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A Ficção Policial de Fernando Pessoa: no labirinto à espera de Ariadne

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Academic year: 2021

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A Ficção Policial de Fernando Pessoa:

no labirinto à espera de Ariadne

Gianluca Miraglia* FREITAS, Ana Maria de (2016). O Fio e o Labirinto: a ficção policial na obra de Fernando Pessoa.

Lisboa: Colibri, 344 pp. [ISBN 978-989-68955-5-6]. Durante mais de três décadas, o livro de Fernando Luso Soares, A Novela Policial Dedutiva

em Fernando Pessoa 1 foi sinónimo da ficção

policial na obra de Pessoa. Com base nele, exceptuando raríssimos casos, foram escritos todos os artigos e ensaios que abordaram as novelas policiárias e a figura do Dr. Quaresma, até, pelo menos, ao começo do segundo milénio. Nos últimos anos, mercê de um considerável e meritório trabalho de investigação no espólio da Biblioteca Nacional de Portugal, Ana Maria de Freitas tem contribuído de forma notável para um conhecimento mais abrangente e profundo dessa faceta da obra pessoana ainda hoje substancialmente ignota, ao reunir e transcrever um amplo corpus textual que editou em dois

volumes: Quaresma, Decifrador: as novelas policiárias2 e Histórias de um Raciocinador e o

Ensaio «História Policial».3 O ensaio O Fio e o Labirinto, que se impõe desde já como

leitura obrigatória para todos os estudiosos da obra de Fernando Pessoa, seja qual for a sua área de especialização, constitui a segunda parte da investigação levada a cabo por Ana Maria de Freitas; para empregarmos as suas palavras, «a análise do conceito pessoano do género policial» (2016: 10) e, mais especificamente, a resposta a uma série de questões que o exaustivo levantamento dos textos policiários colocava:

* Universidade de Lisboa, Centro de Investigação de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL).

1 SOARES, Fernando Luso (1976). A Novela Policial Dedutiva em Fernando Pessoa. Lisboa: Diabel. 2 PESSOA, Fernando (2008). Quaresma, Decifrador: as novelas policiárias. Edição de Ana Maria de

Freitas, Lisboa: Assírio & Alvim.

3 PESSOA, Fernando (2012). Histórias de um Raciocinador e o Ensaio «História Policial». Edição de Ana

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Qual a dimensão da escrita policial na obra de Pessoa? Como se relacionava essa escrita com os conceitos da obra já conhecida? Qual fora o seu processo criativo? Que universo imaginário se encontrava ali delineado? De que modo se aproximavam estas narrativas do cânone policial? E por fim a questão essencial: Estávamos perante histórias policiais ou perante algo diferente e especificamente pessoano?

(2016: 11-12)

Para responder a essas questões, a autora fornece uma descrição ampla e pormenorizada da relação de Fernando Pessoa com o género policial, na qualidade de leitor, crítico e escritor, e é apenas sobre essa descrição que me irei concentrar na presente recensão, seguindo justamente a ordem, Pessoa leitor, crítico e escritor, para assinalar alguns aspectos menos conseguidos, ou discutíveis do livro de Ana Maria de Freitas, quer no plano da investigação, quer no da interpretação.

Em primeiro lugar, o Pessoa leitor de policiais. No terceiro capítulo, «A Ficção Policial e Fernando Pessoa», a autora, para sublinhar o forte interesse pela literatura policial que acompanhou Pessoa ao longo de toda a sua vida, apresenta em primeiro lugar um útil levantamento dos romances policiais que se encontram na sua biblioteca e, a seguir, transcreve e analisa algumas listas de livros do mesmo género que o escritor planeava comprar. Se, no primeiro caso, apenas pode ser apontada a falta da indicação de duas obras de S.S. Van Dine (The Benson Murder

Case e The Bishop Murder Case), já em relação às listas de livros é preciso relembrar

que se conhecem mais listas, e a autora, para dar uma informação exaustiva, teria consultado com proveito o livro A Biblioteca Particular de Fernando Pessoa,4 em

particular o apêndice III, assim como o artigo de Pizarro e Ferrari, «Uma Biblioteca

em Expansão: sobrecapas de livros de Fernando Pessoa | A Growing Library: dust jackets from Fernando Pessoa’s book collection»5.

Passando ao Pessoa crítico, descrito e analisado no subcapítulo «O Ensaio ‘Detective Story’» e em parte no sucessivo «Diálogos», é evidente que, à luz da nova edição desse escrito pessoano, na realidade dúplice, essas páginas tornaram-se inelutavelmente obsoletas6. Contudo, deve-se salientar a muito pertinente e

pormenorizada análise do conjunto de anotações nas margens do volume Great

Short Stories of Detection, Mystery and Horror de Dorothy L. Sayers. Ora, surpreende

o facto de Ana Maria de Freitas não referir outra antologia que consta da biblioteca

4 PIZARRO, Jerónimo; FERRARI, Patricio; CARDIELLO, Antonio (2010). A Biblioteca Particular de Fernando

Pessoa. Alfragide: D. Quixote.

5 PIZARRO, Jerónimo; FERRARI, Patricio (2011). «Uma Biblioteca em Expansão: sobrecapas de livros

de Fernando Pessoa | A Growing Library: dust jackets from Fernando Pessoa’s book collection».

Pessoa – Revista de Ideias Ideias, n.o 3. Lisboa: Casa Fernando Pessoa.

6 Veja-se, neste mesmo número de Pessoa Plural—A Journal of Fernando Pessoa Studies, o contributo

de Gianluca Miraglia, «An Essay on Detective Literature e Detective Story: dois ensaios de Fernando Pessoa sobre a ficção policial».

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particular de Pessoa e cuja influência nos seus escritos sobre o policial resulta bastante evidente: Crime and Detection (1926), organizada por E.M. Wrong.

Vejamos, por fim, o Pessoa escritor de contos e novelas policiais. Cumpre, em primeiro lugar, falar de algo que está totalmente ausente de O Fio e o Labirinto, ou seja, um enquadramento histórico. Embora a autora afirme, no subcapítulo «Em Busca do Policial Português», que «sem pretender realizar uma história da literatura policial portuguesa interessa, no entanto, situar o género no panorama nacional, tal como Fernando Pessoa o conheceu» (FREITAS, 2016: 114), na realidade,

as breves páginas dedicadas ao assunto não descrevem de maneira alguma o panorama nacional, concluindo-se com umas afirmações peremptórias:

E chegamos a Fernando Pessoa. Não há notícia do seu interesse por este panorama e tudo indica que vivia à margem da literatura policial portuguesa. Lia continuamente os policiais ingleses e alguns americanos, ajustava as suas noções ao que se fazia nesses países e escrevia textos que, embora transformassem as regras do género, não se pautavam pela produção nacional. O seu universo era outro.

(FREITAS, 2016: 118)

Que Pessoa não se pautasse pela produção nacional e tenha vivido à margem do género policial português dos anos 30, um fenómeno com uma difusão muito mais ampla do que se pode depreender do livro de Ana Maria de Freitas, e que também considerasse o que até então tinha sido publicado em Portugal de escasso interesse, poderia até ser confirmado citando as palavras do próprio escritor em 1935, algo que a autora não faz: «le roman policier – genre heuresement presque inexistente en langue português –» (em CUNHA, 1987: 130).7 Todavia, se

considerarmos que era sua firme intenção publicar as novelas policiárias, como atestam quer os vários projectos, que chegam ao detalhe do tipo de edição, quer as cartas a Adolfo Casais Monteiro, uma contextualização que coloque essas novelas no concreto mercado livreiro contemporâneo não pode ser dispensada, num ensaio que pretende ser completo e abrangente acerca da ficção policial de Pessoa. Teria sido oportuno lembrar, pelo menos, o aparecimento a partir da década de 1920 de várias colecções de literatura de consumo que visavam ir ao encontro de uma nova camada de leitores8 e, mais especificamente no âmbito do género policial, a

publicação da «Novela Policial», em 1930-1931, exclusivamente dedicada a autores nacionais,9 e o lançamento das primeiras colecções consagradas à ficção policial:

«Os Melhores Romances Policiais”» da Clássica Editora, «Novelas Policiais» das

7 CUNHA, Teresa Sobral (1987). «Fernando Pessoa em 1935: da ditadura e do ditador».

Colóquio-Letras, n.º 100. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

8 Uma primeira informação encontra-se em José Augusto França, Os Anos 20 em Portugal. Lisboa:

Presença, 1992.

9 Veja-se, de Gianluca Miraglia, «Literatura Policial Portuguesa dos Anos 30: Reinaldo Ferreira e a

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Edições Gleba, em 1931, e, pouco tempo depois, «Grande Romance Policial» da Henrique-Torres Editor, cujos primeiros volumes saíram em 1934. Em relação ao policial nacional, além de Reinaldo Ferreira (o Repórter X), deve ser mencionado também Mário Domingues, que não só escreveu sob pseudónimo numerosos romances, apresentados como traduções de hipotéticas obras estrangeiras, mas publicou também em 1938 Um Crime em Sintra,10 sinal de que nessa altura a

viabilidade de uma literatura policial nacional não era uma quimera. Tudo isso para dizer que a eventual publicação das novelas policiárias não teria caído num absoluto vazio; e, de resto, se lermos com a devida atenção as cartas de Pessoa a Casais Monteiro, notamos não só que ele «hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas — , englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar» (PESSOA, 1986: 199)11;

mas também que este projecto se baseia na concreta esperança de que este tipo de livros poderia encontrar leitores em Portugal, ao contrário de outros: «Se quiser realmente publicar o Caeiro, o Ricardo Reis e o Álvaro de Campos, posso fazê-lo imediatamente. Sucede, porém, que receio a nenhuma venda de livros desse género e tipo» (PESSOA, 1986: 211). Sempre neste capítulo, teria sido interessante

relembrar, nem que fosse como curiosidade, o encontro entre Pessoa e o mais conhecido escritor de policiais da altura, Reinaldo Ferreira (o Repórter X), do qual há um testemunho nas páginas do semanário X, na secção «Homens da Semana». Reinaldo Ferreira descreve a figura do misterioso poeta, de quem toda Lisboa falava então por causa do artigo «Associações Secretas» (Diário de Lisboa, 4 de Fevereiro de 1935), e refere uma conversa com o escritor:

Um dia alfinetado pelas lendas que aureolavam as suas leituras, tentei velhacamente radiografá-lo mas com surpresa minha citou-me a elite dos romancistas policiais britânicos, confessando que passava horas, deliciosas, na solidão, emocionando-se naqueles duelos empolgantes entre detectives e bandidos em redor de um mistério denso e desconcertante. ‘Quando me canso dos outros’ – declarou – ‘corro aos policiais’.

(1935: 4)

O capítulo «Pessoa escritor de policiais» descreve de forma pormenorizada todas as narrativas escritas por Pessoa, desde os primeiros contos escritos na adolescência, os Tales of a Reasoner, até ao romance em língua inglesa, The Mouth of

Hell, passando pelas novelas policiárias que protagonizam o dr. Quaresma. Se a

parte relativa à produção juvenil, exaustiva e bem documentada, não levanta questões, já em relação às novelas policiárias são várias as perplexidades que

10 DOMINGUES, Mário (1938). Um Crime em Sintra. Porto: Agência Editorial Brasileira.

11 PESSOA, Fernando (1986). Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas. Introdução, organização

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suscita, sendo que, neste caso, o que torna a interpretação do corpus textual algo periclitante é a falta do seu necessário enquadramento no contexto da evolução da literatura policial. Como escreve Ana Maria de Freitas, os projectos editorais revelam que Pessoa começou a planear a edição das novelas policiárias em 1914. Entre este ano e o da morte, 1935, medeiam cerca de vinte anos, um longo período de tempo que, a fazer fé em O Fio e o Labirinto, seria de substancial continuidade na escrita de Pessoa, aliás herdeira das primeiras tentativas juvenis:

Quaresma, Decifrador representa a continuidade da escrita de ficções policiais, iniciada ainda

em Durban e que culminou neste conjunto de novelas organizadas em série [...]. Das Tales of

a Reasoner para o policiário e Quaresma do universo inglês para o português, de Lisboa. As detective stories, que se situam num ambiente anglo-saxónico, nas personagens, nos locais,

dão lugar a outro universo, português e lisboeta este.

(FREITAS, 2016: 208)

Ora bem, é natural que em 1914, e nos anos imediatamente seguintes, o modelo para Pessoa fossem ainda os volumes de contos de Conan Doyle e de Arthur Morrison, todavia, na segunda metade dos anos 20 e no começo dos anos 30, o criador do dr. Quaresma, justamente porque acompanhava com regularidade a literatura policial, não podia permanecer impermeável à sua evolução e, de facto, acabou por redefinir parcialmente os seus projectos iniciais em conformidade com o afirmar-se da Golden Age que se caracteriza também por preferir a forma narrativa da novela ou do romance em detrimento do conto. «O Caso Vargas», por exemplo, é um dos últimos títulos a aparecer nos projectos de Pessoa e, em breve, transforma-se numa novela dividida em numerosos capítulos que devia ser publicada em separado. Mas não é apenas em relação aos projectos editoriais que é necessário ter em conta a evolução da literatura policial e o seu reflexo em Pessoa para uma correcta interpretação das novelas policiárias, também a descrição e análise do seu protagonista, o dr. Quaresma, não pode prescindir do contexto, sob pena de esbarrar com contradições aparentemente inexplicáveis, como evidencia o seguinte comentário de Ana Maria de Freitas acerca de um dos documentos do espólio: «O apontamento fornece-nos datas, mas contraria a afirmação inicial de que Quaresma morrera em Nova Yorque» (2016:230). O que em O Fio e o Labirinto torna confuso e discutível o retrato da personagem do dr. Quaresma, é o facto de a autora se referir constantemente a um «Prefácio a Quaresma», como se se tratasse de um único texto ampliado com o passar dos anos, sem nunca considerar a hipótese muito mais provável que essa unidade não existe e que, pelo contrário, estamos perante a uma série de textos, ou seja a vários prefácios, que correspondem às alterações que o projecto editorial ia subindo ao longo do tempo. Esta abordagem, de resto, enraíza no livro Quaresma, o Decifrador, onde Ana Maria de Freitas em “Prefácio” (2016: 31-38) reuniu, sem descriminação alguma, textos escritos em períodos de tempo diferentes. A minha impressão é que um exame

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cuidadoso dos documentos, uma vez seriados cronologicamente, levaria com muita probabilidade à conclusão que, se numa primeira fase o dr. Quaresma é uma espécie de avatar do Ex-Sergeant Byng adaptado à realidade portuguesa, isto é, um detective que se enquadra plenamente na linha Dupin-Conan Doyle, à medida que Fernando Pessoa se familiariza com as novas tendências da narrativa policial, a personagem vai perdendo os seus traços mais excêntricos. Em conclusão, o livro de Ana Maria de Freitas representa um enorme passo em frente para o estudo da ficção policial da obra de Fernando Pessoa e, como todos os ensaios que não receiam o confronto aberto com a realidade concreta do espólio pessoano, abre caminho para novas e estimulantes investigações.

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