objetos. “O real não se situa entre os objetos do mundo, entendidos estes como objeto de desejo, mas como o impossível, como o que falta ao encontro marcado e em cujo vazio toma lugar o significante”(GARCIA-ROZA, 1986 p. 43).

Em seu livro O Seminário - Livro 2 (1955), Lacan diz que o real é aquilo que se encontra sempre no mesmo lugar. Ele é o que se repete. Dessa forma, para Lacan, o real em psicanálise é pensado enquanto uma temporalidade que se liga à cadeia de significantes. Podemos então, a partir da ligação que Lacan faz da tychê com a noção de trauma, compreender a temporalidade.

(36)

trauma reaparece ali, com efeito, e muitas vezes com o rosto desvelado” (LACAN, 1955, p. 57).

Santos (2002) nos descreve com muita habilidade essa relação, que é do sujeito com a tychê e com o automaton: “é na produção de novas significações, pelo retorno da cadeia, que a dimensão da tychê aparece: o encontro de um ser capaz de escolha com aquilo que lhe escapa. A escolha implica a intenção. No caso do acidente, a intenção só pode ser reconhecida a posteriori” (p. 122). A intenção seria o desejo, que se reconhece somente quando advém de algo que já se encontrava lá. A cena primária do trauma é aquela na qual o desejo está inserido, como aquilo que deve permanecer na escuridão, mas que sempre se apresenta. Assim, a tychê produz-se por efeito do retorno de um significante, que é o automaton, fazendo surgir uma nova significação que, é inassimilável, pois, se refere ao desejo. É, então, pela via do desejo que as duas vertentes da repetição se encontram.

Lacan (1964) afirma que “o que se repete, com efeito, é sempre algo que se produz” (p. 56). Assim, ele considera que as declarações do sujeito em análise não devem ser tomadas ao pé da letra, isto porque o analista deve trabalhar justamente com o tropeço, com aquilo que se reencontra a todo instante. O tropeço aparece justamente naquilo que falta. Naquilo que falta está a verdade do sujeito. É lá que seu desejo aparece.

Por toda essa exposição, podemos compreender a razão pela qual Lacan (1964) considera como coisas diferentes a repetição, a reprodução e a rememoração. A rememoração era o que acontecia na época da hipnose, com o método catártico. Ela traz em si uma sabedoria sobre o sintoma. A reprodução é no sentido de uma alienação total, reprodução sem sentido. A repetição se faz a partir do retorno dos significantes; está, pois, relacionada ao desejo e à produção.

(37)

abordar essa questão. É a partir do encontro faltoso que se dá na repetição, a partir do sonho e do despertar, que ele desenvolve essa problemática. Assim, ele introduz o seguinte questionamento: Não será o que desperta, no sonho, uma outra realidade? Daí ele considerar que “o sonho prosseguido, não é ele, essencialmente, se assim posso dizer, a homenagem à realidade faltosa – a realidade que não pode mais se dar a não ser repetindo-se infinitamente, num infinitamente jamais atingido despertar?” (LACAN, 1964, p. 60).

Dessa forma, então, algo se repete por meio da realidade. Para ele, esse encontro, faltoso, se dá justamente entre o sonho e o despertar, fazendo com que o desejo se presentifique pela perda que atinge seu ponto mais cruel, do objeto. Dessa forma, então, “é no sonho somente que se pode dar esse encontro verdadeiramente único. Só um rito, um ato sempre repetido, pode comemorar esse encontro imemorável” (LACAN, 1964, p. 60). O encontro entre o desejo e o objeto.

Partindo dessa observação, podemos situar o lugar do real no espaço que se dá entre o trauma e a fantasia. A fantasia é o que dissimula algo primário, que é determinante na função da repetição. Dessa forma, o real será representado pelo ‘acidente’ que nos diz que não estamos sonhando. Mas, “por outro lado, essa realidade não é pouca, pois o que nos desperta é a outra realidade escondida por trás da falta do que tem lugar de representação – é o Trieb, nos diz Freud” (LACAN, 1964, p. 61).

Com base nessa conclusão lacaniana, vamos nos apoiar em Garcia-Roza (1986) para dizer que “o real não é a realidade, mas o que confere realidade ao mundo. Presença irredutível, o real é o que se repete, e nessa repetição funda o próprio mundo enquanto realidade. Esta é a repetição que vai caracterizar essencialmente a pulsão” (p. 43).

(38)

Capítulo 2

Pulsão e repetição

2.1 O movimento pulsional e o movimento repetitivo

Antes de falar em pulsão propriamente dita, devemos nos ater, por um instante, na diferenciação dos termos usados por Freud: Trieb e Instinct. A tradução inglesa da obra de Freud cometeu, no ponto, um significativo erro, considerando ambos os termos como instinct. Em conseqüência, a tradução brasileira, que foi feita a partir da inglesa, também comete esse mesmo grave erro (os termos que deveriam significar pulsão e instinto, em sentidos diferentes, foram igualmente traduzidos para instinto).

Freud, em determinados momentos de sua obra, utiliza o termo alemão Instinct referindo-se aos instintos naturais, como fome, sede etc. O termo Instinct, com esse sentido, assim como em seu conceito para a psicanálise, não guarda importância para o presente trabalho. Daremos atenção, aqui, ao Trieb. Na relação que Freud faz da pulsão com o instinto, ele utiliza o termo Anlehnung, que significa apoio. Para ele, a pulsão se apóia no instinto, mas não no sentido de confundir-se com ele, e sim de afastar-se dele.

(39)

Dessa falha de tradução decorre um dos equívocos mais comuns acerca da pulsão: sua biologização.

No texto Os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, Freud já desqualifica a identificação da pulsão com o instinto, rejeitando assim sua assimilação ao biológico. Garcia-Roza (1986), que considera a p u l s ã o uma perversão do instinto, observa que a articulação apresentada por Freud da pulsão com o instinto assinala não uma identidade, ma sim uma distância e diferença. Utilizaremos então neste trabalho o termo pulsão para falar do Trieb freudiano.

A partir desse mesmo texto (1905), Freud introduz o que ele nomeou de pulsão sexual, sendo a libido estabelecida como a energia dessa pulsão. Em 1910 Freud inaugura uma nova expressão, pulsões de ego, referindo-se a uma pulsão de autopreservação e, a partir daí, passa a discutir a dualidade da pulsão, situada entre esses dois conjuntos, o sexual e o do ego.

Para Freud, o conceito de pulsão sempre foi obscuro. Em 1915, em As Pulsões e suas vicissitudes, ele fez uma longa e importante exposição de suas observações acerca das pulsões. É nesse texto que ele desenvolveu a maior parte de suas considerações sobre esse tema. Mesmo tendo sofrido algumas modificações em textos posteriores, são as observações feitas em 1915 que vão levar Freud a um grande avanço em sua metapsicologia: a pulsão de morte. A respeito da pulsão de morte discorreremos no tópico 2.3. Por agora vamos seguir um pouco mais o caminho feito por Freud em seu texto de 1915.

(40)

provenientes. Além disso, essencial em um estímulo é que ele atua com um impacto único, daí poder ser removido por uma única ação. Com as pulsões é diferente, elas jamais atuam como uma força de impacto momentâneo, mas sempre como um impacto constante. Lacan (1964) aponta de forma metafórica que a pulsão “não tem nem dia nem noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida. É uma força constante” (p. 157). Essa observação é de grande importância, pois o movimento de constância das pulsões é o que vai marcar esse conceito, principalmente no que se refere ao tema de interesse deste trabalho, a repetição.

Para Freud (1915), essas duas descobertas têm a ver com a natureza essencial da pulsão e constituem suas principais características: sua origem em fontes internas do organismo e seu aparecimento como uma força constante. A partir daí acrescenta, como uma terceira característica, que nenhuma ação de fuga prevalece contra as pulsões. Para ele, o sentido que mais caracteriza uma pulsão é o de necessidade, tida como um estímulo interno, que para ser eliminado exige uma satisfação, que, por sua vez, só pode ser alcançada devido à uma alteração da fonte interna do estímulo, ou que seja adequada às exigências dessa mesma fonte. Na leitura Lacaniana, o termo ‘necessidade’ é utilizado para marcar nitidamente o caráter interno da excitação, seu caráter pulsional.

(41)

mesmo seu movimento de constância ocorrem de forma ‘arritmada’. A finalidade (Ziel), como já mencionado anteriormente, é sempre a satisfação. Segundo Freud, a única forma de se obter satisfação seria eliminando o estado de excitação na fonte da pulsão. Mas, lembra ele, embora a finalidade última da pulsão seja a satisfação e essa permaneça imutável, pode haver diferentes caminhos para se chegar a ela, o que significa que uma pulsão pode possuir várias finalidades intermediárias e que a satisfação como finalidade última pode se encontrar deslocada.

Uma questão importante pontuada por Freud nesse momento é de que existem pulsões que são ‘inibidas em sua finalidade’, ou seja, que progridem nesse sentido, mas que são defletidas. Não podemos deixar de lado a observação de que mesmo essas pulsões possuem uma espécie de satisfação parcial. Para Almeida (2005), a finalidade não pode ser alcançada, pois uma pulsão nunca se apresenta isoladamente.

Como objeto (Objekt), temos aquilo pelo qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade, ou de buscar atingir sua finalidade. Essa é a parte mais variável da pulsão e a mais importante. Assinala Freud que o objeto, “originalmente, não está ligado a ela (pulsão), só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação” (FREUD, 1915, p. 143). O objeto não é necessariamente algo estranho, podendo ser também alguma parte do corpo do próprio indivíduo. O objeto pode ser modificado várias vezes se assim se fizer necessário, e esse deslocamento da pulsão em busca do objeto desempenha um papel altamente importante. Lacan (1964) observa que devemos dar ao objeto uma função tal que diga de seu lugar na satisfação da pulsão, e para ele a melhor forma de apontar para isso é dizendo que a pulsão o contorna, como em uma borda.

(42)

fora do campo da psicologia. Para ele, embora a pulsão tenha sua origem numa fonte somática, ela até então era conhecida apenas por sua finalidade. Já para Lacan (1964), no impulso da pulsão (Drang), trata-se de algo que só é conotável na relação à fonte (Quelle), pois a Quelle inscreve na economia da pulsão essa estrutura de borda. Para ele, a borda, Quelle, fonte da pulsão, é também a zona erógena da pulsão.

Quando Freud fala do conceito do isso, ele está falando de uma impossibilidade de representação no inconsciente. Isso é justamente aquilo que é intraduzível no inconsciente, é a fonte da pulsão. A partir da fonte da pulsão, Freud trabalha a questão da qualidade e quantidade envolvidas numa pulsão. Para ele, as qualidades das pulsões são de ordem semelhante, o que as diferenciaria é sua forma quantitativa. A quantidade referida a uma pulsão seria determinada justamente por sua fonte. Dessa forma, a pulsão se satisfaz eliminando o estado de estimulação na fonte. Mas o objeto da pulsão sexual é desviado de seu fim, podendo haver uma substituição de objeto. Para Santos (2002), a satisfação pulsional é um imperativo, expresso pelo verbo sollen: “As pulsões buscam a ação, independente de qualquer experiência de desprazer anterior” (p. 102). Na pulsão não há aprendizagem. O trabalho da pulsão não é para o equilíbrio psíquico, mas sim para a sua satisfação.

(43)

Ocorre que o caminho em direção à completa satisfação está obstruído e, dessa forma, há um espaço entre a satisfação desejada e a conseguida. Há um vazio e, em conseqüência, uma falta se instala. A satisfação buscada será então parcial, ou seja, não haverá satisfação plena, o que também pode significar insatisfação. Essa insatisfação se dá justamente porque o primeiro objeto de satisfação, o objeto da primeira experiência de satisfação, foi perdido. Não há mais o objeto específico. Se não há o objeto, também não há a satisfação. Freud (1920) traz uma colocação de Fechner (1873) que se aplica a essa relação do objeto com a satisfação. Ele observa que uma tendência no sentido de um objetivo não implica, necessariamente, que ela seja atingida. Em geral, o objetivo é atingido apenas por aproximação. A satisfação pelo objeto também se dá por essa via, é apenas uma aproximação.

Para Lacan (1964),

A pulsão apreendendo seu objeto, apreende de algum modo que não é justamente

por aí que ela se satisfaz. Pois, se se distingue, no começo da dialética da pulsão, a

necessidade e a exigência pulsional, é justamente porque nenhum objeto de

nenhuma necessidade pode satisfazer a pulsão (p. 159).

A busca pelo preenchimento dessa falta será incansavelmente repetida. Para ele, se a pulsão pode ser satisfeita sem atingir o que em relação a uma função biológica seria sua satisfação, no caso, a reprodução, é pela razão de ser pulsão parcial. Dessa forma, seu alvo não é outra coisa senão esse retorno em circuito.

(44)

objeto absoluto é justamente um furo, uma falta central. O objeto da pulsão estará sempre a errar.

O primeiro objeto de satisfação é denominado na psicanálise de a Coisa (das Ding). Mas esse objeto é justamente o vazio, a falta de objeto. O objeto absoluto falta não no sentido de uma carência momentânea, mas no sentido de que ele nunca existiu enquanto objeto da pulsão. Como o objeto absoluto foi perdido, podemos dizer que a pulsão se caracteriza por não possuir objeto, ao menos no sentido de um objeto próprio de satisfação. Se o objeto absoluto falta, com isso, ocasionando uma impossibilidade de satisfação plena, algum objeto deve vir em seu lugar para proporcionar à pulsão a possibilidade de satisfação parcial. Lacan (1964) coloca que o das Ding é introduzido pelo fato de que nenhum objeto jamais satisfará a pulsão, senão contornando-se esse objeto eternamente faltante, que, mesmo há muito tempo desconhecido, é essencial.

Em alemão existem dois termos que designam a coisa: das Ding e die Sache. Lacan (Seminário - L ivro 7) faz uma diferenciação dos dois termos. Para ele, o objeto primeiro de satisfação, aquele que buscamos, é o das Ding, mas o objeto que encontramos é o die Sache. O segundo, que encontramos, preenche o vazio deixado pelo primeiro, mas nunca de forma completa.

(45)

É esse o movimento constante da pulsão. Como a pulsão não encontra o objeto plenamente adequado para sua satisfação, permanece uma insatisfação que impede a pulsão de esgotar-se no objeto. E é por isso que ela retorna. A repetição psíquica é da fixação, repetição daquilo que foi demais, que fez uma marca e assim se fixa.

Garcia-Roza (1990) traz uma importante diferenciação feita a partir dessa questão: objeto (Gegenstand) e coisa (Ding). Ele considera que o objeto é aquilo que se coloca diante do sujeito. Mas não como existente em si, pois se distingue do ato pelo qual é pensado/representado por ser correlato da consciência. “Não é da mesma coisa que ele se coloca ‘diante de’ em cada um desses atos, mas é sempre como correlato de cada um desses atos que ele é um objeto” (p. 81). Para ele, existem inúmeras formas pelas quais pode se dar a consciência de um objeto, mas em nenhuma delas esse objeto se confunde com a coisa. A coisa, porém, possui posição autônoma. Ela pode ou não ser tomada como objeto, na medida em que ela se coloca, ou não, diante do sujeito. Dessa forma, diz ele, o que faz da coisa uma coisa não é o fato de ela ser um objeto representado, mas o fato de ela manter-se autônoma em si mesma.

(46)

O das Ding é um centro que jamais é atingido. Ele é sempre contornado, e o que o contorna é a pulsão. Voltando à observação de que o objeto pode ser modificado várias vezes se assim se fizer necessário para a busca da satisfação, podemos então entender a declaração de Garcia-Roza (1990) de que “o que nos interessa não é a impossibilidade de a pulsão ser satisfeita, mas as incontáveis maneiras de ela ser satisfeita... parcialmente” (p. 70). Para ele, ao mesmo tempo em que existe uma insatisfação permanente, existem também infinitas possibilidades de satisfação, desde que seja parcial. Por isso, conclui que as pulsões exigem uma dose mínima de satisfação no nível do real.

Lembramos que no texto de 1915 as pulsões ainda eram determinadas em sua dualidade pelas pulsões sexuais e pulsões do ego. Mas já nesse texto fica claro o incômodo de Freud a respeito dessa dualidade, considerando-as apenas como hipótese de trabalho. Freud resume então dizendo que o traço essencial das vicissitudes sofridas pelas pulsões está na sua sujeição:

Às influências das três grandes polaridades que dominam a vida mental. Dessas

três polaridades podemos descrever a da atividade-passividade como a biológica, a

do ego-mundo externo como a real, e finalmente a do prazer-desprazer como a

polaridade econômica(FREUD, 1915, p. 162).

Trabalharemos de forma mais detalhada cada uma dessas polaridades mais adiante.

(47)

identificada, exatamente para não se biologizar a pulsão, pois não se trata de um conceito biológico. O corpo de que trata a psicanálise é justamente um corpo pulsional. A pulsão representa o corpo no psiquismo, mas só se faz presente através de representantes. A pulsão enquanto real diz respeito ao corpo. Dessa forma, o que pertence ao registro psíquico é a representação da pulsão e não ela mesma. Garcia-Roza (1986) também ressalta que a pulsão não designa uma realidade existente, mas sim uma forma de falar de existentes. Segundo ele, “é por metáforas que falamos de pulsão” (p. 14).

A pulsão seria o conceito metapsicológico para falar desse limite que trata da sexualidade, psíquica e somática. Ele surge para dizer daquilo que não pode ser dito, que é da ordem da sexualidade. Por sexualidade temos, então, uma experiência na qual a pulsão é conceito. Quando Freud fala de sexualidade infantil, ele está falando do conceito de sexualidade. As características desta, seu caráter polimorfo e perverso, se devem justamente a seu valor pulsional. A sexualidade é considerada por Freud (1905) como aberrante em relação à sua função biológica de reprodução. A pulsão sexual não visa à reprodução, mas sim à satisfação. Portanto, assim como a pulsão, a sexualidade traz em si uma impossibilidade de ser completamente simbolizada. A pulsão precisa da palavra, da representação, ainda que ela não dê conta de sua significação. Nesse sentido, a sexualidade pode ser experimentada sem ser de forma patológica, por meio da linguagem.

Lacan (1964) afirma que a pulsão representa, parcialmente, ‘a curva da terminação da sexualidade no ser vivo’. E que, em relação à sexualidade, todos os sujeitos, desde a criança até o adulto, estão em igualdade, “que a sexualidade só se realiza pela operação das pulsões, no que elas são pulsões parciais, parciais em relação à finalidade biológica da sexualidade” (p. 167).

(48)

uma representação. Há uma exigência de significação na pulsão, ela busca por um sentido.A repetição pulsional se dá justamente onde a linguagem e a representação não dão conta, onde não têm significação. Pulsão sexual, para Garcia-Roza (1990), é a pulsão referida a esse ‘corpo- linguagem’. Sexualidade e prazer andam juntos; a sexualidade será sempre uma experiência; uma experiência de prazer. Nela há um excesso que não consegue encontrar satisfação, que Freud chamou de excesso de libido. Quando há uma descarga do aumento dessa tensão é que há prazer.

Nesse sentido podemos pensar em uma qualidade pulsional. O sexual é o que se obtém por articulação entre a pulsão e um objeto capaz de funcionar em relação ao d i ferencial prazer-desprazer. Dessa forma, a pulsão sexual seria aquela investida em um objeto, o sexual tido como ordem instituída sobre um fundo pulsional anárquico. Garcia-Roza (1986) considera que a sexualidade humana é essencialmente disfarce e que a repetição é constituinte do sexual. Para a psicanálise a repetição não é representação: “a máscara não representa um objeto, ela significa algo” (GARCIA-ROZA, 1986, p. 51). E assim, como afirma Lacan (1964), a sexualidade exerce sua atividade própria, faz seu retorno, por intermédio das pulsões parciais, ou seja, só se realiza na medida em que é suportada por essas pulsões.

(49)

considera essa experiência como diferencial tanto qualitativa como quantitativamente. Para ele, o prazer tem início com essa experiência diferencial. É justamente esse diferencial prazer-desprazer que caracteriza o sexual.

Garcia-Roza (1986) considera que “não é o princípio de prazer o que funda o prazer, mas, ao contrário, é o prazer o que se erigirá em princípio” (p. 47). Para ele, essa passagem de prazer como processo psicológico para um prazer compreendido como princípio se dá em função da ligação (Bindung), ou seja, uma transformação de energia livre em energia ligada. A energia livre é aquela que circula de forma dispersa, sem ordem, e que tende a uma descarga. Nesse mesmo texto, Garcia-Roza coloca que, se essa energia não for conduzida a uma descarga de forma adequada, ela poderá provocar uma grande desestruturação no psiquismo. A ligação a essa energia que antes circulava livremente é a condição para o prazer se instalar como princípio.

Em Além do princípio do Prazer, 1920, Freud também nos alerta para este ponto. Para ele, a função de sujeitar a excitação seria primeiramente exercida pelo aparelho psíquico, “não em oposição ao princípio de prazer, mas independentemente dele e, até certo ponto, desprezando-o” (p. 52).

(50)

aquém do psíquico. Como visto no capítulo 1, o primeiro momento, de energia livre, Freud nomeou de processo primário e, o segundo momento, de energia ligada, de processo secundário.

É então após a instauração do aparelho psíquico que pode surgir o princípio do prazer. E, a partir desse momento, de surgimento do princípio do prazer, Freud (1920) considera que o inconsciente estaria a ele submetido, ou seja, o inconsciente se moveria na busca pelo prazer. Dessa forma, o afeto estaria desligado de representação e submetido também ao princípio do prazer no sentido de uma descarga, uma descarga de energia que produzisse prazer. O psíquico está interessado nessa descarga que produza prazer, ou seja, que tenha qualidade. É justamente na hipótese de que o aparelho mental busque manter a quantidade de excitação presente a mais baixa possível, ou pelo menos constante, que Freud (1920) se baseia para acreditar na dominância do princípio do prazer.

Por outro lado, Freud (1920) fala do princípio de constância, que não tem qualidade, que é pura descarga pulsional. O princípio de constância procura manter um nível mínimo de energia, justamente para que se dê uma constância de energia. Já o princípio de nirvana é uma força inconsciente que busca a descarga de energia a zero, de modo que interrompa a tensão. Esse princípio tenta manter-se completamente livre de toda e qualquer excitação. Freud (1920) diz que o princípio de prazer é decorrente do princípio de nirvana. Em relação a essa questão, Santos (2002) diz que “o princípio de nirvana é a expressão do funcionamento psíquico no momento em que se rompe a homeostase” (p. 116). A esse princípio Freud associa a pulsão de morte, de que falaremos de forma mais detalhada no tópico 2.3.

(51)

vida. Mas o princípio de realidade também preserva o mesmo objetivo do princípio de prazer, ou seja, a satisfação, e está, como ele, ligado ao processo secundário. Garcia-Roza (1990) nos chama a atenção, porém, para o fato de que o princípio de realidade não nos remete a esse mundo ordenado do qual temos consciência. Ele assinala que esse princípio diz respeito aos signos que indicam o mundo exterior, e não ele próprio. O princípio de realidade regula as necessidades vitais, o estado de urgência da vida.

O princípio de prazer não possui um sistema percepção-consciência e, dessa forma, não pode ter uma finalidade adaptativa, o que significa não conseguir fazer uma distinção entre os objetos real e alucinado. Daí que, para o autor, é função do princípio de realidade conferir a esse aparelho uma eficiência mínima. Essa correção é feita em relação ao mundo interno somente. Em relação a ele próprio, afinal, aponta-nos Lacan (1981) que a característica fundamental do aparelho psíquico não é satisfazer a necessidade, mas sim aluciná- la.

Em 1964, Lacan já havia afirmado que o princípio do prazer se caracteriza pelo fato de que “o impossível está ali tão presente que ele jamais é reconhecido como tal. A idéia de que a função do princípio do prazer é de se satisfazer pela alucinação está aí para ilustrar isso” (p. 159).

Esses três princípios, chamados de princípios econômicos, são modos de satisfação pulsional. Se não há uma mediação psíquica que nela coloque um sentido, a satisfação se torna pura descarga. Para Santos (2002), os princípios não se anulam. Segundo a autora, o objetivo último deles seria o mesmo: a diminuição da tensão interna do aparelho.

(52)

de diferenças, e é por isso que Freud fala do caráter conservador da pulsão, a significar resistência à mudança e repetição do mesmo: “Essas pulsões, portanto, estão fadadas a dar uma aparência enganadora de serem forças tendentes à mudança e ao progresso, ao passo que, de fato, estão apenas buscando alcançar um antigo objetivo por caminhos tanto velhos quanto novos” (FREUD, 1920, p. 55). Freud (1920) continua dizendo, contudo, que “além das pulsões de conservação que impelem à repetição, poderão existir outras que impulsionam no sentido do progresso e da produção de novas formas” (p. 55). Temos aí já um apontamento de Freud acerca da repetição no sentido de uma produção, do novo, mas não é aí que ele a desenvolve e nós também iremos tratar dela de forma mais aprofundada no capítulo 3.

Dessa forma, a repetição da qual fala Freud ainda representa, em alto grau, um caráter pulsional, mas no sentido de um conservadorismo.

2.2 Além do Princípio do Prazer

Foi na observação constante de uma criança de um ano e meio de idade que Freud avançou consideravelmente em sua teoria da repetição. Freud faz menção a essa observação em seu texto Além do princípio do prazer (1920), no qual fala do jogo do Fort-Da. Freud e essa criança, que era seu neto, passaram tempo considerável na mesma moradia. Ela não apresentava nenhum comportamento precoce em seu desenvolvimento intelectual, assim como era considerado um bom menino (“não dava trabalho”), principalmente porque nunca reclamava quando seus pais saiam e o deixavam só. Era também bastante ligado à mãe.

Referências

Documentos relacionados

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Apothéloz (2003) também aponta concepção semelhante ao afirmar que a anáfora associativa é constituída, em geral, por sintagmas nominais definidos dotados de certa

A abertura de inscrições para o Processo Seletivo de provas e títulos para contratação e/ou formação de cadastro de reserva para PROFESSORES DE ENSINO SUPERIOR

A Variação dos Custos em Saúde nos Estados Unidos: Diferença entre os índices gerais de preços e índices de custos exclusivos da saúde; 3.. A variação dos Preços em

A espectrofotometria é uma técnica quantitativa e qualitativa, a qual se A espectrofotometria é uma técnica quantitativa e qualitativa, a qual se baseia no fato de que uma

Figura 8 – Isocurvas com valores da Iluminância média para o período da manhã na fachada sudoeste, a primeira para a simulação com brise horizontal e a segunda sem brise

Quanto às variáveis relacionadas à satisfação nas duas últimas duas semanas, somente para dinheiro não houve diferença antes e depois da cirurgia, para as demais:

É importantíssimo que seja contratada empresa especializada em Medicina do Trabalho para atualização do laudo, já que a RFB receberá os arquivos do eSocial e